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Investigação sobre as configurações sociais do subcampo do esporte paralímpico no Brasil: os processos de classificação de atletas

Research on social settings of paralympic sports in Brazil: process for classification of athletes

Resumos

Este trabalho tem por objetivo investigar e delimitar formas de interação e disputas sociais presentes no movimento paralímpico brasileiro, relativos aos processos de classificação de atletas, com base em conceitos de Pierre Bourdieu. A metodologia utilizada fundamentou-se em entrevistas semiestruturadas com quatro atletas (com deficiência física ou visual, praticantes de diversas modalidades: natação, goalball, rugby e basquete em cadeira de rodas) e quatro dirigentes (2 atuantes em funções técnicas e 2 em funções administrativas do Comitê Paralímpico Brasileiro). A análise de dados apoiou-se no método Discurso do Sujeito Coletivo e suas ferramentas metodológicas (expressões-chave; ideias centrais; ancoragens; instrumentos de análise de discurso). Destacam-se como resultados: os protocolos de classificação, assim como a atuação e formação de novos classificadores, são motivo de tensões sociais neste espaço; Os classificadores exercem importante poder simbólico no subcampo; Demais agentes, como treinadores e atletas, têm suas possibilidades de ascensão diminuídas por condições sociais desfavoráveis..

Paralímpico; Classificação; Pierre Bourdieu


This study aimed to investigate and define interaction ways and social disputes in Brazilian Paralympic movement, relative the procedures for classification of athletes, based on Pierre Bourdieu's concepts. The methodology was based on semi-structured interviews with 4 athletes (physical or visual disabilities, practitioners of different sports - swimming, goalball, rugby and wheelchair basketball) and 4 administrators (2 active in technical functions and 2 in administrative functions at the Brazilian Paralympic Committee). The data analysis was based on the Collective Subject Discourse method and its methodological tools (keyword phrases; central ideas; anchors; tools of discourse analysis). Results stand out as: classification protocols, as well as the performance and training of new classifiers represent social tensions in this area; classifiers have an important symbolic power in the sub-area; Other agents, like coaches and athletes, have reduced chances of ascent due the unfavorable social conditions.

Paralympic; Classification; Pierre Bourdieu


ARTIGOS ORIGINAIS ORIGINAL ARTICLES

Investigação sobre as configurações sociais do subcampo do esporte paralímpico no Brasil: os processos de classificação de atletas

Research on social settings of paralympic sports in Brazil: process for classification of athletes

Renato Francisco Rodrigues MarquesI; Gustavo Luis GutierrezII; Marco Antonio Bettine de AlmeidaIII

IDoutor. Professor da Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

IIDoutor. Professor Titular da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP, Brasil

IIIDoutor. Professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, São Paulo-SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Renato Francisco Rodrigues Marques Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo Avenida Bandeirantes, 3900, Monte Alegre CEP: 14040-907, Ribeirão Preto, SP., Brasil. E-mail: renatomarques@usp.br

RESUMO

Este trabalho tem por objetivo investigar e delimitar formas de interação e disputas sociais presentes no movimento paralímpico brasileiro, relativos aos processos de classificação de atletas, com base em conceitos de Pierre Bourdieu. A metodologia utilizada fundamentou-se em entrevistas semiestruturadas com quatro atletas (com deficiência física ou visual, praticantes de diversas modalidades: natação, goalball, rugby e basquete em cadeira de rodas) e quatro dirigentes (2 atuantes em funções técnicas e 2 em funções administrativas do Comitê Paralímpico Brasileiro). A análise de dados apoiou-se no método Discurso do Sujeito Coletivo e suas ferramentas metodológicas (expressões-chave; ideias centrais; ancoragens; instrumentos de análise de discurso). Destacam-se como resultados: os protocolos de classificação, assim como a atuação e formação de novos classificadores, são motivo de tensões sociais neste espaço; Os classificadores exercem importante poder simbólico no subcampo; Demais agentes, como treinadores e atletas, têm suas possibilidades de ascensão diminuídas por condições sociais desfavoráveis..

Key-words: Paralímpico. Classificação. Pierre Bourdieu

ABSTRACT

This study aimed to investigate and define interaction ways and social disputes in Brazilian Paralympic movement, relative the procedures for classification of athletes, based on Pierre Bourdieu's concepts. The methodology was based on semi-structured interviews with 4 athletes (physical or visual disabilities, practitioners of different sports - swimming, goalball, rugby and wheelchair basketball) and 4 administrators (2 active in technical functions and 2 in administrative functions at the Brazilian Paralympic Committee). The data analysis was based on the Collective Subject Discourse method and its methodological tools (keyword phrases; central ideas; anchors; tools of discourse analysis). Results stand out as: classification protocols, as well as the performance and training of new classifiers represent social tensions in this area; classifiers have an important symbolic power in the sub-area; Other agents, like coaches and athletes, have reduced chances of ascent due the unfavorable social conditions.

Keywords: Paralympic. Classification. Pierre Bourdieu.

INTRODUÇÃO

O esporte e a teoria dos campos de Pierre Bourdieu

O esporte paralímpico é uma das formas de manifestação do esporte adaptado que, segundo Goodwin et al. (2009), pode ser um componente facilitador para a inclusão social, pois possibilita ao atleta fazer parte de um grupo com pessoas nas mesmas condições e ter seus feitos valorizados por critérios esportivos e não apenas pela superação da deficiência. Porém, por se tratar de um ambiente de alto rendimento, o limiar entre o sucesso e o fracasso é muito tênue, sendo dependente de configurações específicas como, por exemplo, os sistemas de classificação. Deste modo, estudos sobre meios de socialização presentes neste ambiente são modos de melhor entendê-lo e prepará-lo para que seja adequado e sirva como meio de inclusão social de pessoas com deficiência.

Como forma de análise sociocultural sobre o esporte paralímpico no Brasil, este trabalho foca sua atenção na classificação de atletas e nas relações e disputas sociais que a permeiam. Em pesquisas de cunho sociocultural, insere-se a necessidade de adoção de referenciais teóricos que delimitam diretrizes de trabalho e critérios de análise. Este trabalho toma a obra de Pierre Bourdieu como suporte metodológico em Sociologia do Esporte.

