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Migração e Intolerância

Migration and Intolerance

ECO, Umberto. Rio de Janeiro: Record, 2020. 96

Depois de 22 anos da versão brasileira de Cinco escritos moraisECO, Umberto. Cinco escritos morais. Rio de Janeiro: Record, 1998., a Editora Record, que divide com a Perspectiva os direitos de publicação da obra de Umberto Eco no Brasil lança Migração e Intolerância. O livro póstumo é organizado pelo filho do autor, Stefano Eco. Consiste na reunião de dois trabalhos que já constavam no original de 1998, acrescidos de mais duas contribuições inéditas no mercado editorial brasileiro escritas por Umberto Eco. Dentre as seções reeditadas estão “As migrações do terceiro milênio”, conferência de Eco em Valência, em 1997, e “Intolerância”, redigido para sua intervenção no Fórum Internacional sobre a Intolerância, promovido pela Académie Universelle des Cultures em Paris. Sobre as publicações originais, “Um novo Tratado de Nijmegen” foi discurso proferido na Holanda, na Universidade de Nijmegen; já o derradeiro “Experiências de antropologia recíproca” é introdução à antologia francesa encomendada a Eco em 2011 pela Associação Transcultura.

A iniciativa tem evidente tom consagratório à justa contribuição deste intelectual italiano nascido no Piemonte e falecido em 2016. Eco é largamente reconhecido pelo raro feito de conciliar tanto a inegável erudição humanista, do medievalismo à semiologia, quanto a habilidade de comunicação com públicos leitores, considerando a receptividade que justificou as múltiplas traduções em variados formatos de obras como O nome da rosa (1986)ECO, Umberto. O nome da rosa. Rio de Janeiro: Record, 1986., O pêndulo de Foucault (1989)ECO, Umberto. O pêndulo de Foucault. Rio de Janeiro: Record, 1989., Baudolino (2001)ECO, Umberto. Baudolino. Rio de Janeiro: Record, 2001., A misteriosa chama da Rainha Loana (2005)ECO, Umberto. A Misteriosa Chama da Rainha Loana. Rio de Janeiro: Record, 2005., O cemitério de Praga (2012)>ECO, Umberto. O cemitério de Praga. Rio de Janeiro: Record, 2012. e Número Zero (2015)ECO, Umberto. Número Zero. Rio de Janeiro: Record, 2015., dentre tantas outras. A publicação aqui examinada, no entanto, consolida a relevância do papel desse pensador também no campo de estudos sobre a mobilidade humana e a tolerância perante a diferença.

A distinção já clássica feita por Umberto Eco em Cinco escritos morais propunha que compreendêssemos as Migrações de modo diferente das Imigrações. Revisitar a abordagem que se firmou no debate sobre a temática ganha renovada importância quando vemos políticos iliberais, demagogos e fundamentalistas atribuírem aos movimentos migratórios grande parte da responsabilidade pelas crises econômica e política (Bauman, 2017BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. São Paulo: Zahar, 2017.; 2019BAUMAN, Zygmunt. Sintomas à procura de um objeto e um nome. In: Geiselberger. A grande regressão. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.; Standing, 2020STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.; Milanović, 2020MILANOVIĆ, Branko. Capitalismo sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo. São Paulo: Todavia, 2020.).

Segundo Eco, o que caracterizaria as Migrações seria a transferência de indivíduos, “mesmo muitos, mas em medida estatisticamente irrelevante em relação à cepa original” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 21) de um país para outro. Por outro lado, para além da mera mobilidade através das fronteiras, os fenômenos de Imigração implicariam capacidades estatais mais desenvolvidas, já que poderiam “ser controlados politicamente, limitados, encorajados, programados ou aceitos” (Eco, 2020BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta. São Paulo: Zahar, 2017., p. 28).

Sobre as Migrações, Eco destaca seu caráter “incontrolável” e a habilidade que dispõe para alterar a cultura do território de destino, a exemplo dos povos bárbaros que colaboraram na constituição da civilização romano-germânica, ou o caso dos europeus que invadiram a América sem abdicar de seus costumes e tradições, em detrimento dos hábitos de vida dos nativos desse “novo” território. Ainda que governos organizem a recepção de estrangeiros em seus territórios, o que marca o movimento populacional dos últimos anos, segundo Eco, acompanhado por Bauman (2019BAUMAN, Zygmunt. Sintomas à procura de um objeto e um nome. In: Geiselberger. A grande regressão. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.), é esse “fluxo inextinguível” que vem tornando o planeta “um território de deslocamentos cruzados” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 27).

