Open-access Por que ler Sayad? A produção de uma sociolinguística crítica sobre a representação do migrante

Why read Sayad? The production of a critical sociolinguistics on the representation of the migrant

Resumo

Esse artigo tem como objetivo analisar as práticas discursivas políticas à luz das fundamentações conceituais e analíticas sociolinguísticas presentes na obra de Abdelmalek Sayad. Em particular, ele concentra-se nas narrativas discursivas veiculadas pelo Estado e pela mídia em um contexto amplo. Propomos investigar como expressões frequentemente utilizadas por esses agentes, como “crise migratória” e o uso de figuras de linguagem, demandam uma compreensão crítica e socio-histórica de suas formulações e aplicações. Para isso, realizamos uma ampla revisão literatura de sua obra, abrangendo quase quatro décadas de produção acadêmica, além de consultarmos parte de seu arquivo pessoal, armazenado nos Archives Nationales, em Pierrefitte-sur-Seine. O argumento central deste exercício analítico é evidenciar a contribuição que a sua sociologia critica oferece para denunciar narrativas que reificam o migrante e o fenômeno migratório, ao mesmo tempo em que apresenta alternativas para a produção de um conhecimento emancipatório sobre esses temas.

Palavras-chave: Abdelmalek Sayad; práticas discursivas; sociolinguística; autonomia migratória

Abstract

  This article seeks to analyze political discursive practices through the conceptual and analytical lens of sociolinguistics as articulated in the works of Abdelmalek Sayad. In particular, it focuses on the discursive narratives conveyed by the State and the media in a broad context. We propose to investigate how expressions frequently used by these agents, such as "migration crisis," and the use of figures of speech demand a critical and socio-historical understanding of their formulations and applications. To achieve this, we conducted a comprehensive literature review of on his work, covering nearly four decades of academic production, as well as consulting part of his personal archive stored at the Archives Nationales in Pierrefitte-sur-Seine. The central argument of this analytical exercise is to highlight the contribution that his critical sociology makes in denouncing narratives that reify migrants and the migratory phenomenon while also presenting alternatives for producing emancipatory knowledge about these issues.

Keywords: Abdelmalek Sayad; discursive practices; sociolinguistics; autonomy of migration

"A violência contra essa categoria de população [em condição migratória] levanta a questão de por que uma sociedade mata fisicamente o que não é ela, o que ela não é, o que não reconhece em si mesma... Trata-se, na verdade, da delinquência de uma sociedade e não de um único indivíduo." (Sayad, 1984)1

1. Introdução2

Este artigo examina como práticas discursivas estatais e midiáticas, frequentemente fundamentadas em recursos coercivos, funcionam como ferramentas sociopolíticas eficazes para a simplificação do fenômeno migratório e a exposição punitiva dos migrantes ao público em geral. Nosso objetivo não é estabelecer conexões ou relações causais entre esses dois discursos, uma vez que essa abordagem exigiria um estudo de caso detalhado. Em vez disso, buscamos analisar o uso de um léxico recorrente em canais midiáticos e governamentais, investigando em que medida esses discursos compartilham significados semelhantes que associam crise e migração. Para tal análise, nos fundamentaremos no arcabouço conceitual elaborado por Abdelmalek Sayad em torno da sociologia da linguagem (1933-1998). Argumentamos que suas reflexões nos proporcionam ferramentas para investigar até que ponto esse vocabulário contribui para a construção de um discurso que confere existência concreta a uma realidade que, na verdade, é fictícia.

Não excluímos nem ignoramos a literatura produzida, especialmente nos campos dos estudos migratórios e fronteiriços. De fato, nosso texto alinha-se a um amplo conjunto de pesquisas que, há anos, dedica atenção ao tipo de gramática gerada e amplamente disseminada por instituições estatais e grandes veículos midiáticos para representar a figura do migrante e a mobilidade associada a ele em zonas fronteiriças (Van Dijk, 2008; Papadopoulos e Tsianos, 2007; Mezzadra e Neilson, 2013; Dias, 2019; Musolff, 2022). Parte desse material, inclusive, tem sido produzido fora do âmbito acadêmico. Destacamos trabalhos de ativistas políticos e jornalistas investigativos (Shaw, 2019; Gil, 2017; The Migrants’ File, 2015). De maneira geral, esses estudos oferecem uma série de reflexões críticas sobre a dimensão semântica presente no léxico político e midiático, bem como o impacto que ele tem na representação de um sujeito em estado de migração como “um outro”. No entanto, este texto se desenvolve a partir da sociolinguística de Sayad e busca responder a uma pergunta instigante: por que ler Sayad?

Esta é a pergunta que intitula nosso artigo e que responderemos por meio da análise das práticas discursivas políticas estatais e midiáticas. Temos plena consciência de que essa tarefa não é fácil, em razão do limite de palavras que este artigo comporta, e de que o debate não se encerrará aqui. Contudo, por meio de uma ampla revisão da literatura sobre a obra de Abdelmalek Sayad nos últimos anos, além de pesquisas documentais realizadas nos Archives Nationales de Pierrefitte-sur-Seine, entre 2023 e 2024, este artigo apresenta argumentos suficientes para ressaltar a necessidade de resgatar a sociologia crítica de Sayad no campo dos estudos migratórios no Brasil3. Como será apresentado nas seções seguintes, trata-se de um autor que deixou um legado significativo para os estudos migratórios. Todavia, vem caindo em ostracismo na academia brasileira.

Embora os trabalhos de Sayad sejam amplamente citados na produção acadêmica brasileira, é importante destacar que frequentemente aparecem como referências de segunda ordem. Comumente, são utilizados como citações para corroborar outros autores ou para sustentar afirmações gerais sobre o tema da migração. Sem a pretensão de oferecer explicações rigorosas para essa subutilização, arriscamo-nos a identificar dois pontos. O primeiro diz respeito ao fato de que a obra completa de Sayad ainda apresenta uma escassa tradução do francês para o português, o que impõe significativas barreiras linguísticas e econômicas para a academia brasileira. Isso resulta em um acesso fragmentado e limitado à sua sociologia. O segundo ponto refere-se às críticas que sua obra recebe de setores da academia brasileira, que alegam ser datada a sua sociologia; portanto, incapaz de explicar adequadamente fenômenos contemporâneos4. Reconhecemos a importância de o leitor considerar o contexto histórico em que Sayad formulou suas reflexões, o que é essencial para evitar uma leitura anacrônica. Contudo, essa consideração não deve ser vista como um argumento central para deslegitimar sua sociologia. Como exploraremos na seção seguinte, Sayad foi um sociólogo que viveu e desenvolveu suas pesquisas em um período marcado por profundas rupturas históricas que reverberam até os dias de hoje.

“Sua análise minuciosa e o questionamento de todos os aspectos consolidados da experiência migratória, como produtora de sujeitos com direitos reduzidos - e, na verdade, socialmente dominados - foram decisivos e continuam a ser fundamentais” (Avallone e Santamaría, 2018, p. 01, tradução nossa). A originalidade de sua sociologia, paradoxalmente, reside na própria posição marginal que Sayad ocupou na academia francesa (Belgacem, 2018, 2024; Pérez, 2020). Isso se deu em parte pela falta de interesse nacional pelo tema da migração, permitindo com que Sayad construísse uma trajetória intelectual que permeou diferentes campos sociais, acadêmicos e políticos. Ele produziu conhecimento em colaboração com acadêmicos, mas também não hesitou em estabelecer parcerias com ativistas políticos, sindicalistas e, sobretudo, com migrantes que estava analisando, no processo de traduzir sua pesquisa em uma sociologia engajada.

