O número 67 da REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, apresenta um dossiê sobre o tema “Diásporas e mobilidades negras nas Américas”, organizado por Cédric Audebert, Handerson Joseph e Bruno Miranda, que agradecemos pela preciosa colaboração. Para um aprofundamento sobre o foco do dossiê e suas principais contribuições, indicamos a leitura do texto introdutório escrito pelos organizadores. Ainda assim, gostaríamos de destacar sucintamente alguns aspectos:
1. Em termos gerais, a reflexão do dossiê verte sobre a mobilidade Sul-Sul, uma mobilidade que não representa uma exceção e, tampouco, uma mera consequência das políticas restritivas do assim chamado Norte Global. Trata-se de uma mobilidade crescente e com características, por vezes, peculiares em relação à mais midiática mobilidade Sul-Norte. Merece, portanto, um devido aprofundamento.
2. Trata-se de uma mobilidade que, tendencialmente, não segue os padrões tradicionais de migração, aquela onde há um país de origem e um determinado país de destino, visando a residência estável. Em muitos casos, é uma mobilidade com traços de circularidade, de trânsito com longas estadias temporárias, de mobilidades constantes, sempre em busca de novas oportunidades, sendo comuns também deslocamentos no interior do país de chegada, a passagem por vários países latino-americanos e, inclusive, a possível decisão de sair da região.
3. No caso específico da diáspora negra e, inclusive, da imigração africana no continente, há também uma mobilidade no tempo – para parafrasear uma expressão de Marc Augé (2010)AUGÉ, Marc. Per un’antropologia della mobilità. Milano: Jaka Book, 2010. - no sentido de um deslocamento geográfico que traz consigo uma história, uma memória que perpassa numerosas gerações e liga a diáspora com a terra de origem. Nessa perspectiva, é também um projeto de futuro, na medida em que o presente é vivido em diálogo com o passado e projetando o tempo vindouro.
4. Ademais, é uma mobilidade de lutas (Mbembe, 2016MBEMBE, Achille. Nanorazzismo, il corpo notturno della democrazia. Roma: Laterza, 2016.), resistências e libertações. A mobilidade no espaço e no tempo articula percursos de emancipação e promove a formação de estratégias de superação e empoderamento, inclusive recorrendo a elementos culturais como a música e a dança. É uma mobilidade que, em alguns casos, se torna também mobilização.
5. Finalmente, essa mobilidade negra e africana nas Américas aponta novos desafios para a defesa e promoção dos direitos dos seres humanos que se encontram fora do lugar de nascimento ou fora dos países de nacionalidade. No caso específico, a diversificação em termos étnicos, culturais e religiosos, bem como a persistência de racismo, sexismo e xenofobia na região, apontam para a necessidade de novas abordagens que levem em conta a interseccionalidade com vistas à promoção dos direitos.
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No primeiro texto da seção “Artigos”, Igor Machado aborda o tema das políticas migratórias e suas consequências na vida de pessoas migrantes. O caso em tela é representado por brasileiros e brasileiras que residem na Irlanda. Conforme o autor, há “regimes de materialidade e imaterialidade” relacionados a políticas de documentação (visto) que determinam a visibilidade e invisibilidade das pessoas migrantes. Em outros termos, nas palavras de Machado, “cada um desses regimes estabelece um jogo próprio de sombras e luzes, no qual o imigrante torna-se mais ou menos visível para o Estado, mais ou menos sujeito de direitos, mais ou menos ‘material’”. O paradoxo sublinhado pelo autor não é apenas a presença de uma hierarquização entre migrantes desejáveis e indesejáveis que esses regimes estabelecem, mas também como a mesma pessoa migrante pode - sincrônica e diacronicamente - ser visível e invisível, material e imaterial, dependendo de diferentes fatores e contextos. A reflexão de Machado atesta como os direitos do ser humano migrante são determinados pelo passaporte e, de forma mais ampla, pela capacidade que possui de se encaixar nos parâmetros de desejabilidade do país receptor. Ou seja, ao sair do seu país de nacionalidade, seus direitos inalienáveis se transformam, de fato, em meras concessões.
Ângela Cristina Salgueiro Marques, Ricardo Lessa Filho e Luiza Araújo Oliveira oferecem uma reflexão a partir do filme El mar la mar de Bonnetta e Sniadecki. O longa metragem foca as travessias de migrantes pelo deserto de Sonora, localizado entre os Estados do Arizona e da Califórnia, na fronteira entre México e EUA. O texto analisa sobretudo os processos de montagem e fabulação da obra cinematográfica que, conforme os/as autores/as, traz uma “contra-narrativa”, que leva o espectador a olhar “outramente” para um fenômeno cada vez mais estereotipado pelas mídias contemporâneas. De forma específica, cabe destacar como a montagem busca realçar a agência das pessoas migrantes, oferecendo “relâmpagos” de suas perspectivas, principalmente através de vozes e imagens. O artigo, no fundo, sublinha como um fenômeno social – no caso, as migrações para os EUA – pode ser objeto de diferentes olhares, diferentes narrativas, diferentes perspectivas. Nas palavras dos/as autores/as: “Atuando contra o apagamento das vidas dos povos migrantes por meio de enquadramentos estigmatizantes, é possível fabular alguns momentos de beleza nos quais as vidas precárias nos alcançam e nos movem, nos afetam, nos comovem de modo a conseguirmos escutar suas histórias, atravessando e furando toda a narrativa midiática tradicional de apagamento e desfiguração”. É uma potencialidade da sétima arte.
No último artigo, José María García Martínez se debruça sobre o tema das migrações forçadas de pessoas que saem de Honduras e de El Salvador para a Espanha. Objetivo do artigo é apresentar os fatores estruturais que condicionam os deslocamentos, levando em conta, sobretudo, os contextos históricos, políticos, econômicos e sociais dos dois países em tela. O trabalho parte da perspectiva que as violações e explorações inerentes ao sistema capitalista – principalmente as ações de deterioração das instituições públicas – acabam, de fato, tornando as migrações quase que inevitáveis (forzadas), tanto pelas generalizadas violações dos direitos humanos, quanto pela falta de oportunidades e perspectivas de futuro. Ao abordar esse tema o autor realça o debate sobre dois assuntos centrais da literatura migratória: a) o assim chamado “direito de não-emigrar”, ou seja o direito que todo ser humano tem de viver na própria terra e decidir de forma suficientemente livre se vai permanecer ou migrar; b) o capitalismo enquanto sistema intrinsecamente expulsor de populações despossuídas e vulnerabilizadas.
A resenha de Marcos Antonio da Silva e Ricardo Ojima sobre o livro, El sistema migratorio haitiano. En américa del sur, organizado Handerson Joseph e Cédric Audebert, encerra o número da revista.
Desejamos uma boa leitura a todos e todas!
Referências bibliográficas:
- AUGÉ, Marc. Per un’antropologia della mobilità Milano: Jaka Book, 2010.
- MBEMBE, Achille. Nanorazzismo, il corpo notturno della democrazia Roma: Laterza, 2016.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023