Perante a inevitabilidade das migrações, a “mestiçagem de culturas” precisa ser compreendida como “incontrolável”, independente de percepções pessoais e eventual inconformidade de alguns conservadores sobre o tema (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 29). Na sequência, a atenção do autor se debruça sobre a tolerância, tratada como “problema permanente, pois na vida cotidiana estamos sempre expostos ao trauma da diferença” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 43).

Para Eco, a intolerância mais perigosa ocorre devido ao que denomina de “fundo de intolerância difusa preexistente”. Trata-se de um sentimento acionado por pulsões elementares que surgem na ausência de qualquer doutrina ou pensamento previamente elaborado: é por isso que a intolerância “não pode ser criticada ou freada com argumentos racionais” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 47). Segundo o autor, para vencermos os efeitos da intolerância precisamos de um compromisso com a educação constante, que precisa ser iniciada “na mais tenra infância, antes que possa ser escrita em um livro e que se torne casca comportamental espessa e dura demais” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 53).

Embora o livro seja anterior à conjuntura afetada pelas transformações impostas pela pandemia do novo coronavírus, Eco tece comentários sobre a crise econômica de fins dos anos 2000 que são boa chave de leitura também sobre o contexto de sociabilidade prejudicada pelo acirramento atual das desigualdades. Para Eco, a crise econômica atrapalha “um novo senso de fraternidade” e produz uma “atmosfera de desconfiança mútua” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 62).

Para ilustrar esse problema para a tessitura social, lembra das experiências compartilhadas que moldaram a União Europeia, seu território de referência, a exemplo do colonialismo, das ditaduras e da prosperidade conquistada por meio do trabalhismo. Em que pese outras experiências nacionais tenham se fortalecido pela ética da busca do sucesso individual, como no modelo norte-americano, o histórico de guerras que atravessam a experiência europeia credenciaria o continente para a busca da paz. Mesmo que formalmente comprometida com a paz, Eco admite que a Europa ainda é incapaz de “tolerar a crescente presença de estrangeiros” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 66), sobretudo os de países menos desenvolvidos.

Por isso, no melhor compromisso humanista que identifica sua trajetória intelectual, o autor recomenda que se faça uso da razão contra os impulsos elementares. Nesse sentido, a prudência e a disciplina de si seriam instrumentos para lutar contra nossa intolerância e em prol do senso de equidade. Com isso, postula uma nova “antropologia recíproca” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 88), que pressuporia que “harmonia não significa uniformidade” (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 94). A disposição para o convívio com a diferença, segundo Eco, nos capacitaria a distinguir entre o tolerável e o intolerável, a aceitar a nova pluralidade de valores e hábitos e a perseguir nova paz com compreensão mútua e aceitação da diversidade (Eco, 2020ECO, Umberto. Migração e Intolerância. Rio de Janeiro: Record, 2020., p. 90).

Por todo o exposto, a compilação de manuscritos de Umberto Eco sobre Migração e Intolerância é obra que justifica a envergadura intelectual de seu autor. Ainda, contribui para a área de movimentos populacionais e para os sujeitos impactados em suas trajetórias por essa circunstância. Ao sugerir que pactuemos em termos de uma antropologia recíproca, priorizando a tolerância com a diferença, a compreensão mútua e a harmonia, as lições de Eco nos dão ferramentas para enfrentar o mal e a impotência diante dos conflitos: para construir a interlocução, a negociação e o consenso, é preciso mergulhar fundo e deixar tais conflitos à vista.

Referências bibliográficas

  • BAUMAN, Zygmunt. Estranhos à nossa porta São Paulo: Zahar, 2017.
  • BAUMAN, Zygmunt. Sintomas à procura de um objeto e um nome. In: Geiselberger. A grande regressão São Paulo: Estação Liberdade, 2019.
  • ECO, Umberto. O nome da rosa Rio de Janeiro: Record, 1986.
  • ECO, Umberto. O pêndulo de Foucault Rio de Janeiro: Record, 1989.
  • ECO, Umberto. Cinco escritos morais Rio de Janeiro: Record, 1998.
  • ECO, Umberto. Baudolino Rio de Janeiro: Record, 2001.
  • ECO, Umberto. A Misteriosa Chama da Rainha Loana Rio de Janeiro: Record, 2005.
  • ECO, Umberto. O cemitério de Praga Rio de Janeiro: Record, 2012.
  • ECO, Umberto. Número Zero Rio de Janeiro: Record, 2015.
  • ECO, Umberto. Migração e Intolerância Rio de Janeiro: Record, 2020.
  • MILANOVIĆ, Branko. Capitalismo sem rivais: o futuro do sistema que domina o mundo. São Paulo: Todavia, 2020.
  • STANDING, Guy. O precariado: a nova classe perigosa. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2021
  • Aceito
    14 Out 2021
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