Sua Teoria dos Campos serve como arcabouço científico para intervenções ligadas às relações entre sujeitos que disputam o poder e acesso a bens de disputa em determinados setores da sociedade. Organiza as análises sobre suas ações, posicionamentos e inter-relações, e se configura como uma ferramenta metodológica que auxilia em processos de apropriação de conhecimento relacionado a certos objetos, como o esporte, por exemplo.

A obra de Bourdieu sugere a ocorrência de um jogo de dominação existente em todas as áreas da sociedade. Tal premissa se dá pela distribuição desigual de bens e ao acesso diferenciado a eles, de acordo com a posição que cada agente ocupa no espaço social. Essa diferenciação é percebida a partir da consideração de que existem campos sociais de disputas, ou seja, espaços sociais de posições em que os sujeitos buscam reconhecimento pela posse de formas de capital de modo específico nesse ambiente. Um campo social se conforma, para Bourdieu (1983), por meio da definição dos objetos de disputas e dos interesses específicos relativos a seus objetos, que só são compreendidos por quem faz parte desse espaço.

No campo, os agentes disputam o direito da violência simbólica, ou seja, o poder de orientar a conservação ou mudanças dos critérios de distribuição de capital simbólico. Tal privilégio é decorrente da posse anterior deste tipo de capital e do consequente reconhecimento como sujeito de destaque social (BOURDIEU, 1989). Dessa forma, cada campo específico se faz relativamente autônomo, ou seja, embora sofra certas influências do meio social que o cerca, tem suas regras e história próprias. Tem-se como exemplo a existência do campo do esporte, no qual os sujeitos lutam pelo reconhecimento esportivo, poder econômico e político dentro dos princípios e critérios criados por seus agentes.

As diferentes espécies de capitais, como trunfos em um jogo, são os poderes que definem as probabilidades de ganho em um campo determinado. Cada campo ou subcampo (espaços que respeitam as normas do campo, mas também apresentam certas particularidades dentro dele) têm uma espécie particular de capital. Têm-se, como capitais, quatro formas essenciais que norteiam as disputas e que se inter-relacionam: capital econômico (quantidade de dinheiro do agente), social (referente ao seu círculo social e relações interpessoais), cultural (aprendizado e conhecimento formal - ligado, entre outras formas à escola e transmissão doméstica de conhecimento) e simbólico (específico de cada campo é determinado pelo que o habitus e costumes daquele espaço indicam como algo a ser valorizado. Por exemplo, no campo esportivo tem-se como uma das formas de capital simbólico o mérito esportivo de um atleta) (BOURDIEU, 1989).

Além disso, Pierre Bourdieu apresenta, com certa especificidade em relação a outros autores das ciências sociais, um conceito muito importante, a ideia de habitus que se coloca como uma estrutura estruturante, ou seja, que norteia as formas de ação dos sujeitos (praxis), mas que é estabelecido de acordo com as leis do campo e os caminhos específicos para a disputa e aquisição de capital (BOURDIEU, 1983, 1996). Nessa estrutura, tem-se que as disputas ocorrem entre agentes posicionados em diferentes grupos sociais, que são determinados pela quantidade ou tipo de capital que possuem. Cada grupo tem seu habitus próprio, que justifica suas ações e norteia as práticas dos agentes na busca por aquisição de capital (BOURDIEU, 1996). Ao adquirir certa quantia de capital que justifique reconhecimento social, o agente pode ser aceito em outra esfera desse campo, podendo até mudar de grupo, estando sujeito a um novo habitus.

O esporte paralímpico no Brasil

O movimento paralímpico brasileiro mantém um modelo organizativo de modo semelhante à estrutura de gerência internacional. As entidades no Brasil têm procurado trilhar caminhos estabelecidos por órgãos internacionais, seja incorporando as orientações, seja buscando acompanhar as evoluções nos diferentes campos de conhecimento que essa área envolve. Embora algumas organizações esportivas sejam filiadas ao Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), as entidades têm certa autonomia organizativa e podem coordenar e avaliar a participação de atletas brasileiros em competições internacionais ligadas às suas modalidades ou deficiências (SENATORE, 2006).

O CPB é filiado ao Comitê Paralímpico Internacional (IPC) e atua como elo entre associações, governos, instituições internacionais e entidades privadas dispostas a incentivar e investir no esporte para pessoas com deficiência. O CPB tem como afiliados as organizações e confederações dirigentes do esporte adaptado para pessoas com deficiência visual, intelectual e física, em nível nacional. Esse órgão não contempla todas as formas de manifestação do esporte adaptado, destinando seus esforços ao esporte paralímpico, de alto rendimento, em nível nacional e internacional e ao gerenciamento de modalidades esportivas que não são vinculadas a nenhuma entidade específica (SENATORE, 2006).

A estrutura do esporte paralímpico brasileiro é atualmente semelhante à do esporte olímpico. A diferença é que as organizações esportivas que representam os atletas paralímpicos são formadas, muitas vezes, em função do tipo de deficiência e não apenas por uma modalidade esportiva específica (MARQUES et al, 2009).

Soma-se a esse quadro o aumento da profissionalização do esporte paralímpico brasileiro, maior autonomia financeira propiciada principalmente por financiamentos e patrocínios estatais, e ações ligadas ao crescimento do país como potência esportiva (pode-se destacar o 7º lugar no quadro de medalhas dos últimos Jogos Paralímpicos de verão, realizados no ano de 2012, em Londres). São pilares dessa transição a criação de leis que promovem a organização e crescimento do esporte paralímpico no Brasil, maiores recursos financeiros e, consequentemente, maior capacidade de realização. Como exemplo, tem-se a Lei Agnelo/Piva e o Programa Bolsa-atleta, além de outras iniciativas governamentais e privadas.