A sociologia e a antropologia constituíram duas das principais áreas de pesquisa para Sayad. No entanto, a depender do caso em análise, ele enfatizava a necessidade de se aventurar por outras disciplinas do saber. Esse compromisso epistemológico levou-o a reforçar a ideia de que a imigração deve ser compreendida como um “fato social total” (Sayad, 1998). Como resultado, há uma produção científica significativa dedicada a compreender a formulação e as nuances de sua “sociologia da imigração” (Saada, 2000; Reding, 2017; Avallone e Santamaría, 2018; Mohammedi, 2019; Dias et al., 2020b), bem como estudos focados no contexto histórico e social em que essa sociologia se desenvolve (Yacine et al., 2013; Belgacem, 2024; Pérez, 2022). Neste artigo, exploraremos uma perspectiva adicional desenvolvida por Sayad, que se manifesta discretamente ao longo de sua obra: sua análise sociolinguística. Acreditamos que essa abordagem pode nos auxiliar a compreender criticamente as práticas discursivas políticas produzidas em torno do fenômeno migratório e da definição do/a “migrante”. As análises sociolinguísticas de Sayad são, indubitavelmente, pouco conhecidas; no entanto, assim como sua sociologia, elas mantêm um compromisso social e histórico com o tema da migração e os sujeitos que se encontram nessa condição.

Nossa proposta, portanto, é, a partir de suas contribuições na sociologia da linguagem, apresentar Sayad como uma referência central neste artigo e reforçar qualitativamente o campo de pesquisa com quem dialogamos. Demonstramos como suas análises oferecem um suporte analítico consistente para compreender criticamente as práticas discursivas políticas estatais e midiáticas - tanto oficiais quanto oficiosas - e como tais práticas produzem, conforme definido pelo próprio autor, uma “amnésia histórica”, cujo objetivo é apagar as relações de poder históricas presentes na gestão de grupos migratórios (Sayad, 2002; 2010). Nesse contexto, a sociolinguística desenvolvida por Sayad nos permite entender em que medida termos frequentemente utilizados pelo Estado e pela mídia, como “crise migratória”, e o uso de figuras de linguagem demandam uma compreensão sócio-histórica crítica de suas respectivas formulações e usos. Mais do que um vocabulário aparentemente técnico e neutro, essas expressões encobrem relações históricas de violência e dominação estatal - e também colonial - sobre populações migrantes em condições de vulnerabilidade ou subalternidade estrutural.

Este artigo é composto por quatro seções. A primeira aborda a sociolinguística desenvolvida por Sayad como uma ferramenta reflexiva essencial para a análise crítica das práticas discursivas políticas produzidas pelo Estado e pela mídia em torno do fenômeno migratório, com o intuito de gerar apagamentos históricos. A segunda seção utiliza essa análise para entender como a palavra “crise” é estrategicamente empregada pelos Estados para conceber e moldar a migração. Neste contexto, “crise” é compreendida como sinônimo de “problema”, uma definição amplamente trabalhada em suas investigações. Políticas migratórias excludentes tendem a ser precedidas pela noção de que a migração em si representa um problema que precisa ser resolvido com urgência. Em continuidade, a terceira seção explora como a prática discursiva midiática, especialmente por meio de canais de comunicação em massa, reforça a narrativa estatal de que o migrante é um problema que requer uma solução imediata. Reconhecemos que essa prática não está desvinculada do universo lexical e semântico político produzido pelo Estado e, por isso, problematizamos o uso recorrente de recursos linguísticos e visuais nas matérias jornalísticas para representar “aquele que migra” e a “forma como ele migra”, além de discutir o impacto gerado na fronteira. A quarta e última seção retoma a sociologia de Sayad, enfatizando a importância de se produzir uma abordagem engajada nas trajetórias históricas e socioindividuais do fenômeno migratório e dos sujeitos envolvidos. Esse compromisso é fundamental para superar visões simplistas e conservadoras que visam reificar a migração e aprisionar os migrantes na figura do outro.

2. Do peso das palavras à produção de Amnésia Histórica

A sociologia desenvolvida por Sayad apresenta, em sua totalidade, uma coerência conceitual e temática focada no fenômeno migratório argelino entre a Argélia e a França. Não é por acaso que podemos observar como um determinado grupo de conceitos e temas se desenvolveram em seus artigos, relatórios, notas avulsas, cadernos de campo, livros e entrevistas ao longo de quase quatro décadas de produção científica, entre 1960 e 1998. Todavia, como mencionado na introdução, sua obra abrange períodos-chave de rupturas e transformações socio-históricas que marcaram não apenas a migração argelina, mas, de maneira mais ampla, os diversos deslocamentos migratórios gerados sob relações de poder entre o centro e a periferia da economia capitalista mundial no século XX (Sayad, 2002; Sayad et al., 1991). Adotando o modelo histórico proposto por Andrea Rea (2021) para analisar os ciclos migratórios vividos na Europa a partir do final da Segunda Guerra Mundial, as pesquisas de Sayad abrangem pelo menos os três principais eventos históricos relacionados às migrações: o período de migrações de trabalho ordenado (1945-1974), as migrações de reagrupamento (1974-1989) e, finalmente, as migrações irregularizadas (1989-2004). Com foco na migração, seus estudos atravessam períodos marcados por revoluções anticoloniais, a Guerra Fria e a dissolução da URSS, conflitos nacionalistas e a reconfiguração de classes sociais sob a ótica do subdesenvolvimento contemporâneo (Sayad, 1980, 1987, 2010). Essa trajetória nos permite compreender a elaboração e o constante aperfeiçoamento de conceitos que emergem nesses textos, como estado, migração, migrante, ausência e retorno.

Conforme Sayad afirma em entrevista, a linguística foi uma paixão sua desde o início de sua trajetória intelectual (2002). Aluno do linguista André Martinet (1908-1999) na França, Sayad entendia que a língua desempenha funções na comunicação das experiências entre os sujeitos e, por isso, não deve ser vista como um sistema autônomo. Ela está inserida em um contexto sociocultural específico. No entanto, seus primeiros estudos sobre empréstimos linguísticos na Argélia, considerados indicadores de contatos culturais, careciam de uma análise que integrasse a dimensão social de forma mais profunda. Segundo o próprio Sayad, esses trabalhos eram bastante técnicos e neutros, ainda sob a forte influência do estruturalismo de Saussure, tanto na Argélia quanto na França. “Supunha-se que os empréstimos linguísticos revelavam trocas culturais; depois de um longo período girando em torno desse tema, concluí dois artigos que, ao reler, me parecem muito ingênuos” (Sayad, 2002, p. 84, tradução nossa)5. Somente posteriormente, por meio de uma abordagem linguística que incorporou de maneira mais significativa a dimensão política, suas reflexões alcançaram um maior amadurecimento (1983, 1985, 1990, 1997a, 1997b, 2010). Como pontuam ElHajji e Escudero, a sociolinguística associada a própria reflexão produzida por seus entrevistados, através de longas entrevistas tornou-se um recurso “para restituir as dimensões existências da condição migratória” (2020, p. 157).

Pesquisas realizadas em manuscritos e notas do autor, bem como em sua produção bibliográfica, sugerem que seus estudos sociolinguísticos tiveram como referencial teórico autores como Antoine Meillet (1866-1936)6 e Émile Benveniste (1902-1976)7. Trata-se de dois importantes linguistas que introduziram a variação social para expandir tanto a linguística geral de Saussure, centrada na análise da língua como um sistema autônomo, quanto a perspectiva neogramática, que se alicerça nas dimensões históricas e no indivíduo8. Sayad desenvolveu uma análise focada nas práticas discursivas e na enunciação produzidas pelos diversos atores e instituições envolvidos no fenômeno migratório argelino em direção à França.

Um primeiro elemento que nos interessa em sua sociolinguística está na análise das práticas discursivas políticas do Estado e dos indivíduos que Sayad definiu como “usadores da migração”. Esses “usadores” incluem pesquisadores, veículos de comunicação e assistentes sociais, que se utilizam dos recursos estatais para refletir sobre e propor alternativas às contradições migratórias. No entanto, na maioria das vezes, esses atores acabam aprisionados na estrutura de poder estatal, legitimando políticas que, sob uma perspectiva histórica imediatista, consideram a migração um “problema” que requer soluções rápidas. Sayad entendia que as palavras empregadas por esses grupos, em momentos históricos específicos, apresentavam limites e desgastes, o que as levava a cair em desuso. Mudanças sociais geram, portanto, mudanças linguísticas. No entanto, certas palavras poderiam ser estrategicamente reabilitadas e adquirir um novo uso sociopolítico. Em síntese, essas expressões mantinham relações de domínio que eram historicamente produzidas e perpetuadas. Dentre elas a preocupação com o migrante.

