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Políticas públicas e acesso à saúde de migrantes e refugiados durante a pandemia da COVID-19: perspectiva global comparada

Public policies and access to health of migrants and refugees during the Covid-19 pandemic: compared global perspective

Resumo

Trata-se de uma Revisão Integrativa, com recorte entre 2020 e 2022, com objetivo de análise das políticas públicas globais implementadas durante a pandemia de Covid-19 para salvaguardar a saúde e os direitos humanos de migrantes e refugiados. A análise foi baseada em 24 artigos de 424 recuperados das bases de dados: Pubmed, Scopus, BVS e Wiley. A partir da análise, emergiram três eixos temáticos: Saúde, Trabalho e Proteção Social. As medidas adotadas pelos Estados foram múltiplas e heterogêneas, variando a cada realidade e status migratório dos indivíduos, como forma de oportunizar ou privar seu acesso às políticas de saúde, trabalho e seguridade social. Dessa forma, tais políticas também serviram como processos de estratificação e controle biopolítico. Portanto, é necessário superar barreiras estruturais e dirimir desigualdades, combater a xenofobia e o racismo, e aplicar plenamente os dispositivos dos tratados internacionais e proteger essas populações contra o arbítrio.

Palavras-chave
Covid-19; direitos humanos; migração humana; políticas públicas; refugiados

Abstract

This is an Integrative Review, covering 2020 and 2022, intending to analyze global public policies implemented during the Covid-19 pandemic to safeguard the health and human rights of migrants and refugees. The analysis was based on 24 articles out of 424 retrieved from the databases: Pubmed, Scopus, VHL, and Wiley. From the analysis, three thematic axes emerged: Health, Work, and Social Protection. The measures adopted by the States were multiple and heterogeneous, varying according to each individual's reality and migratory status, as a way of providing or depriving them of access to health, work, and social security policies. In this way, such policies also served as processes of stratification and biopolitical control. Therefore, it is necessary to overcome structural barriers and resolve inequalities, combat xenophobia and racism, and fully apply the provisions of international treaties, and protect these populations against arbitrary acts.

Keywords
Covid-19; Human Migration; Human Rights; Public Policies; Refugees

Introdução

A pandemia de Covid-19, causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e oficialmente reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020, e com término em 5 de maio de 2023, constituiu um desafio sem precedentes para a humanidade. Este evento teve repercussões profundas em todos os aspectos das sociedades, como economia, política e mobilidade, evidenciando a interconexão e interdependência que caracterizam o mundo globalizado. A pandemia também afetou de forma sistemática a resiliência e capacidade dos sistemas de saúde ao redor do mundo, com importantes repercussões para a posterioridade e amplificação das vulnerabilidades preexistentes (WHO, 2021WHO. Refugees and migrants in times of COVID-19: mapping trends of public health and migration policies and practices. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/341843/9789240028906-eng.pdf . Acesso em: 19.08.2022.
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).

Os impactos mais significativos dessa crise sanitária foram vivenciados por populações que já se encontravam em contextos de vulnerabilidades acentuadas, marcados pela intersecção de marcadores sociais da diferença - como gênero, raça/cor, etnia, religião e orientação sexual - e os determinantes sociais de saúde (DSS) - definidos pela Commission On Social Determinants Of Health (CDSS, 2010CDSS. Redução das desigualdades no período de uma geração. Igualdade na saúde através da acção sobre os seus determinantes sociais. Relatório Final da Comissão para os Determinantes Sociais da Saúde. Portugal: Organização Mundial da Saúde. 2010. Disponível em: Disponível em: https://dssbr.ensp.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/11/Relat%C3%B3rio_Final_OMS_Redu%C3%A7%C3%A3o-das-Desigualdades-no-per%C3%ADodo.pdf . Acesso em: 20.08.2024.
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) da OMS com as condições sociais nas quais as pessoas vivem e trabalham e que influenciam nos processos de saúde e adoecimento -, situando diferentes contextos de opressão e violação de direitos (Zamboni, 2015ZAMBONI, Marcio. Marcadores Sociais. Sociologia: grandes temas do conhecimento (Especial Desigualdades), v. 1, n. 1, p. 13-18, 2014. ; Galvão et. al, 2021GALVÃO, Anna L. M.; OLIVEIRA, Elda; GERMANI, Ana Cláudia C. G.; LUIZ, Olinda do Carmo. Determinantes estruturais da saúde, raça, gênero e classe social: uma revisão de escopo. Saúde e Sociedade, v. 30, n. 2, p. 1-14, 2021.). Dentre essas populações, destacam-se migrantes e refugiados, grupos historicamente submetidos a contextos de opressão e tensionamento quanto à garantia de suas liberdades e direitos humanos fundamentais, desde os territórios de origem, de passagem, quanto de destino (Granada et al., 2017GRANADA, Daniel; CARRENO, Ioná; RAMOS, Natália; RAMOS, Maria da Conceição Pereira. Debating health and migrations in a context of intense human mobility. Interface, v. 21, n. 61 p. 285-96. 2017.).

Essas populações não só enfrentam as condições adversas impostas por sua condição de migrantes ou refugiadas, mas também carregam as marcas da exploração e dominação colonial, que continuam a influenciar as relações de poder globais (Buss, Pellegrini, 2006BUSS, Paulo M.; PELLEGRINI Filho A. Iniquidades em saúde no Brasil, nossa mais grave doença: comentários sobre o documento de referência e os trabalhos da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde. Cadernos de Saúde Pública, v. 22, n.9, 2006.; Velasco et al., 2021VELASCO, Soledad Álvarez; PEDONE, Claudia; MIRANDA, Bruno. “Movilidades, control y disputa espacial. La formación y transformación de corredores migratorios en las Américas”. PERIPLOS, Revista de Investigación sobre Migraciones, v. 5, n 1, p. 4-27, 2021.). Neste contexto, os fluxos migratórios e de refúgio não decorrem meramente de marcadores geográficos – como no eixo Sul-Norte –, que se perpetuam, apesar dos crescentes fluxos migratórios de Sul-Sul, mas estão profundamente enraizados nos conflitos resultantes do histórico colonial de exploração das periferias globais - em África, América Latina, Caribe e Ásia - pelos países centrais do capitalismo situados na Europa e América do Norte (Velasco et al., 2021VELASCO, Soledad Álvarez; PEDONE, Claudia; MIRANDA, Bruno. “Movilidades, control y disputa espacial. La formación y transformación de corredores migratorios en las Américas”. PERIPLOS, Revista de Investigación sobre Migraciones, v. 5, n 1, p. 4-27, 2021.).

Assim, migração e refúgio constituem movimentos frequentemente forçados por condições insustentáveis de vida, agravadas pela vulnerabilidade dos determinantes sociais de saúde, como condições precárias de habitação, saneamento, higiene, alimentação, trabalho e educação, além da perseguição, preconceitos e violências sofridas. Fenômenos oriundos da ordem neocolonial e capitalista, mediante a (re)produção de estruturas de poder e sujeição, de hierarquização social, econômica, do racismo e patriarcado, que condicionam polos geográficos, econômicos e sociais distintos (Quijano, 2005QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (comp.). La colonialidad del Saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.).

Durante a pandemia de Covid-19, as vulnerabilidades e conflitos vivenciados por essas populações se intensificaram, agravando-se pela exclusão e vulnerabilidade sanitária, o que, por meio do exercício da biopolítica, resultou na reprodução de vidas dignas ou, em contraste, em vidas precárias subalternizadas (Foucault, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 125-149.; Agamben, 2007AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.). A biopolítica, segundo Foucault (1988)FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 125-149., refere-se ao conjunto de práticas e políticas adotadas pelos Estados para regular a vida coletiva das populações. Juntamente com o biopoder, voltado à disciplina dos corpos em ordem individual, como anátomo-política do corpo, estruturam processos de "fazer morrer e deixar viver", ou vice-versa, conforme desejo do Soberano ou da sociedade. Dessa forma, a vida torna-se o objeto central de regulação e parametrização das existências, especialmente em contextos de crise, com uso de instrumentos de manutenção societária, por meio de aparelhos estatísticos preditivos e epidemiológicos (Foucault, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 125-149.; Ferreira, 2022FERREIRA, Natália Damazio Pinto. Vivente e vida nua: Conceitos de Biopolítica. Revista Direito e Práxis, v. 13 n. 2 p. 893-915, 2022.).

Essas dinâmicas se manifestaram durante a pandemia através da imposição de bloqueios e restrições de viagem e mobilidade em escala global. Embora, tais medidas fossem necessárias para conter a disseminação do vírus, sua aplicação desigual - e biopolítica - favoreceu cidadãos nacionais e marginalizou migrantes e refugiados, que foram desproporcionalmente expostos ao vírus, refletindo a lógica de “deixar morrer” (Foucault, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 125-149.). Ademais, vivenciaram o aumento da xenofobia e do racismo, muitas vezes fomentados por discursos nacionalistas e de extrema-direita, que se intensificaram, justificando políticas anti-imigratórias que, paradoxalmente, minaram as mesmas economias que dependem da força de trabalho migrante. Pois, estes estão empregados em diferentes setores produtivos considerados essenciais para a economia global, incluindo alimentação, fornecimento e distribuição de bens e recursos, reforçando o papel e a importância desses trabalhadores e sua proteção, não apenas pelo caráter produtivo, mas também pela garantia de seus direitos humanos fundamentais, incluindo o direito à saúde (Mcauliffe, Triandafyllidou, 2022MCAULIFFE, Marie; Triandafyllidou, Anna (eds.). World Migration Report 2022. International Organization for Migration (IOM): Genebra, 2022. Disponível em: Disponível em: https://publications.iom.int/books/world-migration-report-2022 . Acesso em: 20.08.2024.
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).