A Lei Agnelo/Piva, sancionada em 16 de julho de 2001, conhecida por esse nome por causa de seus autores, o Senador Pedro Piva (PSDB-SP) e o Deputado Federal Agnelo Queiroz (PC do B-DF), estabelece que 2% da arrecadação bruta de todas as loterias federais do país sejam repassadas ao Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e ao Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). Do total destes recursos, 85% são destinados ao COB e 15% ao CPB (BRASIL, 2004a). A partir da Medida Provisória nº 502, de 20 de setembro de 2010, o repasse desses valores às confederações e federações ocorre com base em contratos firmados entre COB, CPB e esses órgãos, que determinam metas a serem cumpridas em contrapartida ao valor recebido (BRASIL, 2010).

O Programa Bolsa-atleta foi instituído pela Lei 10.891, no ano de 2004, destinado aos atletas de alto rendimento. A concessão da bolsa não gera qualquer vínculo empregatício entre os beneficiados e a administração pública federal (BRASIL, 2004b). Esse suporte só acontece mediante conquistas e manutenção de resultados esportivos. São categorias do Bolsa-atleta: Estudantil, Esporte de base, Nacional, Internacional, Olímpica/Paralímpica, Atleta Pódio (BRASIL, 2012).

Processo de classificação de atletas no esporte paralímpico

As diferentes formas de deficiência e seus diferentes graus de comprometimento produzem desigualdades em relação ao desempenho esportivo dos atletas e colocam, para os organizadores de competições paralímpicas, o problema de encontrar um sistema que garanta o princípio de igualdade de condições na disputa, garantindo resultados justos ao final das competições (HOWE; JONES, 2006). A solução encontrada é agrupar os competidores em categorias ou classes, de acordo com o grau de comprometimento apresentado. Surgem, então, os sistemas de classificação, que têm por objetivo garantir a legitimidade das competições e seus resultados. Esse instrumento deve garantir que o nível de treinamento, talento, condição física, motivação e a habilidade do atleta sejam os fatores decisivos para seu sucesso e não o grau ou tipo da deficiência (SHERRIL, 1999). Além disso, estabelece os sujeitos elegíveis para as disputas, ou seja, que de fato tenham alguma deficiência que os qualifiquem para o esporte paralímpico. Desse modo, os atletas competem dentro de suas classes, definidas de forma específica por modalidade, sendo que para cada prática esportiva existe um sistema próprio de classificação (CASTELLANO, 2001). Dentro desse panorama, a classificação esportiva se coloca como um ponto importantíssimo no esporte adaptado, sendo a área onde a pesquisa científica se faz mais necessária, pois busca a justiça e legitimidade do esporte (SHERRIL, 1999).

Para Wu, Williams e Sherril (2000), um sistema de classificação é considerado justo quando aponta três condições: os desempenhos entre as classes são diferentes com atletas com menos comprometimento de deficiência com rendimentos melhores dos com mais comprometimento; atletas de elite nas mesmas classes apresentam desempenhos similares; e atletas com deficiências diferentes têm condições iguais de obter bons resultados e vitórias.

São dois os principais tipos de classificação: a médica, com base em diagnósticos de especialistas da área da Saúde (predominante em competições com deficiências visual e intelectual) e a funcional (predominante em competições com deficiência física), que não se baseia apenas em diagnóstico e evolução médica, mas no modo como a deficiência interfere no desempenho do atleta (TWEEDY; VANDLANDEWIJCK, 2011), levando em conta as habilidades da modalidade específica da qual participa o sujeito. Todos os sistemas de classificação de todas as modalidades utilizam processos padronizados de análise, agrupamento, distribuição e atuação do classificador. Ou seja, é um procedimento objetivo, pautado em parâmetros pré-estabelecidos e critérios estruturados (CASTELLANO, 2001).

Nesse processo, treinadores e atletas devem adequar-se às formas expressas pelos protocolos de classificação para que sua participação não seja prejudicada e possa disputar outro capital simbólico desse espaço, o reconhecimento esportivo. Segundo Wu, Williams e Sherril (2000), se atletas ou treinadores quiserem mudar algum critério ou processo, devem estabelecer contato com os classificadores para tais sugestões. Tal situação expõe um quadro de disputa pelo capital esportivo (mérito e bons resultados competitivos) que depende do instrumento de classificação. Por sua vez, este processo parece ser dominado por um grupo específico. Nesse sentido, este trabalho tem como pergunta central: Como se articulam as relações sociais e disputas por poder que permeiam a classificação no esporte paralímpico brasileiro?

OBJETIVOS E JUSTIFICATIVA

O objetivo geral deste trabalho (parte desta pesquisa é resultado de tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas no ano de 2010), é investigar e delimitar, com pesquisa sociológica baseada na obra de Pierre Bourdieu, o esporte paralímpico brasileiro contemporâneo e as formas de relação social, posicionamento e disputa por capitais entre os sujeitos nesse subcampo. O objetivo específico é analisar, com base em dados provenientes da literatura e de discursos de atletas e dirigentes do movimento paralímpico brasileiro, modos de organização, interação e disputa por poder entre os agentes de diferentes grupos sociais ligados aos processos de classificação de atletas paralímpicos no Brasil.

Os benefícios oriundos das conclusões desta pesquisa justificam-se na apresentação de características socioculturais atuais e ainda não documentadas, referentes a tais processos de classificação, o que cria a oportunidade de reflexão sobre as maneiras de interação social e disputas por poder neste espaço. Tais dados podem oferecer subsídios para o desenvolvimento do movimento paralímpico no Brasil, por meio de políticas internas de organização dos processos de classificação, e externas, ligadas às condições de vida dos atletas paralímpicos, e de atuação profissional dos diferentes agentes deste subcampo.

MATERIAIS E MÉTODOS

O presente trabalho enquadra-se em uma abordagem qualitativa de pesquisa. Configura-se como um procedimento exploratório-descritivo que busca absorver as informações oriundas dos discursos e documentos, discutindo e analisando seus conteúdos evidentes e latentes. Para desenvolver uma abordagem sobre um campo específico, Pierre Bourdieu sugere alguns passos metodológicos a serem seguidos. Um primeiro seria analisar a posição que o referido campo ocupa em seu espaço social. Em seguida, seria necessário traçar um mapa da estrutura objetiva das relações ocupadas pelos agentes ou instituições que competem de forma legítima pela violência simbólica no campo. Por fim, devem ser analisados os habitus dos agentes (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2002; SOUZA; MARCHI JR, 2010).