Compreender o discurso que formulamos sobre a migração, em sua concepção, nos permitiria acessar uma autosociologia. E com isso evidenciar o método e o engajamento político que temos com o fenômeno em análise.

Na verdade, há várias maneiras de falar sobre si mesmo sem falar sobre isso, sem parecer fazê-lo, porque você não pode falar dos outros ou sobre os outros (os chamados objetos sociais e que são objeto de um discurso construído) sem ao mesmo tempo falar de si mesmo de uma certa maneira. A questão é saber qual é esta maneira ou quais são essas maneiras de falar de si próprio: uma forma vergonhosa, detestável, sempre um pouco vaidosa de falar de si próprio e uma forma dissimulada e reprimida de falar sobre si próprio sem falar realmente sobre isso. (Sayad, 2002, p.45, tradução nossa)

São discursos políticos objetivos sobre os outros, mas que também incorporam uma dimensão moral. Essa intersecção entre moral e política se manifesta nas práticas discursivas do Estado, que visam despolitizar o fenômeno migratório, tratando-o como um “problema”. Focamos, especificamente, na definição de “crise migratória”. Elas se “conjugam para converter os direitos que possui esta categoria de sujeitos (que não têm nenhum direito a ter direitos, uma vez que não são nacionais) em deveres, em obrigações às quais a outra parte está obrigada" (Sayad, 2010, p. 313, tradução nossa).

Ademais, a dimensão diacrônica desses discursos políticos produz atualizações do léxico utilizado. Nesse ponto específico reside o que ele define como sedimentações semânticas. Esse é um segundo aspecto de sua sociolinguística que nos interessa. Como veremos nas seções a seguir, o mesmo viria a acontecer com a noção de migração e crise à qual está ligada. Crise produz uma forma de sedimentação do sentido, uma camada semântica que recupera outros sentidos vividos pela população que recebe a enunciação (Sayad, 1994, 2010). “Se produz uma espécie de sedimentação de sentido, uma capa semântica que recupera uma parte da significação depositada pelas capas semânticas que a precedido” (Sayad, 2010, p. 305, tradução nossa). É preciso compreender as variantes externas que atuam sobre a narrativa e que têm um contexto sociopolítico bastante preciso. Vejamos abaixo dois exemplos dessa analise produzida por ele.

Integração, assimilação e naturalização são algumas das palavras presentes no vocabulário de governos e midiáticos e que se encaixam nessa sua análise. Compõem uma linguagem de dominação, capaz de estigmatizar e até zombar da condição migratória. Assim como Meillet (2016, 2020), Sayad demonstra que essas palavras mudam de sentido na medida em que a sociedade também sofre suas transformações. Carregadas de significado político e jurídico, elas são produtos de um “conjunto de circunstâncias históricas bem determinadas, das quais convém dar conta para compreender sua gênese e as formas que pode assumir” (Sayad, 2010, p. 305, tradução nossa). No caso, ele apontava como essas palavras teriam, em seu significado, uma forte origem no discurso colonial francês sobre suas colônias, em particular na Argélia. Através de políticas educacionais, do exército e da lei, produziram fissuras internas no país ao distinguir e classificar árabes, cabilas, europeus, judeus e mulçumanos, franceses e pied-noirs. Passado o período colonial, essas mesmas palavras retornam, sob nova roupagem discursiva, para, agora, distinguir e classificar migrantes argelinos em território francês. Cada época sentiria a necessidade de dar a sua própria taxonomia.

Similar crítica desenvolve acerca das formas com que migrantes são classificados moralmente pelas sociedades de destino e de origem. Esse é o caso do emigrado jayah, analisado por Sayad com o intuito de entender o significado que a palavra jayah dá ao emigrado e a carga semântica que ela carrega. Termo berbere que sugere a noção de ser errante, ela define um migrante que não conseguiu obter sucesso na sua jornada migratória. Ele não completou o projeto, não retornou. Seguiu sendo errante e, portanto, tornou-se um mal sujeito, um covarde. Todavia, Sayad destaca que essa palavra também se aplica para denominar frutas mal colhidas e apodrecidas ou as fêmeas do rebanho que não atenderam às expectativas. Além disso, ela

se conecta com o antigo sentido da palavra francesa épave (do latim, expavefacta): era precisamente dessa forma que se designavam os animais assustados que haviam se afastado do rebanho, e dos quais não se sabia quem era o dono; épaves, esse nome que começou a ser dado [...] a certos estrangeiros - o outro nome, que era aubains, estava reservado a outra classe de estrangeiros - ao designar homens e mulheres nascidos fora do reino, de lugares tão distantes que não se podia ter conhecimento de sua natividade. (Sayad, 2010, p. 153, tradução nossa)

Portanto, a migração, enquanto um fenômeno histórico e político/moral, seria uma daquelas situações em que a inteligência do presente não pode ser um dado imediato, um dado óbvio, todo “naturalmente” adquirido, à maneira de todas as evidências sociais. Similar observação é feita em torno do conjunto de palavras acionado pelos atores envolvidos no próprio processo.

Temos a manutenção de uma prática discursiva como condição para a conservação do que ele definia como “miséria política” (Sayad, 2002). Pobreza de reflexão, de envolvimento e interesse político em conhecer as origens e contradições presentes na migração. Essa miséria sustenta-se em um discurso político ideológico escondido por termos técnicos que produzem a falsa ideia de neutralidade cientifica ou de gestão. Trata-se também de “miséria moral” produzida e mantida pelo pensamento estatal e compartilhada pelo assimétrico jogo social envolvendo os atores em volta da migração. Compartilhar dessa ilusão significa compartilhar de um léxico que reforça e sustenta essas relações de poder. Praticas discursivas políticas, midiáticas e acadêmicas, por exemplo, produzem uma ilusão necessária sobre a migração em si e sobre o mundo social na qual ela se insere. É a preservação da doxa. Quando necessário, produzem amnésias, através de dogmas e crenças. Essa “relação encantada” tem na pratica discursiva política uma eficiente forma de narrar o processo, apresentar seus atores sociais e influenciar as estruturas mentais e objetivas dos envolvidos.

Seria o papel de uma sociolinguística engajada com o fenômeno estudado expor as relações de dominação que sustentam essa mesma “miséria política” em tais práticas discursivas. Caberia a essa sociologia da linguagem auxiliar no processo de expor o apagamento de práticas de violência histórica de contingentes inteiros de populações que foram apoderadas por esses fluxos e refluxos migratórios. Quem são eles a partir desse pensamento estatal?

“[...] são as frações que já são as mais pobres culturalmente e, neste caso, as “mais pobres da história” - porque a sua história é considerada “história pobre”, na medida em que é a história “de pobres” efetivamente feita “pobremente” -, as que sofrem mais seriamente e também as mais duráveis do tipo de empobrecimento total que é a causa e consequência desta deplorável redução da história, que é também o princípio e, por um efeito de arrastamento, o resultado dessa mesma redução. (Sayad, 2002, p. 9, tradução nossa)

Os migrantes encontram-se em um espaço entre duas lógicas estatais que garantem sua não-existência política, resultando em uma dupla ausência. Eles são frequentemente reduzidos a uma função utilitarista dentro da economia, presos em paradoxos que contribuem para sua alienação identitária. Além disso, sofrem com a redução ou negação de suas histórias pessoais, o que os afeta profundamente. Tornam-se personagens de uma “outra” narrativa, controlada e moldada por uma miséria moral compartilhada entre o Estado e aqueles que se beneficiam da migração, especialmente os meios de comunicação de massa, que frequentemente associam sua presença a crises e convulsões sociais. Assim, forma-se uma “amnésia histórica” em relação a essa população em movimento.