Essa dinâmica evidencia a contradição fundamental do capitalismo global: enquanto os Estados dependem da migração para sustentar setores essenciais de suas economias, simultaneamente implementam políticas que marginalizam e precarizam essas populações (Pellizari, Alvez, 2021PELLIZARI, Kelly; ALVEZ, Henrique Roriz Aarestrup. As interfaces da vulnerabilidade social de imigrantes e refugiados frente a Covid-19: cenário mato-grossense. Cadernos de Campo: Revista de Ciências Sociais, n. 30, p. 315-341, 2021. ). Embora ambos os grupos compartilhem desafios comuns, como o acesso limitado a cuidados de saúde e iniquidades nas condições de vida, as vulnerabilidades específicas variam, especialmente, no contexto da crise sanitária. Migrantes, são frequentemente empregados em setores essenciais - como agricultura, construção e serviços de entrega - onde foram expostos ao vírus sem a proteção necessária, exacerbando as condições de trabalho precárias que já enfrentavam. Refugiados, por sua vez, muitas vezes confinados campos superlotados ou em condições de extrema insegurança, enfrentam riscos agravados de contágio e mortalidade devido à falta de acesso a serviços de saúde adequados e à exposição constante à violência e perseguição. (Granada et al., 2017GRANADA, Daniel; CARRENO, Ioná; RAMOS, Natália; RAMOS, Maria da Conceição Pereira. Debating health and migrations in a context of intense human mobility. Interface, v. 21, n. 61 p. 285-96. 2017.; Mcauliffe, Triandafyllidou, 2022MCAULIFFE, Marie; Triandafyllidou, Anna (eds.). World Migration Report 2022. International Organization for Migration (IOM): Genebra, 2022. Disponível em: Disponível em: https://publications.iom.int/books/world-migration-report-2022 . Acesso em: 20.08.2024.
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).

Contextos que configuram a necropolítica, como agência da biopolítica, descrita por Mbembe (2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. ), onde o Estado exerce o poder de decidir sobre a vida e a morte, mediante dispositivos do racismo institucional. A necropolítica torna-se evidente neste contexto ao delimitar quais vidas são consideradas “úteis” e quais são relegadas ao abandono e à morte, diante da seletividade letal do vírus, por marcadores sociais, e do papel do Estado na perpetuação de tais disparidades e violências, ou seja, na distribuição desigual das oportunidades de viver e morrer no sistema capitalista (Mbembe, 2018MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. ).

Diante deste cenário, torna-se imperativo a proteção dessas populações através da integração de políticas nacionais e internacionais que assegurem seus direitos humanos, independentemente da condição jurídica (UNHCR, 2023UNHCR. Global Trends: forced displacement in 2023. Disponível em: Disponível em: https://www.unhcr.org/global-trends-report-2023 . Acesso em 20.08.2024.
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). A pandemia de Covid-19 evidenciou que essas populações, embora essenciais para a economia global, continuam a ser negligenciadas e marginalizadas. Portanto, garantir o direito à saúde e outros direitos fundamentais, representa não apenas uma questão de justiça social, mas também um imperativo ético frente às iniquidades e violências históricas e estruturais que as tornam particularmente vulneráveis e em maior vulnerabilidade ao contágio, transmissão e desafios para prevenção da Covid-19 (Mcauliffe, Triandafyllidou, 2022MCAULIFFE, Marie; Triandafyllidou, Anna (eds.). World Migration Report 2022. International Organization for Migration (IOM): Genebra, 2022. Disponível em: Disponível em: https://publications.iom.int/books/world-migration-report-2022 . Acesso em: 20.08.2024.
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).

Dessa forma, o objetivo deste artigo é analisar medidas e políticas públicas de combate à Covid-19 voltadas para migrantes e refugiados ao nível global, adotadas no período entre 2020 e 2022, e refletir sobre como essas políticas impactaram a garantia dos direitos humanos dessas populações. A seguinte revisão da literatura apresenta três seções com análise e discussão relacionadas a (I) Políticas de Saúde de combate a Covid-19 para migrantes e refugiados, (II) Centralidade e Essencialidade do Trabalho Migrante, e (III) Proteção Social e Outros Aspectos.

Metodologia

O presente estudo é uma Revisão Integrativa da Literatura, que se propõe sintetizar evidências científicas de forma sistematizada acerca dos resultados de pesquisas desenvolvidas sobre políticas de proteção a migrantes e refugiados durante a pandemia de Covid-19, internacionalmente, de forma comparada, no período entre 2020 e 2022 (Souza et al., 2010SOUZA, T. Marcela; SILVA, D. Michelly; CARVALHO, Rachel. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein, v. 8, n. 1, p. 102-106, 2010.).

O método adotado para esta revisão da literatura seguiu as etapas descritas por Mendes et al. (2008) MENDES, Karina Dal Sasso, SILVEIRA, Renata Cristina de Campos Pereira, GALVÃO, Cristina Maria. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto Contexto Enferm, v. 17, n. 4, p. 758-64, 2008.e Souza et al. (2010SOUZA, T. Marcela; SILVA, D. Michelly; CARVALHO, Rachel. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein, v. 8, n. 1, p. 102-106, 2010.), consoante as diretrizes do The Preferred Reporting Systematic Reviews and Meta-Analyses of Studies (PRISMA) de 2020 para organização dos achados. A primeira fase da pesquisa decorreu na identificação do tema e na definição do problema. Além disso, foi definida a estratégia de pesquisa, com utilização dos conjuntos de Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) e Medical Subject Headings (MeSH), estruturados pelo PICO: Migrantes e Refugiados (população); Covid-19 e Pandemia (intervenção); Direitos Humanos, Políticas Públicas, Medidas e Ação (desfecho). A busca foi realizada em abril de 2022 em quatro bases de dados de pesquisa: Pubmed (n=70), Scopus (n=243), Biblioteca Virtual de Saúde (n=88), Wiley Online Library (n=23), respectivamente em prioridade, totalizando 424 artigos. Após a eliminação de duplicatas, restaram 293 artigos, selecionados para leitura dos títulos e resumos. Na segunda etapa, aplicaram-se critérios de inclusão e exclusão, considerando a disponibilidade gratuita dos artigos nos idiomas português, inglês ou espanhol, publicados entre 2020 e 2022, que abordassem políticas públicas voltadas para migrantes e/ou refugiados durante a pandemia de Covid-19. Ao final, 39 artigos foram selecionados para leitura completa. Na terceira etapa, foi realizado o filtro dos artigos através de sua leitura e avaliação crítica, por sua relevância, confiabilidade e validade, subsidiando a organização e categorização dos estudos pré-selecionados por classificação e proximidade conceitual e temática, resultando em amostra final de 24 estudos conforme critérios de elegibilidade. Conforme apresentado na Figura 1:

Figura 1 -
PRISMA: fluxograma da seleção dos artigos revisados

Na quarta fase, utilizou-se uma abordagem inspirada em Bardin (2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.) para a categorização e a análise temática dos dados. A partir da pré-análise, codificação e categorização dos dados, foi realizada a síntese da matriz de evidências e a subsequente análise dos dados coletados. Os resultados foram discutidos e interpretados com base na literatura científica e suas contribuições organizadas no presente artigo. Como pesquisa de análise documental e bibliográfica, dispensa-se da necessidade de apreciação pelo sistema CEP/CONEP, conforme a Resolução CNS n.º 510/2016 de 7 de abril de 2016.

Resultados e discussão

Embora exista um amplo conjunto de políticas e ações internacionais provenientes do complexo da ONU, OMS e da ACNUR, destinadas à proteção e garantia de direitos humanos de migrantes e refugiados, incluída a Declaração de Nova York (2016), o Pacto Global para Migração Segura (2018), o Pacto Global Sobre Refugiados (2018) e o Plano Global para Promover a Saúde de Migrantes e Refugiados (2019), a implementação desses dispositivos ainda necessita de avanços significativos e ampliação dos instrumentos de proteção e seguridade a estas populações em todo o mundo.

Este desafio tornou-se particularmente evidente no contexto da pandemia de Covid-19, que exacerbou as vulnerabilidades e a desigualdades enfrentadas por essas populações. Neste cenário, conforme amostra de análise dos estudos, as medidas e ações de combate à pandemia de Covid-19 voltadas para migrantes e refugiados ao nível global evidenciam uma pluralidade de intervenções de ordem biopsicossocial, econômica e sanitárias adotadas pelos países durante a crise sanitária, seja para a proteção - ou não - de populações migrantes e/ou refugiadas. A seguir (Tabela 1) a lista dos artigos selecionados.