Nesse sentido, a análise de referencial teórico e o apontamento de algumas estruturas organizacionais do esporte paralímpico dão conta dos dois primeiros passos indicados pelo autor. Quanto à análise específica dos agentes, além de dados secundários obtidos na literatura, obteve-se coleta de informações em campo, por meio de entrevistas com atletas e dirigentes atuantes no movimento paralímpico brasileiro.

Como sujeitos da investigação foram escolhidos quatro dirigentes do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), sendo dois envolvidos em questões técnicas e dois em um âmbito administrativo, e quatro atletas paralímpicos, com diferentes tipos de deficiência e atuantes em diversas modalidades. Os critérios para seleção dos sujeitos deram-se, no caso dos dirigentes, com base na proximidade de cada um deles com o tema proposto, na posição de administração, gerência e liderança frente ao movimento paralímpico brasileiro. Quanto aos atletas, foram escolhidos os sujeitos que participem de competições regulares e organizadas por órgãos oficiais, com deficiência visual (DV) ou física (DF). A escolha de sujeitos pertencentes a grupos diferentes se justifica na premissa de Pierre Bourdieu ligada à desigualdade social, disputa por capitais e diferentes habitus dentro dos campos. O fato de coletar discursos de dirigentes e de atletas, busca considerar tal diversidade e desvendar pontos de vista específicos sobre o objeto que estejam carregados da marca cultural e disposição para atuação social dos agentes envolvidos.

O número de sujeitos respeitou o critério de saturação, indicado como o momento da pesquisa qualitativa em que o conhecimento formado pelo pesquisador conseguiu compreender a lógica interna do grupo ou coletividade em estudo, ou seja, quando os dados coletados começam a se repetir e mostrar-se maduros (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005).

Para compreender a essência do habitus de um agente é preciso, em uma lógica própria da teoria de Pierre Bourdieu, considerar o espaço social e a posição ocupada pelo mesmo. Além disso, características histórico-culturais dos indivíduos também devem ser levadas em consideração para a compreensão de seu discurso. Quanto às características dos indivíduos entrevistados, destacam-se: Sujeito 1 (S1): Professor universitário. Atua junto ao CPB em processos de classificação de atletas. Não-deficiente; Sujeito 2 (S2): Professor de Educação Física. Atua em função administrativa no CPB. Não-deficiente; Sujeito 3 (S3): Ex-atleta. Campeão paralímpico. Atua em função administrativa no CPB; Sujeito 4 (S4): Ex-atleta. Campeão paralímpico. Atua em função administrativa no CPB; Sujeito 5 (S5): Atleta com deficiência visual da modalidade natação. Participa de competições em âmbito nacional e não está contemplado pelo benefício Bolsa-atleta; Sujeito 6 (S6): Atleta com deficiência visual da modalidade goalball. Participa de competições em âmbito nacional, já atuou pela seleção brasileira adulta da modalidade e recebe apoio financeiro de entidade especializada em educação de pessoas com deficiência visual; Sujeito 7 (S7): Atleta com lesão medular, tetraplégico, da modalidade rugby em cadeira de rodas. Participa de competições em âmbito nacional, atua na seleção brasileira adulta da modalidade e é contemplado pelo benefício Bolsa-atleta; (S8): Atleta com lesão medular, paraplégico, da modalidade basquetebol em cadeira de rodas. Participa de competições em âmbito estadual. Não é contemplado com nenhum tipo de auxílio financeiro.

A coleta de dados foi obtida pela análise das respostas provenientes de entrevistas semiestruturadas, aplicadas pessoalmente pelos pesquisadores aos sujeitos, com uso de aparelho gravador de voz digital e posterior transcrição das respostas. Quanto aos dirigentes (S1, S2, S3 e S4), como atuam em esferas diferentes dentro da administração do esporte paralímpico, cada entrevista acabou direcionada para o tema de especialidade de cada um, como permite o método utilizado. Por esta razão, nota-se predominância de citações ao Sujeito 1 (S1), visto ser o entrevistado com atuação mais próxima ao ambiente da classificação de atletas. Para este trabalho serão apresentados apenas os dados ligados à discussão sobre classificação de atletas.

Quanto aos procedimentos de organização de dados, foi utilizado o método Discurso do Sujeito Coletivo (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005), que se baseia na construção de um discurso que sintetiza a percepção dos sujeitos frente ao tema tratado. Tal procedimento se utiliza de algumas figuras metodológicas que, encadeadas e relacionadas, distribuem e ordenam as informações. Tais ferramentas são as expressões-chave (ECH), as ideias centrais (IC) e as ancoragens (AC). As ECH são trechos/pedaços literais do discurso que revelam a essência do depoimento. Trata-se do conteúdo discursivo que corresponde à questão da pesquisa. Têm a utilidade de apontar qual esfera de análise está sendo abordada pelo sujeito, facilitando uma primeira classificação das respostas. As IC representam o tema do depoimento, os conteúdos a serem destacados e apontados como relevantes para a discussão, pois direcionam para a ocorrência e forma dos eventos analisados. As AC compõem o posicionamento social e político que o sujeito não descreve objetivamente, mas que está implícito como conteúdo carregado em sua fala. Aponta informações importantes sobre a ideia do entrevistado (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005).

Deste modo, após a transcrição das entrevistas, as ECH foram destacadas e em um segundo momento, transportadas para Instrumentos de Análise do Discurso (IAD), no qual foram apontadas as IC e AC referentes às respostas dos sujeitos. Em um terceiro e último momento, com base em análise das IC e AC, as respostas foram agrupadas de modo a terem sentidos homogêneos, para que fosse construído um discurso do sujeito coletivo (DSC) (LEFÈVRE; LEFÈVRE, 2005).

As entrevistas foram realizadas em locais previamente combinados com os sujeitos. Como os indivíduos fazem parte do movimento paralímpico brasileiro, esta pesquisa foi submetida e aprovada pela Comissão Científica da Academia Paralímpica Brasileira, que auxiliou na viabilização de contato, permissão de coleta de dados e autorização a respeito dos locais de execução, e pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Estadual de Campinas, sob Parecer nº 356/2010 (entrevistas com dirigentes). e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, sob Parecer nº 631/2011 (entrevistas com atletas). Todos os sujeitos envolvidos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, previamente aprovado pelos Comitês de Ética citados.