3. Estados na produção de crises a partir de pessoas emigrantes-imigrantes

Em dezembro de 1984, vai ao ar um episódio de Mosaïque9, no canal de televisão público France 3. Ao lado de Frédéric Grendel10 e de Bernard Stasi11, Abdelmalek Sayad é convidado a debater sobre políticas de controle migratório e o direito ao voto às populações imigrantes. Em dado momento do programa, os temas da crise do trabalho e do desemprego ganham pauta e o apresentador, Mouloud Mimoun, questiona Sayad sobre a “fatalidade” da população migrante na França ter sido tão duramente atingida por essas crises. Este, então, pontua que não se trata de uma “fatalidade” migrantes serem atingidos por tais crises, mas é resultado de um processo histórico. Para Sayad, o fato da sociedade francesa insistir em pontuar o desemprego e “o medo do amanhã” como tema central para conectar crise e migração traz uma lição: “Toda crise, toda crise econômica, toda crise de mercado, de emprego, de certos tipos de emprego é, por definição, uma crise da imigração. O imigrante apenas existe pelo trabalho. O trabalho é afetado pela crise, e o próprio imigrante, como pessoa, é afetado por essa crise”.

Sayad, então, destaca a necessidade de lembrar que, ainda que, naquele momento, havia um aumento de políticas migratórias inclusivas (dentre elas, ampliação dos direitos trabalhistas e uma maior igualdade formal de salários), a população em condição migratória era exclusivamente mão de obra barata. Portanto, reduzida a um certo nível de qualificação nula e a certos tipos de trabalho, que não necessariamente colocavam em ameaça a mão de obra nacional, assentada em bons empregos que ela mesma constituiu. Migrantes estariam mais vulneráveis às crises econômicas, o que os tornariam, também, mais visíveis midiaticamente. Essas seriam condições necessárias para se entender qual o real sentido dessas crises, quem, de fato, era atingido e intencionalmente responsabilizado por elas. A palavra “crise” viria como um complemento do fenômeno migratório. Seja a “crise” no país de origem e que acarreta saídas massivas, seja a “crise” no país de destino que tem que lidar com esse excedente populacional indesejado. Na prática discursiva estatal, “crise” e “migração” raramente estão dissociadas.

40 anos depois dessa entrevista dada por Sayad, crise e migração continuam, de forma geral, em evidência na prática discursiva estatal. A crise do trabalho, a crise econômica e, mais recentemente, a crise sanitária e a crise ambiental são algumas das crises atreladas ao fenômeno migratório. Não vistas ou interpretadas como processos sócio-históricos cujas origens remontam, por exemplo, a relações coloniais que permitem com que estruturas de poder se mantenham e sigam espoliando um grande número de populações nas periferias do sistema capitalista, essas “crises” vem a público como fenômenos esporádicos e em momentos estratégicos. Omite-se uma história, uma temporalidade, uma territorialidade que, por isso mesmo, estão condenadas ao esquecimento e são, portanto, reprimidas (Sayad, 2002).

Migração enquanto produto/produtor de crises

Atualmente, entre as diferentes situações de “crise” desencadeadas no cenário mundial em torno do tema da migração e o aumento do controle fronteiriço estatal, uma das mais notáveis é, certamente, a vivida nas fronteiras que conectam distintas regiões da América Latina e Caribe com os Estados Unidos. O peso histórico dos Estados Unidos tem sido decisivo na delineação da geopolítica de controle da mobilidade na região ( Domenech e Dias, 2020; Álvarez Velasco, 2020; Camargo e Prieto, 2023; Dias et al., 2024). Em particular, destacamos o governo de Donald Trump (2017-2021) e a forma com que enunciou suas políticas anti-migratórias bastante duras e explicitas, mas com forte apelo popular. Sobretudo, durante a pandemia de COVID-19. Fato importante ao destacarmos que uma sólida literatura demonstra que vivenciamos o fim de uma hegemonia bélica e econômica dos Estados Unidos, com o seu declínio tecnológico, e o impacto que isso causa em seu tecido social (Varoufakis, 2016; Chomsky, 2018; Martins, 2024). Destaca-se, principalmente, sobre a classe trabalhadora do país, um dos símbolos do American way of life. Ainda assim, veremos, durante toda a sua gestão, a pauta migratória enquanto um dos fatores responsáveis pela produção de uma suposta crise econômica factual. Em 1º de novembro de 2018, por exemplo, Trump profere um discurso televisionado sobre a “crise da imigração ilegal” que estaria ameaçando a classe trabalhadora dos EUA e, com isso, quais medidas seu governo planejou adotar para protegê-la. Ele abre seu discurso com as seguintes palavras:

Eu gostaria de fornecer uma atualização ao povo americano sobre a crise em nossa fronteira sul - e crise é o que é. A imigração ilegal afeta a vida de todos os americanos. A imigração ilegal prejudica os trabalhadores americanos, sobrecarrega os contribuintes, mina a segurança pública e impõe uma enorme pressão sobre escolas, hospitais e comunidades em geral, desviando recursos preciosos dos americanos mais pobres que mais precisam. A imigração ilegal custa ao nosso país bilhões e bilhões de dólares a cada ano. (2018, p.1, tradução e grifo nosso)12.

O vocabulário oficial, vinculado a concepção soberana do estado sobre a gestão de suas fronteiras, seu território e sua população de fronteira, sugere como a “crise migratória” torna-se uma ameaça. Verbos são cuidadosamente escolhidos para compor práticas discursivas políticas como a acima, com o intuito de construir o imaginário público conectando migração e crise. Porém, não só.

A dimensão econômica da crise, expressa no discurso (“prejudica os trabalhadores”, “sobrecarrega os contribuintes”, “impõe pressão”, “desviando recursos”) incita, também, o medo do desemprego. Leva a crise migratória para dentro da casa do expectador. Ela faz com que migração se torne um “problema” que demanda solução imediata. Um problema supostamente simples de ser entendido, pois é reduzido a um cálculo de custos e benefícios para se entender o seu real tamanho (Sayad, 1998, 2010). “Assim, por meio de uma questão aparentemente técnica, todo o problema da legitimidade da imigração, um problema que obsessivamente permeia todos os discursos dessa natureza, é objetivamente colocado” (Sayad, 2010). Portanto, estrategicamente codificados em termos de “crises”, migrações descontroladas pelas fronteiras sul dos Estados Unidos servem de pretexto para ativar mecanismos de controle da “migratório” no quadro de esquemas de ação e pensamento associados à gestão de “fluxos” migratórios.

Menos de dois anos depois, o mundo mergulharia na pandemia da COVID-19. Fundida à crise econômica, temos a crise sanitária mundo afora. Assim como a crise econômica, migração é eleita como o veículo responsável pelo espalhamento dessa crise. Seguindo os discursos anti-migratório de Trump, presenciaremos essa “capa semântica” produzida pela palavra “crise” se apropriar novamente do fenômeno migratório (Sayad, 2010). Em 22 de julho de 2020, ele proclama a suspensão de visto para trabalhadores migrantes que possam colocar em risco o mercado de trabalho estadunidense, que enfrentava agora o surto do coronavírus. Em dado trecho de sua fala encontramos:

Trabalhadores americanos competem com cidadãos estrangeiros por empregos em todos os setores de nossa economia, incluindo milhões de imigrantes que entram nos Estados Unidos para realizar trabalho temporário. (...). Em circunstâncias normais, programas de trabalho temporário bem administrados podem trazer benefícios para a economia. No entanto, nas circunstâncias extraordinárias da contração econômica resultante do surto de COVID-19, certos programas de visto não imigratório que autorizam esse tipo de emprego representam uma ameaça incomum ao emprego dos trabalhadores Americanos. (2020, p.1, tradução e grifo nosso)13

A ideia de crise permeia o discurso anti-migratório de Trump. Migrantes seguem sendo o catalisador dessas crises - econômica e sanitária - combinadas e o grande responsável por ameaçar os trabalhadores americanos. O custo dessa migração aumenta. Não apenas competem, roubam e prejudicam trabalhadores, mas produzem infecções e podem matar. Isso ganhou força meses antes, no início da pandemia da COVID-19, quando Trump afirmou que o vírus tinha uma nacionalidade clara. Tratava-se do “vírus chinês” ou o “vírus de Wuhan”. Associar o vírus a estrangeiros foi uma estratégia para se alinhar ao viés cognitivo de seus apoiadores contra imigrantes14. Assim, “[o] vírus ganhou uma nacionalidade, um passaporte e logo passou a ser corporificado por todo e qualquer asiático que lembrasse um chinês. Em outras palavras, ser chinês significava ser contagioso” (Dias, 2021, p. 1).