Tabela 1
Artigos incluídos, com: Número de Identificação (ID), autores, título, países de enfoque e ano de publicação - 2024

A partir da observação crítica da pandemia e das políticas de proteção e garantia dos direitos humanos voltadas a migrantes e refugiados, evidencia-se o componente biopolítico e paradoxal na leitura dos artigos selecionados, circunscritos ao período entre 2020 e 2022. Dessa análise emergiram três eixos temáticos com profundas intersecções: (I) Saúde; (II) Trabalho; e (III) Proteção social e outros.

Políticas de Saúde de combate a Covid-19 para migrantes e refugiados

A saúde, considerada um direito humano fundamental e indispensável para a realização de todos os outros direitos, deve ser garantida em todos os locais, condições e populações em plenitude. Isso exige a resiliência dos sistemas de saúde para cuidado e atenção, especialmente em contextos de pandemias e crises sistemáticas, que requerem intervenções multissetoriais, com centralidade na área da saúde, para a promoção do bem-estar e segurança dos indivíduos (Leão, 2019LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. O regime de proteção aos migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 27, n. 57, p. 175-192, 2019.). Nesta área temática, quatro subtópicos se destacaram: 1.º medidas protocolares de prevenção e informação, 2.º testagem, isolamento e busca ativa de casos, 3.º acesso aos sistemas de saúde, e 4.º imunização.

Como descrito, durante a pandemia de Covid-19, as populações de migrantes e refugiados se encontraram duplamente vulnerabilizadas. Primeiro, pela desigualdade estrutural - ampliada na crise sanitária e econômica -, com acentuado risco de contágio, decorrente das condições precárias de habitação, alimentação e dificuldades para garantir medidas de higiene e distanciamento social. Em segundo lugar, pelas medidas restritivas de circulação que penalizaram sua mobilidade e a instituição de confinamento em centros de detenção superlotados, como o “Centro de Acolhimento e Identificação de Moria” na Grécia, ou seu enclausuramento nas fronteiras dos países desenvolvidos. Além disso, houve o uso “biogeopolítico” destas populações vulneráveis como moeda de troca e pressão internacional nas tensões entre União Europeia e Turquia (Jauhiainen, 2020JAUHIAINEN, Jussi S. Biogeopolitics of Covid-19: Asylum-Related Migrants at the European Union Borderlands. Tijdschrift voor economische en sociale geografie, v. 111, n. 3, p. 260-274, 2020.), bem como o agravamento dos discursos e atos xenófobos, com grupos reacionários tentando associar aos migrantes e refugiados estereótipos de “perpetuadores da Covid-19” nestes territórios.

A OMS e demais instituições sanitárias, ao longo da crise sanitária, recomendaram diversas medidas protocolares de prevenção e informação, incluindo a formalização de planos específicos de saúde para migrantes e refugiados (WHO, 2021WHO. Refugees and migrants in times of COVID-19: mapping trends of public health and migration policies and practices. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/341843/9789240028906-eng.pdf . Acesso em: 19.08.2022.
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). No entanto, foram tomadas ações generalistas, heterogêneas e adaptadas conforme evolução do conhecimento técnico-científico sobre a doença e seus impactos socioeconômicos. Merece destaque, entre elas, a disponibilização de equipamentos de proteção individual, como máscaras e itens de higiene. Neste contexto, os governos turco, tailandês e singapurense realizaram importantes iniciativas de inclusão das populações de refugiados como grupos preferenciais a receber estes insumos (Kunpeuk, et al. 2020KUNPEUK, Watinee., JULCHOO, Sataporn., PHAIYAROM, Mathudara., SINAM, Pigunkaew, PUDPONG, Nareerut, LOGANATHAN, Tharani, YI, Huso, SUPHANCHAIMAT, Rapeepong. Access to Healthcare and Social Protection among Migrant Workers in Thailand before and during COVID-19 Era: A Qualitative Study. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, p. 3083, 2020.; Matlin et al., 2021MATLIN, Stephen A.; KARADAG, Ozge; BRANDO, Claudio R.; GÓIS, Pedro; KARABEY, Selma; KHAN, Md. Mobarak Hossain; SALEH, Shadi; TAKIAN, Amirhossein; SASO, Luciano. Covid-19: Marking the Gaps in Migrant and Refugee Health in Some Massive Migration Areas. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 23, p. 12639, 2021. https://doi.org/10.3390/ijerph182312639
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; Rajatanavin et al., 2021RAJATANAVIN, Nattadhanai; TUANGRATANANON, Titiporn; SUPHANCHAIMAT, Rapeepong; TANGCHAROENSATHIEN, Viroj. Responding to the Covid-19 second wave in Thailand by diversifying and adapting lessons from the first wave. BMJ global health, v. 6, n. 7, 2021.; Wang, Teo, 2021WANG, Samuel S.Y.; TEO, Winnie Z.Y. Equitable and Holistic Public Health Measures During the Singaporean Covid-19 Pandemic. Annals of Global Health, v. 87, n. 1, p. 45-46, 2021.).

Observou-se políticas de difusão de informações culturalmente acessíveis e multilíngues, com a tradução de informações em vários idiomas, ação realizada pela União Europeia (UE), países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico ou Econômico (OCDE), Turquia, Dinamarca, Austrália, Nova Zelândia e Canadá (Istiko et al., 2022ISTIKO, Satrio Nindyo; DURHAM, Jo; ELLIOTT, Lana. (Not That) Essential: A Scoping Review of Migrant Workers’ Access to Health Services and Social Protection during the Covid-19 Pandemic in Australia, Canada, and New Zealand. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, 2022.). Além disso, a Turquia produziu e distribuiu materiais gráficos culturalmente adaptados para essas populações. A internet também foi utilizada para promover acesso às informações por meio de mídias governamentais, como o caso dos governos de Malta, Sri Lanka, e Canadá (Dembech et al., 2021DEMBECH, Matteo; KATZ, Zoltan; SZILARD, Istvan. Strengthening Country Readiness for Pandemic-Related Mass Movement: Policy Lessons Learned. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 12, 2021.; Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.). Em Singapura, agentes e lideranças comunitárias fluentes no idioma alcançaram as populações de trabalhadores migrantes, e também, mobilizaram-se voluntários para o auxílio em consultas de triagem (Chua et al., 2020CHUA, Alvin Qijia; TAN, Melisa Mei Jin; VERMA, Monica; HAN, Emeline Kai Lin; HSU, Li Yang; COOK, Alex Richard; TEO, Yik Ying; LEE, Vernon J.; LEGIDO-QUIGLEY, Helena. Health system resilience in managing the Covid-19 pandemic: lessons from Singapore. BMJ Global Health, v. 5, n. 9, p. e003317, 2020.; Koh, 2020KOH, David. Migrant workers and Covid-19. Occupational & Environmental Medicine, v. 77, n. 9, p. 634-636, 2020.; Wang, Teo, 2021WANG, Samuel S.Y.; TEO, Winnie Z.Y. Equitable and Holistic Public Health Measures During the Singaporean Covid-19 Pandemic. Annals of Global Health, v. 87, n. 1, p. 45-46, 2021.). Em Bangladesh, foi prestado apoio aos retornados com informações e fornecimento de produtos de higiene e proteção (Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.).

A pandemia exigiu intervenções sanitárias concernentes com sua magnitude, o que conduziu à adoção de medidas epidemiológicas cientificamente indicadas para o controle de fenômenos com tal amplitude de virulência e letalidade. Desse modo, foram adotadas instruções normativas da medicina social e higienista (Foucault, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 125-149.; Agamben, 2007AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.), com a análise e regulação das políticas através da leitura das curvas epidemiológicas de progressão e contágio da Covid-19, isolamento social, rastreamento e quarentenas, para citar alguns. Embora estas políticas sejam comprovadamente eficazes, não se pode deixar de ponderar que elas reverberaram uma série de instrumentos de controle biopolítico. Paradoxalmente políticas de proteção foram utilizadas para controle, através das restrições de mobilidade – com argumento de conter a disseminação do vírus –, para barrar os fluxos migratórios, com o fechamento de fronteiras e quarentenas em massa (Nascimento, Colombo, 2021NASCIMENTO, Emerson Oliveira; COLOMBO, Lucileia Aparecida. Fazer viver e deixar morrer: gestão das desigualdades em tempos de pandemia. Psicologia Política, v. 21, n. 51, p. 478-490, 2021.).