A partir do material coletado, juntamente com informações relativas à literatura, a última etapa, de discussão dos dados, deu-se em um diálogo entre aspectos ligados ao objeto de pesquisa, provenientes deste estudo de campo e de referencial teórico, baseado em categorias próprias da obra de Pierre Bourdieu. As conclusões acerca dos resultados da pesquisa foram pautadas na realidade descrita pelos sujeitos (que oferece vantagens ligadas à vivência e proximidade dos mesmos aos dados e fatos ocorridos e identificados), confrontada com dados coletados oriundos de referencial teórico.

Análise e discussão de dados. O espaço social da classificação de atletas no esporte paralímpico brasileiro

Nesta seção são expostos os resultados das entrevistas realizadas, como propõe a metodologia já mencionada, em forma de texto corrido, com menções aos sujeitos abordados. Juntamente, é realizada uma discussão e reflexão, com base em dados da literatura a respeito dos temas destacados na investigação.

Em relação ao espaço da classificação de atletas no Brasil, S1 apontou que hoje em dia existem poucos classificadores formados. A maioria dos indivíduos que atuam nessa área foi treinada no exterior, visto que os processos de capacitação e treinamento de classificadores no país são recentes. Este é um dado preocupante, visto o crescimento do movimento paralímpico no Brasil apontado por S2:

[...] vamos levar aí que em um universo a gente tem os atletas de alto rendimento aí, altíssimo rendimento, hoje nós temos dez mil atletas praticando, competindo no Brasil, de altíssimo rendimento, se você colocar que tem mil atletas no altíssimo rendimento... (S2).

Para ser classificador em determinada modalidade é necessária a realização de cursos específicos, além de estágios em campeonatos, supervisionados por classificadores mais experientes (CASTELLANO, 2001). Geralmente, esses sujeitos são médicos, fisioterapeutas, ex-atletas e outros profissionais ligados ao esporte e dotados de conhecimentos sobre cinesiologia e deficiência (PACIOREK, 2004), além de certo domínio da língua inglesa.

Segundo S1, há atualmente um processo, coordenado e ministrado pelo CPB, de formação de novos classificadores no Brasil. Já foram, ou estão sendo preparados, cursos para diversas modalidades (é importante destacar que tanto a formação, quanto atuação de classificadores, respeitam uma modalidade específica em que o sujeito se especializa). A intenção do CPB é formar classificadores para atuarem internamente no país, tanto na função de classificação, quanto no auxílio a equipes e atletas em processos de treinamento (S1). Estes cursos são realizados por meio de convênios com universidades do país, o que é apontado por S1 como uma iniciativa inovadora, tanto no Brasil quanto no mundo, o que, segundo S4, contribui em manter o Brasil como vanguarda administrativa do esporte paralímpico. O mesmo dirigente aponta que o país, por meio do CPB, tem posição de destaque internacional, contando com representantes em diversas comissões do Comitê Paralímpico Internacional (IPC).

Eu acho que hoje o Brasil, no que diz respeito ao Comitê Paralímpico, tem uma posição de destaque no cenário internacional. A gente hoje tem o representante no comitê executivo do IPC, nós temos três representantes nos comitês do IPC (S4).

Segundo S1, anteriormente aos cursos, a formação de classificadores ocorria com base empírica, com os conhecimentos e experiências transmitidos de classificador para classificador, de modo informal. Nesse processo, o mesmo sujeito afirma que esse conhecimento acabava sendo uma forma de poder, o que pode ser traduzido como um capital simbólico no subcampo. Isso pode ser afirmado, pois os classificadores mais experientes exerciam certo controle sobre a atividade, não compartilhando, de forma pública, os conteúdos referentes à sua área de atuação. Isso lhes conferia um caráter de indivíduos indispensáveis e líderes no processo. Foi esse quadro, segundo S1, que motivou a criação do curso de formação do CPB.

Nota-se, nesse discurso, que a criação do curso demonstra uma intenção do CPB de entrada na disputa por esse capital simbólico, por meio da mudança de valoração do mesmo. Com o oferecimento de uma formação de modo sistemático e científico, o CPB transforma a compreensão sobre essa forma de bem no subcampo, mudando, inclusive, os caminhos para que os sujeitos o alcancem. Dessa maneira, consegue maior domínio sobre as formas de distribuição e posse desse capital. Fica explícita a tentativa de entrada do "novo" (CPB), tentando ocupar o lugar do "velho" (classificadores mais antigos) no espaço social, sendo essa uma das características de disputa em campos sociais, como cita Bourdieu (1983). Tweedy e Vandlandewijck (2011) apontam a necessidade de maiores estudos sobre classificação, visto a natureza empírica de muitos dos procedimentos utilizados até hoje por classificadores mais experientes, o que, segundo os autores, deixa muitos dos resultados questionáveis. Tal apontamento fortalece a necessidade de realização dos cursos de formação.

Segundo S1 é grande a importância, para a delegação de um país, de ter em seu quadro um classificador conhecido internacionalmente, pois isso dá legitimidade aos questionamentos sobre resultados da classificação. Implicitamente neste espaço, isso mostra que o país tem uma formação e atuação profissional sistematizada e bem orientada neste sentido. O conhecimento sobre os conteúdos e procedimentos que envolve os processos de classificação configuram-se como um capital simbólico valorizado neste espaço social.

Por essas razões que S1 coloca a importância de uma boa formação regional e nacional do classificador e uma posterior experiência internacional do mesmo. Nota-se que essa preocupação com intercâmbios internacionais é compartilhada com alguns autores, sendo bem explícita por Castellano (2001), que afirma que existe a necessidade de tais trocas de informação para a melhoria dos processos de formação e atuação.

