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Estrangeiros Residentes: Uma filosofia da migração

Resident Foreigners: A Philosophy of Migration

DI CESARE, Donatella. Belo Horizonte: Ed. Âyiné, 2020. 356

Lançado em 2020 no Brasil, Estrangeiros Residentes: Uma filosofia da migração é uma resposta importante e socialmente imersiva a respeito do fenômeno migratório do século XXI sugerida pela filósofa italiana Donatella Di Cesare. Nas 356 páginas, a autora apresenta uma gama extensa de pensadores do fenômeno, incluindo aqueles que produziram suas obras envolvidos pessoalmente pela experiência migratória num conjunto de reflexões que Peter Burke (2017)BURKE, Peter. Perdas e Ganhos: Exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000. São Paulo: Unesp, 2017. denominou de "teoria do exílio".

Como filósofa, a principal contribuição trazida no livro por Di Cesare está na amplitude do pensamento que coloca em xeque a perspectiva estadocêntrica do mundo. Ainda que a base das reflexões esteja dirigida aos dilemas contemporâneos do continente europeu, o livro amplia sua importância extraterritorial ao não abdicar do atual contexto globalizado. Como linha reflexiva, encontram-se a ciência política e a filosofia política datadas da Antiguidade e da pré-modernidade, de modo que questões que atravessam a história humana, como a hospitalidade e a comunidade, sejam analisadas por um caminho mais amplo do que a circunstância do presente. Afinal, essa parece ser uma necessidade de toda proposta filosófica do fenômeno migratório: a da amplitude espaço-temporal que fundamenta o desejo e a necessidade da própria espécie em se deslocar.

Essa cultura da espécie aparenta ser uma das justificativas da autora ao antagonizar com o sistema das fronteiras dos Estados-nação como uma contraprodução da vida, especialmente explorada na primeira das quatro partes que estruturam o livro. Já na capa, a edição da Âyiné utiliza uma parte do texto para descartar a hipótese levantada pela política diplomática em encontrar "soluções" de "controle de fluxos" ou mesmo "integrar" os refugiados. O leitor que procura soluções de gestão para este tema milenar e suas decorrentes problemáticas se decepcionará porque, ao contrário, encontrará mais interrogações, um caminho longo a se percorrer e um fim quase utópico sobre "coabitar no terceiro milênio", que dá nome à quarta e última parte do livro. Trata-se de uma obra crítica às burocracias estatal e acadêmica que colocam sob o mote da jurisdição e dos acordos todas as respostas.

Quanto ao seu título, cabe explicá-lo em duas partes. "Estrangeiros residentes" é a designação crítica ao sistema estadocêntrico de governança mundial. Durante o livro, Di Cesare evoca a mesma concepção de provisoriedade do estrangeiro e, ao colocá-lo como residente, advoga por um habitar comum onde não haveria distinção entre autóctones e estrangeiros, dispensando assim a necessidade de asilo ou hospitalidade. Este conceito é explorado com base na filosofia de Lévinas (2008)LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. São Paulo: 70, 2008. e Derrida (2003)DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade. Entrevistadora: Anne Dufourmantelle. São Paulo: Escuta, 2003., segundo os quais a hospitalidade seria a baliza condutora da própria ética a partir de um sujeito que reconheça que é o próprio acolhimento a condição da existência do eu; sujeito este contrário ao tipo soberanista, pleno de si e acusado por ela de ser o aniquilador das diferenças culminantes dos totalitarismos do século XX.

A perspectiva quase utópica de Di Cesare sobre o habitar baseada nessa hospitalidade incondicional é antes originada pela concepção de Jerusalém, em total oposição à autoctonia de Atenas, e toma como base a historicidade dessas cidades, na qual a Cidade Santa é formada pelo gher (o estrangeiro no judaísmo), um residente que habita. Mas se Atenas também mantinha estrangeiros em seu território, qual a diferença entre ambas? Aristóteles explica que a residência não deveria garantir cidadania em prol da estabilidade política da polis, enquanto Jerusalém teria como critério o habitar.

Aí reside um ponto-chave e que aponta para a segunda parte do título. A filosofia da migração proposta pela autora está associada à fenomenologia do habitar de Heidegger. O estrangeiro como figura híbrida, fugaz, concebe um habitar que “confirma uma relação outra com a terra, remete a um modo outro de ser no mundo […] Habitar significa permanecer no estrangeiro” (p. 258). Ou seja, não se trata do verbo ligado à habitação como moradia e apropriação da terra, como enraizamento do corpo autóctone, mas um habitar que se realiza justamente na passagem e que, consequentemente, pensa na estadia do homem sobre a terra. A quebra do habitar como ter (ideia de posse) para o ser-aí, o ser-no-mundo (o Dasein heideggeriano) implica olhá-lo como "traço fundamental da existência" (p. 226), na qual os migrantes ocupariam o centro das reflexões sobre o próprio homem, existencialmente sempre estrangeiro para si mesmo Kristeva, 1994)KRISTEVA, Julia. Estrangeiro para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994..

Essas reflexões que encaminham para as conclusões do livro, antes, precisam ser contempladas por outra referência da filosofia da migração, a qual Di Cesare compreende ter sido a primeira a sistematizar o campo. Ao escrever Nós, os Refugiados, Hannah Arendt colocou pela primeira vez o sujeito deslocado em primeira pessoa, conferindo-lhe voz, lado e perspectiva que ainda hoje suscitam críticas aos sistemas de informação e comunicação no que diz respeito à famigerada "crise migratória". Sua filosofia já evocava a questão do habitar - ligada à hospitalidade - ao analisar a apatridia como a grande questão política da modernidade, onde “a novidade não é ser expulso, mas não encontrar abrigo no mundo” (p. 66).

Na parte final, Di Cesare traz situações contemporâneas, como as mortes em Lampedusa e a do menino Aylan Kurdi. É perceptível a relação da questão com sua crítica à sociedade de consumo, que trata o migrante como excesso a ser coibido pelo passaporte, que pode ser barreira ou bilhete de entrada para os turistas ricos. A comunidade é outro conceito importante ao fim porque o pertencimento a ela pode se tornar um negador de diferenças. Cuidadosa a essa dimensão tanto quanto à recusa comunitária que levaria à governança de um Estado Mundial, ela invoca a comunidade como lugar privilegiado da construção de um comum humano, não apropriável e que retira o "nós" para o "ser-com". Eis aqui a chave para o coabitar. E o que é ele, então? “Não se trata de um rígido estar um ao lado do outro. Em um mundo invadido pela ocorrência de tantos exílios, coabitar quer dizer compartilhar a proximidade espacial em uma convergência temporal em que o passado de cada um passa a ser articulado com o presente comum tendo em vista um futuro também comum” (p. 351).

Referências bibliográficas

  • BURKE, Peter. Perdas e Ganhos: Exilados e expatriados na história do conhecimento na Europa e nas Américas, 1500-2000. São Paulo: Unesp, 2017.
  • DERRIDA, Jacques. Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar Da Hospitalidade Entrevistadora: Anne Dufourmantelle. São Paulo: Escuta, 2003.
  • DI CESARE, Donatella. Estrangeiros Residentes: Uma filosofia da migração. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.
  • HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo Petrópolis: Vozes, 2015.
  • KRISTEVA, Julia. Estrangeiro para nós mesmos Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
  • LÉVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito São Paulo: 70, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Abr 2021
  • Aceito
    14 Jun 2021
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