Assim, a política adotada por vários países pautou-se em medidas de testagem em massa, isolamento de casos e busca ativa de casos assintomáticos e sintomáticos em sua população geral e grupos prioritários por vulnerabilidade, incluindo migrantes e refugiados (WHO, 2021WHO. Refugees and migrants in times of COVID-19: mapping trends of public health and migration policies and practices. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/341843/9789240028906-eng.pdf . Acesso em: 19.08.2022.
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). Ações focais para trabalhadores migrantes temporários foram administradas pelos governos da Turquia, Tailândia e Singapura (Kunpeuk, et al. 2020KUNPEUK, Watinee., JULCHOO, Sataporn., PHAIYAROM, Mathudara., SINAM, Pigunkaew, PUDPONG, Nareerut, LOGANATHAN, Tharani, YI, Huso, SUPHANCHAIMAT, Rapeepong. Access to Healthcare and Social Protection among Migrant Workers in Thailand before and during COVID-19 Era: A Qualitative Study. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, p. 3083, 2020.; Chua et al., 2020CHUA, Alvin Qijia; TAN, Melisa Mei Jin; VERMA, Monica; HAN, Emeline Kai Lin; HSU, Li Yang; COOK, Alex Richard; TEO, Yik Ying; LEE, Vernon J.; LEGIDO-QUIGLEY, Helena. Health system resilience in managing the Covid-19 pandemic: lessons from Singapore. BMJ Global Health, v. 5, n. 9, p. e003317, 2020.; Matlin et al., 2021MATLIN, Stephen A.; KARADAG, Ozge; BRANDO, Claudio R.; GÓIS, Pedro; KARABEY, Selma; KHAN, Md. Mobarak Hossain; SALEH, Shadi; TAKIAN, Amirhossein; SASO, Luciano. Covid-19: Marking the Gaps in Migrant and Refugee Health in Some Massive Migration Areas. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 23, p. 12639, 2021. https://doi.org/10.3390/ijerph182312639
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; Rajatanavin et al., 2021RAJATANAVIN, Nattadhanai; TUANGRATANANON, Titiporn; SUPHANCHAIMAT, Rapeepong; TANGCHAROENSATHIEN, Viroj. Responding to the Covid-19 second wave in Thailand by diversifying and adapting lessons from the first wave. BMJ global health, v. 6, n. 7, 2021.; Wang, Teo, 2021WANG, Samuel S.Y.; TEO, Winnie Z.Y. Equitable and Holistic Public Health Measures During the Singaporean Covid-19 Pandemic. Annals of Global Health, v. 87, n. 1, p. 45-46, 2021.), países que dependem intensamente de mão de obra migrante em suas linhas de produção. Essas ações incluíram a quarentena e triagem desses trabalhadores nos pontos de entrada e nas instituições sanitárias administradas por esses Estados.

Os estudos selecionados em sintonia com o relatório da OMS Refugees and migrants in times of Covid-19: mapping trends of public health and migration policies and practices de 2021, apontam a tendência dos países centrais, de aliviar os encargos financeiros dos pacientes individuais e cobrir os serviços relacionados à Covid-19, independente da situação migratória, diante do impacto generalizado do vírus sobre as populações. As referidas ações ocorreram na Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Chipre, Grécia, Israel, Malta, Portugal, Espanha e Itália (Asia, 2021ASIA, Della Rosa. How the Invisibles Become Essentials: migrant workers rights in italy during a pandemic crisis. Partecipazione e Conflitto, v. 14, n. 1, p. 359-372, 2021. ; Istiko et al., 2022ISTIKO, Satrio Nindyo; DURHAM, Jo; ELLIOTT, Lana. (Not That) Essential: A Scoping Review of Migrant Workers’ Access to Health Services and Social Protection during the Covid-19 Pandemic in Australia, Canada, and New Zealand. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, 2022.; Sisti et al., 2021SISTI, Leuconoe Grazia; DI NAPOLI, Anteo; PETRELLI, Alessio; ROSSI, Alessandra; DIODATI, Alessanda; MENGHINI, Martina; MIRISOLA, Concetta; COSTANZO, Gianfranco. Covid-19 Impact in the Italian Reception System for Migrants during the Nationwide Lockdown: A National Observational Study. International journal of environmental research and public health, v. 18, n. 23, 2021.; Waitzberg et al., 2022WAITZBERG, Ruth; HERNÁNDEZ-QUEVEDO, Cristina; BERNAL-DELGADO, Enrique; ESTUPIÑÁN-ROMERO, Francisco; ANGULO-PUEYO, Ester; THEODOROU, Mamas; KANTARIS, Marios; CHARALAMBOUS, Chrystala; GABRIEL, Elena; ECONOMOU, Charalampos; KAITELIDOU, Daphne; KONSTANTAKOPOULOU, Olympia; VILDIRIDI, Lilian Venetia; MESHULAM, Amit; DE BELVIS, Antonio Giulio; MORSELLA, Alisha; BEZZINA, Alexia; VINCENTI, Karen; AUGUSTO, Gonçalo Figueiredo; FRONTEIRA, Inês; SIMÕES, Jorge; KARANIKOLOS, Marina; WILLIAMS, Gemma; MARESSO, Anna. Early health system responses to the Covid-19 pandemic in Mediterranean countries: A tale of successes and challenges. Health policy, v. 126, n. 5, p. 465-475, 2022.).

Estes fluxos situaram a demanda por resiliência dos sistemas de saúde, que com suas particularidades, tiveram de se adaptar a um cenário de demandas crescentes e de alta complexidade. Em primeiro lugar, houve a ampliação do acesso ao sistema regular de saúde (WHO, 2021WHO. Refugees and migrants in times of COVID-19: mapping trends of public health and migration policies and practices. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/341843/9789240028906-eng.pdf . Acesso em: 19.08.2022.
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), com maior potencial de inclusão de populações vulneráveis nos países que possuem sistemas públicos e/ou de seguros universais de saúde como o Líbano, Espanha, Portugal e Brasil (Dembech et al., 2021DEMBECH, Matteo; KATZ, Zoltan; SZILARD, Istvan. Strengthening Country Readiness for Pandemic-Related Mass Movement: Policy Lessons Learned. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 12, 2021.; Matlin et al., 2021MATLIN, Stephen A.; KARADAG, Ozge; BRANDO, Claudio R.; GÓIS, Pedro; KARABEY, Selma; KHAN, Md. Mobarak Hossain; SALEH, Shadi; TAKIAN, Amirhossein; SASO, Luciano. Covid-19: Marking the Gaps in Migrant and Refugee Health in Some Massive Migration Areas. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 23, p. 12639, 2021. https://doi.org/10.3390/ijerph182312639
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; Martuscelli, 2020MARTUSCELLI, Patrícia Nabuco. How are refugees affected by Brazilian responses to Covid-19?. Brazilian Journal Of Public Administration, v. 54, n. 5, p. 1446-1457, 2020.; Raposo, Violante, 2021RAPOSO, Vera Lúcia; VIOLANTE, Teresa. Access to Health Care by Migrants with Precarious Status During a Health Crisis: Some Insights from Portugal. Human Rights Review, v. 22, n. 4, p. 1-24, 2021.). E em segundo lugar, a implementação de políticas de “anistias” para o acesso aos serviços de saúde por migrantes/refugiados indocumentados na Arábia Saudita e Itália, e aos requerentes de asilo em Malta (Asia, 2021ROSA, Asia Della. Amnesty for whom? How the invisibles became essentials. Partecipazione e Conflitto, v. 14, n. 1, p. 359-372, 2021.; Alsharif, 2022ALSHARIF, Fahad. Undocumented migrants in Saudi Arabia: Covid‐19 and amnesty reforms. International Migration, v. 60, n. 1, p. 188, 2022.; Rosa, 2021ROSA, Asia Della. Amnesty for whom? How the invisibles became essentials. Partecipazione e Conflitto, v. 14, n. 1, p. 359-372, 2021.; Dembech et al., 2021DEMBECH, Matteo; KATZ, Zoltan; SZILARD, Istvan. Strengthening Country Readiness for Pandemic-Related Mass Movement: Policy Lessons Learned. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 12, 2021.), qualificando o uso dos serviços de saúde, por estes indivíduos, sem enfrentar possíveis coerções quanto a sua situação jurídica, que em outros contextos poderiam resultar em prisões, deportações, sanções criminais ou econômicas.

Entretanto, apesar das medidas de universalização e anistia aos indocumentados para acesso aos serviços de saúde, relatos de migrantes e refugiados destacaram a profundidade e complexidade dessa questão, na qual o medo e as vulnerabilidades se aglutinam à biopolítica. Em Portugal, por exemplo, apesar da ampliação do acesso, Waitzberg et al. (2022WAITZBERG, Ruth; HERNÁNDEZ-QUEVEDO, Cristina; BERNAL-DELGADO, Enrique; ESTUPIÑÁN-ROMERO, Francisco; ANGULO-PUEYO, Ester; THEODOROU, Mamas; KANTARIS, Marios; CHARALAMBOUS, Chrystala; GABRIEL, Elena; ECONOMOU, Charalampos; KAITELIDOU, Daphne; KONSTANTAKOPOULOU, Olympia; VILDIRIDI, Lilian Venetia; MESHULAM, Amit; DE BELVIS, Antonio Giulio; MORSELLA, Alisha; BEZZINA, Alexia; VINCENTI, Karen; AUGUSTO, Gonçalo Figueiredo; FRONTEIRA, Inês; SIMÕES, Jorge; KARANIKOLOS, Marina; WILLIAMS, Gemma; MARESSO, Anna. Early health system responses to the Covid-19 pandemic in Mediterranean countries: A tale of successes and challenges. Health policy, v. 126, n. 5, p. 465-475, 2022.) menciona que foram constatadas dificuldades e negação do atendimento em saúde, mesmo para crianças, a quem a legislação portuguesa oferta amplos direitos, independente do contexto da pandemia e status migratório. Na Arábia Saudita, evidenciou-se o medo de identificação e coerção pelas autoridades, o que levou comunidades migrantes de diferentes matizes étnicas a preferirem buscar atendimento com seus médicos e farmacêuticos tradicionais e de referência. Caso não houvesse essa alternativa, muitos optaram por utilizar documentos de outras pessoas para acesso ao sistema de saúde regular, para que, assim, não fossem identificados nos sistemas informatizados e de controle – biopolítico – do Estado, e mais tarde, fossem intimados ao julgamento por sua condição migratória que, em última instância, resulta em deportação e/ou prisão (Alsharif, 2022ALSHARIF, Fahad. Undocumented migrants in Saudi Arabia: Covid‐19 and amnesty reforms. International Migration, v. 60, n. 1, p. 188, 2022.).