Embora os protocolos sejam passíveis de algumas formas de aplicação, ou filosofias, como cita S1, que se diferenciam de acordo com o organizador do processo, os classificadores, em si, não têm autonomia de interpretação, visto que devem seguir a forma de atuação indicada pelo órgão que o formou e o contrata. Castellano (2001) discorda desta posição de S1. Para a autora, o sistema de classificação, historicamente, dá margens a avaliações superficiais e à tomada de critérios individuais de acordo com o órgão e estilo de formação de cada classificador. Assim, segundo a autora, a subjetividade não mora apenas na capacidade de interpretação do indivíduo que realiza a avaliação, mas na forma de atuação que o órgão formador adota, ensina e exige dos sujeitos.

Os atletas S6 e S7 concordam e ecoam o posicionamento de Castellano (2001) e apontam que, embora existam protocolos de classificação, ainda assim, a subjetividade é um fator presente no resultado do processo. Ou seja, a percepção e competência do avaliador pode influenciar a classificação do atleta.

Classificação funcional é um processo que sempre será polêmico, pois é praticamente impossível determinar com objetividade e precisão a condição funcional dos atletas [...] Existe um universo de possibilidades funcionais de atletas dentro da mesma classe. Por exemplo, existem muitos tipos diferentes de atletas com o mesmo índice. [...] dentro das possibilidades, o processo atual ainda é muito subjetivo (S7).

Quanto à classificação médica, para atletas com DV, S6 aponta os erros de diagnósticos e processos pouco precisos de avaliação como consequência da subjetividade.

Julgam a classificação muito boa. Mas eu não concordo. Existem muitos equívocos em relação aos resultados das classificações. [...] Existem atletas que são deficientes visuais, mas enxergam muito além da classe em que são colocados. E já pessoas com baixa visão, algumas bem acentuadas, serem excluídas considerando que não eram elegíveis. Eu acho que o método de classificação é muito falho [...] As falhas acontecem tanto na esfera nacional quanto internacional (S6).

Tweedy, Willians e Bourke (2010) apontam que, de fato, existe a necessidade do desenvolvimento de processos que tornem a classificação mais objetiva, diminuindo as chances de erros com base na subjetividade ou procedimentos não tão eficientes. Os autores sugerem mudanças nos protocolos de análise da capacidade muscular, por exemplo, como uma das possíveis alterações na classificação funcional.

Os atletas S6 e S8 apontam que o resultado da classificação pode ser mascarado pelo avaliado, seja não descrevendo com precisão o que está enxergando (DV) ou não desempenhando com total magnitude suas potencialidades funcionais (DF). Tais fatos, somados à subjetividade inerente ao processo, permitem que certos atletas façam algumas sugestões frente a possíveis mudanças de protocolos.

S6 faz comentários sobre a classificação médica para atletas com DV. Afirma que a avaliação clínica não contempla a real capacidade do sujeito e nem sempre demonstra aplicabilidade prática e funcional na atividade esportiva.

Os classificadores quase não vão a campeonatos. Eles fazem a classificação e por lá ficam. Não entram na parte esportiva [...] Eu acho que alguns testes têm que ser repensados [...] Às vezes vejo coisas que não me ajudam na prática (S6).

S7 e S8 julgam os protocolos insuficientes e com análises pouco objetivas e imparciais. S8 aponta que sente falta de um acompanhamento de classificadores no dia a dia do atleta. S7 aponta a necessidade de considerar a sensibilidade do atleta na avaliação e a aplicabilidade do biofeedback:

A sensibilidade é importante, pois é sua relação com o mundo. Você consegue perceber o espaço à sua volta de maneira diferente (S7).

Segundo o atleta esta técnica permite analisar os impulsos nervosos oriundos da musculatura, principalmente relativos à sensibilidade. Os sistemas de classificação são constantemente reavaliados e questionados na busca por promoção do sentido de igualdade e justiça nas disputas. Da mesma forma, por motivos ligados às deficiências que possuem quadros de evolução e pela capacidade dos atletas melhorarem seus desempenhos motores, os participantes são constantemente reavaliados antes e durante a competição (MARQUES et al, 2009). Se o desempenho não for equivalente à sua classificação, pode ser reclassificado (SHERRIL, 1999).

Os classificadores são profissionais que atuam neste meio como agentes de controle e mantenedores do sistema (WU; WILLIAMS; SHERRIL, 2000). Por separar sujeitos em disputa, na busca por classes que privilegiem igualdade de condições, este processo acaba alocando os atletas de forma a oferecer-lhes mais ou menos chances de vitória, o que pode significar mais ou menos ganhos financeiros e simbólicos (HOWE; JONES, 2006).

Por mais precisos que possam ser os processos de classificação, atletas que se encontram próximos aos limites de entrada em uma classe mais ou menos comprometida, podem ser classificados como dos mais comprometidos em tal grupo, diminuindo sua chance de vitória, assim como dos menos comprometidos de outra classe, aproximando-o do êxito (TWEED; VANDLANDEWIJCK, 2011). Desta forma, o processo de classificação ganha grande importância, dando poder aos grupos de classificadores sobre as condições de disputa dos atletas. Inclusive o poder, a organização das provas, de unir classes para disputa, quando julgar ser baixo o número de atletas (HOWE; JONES, 2006). Explicita-se, neste processo, uma forma de capital simbólico deste subcampo. O poder de classificar e ordenar atletas, conferindo-lhe mais ou menos chances de vitória.

Neste cenário, podem-se observar tensões entre grupos sociais. Por exemplo, entre classificadores e treinadores. S1 aponta que os primeiros são vistos pelos segundos como agentes concorrentes ou más influências, pelo seu poder social no esporte. Ele afirma que os treinadores e atletas conhecem pouco sobre processos de classificação e deveriam estudar mais sobre o tema. Muitas vezes, segundo o mesmo entrevistado, os treinadores questionam o classificador sem conhecerem bem o funcionamento do processo.

Segundo S1, essa ocorrência de tensão acontece pelo fato de os treinadores esportivos presentes em competições serem rotativos, o que é uma consequência da falta de boa condição de trabalho dos mesmos. Neste sentido, S2 aponta que há dois tipos de treinadores em atuação no Brasil: um voltado tanto a atletas não-deficientes quanto paralímpicos, que, muitas vezes, fazem o trabalho com o esporte adaptado de forma voluntária, ou apenas com ajuda de custo, mas com a mesma dedicação; e outro, exclusivamente paralímpico, sendo este segundo grupo muito menor que o primeiro (apenas 10% a 15% dos treinadores envolvidos), configurando poucos especialistas no Brasil.