Não por acaso, as transformações do Estado e da soberania nas últimas décadas favoreceram o surgimento da sociedade como uma realidade global ou supranacional, que é pensada pelo prisma da migração. Sandro Mezzadra e Maurizio Ricciardi (2013) falaram sobre o pensamento da sociedade para se referir, em combinação com o pensamento do Estado, ao conjunto de categorias e formas de pensar que estabelecem o espaço para a epistemologia política da migração contemporânea. O que ocorreu foi um fortalecimento do pensamento hierárquico em relação ao fenômeno da mobilidade espacial das pessoas. Esse pensamento privilegia as questões, os interesses e os pontos de vista das sociedades e dos estados que recebem a imigração, deixando os outros protagonistas dessa relação, os migrantes, em segundo plano e subordinados a tais práticas discursivas.

O fato fundamental é que a migração é pensada de forma inquestionável e naturalizada como uma realidade baseada em critérios e limites nacionais e, portanto, políticos: uma realidade limitada pelas restrições impostas pela presença dos estados nas áreas de origem, bem como nas de trânsito e chegada. As migrações são definidas na sociedade, bem como nas ciências e observações sociais, como um fato determinado pelos estados e, portanto, por suas formas de pensar, observar e definir. As classificações políticas e institucionais são impostas ao fenômeno de forma naturalizada. As maneiras pelas quais ele é concebido, enquadrado e analisado são preestabelecidas e antecipam a observação, já estão determinadas, destacando que “não exista outro objeto em relação ao qual uma problemática seja tão decididamente imposta de antemão como este” (Sayad 1996, p. 166, tradução nossa). As migrações dependem do estado, de suas classificações, sistemas de controle e seleção, de suas formas de julgar e pensar sobre elas, não apenas em termos concretos e políticos, de documentos concedidos ou negados, de expulsões praticadas ou evitadas, de regularizações aprovadas ou adiadas, mas também em termos de compreensão, análise e leitura. Nesse sentido, podemos entender por que falamos de migrações sob o olhar e nas palavras do estado, totalmente desprovidas de autonomia, uma vez que são definidas de fora, precisamente do ponto de vista do sujeito que controla e governa as fronteiras.

O Estado é uma forma de ver e entender o mundo; é um sistema de compreensão e organização da realidade social. Ele não é apenas um aparato burocrático, administrativo e militar, detentor do monopólio da força, mas também um modo de pensar, uma estrutura mental capaz de se impor ao ponto de ser naturalizada. Pensar o Estado significa, portanto, pensar por meio das categorias que ele oferece, ou seja, com os conceitos e as palavras que transmite a seus cidadãos por meio das agências de socialização, repressão e controle. É ele quem define o que é legítimo e ilegítimo, nacional e não nacional. Assim, os modos de pensar do Estado são naturalizados e internalizados, fundamentados na afirmação da sacralidade das fronteiras e separações, bem como em sua defesa e reprodução contínua. Essa naturalização

[...] faz parecer que ele [estado] é um dado imediato, como se fosse um objeto intrínseco, por natureza eterno, desvinculado de qualquer determinação externa, independente de toda consideração histórica e de sua própria trajetória, que se prefere ignorar, mesmo que continuemos a elaborar e a narrar essa história. (Sayad, 2010, p. 388, tradução nossa)

O não questionamento do pensamento estatal e social produz, por um lado, uma normalização da separação social e epistemológica baseada no nacionalismo e, por outro lado, uma realidade hierárquica determinada pela assimetria entre a condição de pertencer e não pertencer à ordem estatal. Pertencer significa estar no lugar certo, no duplo sentido da palavra: apropriado e possuído. Ser próprio, portanto, é estar no lugar certo, e ser proprietário, por sua vez, é ter o direito de posse sobre um lugar. Não pertencer, ao contrário, significa estar fora de lugar, estar fora de seu lugar, estar fora de sua competência, definido como uma presença estranha, impostora, como aqueles que estão aqui, no local de imigração, mas não deveriam estar. A migração e o migrante tornam-se verdadeiras “heresias”, heresias políticas fundamentalmente. Elas são “anomias não só sociais ou em relação à ordem social, mas anomias políticas, portanto em relação à ordem política que é, neste caso, essencialmente uma ordem nacional” (Sayad, 2002, p. 18, tradução nossa). Através dessas definições, o estado estabelece um domínio sobre a narrativa acerca da migração e do sujeito que migra. Aqui entra um segundo elemento destacado por Sayad, e que podemos, também, notar nos trechos dos discursos de Trump acerca da “crise da migração ilegal” nos Estados Unidos: a dimensão moral.

A moral e a política se entrelaçam nas práticas discursivas do governo Trump, com o objetivo de despolitizar o fenômeno migratório e silenciar os contextos sociohistóricos relacionados, incluindo as ações dos Estados Unidos. Questões como o aumento da desigualdade, da pobreza e da hiperprecarização na América Latina e no Caribe nas últimas décadas são ignoradas. Essas condições são resultado de uma crise conjuntural na região, diretamente ligada ao intervencionismo político, militar e econômico dos EUA. O que emerge é um êxodo constante de migrantes e refugiados, que são retratados como produtos e produtores da própria crise. A narrativa do governo dos EUA, em vez de reconhecer os direitos e os compromissos com as populações vulneráveis, apresenta esses indivíduos como um fardo que a sociedade americana deve suportar.

Portanto, a migração enquanto uma condição vergonhosa e o migrante parte desse processo “[...] sofrem por não poderem apropriar-se, no momento em que se realizam, da sua atualidade, da sua própria história e, correlativamente, de um verdadeiro lugar na história" (Sayad, 2002, p. 19 tradução nossa). Uma presença inquietante, que deve ser continuamente monitorada, para se evitar crises. Estar fora do lugar significa ser “incongruente e indesejável” (Bourdieu, 2007, p. 6, tradução nossa), no sentido de que não se deveria estar onde se está, no país de imigração, pois não é natural estar ali, mas se está ocupando o lugar errado.

Como estrangeiro (...), o trabalhador migrante experimenta a suspeita que o segue em todos os lugares e durante todo o seu processo de migração (...). Se não houver problemas do ponto de vista econômico, independentemente de suas intenções, ele é imediatamente suspeito de ser culpado, de ameaçar (...) a ordem nacional. Em tempos difíceis, ele também é suspeito de ameaçar a ordem econômica da qual ele é, no entanto, um servo benéfico, porque o imigrante é inevitavelmente percebido como sempre um a mais. (Sayad, 2008, p. 273, tradução nossa)

A suspeita de um migrante está ligada à dupla punição frequentemente associada ao seu comportamento, considerado criminalmente relevante. Por exemplo, quando um migrante é investigado por estar ilegalmente no país, ele já é condenado antecipadamente, independentemente de ser realmente culpado. Sua presença em um lugar onde não deveria estar gera essa condenação; o migrante é visto como sempre “fora do lugar”. Essa condição representa sua primeira culpa e a primeira pena a ser cumprida, atribuída de forma independente. Essa mentalidade, enraizada nas estruturas de raciocínio e classificação que as agências estatais impõem, fundamenta a proliferação de estereótipos que produzem narrativas hipostasiadas - ideias preconcebidas que distorcem a compreensão ao produzir realidade fictícias -, especialmente em tempos de crise.