No que concerne a imunização, os estudos apontam diferentes perspectivas dos países analisados quanto à inclusão destas populações em seus planos de vacinação contra a Covid-19 e demais vacinas. Na América do Sul, Colômbia e Equador, promoveram a inclusão explícita de migrantes e refugiados em seus programas, enquanto Peru, Argentina e Brasil, ofereceram acesso integral à vacinação, porém, sem maiores especificidades ou incentivos (Flor, 2020FLOR, María Hernandez Ávila; DE LOS SANTOS, Isidro Olivio; MARTIN Victor Rafael Fiorino. Derechos emergentes de los migrantes forzados venezolanos en Colombia: Propuesta de los iura vivendi y migrandi, al ius integrandi. Utopía y praxis latinoamericana: revista internacional de filosofía iberoamericana y teoría social, n. 8, p. 133-146, 2020. ; Perez-Brumer et al., 2021PEREZ-BRUMER, Amaya; HILL, David; ANDRADE-ROMO, Zafiro; SOLARI, Karla; ADAMS, Ellithia; LOGIE, Carmen; SILVA-SANTISTEBAN, Afonso. Vaccines for all? A rapid scoping review of Covid-19 vaccine access for Venezuelan migrants in Latin America. Journal of migration and health, v. 4, p. 100072, 2021.).

o caso brasileiro, apesar do acesso universal à saúde e à imunização garantido pelo Sistema Único de Saúde, o governo federal sob gestão de Jair Bolsonaro (2019-2022) conduziu políticas de saúde negligentes, vagas e controversas, que resultaram em iniquidades e perpetuação de preconceitos ao acesso à vacinação, afetando tanto nacionais quanto migrantes e refugiados. Fenômeno semelhante também foi observado no Chile, onde, embora o acesso à vacina tenha sido garantido a imigrantes indocumentados, o Ministério de Relações Exteriores do país forneceu declarações contrárias, com imposição de barreiras por meio de burocracia e solicitação de documentações (Perez-Brumer et al., 2021PEREZ-BRUMER, Amaya; HILL, David; ANDRADE-ROMO, Zafiro; SOLARI, Karla; ADAMS, Ellithia; LOGIE, Carmen; SILVA-SANTISTEBAN, Afonso. Vaccines for all? A rapid scoping review of Covid-19 vaccine access for Venezuelan migrants in Latin America. Journal of migration and health, v. 4, p. 100072, 2021.; Martuscelli, 2020MARTUSCELLI, Patrícia Nabuco. How are refugees affected by Brazilian responses to Covid-19?. Brazilian Journal Of Public Administration, v. 54, n. 5, p. 1446-1457, 2020.).

Apesar da inclusão explícita destas populações no plano nacional de vacinação colombiano, o país passou a solicitar aos migrantes a “Licença Especial de Permanência”, ou outros documentos que comprovassem seu status migratório. Os migrantes indocumentados, por sua vez, tiveram que solicitar em plena pandemia - enfrentando dificuldades de acesso à internet e restrições de mobilidade - o “Status de Proteção Temporária” para terem acesso às vacinas (Perez-Brumer et al., 2021PEREZ-BRUMER, Amaya; HILL, David; ANDRADE-ROMO, Zafiro; SOLARI, Karla; ADAMS, Ellithia; LOGIE, Carmen; SILVA-SANTISTEBAN, Afonso. Vaccines for all? A rapid scoping review of Covid-19 vaccine access for Venezuelan migrants in Latin America. Journal of migration and health, v. 4, p. 100072, 2021.). Essas questões refletem-se na elevada hesitação vacinal por parte dessas populações em diferentes países e a sua baixa adesão às políticas de imunização, o que significa maior risco de contágio e letalidade pela doença (WHO, 2021WHO. Refugees and migrants in times of COVID-19: mapping trends of public health and migration policies and practices. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/341843/9789240028906-eng.pdf . Acesso em: 19.08.2022.
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).

Dessa forma, apesar das ações significativas para ampliar o acesso aos sistemas de saúde, oferecer tratamento para a Covid-19 e imunização, conforme destacado pelos estudos incluídos, evidencia-se o desafio da coordenação global das políticas, face à reconhecida soberania dos Estados. Nesse sentido, em vários países foi observada a imposição de barreiras ao acesso, à segurança e à identificação dos migrantes e refugiados para sua efetiva inclusão nestas políticas. Isto revela marcas das desigualdades estruturais e projetos biopolíticos nos limites das fronteiras, como regulação das vidas e corpos, onde o direito humano à saúde torna-se também instrumento regulatório diante do Estado de Exceção, conclamado na emergência sanitária pelos governos e da sistemática racialização e subalternização das existências (Nascimento, Colombo, 2021NASCIMENTO, Emerson Oliveira; COLOMBO, Lucileia Aparecida. Fazer viver e deixar morrer: gestão das desigualdades em tempos de pandemia. Psicologia Política, v. 21, n. 51, p. 478-490, 2021.; Agamben, 2007AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.).

Centralidade e Essencialidade do Trabalho Migrante

No caso de migrantes e refugiados, a condição formal de trabalho se impõe como um garantidor e promotor dos demais direitos sociais, incluindo habitação, seguridade e saúde. Fora dessa relação, poucas políticas e medidas foram desenhadas para cuidado e atenção dessas populações, seja antes ou durante a crise sanitária.

A partir da leitura dos artigos selecionados, quatro dimensões emergem no âmbito do trabalho: 1) trabalhadores essenciais e dependência do trabalho migrante; 2) regularização e ampliação do status migratório; 3) relações diplomáticas e revisão contratual; 4) adequação, ampliação e acesso a direitos trabalhistas.

Conforme os estudos levantados, a fim de minimizar os impactos econômicos decorrentes da pandemia, diversos países incorporaram em seus ordenamentos jurídicos e legais garantias e direitos voltados aos trabalhadores migrantes. No entanto, cabe assinalar que a migração e o refúgio estão atrelados a fatores sociais, econômicos e políticos, envolvendo fluxos migratórios Sul-Norte e Sul-Sul que são geralmente motivados pela busca por mais oportunidades e (sobre)vivência. Essas questões implicam em relações desiguais de trabalho e proteção social em comparação aos nacionais, evidenciando a continuidade do poder colonial e seus instrumentos de exploração e violação. Isso é operado por meio da crescente precarização das relações de trabalho e aumento das desigualdades socioeconômicas, a imposição de longas jornadas de trabalho, baixa remuneração, insegurança laboral e desamparo securitário com falta de amparo jurídico e sindical (Quijano, 2005QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (comp.). La colonialidad del Saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.; Velasco et al., 2021VELASCO, Soledad Álvarez; PEDONE, Claudia; MIRANDA, Bruno. “Movilidades, control y disputa espacial. La formación y transformación de corredores migratorios en las Américas”. PERIPLOS, Revista de Investigación sobre Migraciones, v. 5, n 1, p. 4-27, 2021.).

Os artigos analisados demonstram a dependência que a economia globalizada possui do trabalho dos migrantes, como motor da economia, especialmente nos países europeus e do sudeste asiático. Estes trabalhadores representam força laboral crescente, principalmente em setores produtivos e de serviços, em contratos sazonais e/ou permanentes. Nesse contexto, foram denominados “trabalhadores essenciais”, visto que cumpriam funções primordiais à manutenção da vida social, que se encontrava em uma “espécie de suspensão”. Cabe lembrar que trabalhadores delivery sustentaram, em grande medida, as entregas de alimentos e medicamentos nas grandes cidades. De forma análoga, trabalhadores migrantes rurais mantiveram as cadeias de produção e distribuição de alimentos necessários à manutenção da cadeia de produção e distribuição alimentar em vários países do mundo. Além disso, todos os trabalhadores da área da saúde, migrantes e nacionais, suportaram os serviços sanitários ao nível global (Antunes, 2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.).