Howe (2008) aponta que o profissionalismo no esporte paralímpico é novo e ainda em processo de crescimento. Nunn (2008) comenta que a maioria dos treinadores são procurados por atletas com deficiência não por seu conhecimento sobre esporte adaptado, mas por sua história e envolvimento em uma modalidade esportiva específica e complementa que é mais fácil um treinador aprender sobre deficiência do que sobre uma modalidade nova.

S2, S3 e S4 apontam a necessidade de aumento de profissionalismo em posições técnicas e administrativas do esporte. S2 acrescenta que treinadores e coordenadores de seleções brasileiras são remunerados pelo CPB, como pró-labore, para realizarem planejamentos específicos para modalidades. Por este quadro de instabilidade profissional, S1 aponta que normalmente quando um novo treinador esportivo está aprendendo sobre processos de classificação, acaba deixando o esporte. E cita ainda que é direito do treinador e do atleta conhecerem os processos de classificação. Por isso, segundo S1, é necessária e importante a promoção, por parte do CPB, de cursos de formação para treinadores e atletas durante competições. Além disso, segundo Castellano (2001), os treinadores deveriam servir como educadores dos atletas, em um sentido de esclarecer particularidades dos processos de classificação. Porém, pela falta de conhecimento, ou alguma forma de interesse, acabam atuando como interlocutores negativos, com atitudes que desrespeitam, desafiam e colocam o atleta em uma posição de confronto com o classificador.

Ao conhecer mais sobre classificação, o treinador pode atuar como uma espécie de pré-classificador, oferecendo informações importantes que podem contribuir com o processo de classificação e até com o rendimento de seus atletas (CASTELLANO, 2001).

Quanto à relação entre classificadores e atletas, notam-se posições distintas entre os entrevistados. Embora S1 aponte que há uma interação mais tranquila, S6 e S8 apontam para uma relação não tão consensual, o que evidencia certa tensão entre os dois grupos:

A relação entre classificadores e atletas não é tão amistosa. Sempre existe uma desconfiança sobre a validade dos resultados das classificações (S6);

Nem sempre tem interesses pessoais. Muitas vezes ocorrem erros mesmo, que colocam o resultado da avaliação em dúvida (S8).

Outro ponto importante tratado sobre a questão da classificação, com carga de destaque nas disputas sociais deste subcampo, foi a presença de sujeitos com deficiência atuando na função de classificadores. S4 cita que a deficiência não é um fator determinante sobre a capacidade da pessoa atuar em cargos técnicos ou administrativos. Embora a experiência como ex-atleta e a troca de experiências entre classificador e atletas possam contribuir com sua atividade, ele aponta que a deficiência não garante um bom trabalho. A formação educacional e profissional da pessoa é reforçada como fator mais importante.

S7 concorda que a presença de ex-atletas em processos de classificação pode ser interessante, pois a experiência anterior contribui com análises mais minuciosas, diminuindo erros

[...] você tendo vivenciado a modalidade, você consegue, às vezes, entender melhor o porque às vezes um movimento de algum dedo da mão, tal, possa fazer uma diferença bastante significativa em uma modalidade (S7).

Segundo S1, todos os classificadores brasileiros com deficiência são ex-atletas. O entrevistado aponta que os classificadores com deficiência são minoria em relação a classificadores não-deficientes. Porém, quando presentes, atuam na modalidade em que eram atletas. Tal quadro é explicado por S1, S3 e S4 com base na formação educacional básica ainda precária, oferecida a essas pessoas no Brasil, visto que é exigida formação em nível superior para que um sujeito possa tornar-se classificador, este que se configura como um problema de política pública de educação e inclusão social.

Todos os atletas analisados (S5, S6, S7 e S8) concordam que a Educação Básica e de Nível Superior no Brasil contam com adaptações insuficientes para a facilitação do processo educacional da pessoa com deficiência. Eles apresentam queixas tanto ligadas à acessibilidade quanto às condições de estudos e meios didáticos inadequados.

Após a lesão tentei recomeçar a estudar no 3º ano do ensino médio, mas a escola não tinha adaptação e eu desisti. Depois disso, voltei e me formei. Na última escola não tive problemas. Tinha rampa na escola e nunca tive problema nem nunca fui desrespeitado. Pelo menos na escola, não tive isso [...] A dificuldade era o transporte (S8).

Oliva (2011) aponta a existência de tais dificuldades, tanto em relação à acessibilidade física, quanto à adaptação de currículos e processos didáticos na escola básica. Para a autora, a não-existência de trabalhos adaptados e a presença de barreiras à aprendizagem e participação indicam que a escola tem como foco o desempenho dos alunos não-deficientes e uma busca competitiva e pragmática por resultados. Isso cria uma situação em que o sujeito precisa se adaptar à escola e situação de ensino e não o contrário, o que dificulta seu ingresso no Ensino Superior. S8 cita ainda que pessoas com deficiência buscam formações acadêmicas em que o comprometimento causado pela deficiência não será, sob seu ponto de vista, um empecilho, e tal escolha pode não possibilitar a inserção como classificador:

Normalmente, um deficiente vai procurar uma formação acadêmica que não dependa de sua condição física. Por exemplo, ao invés de fisioterapia, educação física, prefere administração, direito (S8).

S3 coloca que existem leis que obrigam as empresas a contratar uma porcentagem de pessoas com deficiência, mas não incentivos legais que facilitem a formação destes sujeitos para atuarem no mercado. Para atuar no esporte paralímpico, além de boa formação, é necessário ter capacitação específica, segundo S4. Porém, esses cursos pontuais existem, mas ainda são insuficientes, pela má formação anterior das pessoas. Um fator dificultante para a obtenção de formação acadêmica é apontado por S3, quando ele coloca que o atleta paralímpico começa sua vida esportiva mais tarde do que o olímpico. Isso, segundo ele, prejudica ainda mais sua formação profissional acadêmica, além da recorrente dificuldade de acessibilidade e adaptações à pessoa com deficiência em locais de educação formal.