4. A mídia na produção de crises a partir de pessoas emigrantes-imigrantes

O vocabulário oficial vinculado à concepção soberana da política de fronteira também transparece na prática discursiva midiática, outro grande canal responsável pela formulação do imaginário público. Em escala global, os meios de comunicação, de forma muito alarmante, enunciam “crises migratórias”. Ainda que existam conotações particulares, de acordo com as localidades em que o discurso é produzido, é possível pensarmos que, em geral, esses mesmos partilham a ideia de um conflito entre o controle de fronteira e a mobilidade migratória. A depender do foco da matéria - país de origem ou país de destino -, temos a associação do fenômeno migratório com tipos específicos de crise. De um lado, ao se tratar do país de origem, a migração aparece em noticiários, por exemplo, como resultante de pontuais crises econômicas, políticas ou ambientais: “A única saída é fugir: socialismo cria a maior crise migratória da América Latina”15, “Debandada de brasileiros ao exterior atinge recorde no governo Bolsonaro”16, “Especialista destaca como crises ambientais geram fluxos migratórios desordenados”17. Oriundas de países periféricos, crises migratórias geram movimentos “descontrolados”, responsáveis por desestabilizar países como aqueles localizados na União Europeia, os Estados Unidos e até mesmo o planeta: “Brasileiros perdem direitos durante crise na imigração de Portugal”18, “Países da União Europeia chegam a um acordo para lidar com a crise migratória”19, “Crise e ação de coiotes elevam detenção de brasileiros nos EUA”20,“ Pessoas sem pátria e terra: a crise mundial de migrantes e refugiados em 2021”21.

Estaríamos, portanto, vivendo sob uma constante “era de crises migratórias”, responsáveis por espalhar e potencializar “crises” econômicas, políticas, sociais e ambientais localizadas. De forma osmótica, economias frágeis produzem o deslocamento desordenado de milhares de pessoas em direção a países com economias estáveis e prósperas. Em geral, como apresentado na seção anterior, são apresentados como movimentos desordenados e massivos que avançam de forma imprevista e, portanto, requerem intervenção estatal e de organizações internacionais para controlar, gestar e, sobretudo, filtrar quem tem ou não o direito de sair ou entrar em dado território nacional. O discurso midiático visibiliza e invisibiliza grupos e conflitos. Ele seleciona. A depender do grupo midiático e sua conexão com governos, ele reforça a narrativa estatal ao público sobre quais grupos têm direito a atravessar a fronteira e quais não têm. E, ao mesmo tempo, invisibiliza a conexão da migração com a exaustão de modelos neoliberais em países periféricos, bem como a falta de agendas sociais voltadas para suas populações mais vulneráveis.

Nessas práticas discursivas, nos atemos nos dois principais participantes exaustivamente responsabilizados por essas genéricas “crises migratórias”: os próprios migrantes que infringem a lei e os atravessadores que potencializam a mobilidade fronteiriça. Em particular, focamos no uso recorrente de dois tipos de figuras de linguagem presentes nesses textos para expor ao público esses dois personagens: metáforas e hipérboles. A primeira surge enquanto recurso gramatical para representar aquele que sabe se mover pela fronteira. A segunda para expor exageradamente a forma com que a mobilidade é produzida e chega até a fronteira. Entendemos que esses recursos gramaticais utilizados para explicar fenômenos migratórios carregam relação de poder (Sayad, 2002, 2010; Van Dijk, 2008). Não são neutros e, portanto, não podem passar despercebidos pelo olhar do pesquisador, que assume o compromisso de evitar reflexões abstratas e estéreis acerca do fenômeno migratório e o que as práticas discursivas midiáticas entendem por “crises migratórias”. São figuras de linguagem que revelam hierarquias de poder e gestão territorial. Portanto, são estrategicamente direcionadas para ganhar apelo popular. Essas figuras de linguagem distorcem a compreensão do fenômeno migratório para o público que acessa a matéria e mais: contribuem com o discurso estatal ao potencializar a reificação do fenômeno social da migração e de seus atores.

Metáforas zoomórficas

“Brasileiro conheceu coiotes mexicanos quando tentou entrar nos EUA” 22

Ainda que a migração possa ser individualizada em matérias midiáticas para revelar histórias de drama ou de superação, ela não é um movimento solitário. Ela é um fenômeno de ordem social que revela coletividade. Não à toa há uma vasta literatura no campo dos estudos migratórios analisando redes migratórias de ordem local, nacional e transnacional, que tem como objetivo potencializar a mobilidade de sujeitos através de regimes fronteiriços. Isso envolve desde atores sociais com distintas habilidades em travessia de fronteiras (atravessadores, advogados especializados em dupla cidadania e agências de viagens, por exemplo) até aqueles responsáveis por empréstimos monetários, por ofertas de emprego e hospedagem23. Todavia, ao considerarmos mobilidade migratória enquanto tenso diálogo entre migrantes e regimes de fronteiras, é fundamental considerarmos que esses regimes também são compostos por forças coletivas. No caso, governos, corporações empresariais, universidades e centros de inteligência capazes de produzir uma impressionante cadeia lucrativa, em torno de políticas migratórias que envolvem alta tecnologia bélica para a produção de reforço de fronteiras. Apesar disso, o que encontramos em matérias midiáticas são apenas dois atores: o imigrante ilegal e o coiote.

Ao esconder a malha de atores sociais envolvidos na conflituosa relação entre controle de fronteira e mobilidade migratória, reforça-se a ilusão de que a migração é uma decisão individual. O imigrante que ilegalmente invade territórios e produz sucessivas violações de leis torna-se “[...] o significante de uma conceitualização particular da mobilidade: o sujeito individualizado que calcula laboriosamente a relação custo-benefício da sua viagem e depois inicia um itinerário com pontos fixos de partida e chegada” (Papadopoulos e Tsianos, 2007, p. 3, tradução nossa). Omite-se acordos de cooperação assimétricos firmados entre nações, a presença de empresas privadas nessa lucrativa “crise” ou sequer reflete-se sobre os reais motivos socioeconômicos que estimulam esses sujeitos a migrar. Um processo de simplificação política que permite ao leitor produzir um rápido julgamento moralista sobre esses mesmos sujeitos. Não por acaso, podemos encontrar, de forma geral, reações duras de leitores focadas exclusivamente no indivíduo que “escolheu desafiar a lei do país estrangeiro” e que, portanto, “merece receber a devida punição”.

Em outras palavras, ainda que Papadopoulos e Tsianos definam essa leitura do migrante como um sujeito supostamente imbuído de um raciocínio calculista (capaz de medir benefícios e riscos nas escolhas tomadas), entendemos que há, ainda, uma lógica liberal no discurso midiático e de seu público consumidor: a possibilidade de migrar surge exclusivamente como uma escolha individual. Portanto, cabe ao imigrante ilegal (pois não tem permissão de violar fronteiras e leis) arcar com as consequências. Sem a devida contextualização histórica, sem uma análise cuidadosa sobre os papeis dos estados de destino e origem envolvidos nessa mobilidade, matérias jornalísticas viram um espaço de reforço da ilusão migratória (Sayad, 1998, 2010).

Aqui reside nossa análise sobre a definição de coiote, enquanto uma generalista metáfora zoomórfica. Nela, entram todos os diferentes tipos de pessoas e organizações especializadas em táticas de mobilidade fronteiriça que podem se fazer presente na jornada migratória. Como Dídimo Castillo Fernández (2006) pontua, existem diversos tipos de atravessadores, “dependendo do tipo de vínculo que mantêm com os migrantes e da complexidade da estrutura dessas organizações”. Alguns têm atuação local, como guias comunitários, responsáveis por organizar a travessia fronteiriça de pequenos grupos de migrantes indocumentados. “Há também os coiotes fronteiriços independentes, que operam de forma pouco estruturada, aos quais recorrem os migrantes que não dispõem de guias comunitários nem têm acesso às organizações mais sofisticadas”. E ainda atravessadores com alta especialização, com estruturas amplas em mais de um país, incluindo a presença de recrutadores, acompanhantes, viajantes, guias e cobradores. Esses tipos de atravessadores tendem a operar “com esquemas sofisticados de recrutamento, alojamento e transporte, vinculados a outras organizações maiores e, em muitos casos, amparados pela cumplicidade de autoridades locais, estaduais e federais. As diferenças entre esses traficantes de seres humanos são óbvias e se traduzem em diferenças de custo e segurança para o migrante”.