Neste sentido, a condição migratória tornou-se lócus para garantir ou não a permanência destes trabalhadores nestes territórios, como, por exemplo, através de iniciativas de extensão automática de visto para trabalhadores migrantes na Tailândia, Costa Rica e Itália (Perez-Brumer et al., 2021PEREZ-BRUMER, Amaya; HILL, David; ANDRADE-ROMO, Zafiro; SOLARI, Karla; ADAMS, Ellithia; LOGIE, Carmen; SILVA-SANTISTEBAN, Afonso. Vaccines for all? A rapid scoping review of Covid-19 vaccine access for Venezuelan migrants in Latin America. Journal of migration and health, v. 4, p. 100072, 2021.; Rajatanavin et al., 2021RAJATANAVIN, Nattadhanai; TUANGRATANANON, Titiporn; SUPHANCHAIMAT, Rapeepong; TANGCHAROENSATHIEN, Viroj. Responding to the Covid-19 second wave in Thailand by diversifying and adapting lessons from the first wave. BMJ global health, v. 6, n. 7, 2021.; Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.; Asia, 2021ROSA, Asia Della. Amnesty for whom? How the invisibles became essentials. Partecipazione e Conflitto, v. 14, n. 1, p. 359-372, 2021.). No Canadá, trabalhadores migrantes essenciais das áreas de pesca, agricultura e frutos-do-mar tiveram a extensão da sua permanência de forma automática, tendo sido incluídos no “Programa de Migrantes Temporários” com a necessidade de quarentena de 14 dias, em que os empregadores foram obrigados a providenciar acomodações adequadas e monitorar a saúde dos trabalhadores migrantes (Alrob, Shields, 2022ALROB, Zainab Abu; SHIELDS, John. A Covid-19 State of Exception and the Bordering of Canada’s Immigration System: Assessing the Uneven Impacts on Refugees, Asylum Seekers and Migrant Workers. Studies in Social Justice, v. 16, n. 1, p. 54-77, 2022.).

Para a manutenção das relações de trabalho, foram articuladas questões diplomáticas entre países de origem, trânsito e destino dos trabalhadores migrantes. O governo das Filipinas, por exemplo, formalizou um acordo com o Kwait para a anistia de trabalhadores indocumentados (Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.). Já na União Europeia e nos países da Europa Central e Oriental, o fechamento das fronteiras nos primeiros meses da pandemia levou à necessidade de retorno dos trabalhadores migrantes oriundos da Romênia, Polônia e Bulgária. Para isso, foi criado um corredor humanitário para trabalhadores essenciais através da Hungria (Paul, 2020PAUL, Ruxandra. Europe’s essential workers: Migration and pandemic politics in Central and Eastern Europe during Covid‐19. European Policy Analysis, v. 6, n. 2, p. 238-263, 2020.; Tallarek, et al. 2020TALLAREK, Marie; BOZORGMEHR, Kayvan; SPALLEK, Jacob. Towards inclusionary and diversity-sensitive public health: the consequences of exclusionary othering in public health using the example of COVID-19 management in German reception centres and asylum camps. BMJ Global Health, v. 5, n. 12, 2020.). À medida que a pandemia avançava e a necessidade de flexibilidade no trânsito de trabalhadores migrantes essenciais aumentava, novos corredores migratórios foram criados e políticas de trânsito e contenção sanitária foram aplicadas (WHO, 2021WHO. Refugees and migrants in times of COVID-19: mapping trends of public health and migration policies and practices. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/341843/9789240028906-eng.pdf . Acesso em: 19.08.2022.
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).

Diante dos impactos da escassez de mão de obra migrante e das denúncias de violação de direitos trabalhistas, o Parlamento Europeu reconheceu os desafios enfrentados pelos trabalhadores migrantes essenciais. Aprovou-se uma resolução pedindo ações urgentes para salvaguardar a saúde e a segurança desses trabalhadores, com destaque para a criação da Comissão de Acompanhamento e Combate às Práticas de Subcontratação, que instou os Estados Europeus a reforçar as inspeções trabalhistas e garantir que os trabalhadores tenham moradia de qualidade, independentemente de seus salários (Paul, 2020PAUL, Ruxandra. Europe’s essential workers: Migration and pandemic politics in Central and Eastern Europe during Covid‐19. European Policy Analysis, v. 6, n. 2, p. 238-263, 2020.; Rosa, 2021ROSA, Asia Della. Amnesty for whom? How the invisibles became essentials. Partecipazione e Conflitto, v. 14, n. 1, p. 359-372, 2021.).

Com expressivos sinais utilitaristas da mão de obra migrante, diferentes políticas de auxílios e benefícios sociais foram direcionados a estas populações. Por exemplo, Hong Kong (Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.) promoveu ampliadamente a inclusão dos migrantes na legislação trabalhista. Em países como Canadá, Nova Zelândia, e Austrália (Istiko et al., 2022ISTIKO, Satrio Nindyo; DURHAM, Jo; ELLIOTT, Lana. (Not That) Essential: A Scoping Review of Migrant Workers’ Access to Health Services and Social Protection during the Covid-19 Pandemic in Australia, Canada, and New Zealand. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, 2022.), sindicatos organizados protestaram e ampliaram a luta pela manutenção de empregos e jornada de trabalho. Além disso, a Nova Zelândia e a Austrália estenderam os subsídios salariais.

No âmbito federal australiano, os migrantes com vistos permanentes foram incluídos nas políticas de subsídio de salários, seguro-desemprego e antecipação de aposentadoria (Symington, 2021SYMINGTON, Andy. Migrant workers and the Covid-19 crisis in Australia: an overview of governmental responses. Australian Journal of Human Rights, v. 26, n. 3, p. 507-519, 2021.). No Canadá, todos os trabalhadores foram incluídos em um programa de apoio ao seguro-desemprego (Istiko et al., 2022ISTIKO, Satrio Nindyo; DURHAM, Jo; ELLIOTT, Lana. (Not That) Essential: A Scoping Review of Migrant Workers’ Access to Health Services and Social Protection during the Covid-19 Pandemic in Australia, Canada, and New Zealand. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, 2022.). Na Costa Rica, além da inclusão no seguro-desemprego, foi oferecido um bônus de proteção de $ 200 dólares por até três meses prorrogáveis. Em Singapura, foi idealizado um programa de subsídios e apoio às necessidades diárias de vida dos trabalhadores, incluindo migrantes, por meio do Ministério das Finanças (Wang, Teo, 2021WANG, Samuel S.Y.; TEO, Winnie Z.Y. Equitable and Holistic Public Health Measures During the Singaporean Covid-19 Pandemic. Annals of Global Health, v. 87, n. 1, p. 45-46, 2021.).

Essas ações de apoio, embora com sinais utilitaristas, foram fundamentais, pois o fechamento das fronteiras e as restrições de circulação de bens e pessoas tiveram impactos profundos sobre a economia global e, consequentemente, sobre a manutenção dos postos de trabalho e renda, principalmente de populações vulneráveis. O Relatório da OIT, de 2021, aponta o elevado aumento dos níveis de desemprego em todo o mundo, a subutilização da mão de obra e a ampliação de condições e relações de trabalho precárias anteriores à crise sanitária.

Este cenário aprofundou as transformações e segmentações do mundo do trabalho no atual estágio do ciclo de acumulação capitalista (Arrighi, 2007ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith in Beijing: lineages of the twenty-first century. New York/London: Verso Books, 2007.), que refletem a individualização do trabalho, rompendo as barreiras coletivas e solidárias, bem como as revolucionárias. Ricardo Antunes (2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.) discute sobre as novas dimensões do trabalho e ressalta que os trabalhadores de todo o mundo, incluindo os migrantes, estão sujeitos a um processo de desmonte dos direitos trabalhistas, com a “uberização” e “pejotização” do trabalho, constituindo não menos que massas de “escravos digitais”. Os conflitos emergentes exigem a denúncia das explorações que se acentuam e o agravamento dos adoecimentos dos trabalhadores. Isso é fundamental para a busca crítica de novos formatos de trabalho e relações sociais e econômicas em que tanto os trabalhadores nacionais quanto os trabalhadores migrantes tenham seus direitos laborais e sociais garantidos.

Proteção Social e Outros Aspectos

Durante a crise sanitária da Covid-19, além da centralidade do enfoque nos campos da saúde e trabalho como orientadores das políticas direcionadas a migrantes e refugiados, outras ações correlatas e intersetoriais tiveram importante papel para promover a segurança e cuidado dessas populações. No que se refere à proteção social, os artigos apresentaram três dimensões: 1.º adequação do status migratório para acesso às políticas e direitos, 2.º manutenção da habitação, e 3.º ações de solidariedade e suporte da sociedade civil.

A relação entre o status migratório e acesso a políticas e direitos sociais nos países é intrínseca e indissociável, atuando como um instrumento biopolítico que pode facilitar ou limitar o acesso às políticas nacionais, em face ao direito internacional estabelecido. Nesse sentido, diversos países tomaram medidas no campo da regularização da situação migratória por condição de trabalho, ou ainda, sua indiscriminada renovação ou ampliação mediante anistia (WHO, 2021WHO. Refugees and migrants in times of COVID-19: mapping trends of public health and migration policies and practices. Geneva: World Health Organization, 2021. Disponível em: Disponível em: https://iris.who.int/bitstream/handle/10665/341843/9789240028906-eng.pdf . Acesso em: 19.08.2022.
https://iris.who.int/bitstream/handle/10...
).