S7, que tem diploma universitário anterior ao acidente que causou sua deficiência, frequentou cursos de pós-graduação na condição de tetraplégico e relata que no Ensino Superior ainda se repetem condições didáticas e de acessibilidade não-adequadas. Isso é compensado, segundo ele, pela boa vontade das pessoas para com o aluno com deficiência. Ele aponta que muitas das adaptações realizadas para seus estudos ocorreram após sua chegada a estes locais. Tal ocorrência é tida por Oliva (2011) como algo comum e destaca a maior preocupação dos processos de adaptação e inclusão apenas à acessibilidade física, deixando de lado, algumas vezes, o estímulo à emancipação dos alunos com deficiência por falta de procedimentos didáticos adaptados.

Tanto S3 quanto S4 admitem que há uma luta política frente à tentativa de melhorar a formação educacional de pessoas com deficiência. S4 pontua que há uma diferença de acesso à educação formal entre pessoas com deficiência e não-deficientes. Além disso, outro problema é a ainda ocorrente discriminação a estas pessoas. Segundo Ferreira (2009), embora as matrículas de pessoas com deficiência estejam aumentando na rede de ensino, as condições educacionais para sucesso escolar mantêm-se desiguais em relação aos não-deficientes. Entre as razões para isto, muitas estão diretamente relacionadas à discriminação vivida por eles durante a sua escolarização.

S6 e S7 apontam outros dois fatores dificultantes em relação à atuação de pessoas com deficiência na função de classificadores. Quanto à pessoa com DV, segundo S6, sua própria deficiência dificulta em muito sua possível avaliação sobre a condição de visão dos atletas. S7 cita as pessoas com DF como exemplo, relatando que já participou de parte de um curso de formação de classificadores funcionais, mas encontrou muitas dificuldades na atuação prática, visto que o processo exige força e sensibilidade da parte do classificador.

Eu sentia, por causa de minha condição motora, muitas dificuldades em avaliar. Mesmo porque, na falta de instrumento melhor, muito ainda é feito, teste de força, manualmente. Então, a sensibilidade do classificador é muito importante, e para isso, você tem que ter condição funcional. E eu senti um pouco de dificuldade nisso. [...] Existem muitos tipos de deficiências. Eu tive dificuldade, mas um paraplégico talvez consiga fazer (S7).

Tais discursos apontam para a importância do capital cultural institucionalizado, que segundo Bourdieu (1998), se configura como a posse de certificados ou reconhecimentos oficiais relativos ao aprendizado, conhecimento e competência, ou seja, a certificação oficial e pessoal na busca por capital simbólico no subcampo paralímpico. Muito da violência simbólica por parte dos classificadores é mantida pela exigência acadêmica em áreas específicas e consequentemente seu acesso dificultado às pessoas com deficiência. Tal disputa por poder transcende os limites deste espaço social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho objetivou analisar disputas entre diferentes grupos sociais no esporte paralímpico brasileiro, em relação aos processos de classificação de atletas. Com base nos dados apresentados, nota-se que existem disputas sociais entre alguns grupos. Um em especial, os classificadores, expressa destacável violência simbólica, visto que além de executarem as avaliações, ainda controlam tais protocolos. Deste modo, assumem certa posição de poder frente à organização paralímpica e todos seus agentes, que têm suas formas de atuação dependentes e influenciadas pelos processos de classificação, e dificuldades de ascensão social limitada por condições muitas vezes externas ao subcampo paralímpico, como a perspectiva de carreira de treinadores e a educação formal de pessoas com deficiência. Tal poder se deve ao fato de a classificação de atletas ser considerada, sociologicamente, uma forma de controle social que delimita a estrutura e o processo de operacionalização do esporte paralímpico (WU; WILLIAMS; SHERRIL, 2000).

De forma geral, a entrada de sujeitos neste grupo de maior poder em relação à classificação se dá com base em aquisição de capital cultural (entre outras formas, expresso pelo Ensino Superior formal) e simbólico (domínio sobre processos e protocolos).

É possível pontuar duas tendências ligadas à formação de classificadores no Brasil: uma próxima a certa democratização do conhecimento específico, na qual são oferecidos cursos a um público em especial, o que pode representar uma mudança no modo de transmissão de capital simbólico neste meio, por meio de cursos de formação; e outra ligada a certa limitação, pelos pré-requisitos exigidos (habitus) para que o sujeito se torne um classificador. É citada ainda, por alguns dos entrevistados, a tomada de certa posição de vanguarda do setor de classificação no Brasil em relação ao resto do mundo, quanto à formação e meios de atuação de classificadores, assim como na busca por sua qualificação e atuação mais próxima a treinadores, equipes e atletas.

A pesquisa qualitativa aponta para categorias e objetos destacados pelos agentes no subcampo e procura expressar o sentido de seus discursos e ações. Deste modo, a investigação sobre o habitus dos diferentes grupos se apresenta como trabalho constante. Com base nos dados apresentados, sugere-se para o desenvolvimento do movimento paralímpico brasileiro e diminuição de algumas diferenças sociais deste espaço, a continuidade de iniciativas ligadas à melhoria dos processos de classificação, assim como de capacitação e orientação de novos classificadores, treinadores e atletas, objetivando aproximar seus trabalhos e facilitar uma interação mais produtiva entre os diferentes grupos no subcampo. Além disso, programas de incentivo à contratação de treinadores e a necessidade de políticas públicas de melhoria em condições de educação formal de pessoas com deficiência.

Aponta-se como possibilidade de trabalhos futuros: a investigação relativa ao discurso e habitus de outros agentes deste espaço, como treinadores esportivos, por exemplo, além de abordagens sobre temas amplos como a carreira profissional dos treinadores e as perspectivas e processos de educação formal para pessoas com deficiência. .

Recebido em 22/08/2011

Revisado em 17/10/2012

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  • Endereço para correspondência:

    Renato Francisco Rodrigues Marques
    Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012
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