A generalização desses diversos atores em torno de mecanismos de metaforização revela falta de comprometimento e uma série de incompreensões em torno do fenômeno migratório e da rede de pessoas, espaços e saberes com diferentes agenciamentos e capacidades de mobilização envolvidos. Esse ser figurado representado na forma zoomorfa de um coiote não é por acaso. Atrela a habilidade do atravessador com as habilidades de um animal. Um predador solitário que habita os desertos do México, locomove-se em silêncio, com uma pelagem que o camufla. E, com isso, todos os verbos e substantivos que têm a ver com essas habilidades sorrateiras reforçam o processo de animalização desse ser figurado. Sua existência, nessa lógica, abraça uma gama de qualidades, características e que mais do que explicar, produzem um sujeito cuja finalidade central é criminalizar a migração em si. A escolha desse animal predador e tantos outros, também, predadores para representar atravessadores por distintas zonas fronteiriças reforçam a sensação de perigo necessidade de segurança (Papadopoulos e Tsianos, 2007). Cercas, muros e armamentos de caça, portanto, afastam o mal e ganham apelo popular.

Movimentos hiperbólicos

“Onda migratória de venezuelanos volta a crescer, mas com novo perfil” 24

Como argumentado acima, amplos setores midiáticos valem-se de figuras de linguagem para enunciar a maneira com que a mobilidade migratória é produzida. A concepção geral é representar como a migração fronteiriça se realiza através de intensos fluxos. Nesses textos, a migração de pessoas assume uma abstrata e falsa condição de um escoamento através de um dado curso. Migrar entre países é comparado a água, que segue o curso de um rio. Todavia, como argumentado nesse artigo, a mobilidade migratória é um fenômeno social que tem como característica central a negociação com a fronteira. Um espaço social conflituoso de poder e disputa. Portanto, a mobilidade migratória é um processo contínuo de negociação entre o que se move e a fronteira.

É no momento em que a definição de migração se atrela a uma genérica definição de crise que a figura de linguagem fluxo parece ser substituída por hipérboles como ondas e até tsunami. O que são ondas? Em linhas gerais, refere-se a “perturbações” de ordem energética que se propagam espacialmente. No caso de ondas oceânicas, são geradas por forças externas (ventos e temporais). Em casos mais radicais - tsunamis -, temos o protagonismo de abalos sísmicos de alta magnitude. Portanto, dependendo da intensidade, ondas têm efeitos trágicos em regiões portuárias “desprotegidas”. Destroem vidas e economias. Famílias e sonhos estão sob risco.... Isso está presente no imaginário popular, através de históricas catástrofes noticiadas na mídia. Dito isso, retornamos ao nosso argumento por meio de uma segunda questão: Qual o impacto dessas palavras e seus respectivos significados quando são utilizadas como figuras de linguagem em textos explorando mobilidade migratória, com o suposto objetivo de “simplificar” ou dar “maior destaque” para o público?

É necessário pensarmos criticamente o uso e o impacto dessas hipérboles em fontes midiáticas, que buscam explicar, por exemplo, deslocamentos migratórios de sírios para a Europa ou de venezuelanos para o Brasil. Tais matérias geram a sensação de invasão, destruição de organizações políticas, sociais e econômicas. Elas focam, de forma distorcida, exclusivamente, na chegada dessa população. Pouco convidam o leitor a analisar sobre a falência de modelos políticos e econômicos e a falta de políticas sociais que contribuem para a produção de tais mobilidades. Reportados como um fenômeno natural violento e incontrolável, esses movimentos hiperbólicos aparecem como uma massa amorfa de pessoas na iminência de causar impactos incalculáveis para um país. Regimes de fronteiras e políticas migratórias severas são vislumbrados como mecanismos capazes de conter tamanha tragédia.

Podem, ainda, ganhar o reforço visual, por meio de charges que oferecem explicitamente a ideia da matéria para o leitor. Como a figura abaixo demonstra, trata-se de uma metáfora utilizada pela sociedade de destino e que, recorrendo a um humor zombeteiro, quantifica o outro através de uma enorme onda, capaz de arregalar os olhos da Estátua da Liberdade, suposto símbolo de boas-vindas aos que aportavam na ilha Ellis25:

Figura 1

Destacamos, portanto, nessa seção o papel das práticas discursivas midiáticas, através de recursos linguísticos como metáforas e hipérboles, no processo de construção de sujeitos migrantes alinhado com práticas discursivas estatais. Alicerçada na narrativa de “crises migratórias”, invisibilizam atores sociais e visibilizam outros para o público geral. Ao final, temos a retirada do que entendemos por autonomia migratória.

5. A centralidade epistemológica e metodológica das trajetórias históricas e socioindividuais

A sociologia desenvolvida por Sayad - e aqui inserimos sua sociolinguística - estabeleceu um forte engajamento com os atores e fenômenos sociais por ele analisados, desde sua origem, ainda na Argélia (Pérez, 2022; Bourdieu, Sayad, 2017; Belgacem, 2018; Yacine et al., 2013). Junto a Pierre Bourdieu, Sayad compreendeu que o papel da sociologia, enquanto ferramenta científica, deveria ser uma crítica engajada na emancipação social da Argélia. Ela precisaria refletir sobre os caminhos abertos para uma verdadeira transformação democrática da sociedade após a guerra de libertação, bem como enfatizar os riscos de reproduzir formas coloniais de dominação sem o colonizador após a independência. Desde então, sua sociologia se caracterizou pelo comprometimento em expor a ordem capitalista, seu legado colonial, seus mecanismos de produção e reprodução da dominação e suas contradições. Assim foram conduzidos seus estudos com populações sob condições migratórias.

A adoção de uma perspectiva que desnaturaliza e historiciza a ordem nacional e o pensamento estatal traduzem-se em uma abordagem herética das modalidades de observação e compreensão da realidade social, propiciando o desenvolvimento de metodologias heterodoxas. A assunção da heresia em relação à ordem nacional se manifesta tanto na crítica às categorias de análise empregadas nas ciências sociais quanto nas escolhas metodológicas necessárias para evitar a reificação e a subordinação dos migrantes a estereótipos e realidades fictícias geradas por narrativas estatais e “usuários” da migração. Nesse contexto, Sayad desenvolveu uma sociolinguística crítica consistente em relação às categorias produzidas e reproduzidas sobre o sujeito em condição migratória e ao papel da pesquisa social.

O primeiro aspecto - a crítica das categorias - baseia-se na necessidade, apontada por Sayad, de construir uma perspectiva de pesquisa social sobre os processos migratórios que seja autônoma em relação ao Estado. Como exploramos nas seções anteriores, essa abordagem não deve apenas distanciar-se dos discursos estatais, que frequentemente reduzem os migrantes à condição de responsáveis por crises, mas também deve promover a autonomia dos migrantes ao valorizar suas trajetórias, competências e aspirações. De acordo com essa perspectiva, aqueles que estudam as migrações devem desenvolver um conjunto de conceitos que seja livre das construções elaboradas e disseminadas pelas administrações estatais. Ambos os campos - o científico e o político-administrativo - atendem a necessidades e interesses distintos e, portanto, demandam terminologias separadas e adequadas para compreender os fenômenos analisados pelo primeiro e regulados pelo segundo. Nesse sentido, Sayad propõe a construção de uma sociologia das migrações independente do saber estatal e que, como consequência, não se apresente como uma mera articulação do pensamento e da prática estatais, mas que se mantenha autônoma em relação a estes.

Frente a essa maneira de entender a mobilidade humana, que atualmente chamamos de migração apenas devido à existência de fronteiras (De Genova, 2013), Sayad ressalta a necessidade, do ponto de vista do estudo e da compreensão das migrações, de valorizar as trajetórias das pessoas migrantes. Ele reconhece a importância de instaurar “uma maneira de perceber e apreender a emigração, em si mesma e para si mesma, como uma realidade autônoma ou como uma realidade que se tornou decisivamente independente da imigração, que é o outro lado de si mesma” (Sayad, 2010, p. 181, tradução nossa). É fundamental que essa valorização não se limite a um reconhecimento superficial, mas que possibilite uma compreensão engajada com a experiência migratória como uma construção dinâmica, na qual o migrante é agente de sua própria história.