Em relação à manutenção do visto e sua atualização, houve suspensão de prazos administrativos na Espanha, onde o “Sistema Nacional de Acolhimento de Proteção Internacional” suspendeu a exigência de documentos para acesso aos serviços públicos (Dembech et al., 2021DEMBECH, Matteo; KATZ, Zoltan; SZILARD, Istvan. Strengthening Country Readiness for Pandemic-Related Mass Movement: Policy Lessons Learned. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 12, 2021.). Na Costa Rica, a extensão do visto tornou-se automática e nos Estados Unidos da América (EUA), ocorreu com base em solicitação formal (Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.). Para os refugiados no Canadá, as isenções de viagem foram concedidas apenas aos aprovados pelo governo canadense antes de 18 de março de 2020 (Alrob, Shields, 2022ALROB, Zainab Abu; SHIELDS, John. A Covid-19 State of Exception and the Bordering of Canada’s Immigration System: Assessing the Uneven Impacts on Refugees, Asylum Seekers and Migrant Workers. Studies in Social Justice, v. 16, n. 1, p. 54-77, 2022.).

Na América do Sul, diante da grave crise migratória venezuelana, a Colômbia, já antes da pandemia, vinha planejando a formalização do “Estatuto Temporário de Proteção” de 10 anos para regularizar a situação de 1 milhão de venezuelanos em seu território. Assim, visava prover acesso regular a direitos e serviços. No contexto da pandemia, a medida alcançou refugiados indocumentados como condição de prover acesso à imunização (Flor, 2020FLOR, María Hernandez Ávila; DE LOS SANTOS, Isidro Olivio; MARTIN Victor Rafael Fiorino. Derechos emergentes de los migrantes forzados venezolanos en Colombia: Propuesta de los iura vivendi y migrandi, al ius integrandi. Utopía y praxis latinoamericana: revista internacional de filosofía iberoamericana y teoría social, n. 8, p. 133-146, 2020. ; Perez-Brumer et al., 2021PEREZ-BRUMER, Amaya; HILL, David; ANDRADE-ROMO, Zafiro; SOLARI, Karla; ADAMS, Ellithia; LOGIE, Carmen; SILVA-SANTISTEBAN, Afonso. Vaccines for all? A rapid scoping review of Covid-19 vaccine access for Venezuelan migrants in Latin America. Journal of migration and health, v. 4, p. 100072, 2021.). Além disso, a Colômbia instituiu na pandemia o Decreto Legislativo que implantou o “Imposto Solidário”, para a criação de um fundo de mitigação para auxílio dos trabalhadores informais, incluindo migrantes. A medida também visava a promoção de ações de cooperação internacional para responder à pandemia em populações em mobilidade, incluindo transferências de auxílios financeiros, água, saneamento e itens de higiene, contratação de prestadores de cuidados e centros de cuidados adaptados para atender medidas de isolamento, além da entrega de alimentos e adaptação de albergues para pessoas em situação de rua e caminhantes (Fernández-Niño et al., 2020FERNÁNDEZ-NIÑO, Julián Alfredo; CUBILLOS-NOVELLA, Andrés; BOJORQUEZ, Letza; RODRIGUEZ, Michael. Recommendations for the response against Covid-19 in migratory contexts under a closed border: The case of Colombia. Biomedica: revista del Instituto Nacional de Salud, v. 40, n. 2, 2020.).

Alguns países concederam amplos direitos, como o caso de Portugal, onde todos os imigrantes e requerentes de asilo que solicitaram residência antes de 18 de março de 2020 - quando o Estado de Emergência foi anunciado - receberam direitos plenos a benefícios de saúde e assistência social, incluindo serviços contratuais, bancários e outros serviços essenciais (Raposo, Violante, 2021RAPOSO, Vera Lúcia; VIOLANTE, Teresa. Access to Health Care by Migrants with Precarious Status During a Health Crisis: Some Insights from Portugal. Human Rights Review, v. 22, n. 4, p. 1-24, 2021.; Waitzberg et al., 2022WAITZBERG, Ruth; HERNÁNDEZ-QUEVEDO, Cristina; BERNAL-DELGADO, Enrique; ESTUPIÑÁN-ROMERO, Francisco; ANGULO-PUEYO, Ester; THEODOROU, Mamas; KANTARIS, Marios; CHARALAMBOUS, Chrystala; GABRIEL, Elena; ECONOMOU, Charalampos; KAITELIDOU, Daphne; KONSTANTAKOPOULOU, Olympia; VILDIRIDI, Lilian Venetia; MESHULAM, Amit; DE BELVIS, Antonio Giulio; MORSELLA, Alisha; BEZZINA, Alexia; VINCENTI, Karen; AUGUSTO, Gonçalo Figueiredo; FRONTEIRA, Inês; SIMÕES, Jorge; KARANIKOLOS, Marina; WILLIAMS, Gemma; MARESSO, Anna. Early health system responses to the Covid-19 pandemic in Mediterranean countries: A tale of successes and challenges. Health policy, v. 126, n. 5, p. 465-475, 2022.). Na Itália foi promovida a anistia para sans papiers, ou seja, indocumentados, e a atualização do status dos que já haviam solicitado a permanência no país, qualificando-os para uso dos serviços de saúde (Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.; Rosa, 2021ROSA, Asia Della. Amnesty for whom? How the invisibles became essentials. Partecipazione e Conflitto, v. 14, n. 1, p. 359-372, 2021.). O Kwait, por sua vez, promoveu uma anistia plena de status migratório para migrantes e refugiados indocumentados (Rao et al., 2021)RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021..

No Brasil, foi promulgado o Auxílio Emergencial - a despeito de toda a notória negligência na gestão da pandemia -, pago proporcionalmente em 6 meses no valor total de $554 dólares. No entanto, a política não incluía explicitamente migrantes e/ou refugiados. Para reverter esta situação, o poder judiciário foi instado a garantir o acesso de refugiados ao auxílio emergencial, independentemente da condição migratória e documentação exigida pelos órgãos e bancos brasileiros. Esta ação fundamentou-se na Lei de Refúgio n. 9474/1997 e a Lei de Migração 13.455/2017, que garantem direitos aos refugiados em plena igualdade com os nacionais, incluindo acesso a saúde e assistência social (Martuscelli, 2020MARTUSCELLI, Patrícia Nabuco. How are refugees affected by Brazilian responses to Covid-19?. Brazilian Journal Of Public Administration, v. 54, n. 5, p. 1446-1457, 2020.).

Para garantir o direito à habitação, a Colômbia promulgou o Decreto Legislativo n.º 579, que serviu como contenção ao aumento do valor dos aluguéis e proibição de despejos durante a pandemia (Fernández-Niño et al., 2020FERNÁNDEZ-NIÑO, Julián Alfredo; CUBILLOS-NOVELLA, Andrés; BOJORQUEZ, Letza; RODRIGUEZ, Michael. Recommendations for the response against Covid-19 in migratory contexts under a closed border: The case of Colombia. Biomedica: revista del Instituto Nacional de Salud, v. 40, n. 2, 2020.). Alguns estados australianos promoveram a moratória de contratos de aluguéis de trabalhadores migrantes e estudantes internacionais, além de desconto em contas de serviços essenciais, auxílios financeiros a estudantes e auxílio em programas para busca de empregos temporários (Symington, 2021SYMINGTON, Andy. Migrant workers and the Covid-19 crisis in Australia: an overview of governmental responses. Australian Journal of Human Rights, v. 26, n. 3, p. 507-519, 2021.). O Canadá, por outro lado, ofereceu residência permanente a uma pequena parcela de trabalhadores migrantes temporários essenciais e não essenciais (Istiko et al., 2022ISTIKO, Satrio Nindyo; DURHAM, Jo; ELLIOTT, Lana. (Not That) Essential: A Scoping Review of Migrant Workers’ Access to Health Services and Social Protection during the Covid-19 Pandemic in Australia, Canada, and New Zealand. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, 2022.).

No sudeste asiático, Singapura adotou, além das medidas protocolares sanitárias gerais já relatadas, políticas de melhoria e ampliação das instalações habitacionais de trabalhadores migrantes, com maior distanciamento social (Chua et al., 2020CHUA, Alvin Qijia; TAN, Melisa Mei Jin; VERMA, Monica; HAN, Emeline Kai Lin; HSU, Li Yang; COOK, Alex Richard; TEO, Yik Ying; LEE, Vernon J.; LEGIDO-QUIGLEY, Helena. Health system resilience in managing the Covid-19 pandemic: lessons from Singapore. BMJ Global Health, v. 5, n. 9, p. e003317, 2020.; Koh, 2020KOH, David. Migrant workers and Covid-19. Occupational & Environmental Medicine, v. 77, n. 9, p. 634-636, 2020.).

Além das medidas adotadas pelos Estados, o terceiro setor, composto por organizações não governamentais (ONGs), sindicatos, movimentos sociais e grupos autônomos de solidariedade, desempenhou um papel crucial no apoio a migrantes e refugiados durante a pandemia de Covid-19. No Líbano e Canadá, por exemplo, ONGs forneceram apoio financeiro, abrigo, alimentação e transporte para essas populações circunscritas às suas áreas de atuação (Istiko et al., 2022ISTIKO, Satrio Nindyo; DURHAM, Jo; ELLIOTT, Lana. (Not That) Essential: A Scoping Review of Migrant Workers’ Access to Health Services and Social Protection during the Covid-19 Pandemic in Australia, Canada, and New Zealand. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, 2022.; Matlin et al., 2021MATLIN, Stephen A.; KARADAG, Ozge; BRANDO, Claudio R.; GÓIS, Pedro; KARABEY, Selma; KHAN, Md. Mobarak Hossain; SALEH, Shadi; TAKIAN, Amirhossein; SASO, Luciano. Covid-19: Marking the Gaps in Migrant and Refugee Health in Some Massive Migration Areas. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 23, p. 12639, 2021. https://doi.org/10.3390/ijerph182312639
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). Em Bangladesh, a ONG BOMSA, voltada a direitos dos migrantes, distribuiu panfletos com informações sobre a Covid-19 e medidas de prevenção, além de distribuição de materiais de higiene pessoal e limpeza. Na Jordânia, uma ONG local pressionou o governo a estender prazos para vistos de trabalho de migrantes e fornecer apoio financeiro e itens de segurança laboral, evidenciando o papel crítico da sociedade civil organizada na garantia dos direitos dessas populações vulneráveis (Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.; Istiko et al., 2022ISTIKO, Satrio Nindyo; DURHAM, Jo; ELLIOTT, Lana. (Not That) Essential: A Scoping Review of Migrant Workers’ Access to Health Services and Social Protection during the Covid-19 Pandemic in Australia, Canada, and New Zealand. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, 2022.). Na Costa Rica e os EUA, ONGs utilizaram a internet como ferramenta para fornecer informações acessíveis e orientações jurídicas, ampliando o acesso a direitos sociais e serviços essenciais (Istiko et al., 2022ISTIKO, Satrio Nindyo; DURHAM, Jo; ELLIOTT, Lana. (Not That) Essential: A Scoping Review of Migrant Workers’ Access to Health Services and Social Protection during the Covid-19 Pandemic in Australia, Canada, and New Zealand. International journal of environmental research and public health, v. 19, n. 5, 2022.).

As redes de solidariedade formadas por migrantes e refugiados também foram essenciais para suprir lacunas criadas pela exclusão dos sistemas de proteção social. Essas redes, que atuam em diversas frentes, nos países de origem, destino e trânsito, são fundamentais para a sobrevivência e garantia de dignidade e direitos dessas populações (Rao et al., 2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.). As ações de auto-organização incluíram a arrecadação e distribuição de doações de dinheiro, alimentos e itens de higiene, além de voluntariado em ONGs de apoio. Outro campo de atuação refere-se ao papel dos sindicatos e federações, na luta por direitos trabalhistas, reunificação familiar, pensões e acesso a outros direitos sociais e de saúde. Nesse contexto, cita-se o relevante trabalho da Federação Internacional dos Trabalhadores Domésticos (FITH), que reúne mais de 670.000 trabalhadores domésticos de 68 países, organizados em sindicatos, associações e cooperativas, que durante a pandemia ofereceu apoio financeiro a seus afiliados e redefiniu parte de sua atuação para atender às necessidades humanitárias emergentes (Rao et al., 2021)RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021..

No entanto, Rao et al. (2021RAO, Smriti; GAMMAGE, Sarah; ARNOLD, Julia.; ANDERSON, Elizabeth. Human Mobility, Covid-19, and Policy Responses: The rights and Claims-Making of Migrant Domestic workers. Feminist Economics, v. 27, n. 1-2, p. 254-270, 2021.) destacam que muitos indivíduos e organizações enfrentaram o medo de represálias dos Estados, o que os levou a operar de forma anônima e a evitar a sindicalização. As barreiras impostas pelo status migratório, frequentemente associadas à biopolítica e à necropolítica, agravam ainda mais a vulnerabilidade de migrantes e refugiados. Portanto, apesar dos avanços alcançados, persistem desafios significativos para o acesso efetivo a direitos sociais e serviços essenciais. As lutas e as reivindicações continuarão além da pandemia e os direitos adquiridos durante esse período não podem retroagir. Além disso, reforça-se a autonomia e auto-organização desses grupos em redes de apoio e solidariedade, que já se apresentavam anteriormente a pandemia, mas que, neste contexto, ganharam contornos ainda mais humanitários e relevantes. É urgente a ação dos Estados para garantia dos direitos fundamentais e proteção destas populações, tanto durante a pandemia quanto nos agravos dela decorrentes.

Considerações finais

Esta revisão da literatura, que abrange 24 artigos sobre políticas públicas e a garantia dos direitos humanos de migrantes e refugiados durante os dois primeiros anos da pandemia, 2020-2022, evidencia uma variedade de medidas heterogêneas promovidas pelos Estados nacionais, bem como as lacunas e a agência dual da biopolítica na aplicação, ou não, dessas políticas e na inclusão, ou não, dessas populações nos programas de assistência, saúde e demais direitos sociais e laborais. Os três eixos temáticos interseccionais – saúde, trabalho e proteção social – apresentados na análise crítica, demonstram a amplitude e contradições das políticas e respostas específicas em cada contexto, diante do aumento das vulnerabilidades socioeconômicas estruturais enfrentadas por migrantes e refugiados durante a pandemia.

É notável que, quando as repercussões da pandemia afetam os cidadãos “nacionais”, emerge um compromisso ético-político automático, de proteção e preservação da vida, ou seja, da biopolítica positiva dos Estados nacionais. No entanto, quando se trata de questões que afetam especificamente migrantes e refugiados, comumente surgem discursos e políticas ancorados em uma perspectiva securitária e punitivista. Entretanto, apesar da dualidade biopolítica das medidas de proteção da Covid-19 voltadas para essas populações, os Estados foram instados - por diferentes frentes, desde as organizações internacionais, nacionais, quanto por auto-organização das sociedades - a formular mecanismos capazes de efetivar políticas que têm sido historicamente negadas, diante da percepção do aumento das vulnerabilidades político-sanitárias decorrentes das condições extremas vivenciadas pelo fechamento das fronteiras e a imposição de restrições à mobilidade e ao trabalho. Trata-se de atuações motivadas pela afirmação da essencialidade do trabalho migrante ou pelo próprio controle da pandemia, a fim de evitar a propagação do contágio e dirimir os impactos nos serviços de saúde, que se encontraram em muitos momentos colapsados diante o alto número de infecções e óbitos, principalmente nas primeiras ondas da Covid-19.

Portanto, é necessário avançar na discussão e ampliação dos tratados internacionais e sua efetiva aplicação pelos estados nacionais, para a garantia permanente dos direitos humanos de migrantes e refugiados, na qualificação da gestão e planejamento de enfrentamento e prevenção a futuras crises. Nesta direção, destaca-se a importância de promover sistemas de saúde resilientes, que garantam o acesso universal à saúde e os direitos humanos fundamentais, independentemente da condição migratória. Medidas neste sentido foram demonstradas como oportunas e possíveis, mediante mecanismos de integração dessas populações aos sistemas de saúde, políticas de vacinação e cuidados integrais. Portanto, trata-se não somente de uma necessidade em tempos de crises pandêmicas, mas de um imperativo ético-político permanente para salvaguardar o direito humano à vida, acima de quaisquer interesses econômicos e políticos.

No campo do trabalho, evidenciam-se as transformações das relações laborais e a confirmação do caráter essencial da mão de obra migrante em áreas prioritárias da economia global, destacando o status que a condição de trabalho impõe no acesso e na permanência dos migrantes aos demais direitos sociais e econômicos. O que exige a adequação e a garantia de direitos trabalhistas para os trabalhadores migrantes, para além da crise sanitária e como garantia de todos os direitos. No que diz respeito à proteção social, a pandemia destacou a necessidade de reverter políticas anti-migratórias e discriminatórias em todo o mundo, a fim de garantir os direitos humanos, indicando a possibilidade de sua inclusão em programas permanentes de transferência de renda e seguridade social. Ademais, destacou a atuação das redes de solidariedade e de ajuda humanitária, formadas por entes e organizações autônomas, na reivindicação e luta por direitos e proteção a essas populações. O que demanda o fortalecimento do vínculo dessas redes de luta e a conscientização social, no que diz respeito a direitos humanos universais, independente do status migratório e papel laboral desempenhado.

Assinala-se, finalmente, que a implementação e reflexão crítica quanto a essas questões exige uma profunda e ativa articulação intersetorial em nível (inter)nacional, em prol da expansão dos direitos e da proteção de migrantes e refugiados. Este ditame tornou-se um imperativo diante da emergência das vulnerabilidades – econômica, política e sanitária – vivenciadas historicamente por essas populações e exacerbadas durante a pandemia, além dos danos dela decorrentes na posteridade e nos conflitos geopolíticos que caracterizam os fluxos de migração e refúgio em todo o mundo.

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Editores de seção

Roberto Marinucci, Barbara Marciano Marques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Abr 2024
  • Aceito
    22 Jul 2024
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