O segundo aspecto - a atividade de pesquisa social - exige a assunção de uma atitude autorreflexiva, mesmo que não se restrinja à esfera individual, e vai além da autoanálise em direção à socioanálise (Sayad, 2010a, p. 194). Por exemplo, em relação a uma série de notas estudadas diretamente no arquivo de Sayad, Amin Pérez observou que “um elemento interessante que emerge de um dos numerosos cadernos de Sayad (...) é sua reflexão e as ferramentas de análise que ele fornece sobre o papel do observador em sua relação com o observado. Suas anotações refletem um diálogo consigo mesmo, preocupado em saber como se posicionar em uma situação de pesquisa” (2009, p. 5, tradução nossa). A atividade de pesquisa é, ao mesmo tempo, uma prática social coletiva e cooperativa, embora em graus variados, dependendo dos métodos e técnicas empregados. Sem a colaboração de outras pessoas e grupos, especialmente aqueles diretamente interessados como “objetos” de observação, a pesquisa social não seria viável: ela é sempre um produto coletivo, manifestando relações de cooperação social, não redutível a um nome ou conjunto de autores, nem convertida em propriedade privada individual. Assim, a atividade de pesquisa é uma relação entre sujeitos, mesmo que a tradição científica tenda a reproduzir a separação, muitas vezes assimétrica, entre aqueles que realizam a pesquisa (o sujeito que fala) e aqueles que são o objeto da pesquisa (o conjunto de pessoas e relações sobre as quais se fala).

A abordagem da autoanálise é, portanto, necessária, mas não suficiente, e requer uma transição para a socioanálise das experiências de migração a fim de “entender o movimento como um todo no qual estão inseridos, a condição comum que os reúne e os une” (Pérez, 2009, p. 4, tradução nossa), utilizando o método biográfico como fonte de análise. Isso implica uma crítica aos interesses cognitivos e às definições preestabelecidas, envolvendo a liberação das migrações, em nível epistemológico, das questões e preocupações do Estado, para emancipá-las, em nível metodológico, da perspectiva de como estudá-las e compreendê-las. É crucial que essa metodologia não reforce narrativas simplistas, mas que busque entender a migração como um fenômeno complexo, repleto de desafios, mas também de oportunidades para a construção de novas identidades e realidades.

Sayad (2008) destaca a importância de questionar a naturalidade e a naturalização de certas atitudes repetidas por aqueles que realizam pesquisas. Um exemplo ilustrativo é como, em algumas situações, as perguntas dirigidas aos migrantes contêm implicitamente a resposta, sendo essa a única resposta lógica possível. Durante uma investigação sobre as condições de retorno, por exemplo, a pergunta “Você gostaria de voltar para casa, para o seu país?” é feita, e o entrevistado responde de forma direta: “É como perguntar a um cego se ele quer luz.” Essa formulação sugere ao entrevistado que ele deve retornar ao seu país de origem, uma opção que, de acordo com a opinião comum, é considerada completamente normal e até natural. Desafiar essa lógica - quanto mais questioná-la - requer uma perspectiva um tanto herética. O verdadeiro objetivo da pergunta (mesmo sem o conhecimento do entrevistador e do entrevistado) parece ser lembrar ao entrevistado que ele não pertence a este lugar, que este não é seu lar, que este não é seu país, e assim por diante. Trata-se de uma pergunta que, de fato, funciona como um lembrete, levando o imigrante a confrontar a realidade de sua condição (Sayad, 2008, p. 80, tradução nossa). Portanto, é essencial que os pesquisadores se esforcem para evitar tais armadilhas discursivas, promovendo um espaço onde as vozes dos migrantes possam ser ouvidas em sua plenitude.

Tomemos um entre os inúmeros exemplos de entrevistas conduzidas por Sayad: a entrevista com Abbas em “A Miséria do Mundo” (Sayad, 1997b). Essa entrevista exemplifica a abordagem reflexiva da pesquisa, revelando como Sayad concebe a socioanálise como um processo de conhecimento e autoconhecimento que, após extensos encontros com seus entrevistados e seus entes queridos, permite que ele extraia verdades que os migrantes preferem não reconhecer. Desde o início de sua carreira de pesquisador, as biografias têm sido fundamentais para sua abordagem. Elas não são simplesmente o resultado de uma ingestão unilateral de informações pelo pesquisador, nem uma mera coleta de dados. As biografias representam, antes de tudo, o fruto de um relacionamento baseado no respeito mútuo, envolvendo intercâmbio cultural e social, a revelação de segredos e o compartilhamento de experiências íntimas. Para isso, é essencial estabelecer um clima de confiança e segurança entre entrevistados e pesquisador, superando o papel do “intruso importuno”, que afirma possuir a verdade dos sujeitos melhor do que os próprios sujeitos. A condição de possibilidade de cada relato biográfico reside na capacidade de ir além de si mesmo, ultrapassando seus próprios objetivos formalizados, bem como as restrições produtivas e da pesquisa, e a situação do estudo. Torna-se um “esquecimento compartilhado” entre entrevistador e entrevistado, um resultado em si mesmo, um produto de confiança que tem “sua finalidade em si mesmo”, moldando uma “linguagem de verdade que pode ser mantida sobre si mesma [e que] é também, e necessariamente, uma linguagem de comunicação consigo mesma, de informação de si mesma sobre si mesma, e uma linguagem de comunicação e informação para o outro” (Sayad, 2010, p. 231, tradução nossa).

A metodologia baseada no respeito seguida por Sayad é coerente com a solidariedade crítica que o sociólogo argelino demonstrou em relação aos movimentos sociais, especialmente os antirracistas, ou seja, os movimentos heréticos da ordem nacional. Como escreveu Benjamin Boudou (2023, p. 402), “Precisamente, Sayad visa ‘investigar e dar testemunho’, estar em ‘solidariedade ativa com aqueles que ele tomava como objeto'” (Bourdieu, 2007, p. xii) e expandir criticamente a linguagem e as justificativas normativas para uma inclusão mais justa dos migrantes, com base em sua pesquisa qualitativa que abrangeu mais de três décadas. A sensibilidade de Sayad às relações de poder que emergem em suas entrevistas semiestruturadas e sua busca para “dar [aos migrantes] sua voz e restaurar a coerência e a complexidade de seu discurso” (Noiriel, 2006, p. 106) são exemplares. Nesse sentido, Pérez (2020) analisou essa atitude ao estudar a trajetória transnacional de Sayad, aprofundando como sua experiência como imigrante e sua posição marginalizada influenciaram suas abordagens intelectuais. Pérez esclarece como Sayad navegou por seus papéis na política e na sociedade argelinas, transitando para um compromisso científico e político em apoio aos argelinos na França. O autor demonstra como as estratégias multifacetadas de Sayad em ambos os âmbitos nacionais, abrangendo seus papéis como acadêmico, especialista, pensador crítico e sociólogo público, lhe proporcionaram as ferramentas necessárias para forjar novas alianças intelectuais e moldar suas críticas à dominação estatal por meio de sua forma de pesquisa engajada.

Em suma, dentro desse contexto metodológico, a sociolinguística produzida por Sayad não apenas oferece uma estrutura para a pesquisa social, mas também um compromisso ético em promover a autonomia dos migrantes e desafiar as narrativas que reduzem suas existências a uma mera crise, gerando “amnésias” sobre suas realidades políticas e as longas transformações sociohistóricas que contribuíram para suas jornadas migratórias.

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  • 1
    Trecho da fala de Sayad no episódio de Mosaïque, transmitido no dia 30 de dezembro de 1984.
  • 2
    Agradecemos a Mohammed Elhajji pela leitura inicial e sugestões para esclarecer algumas de nossas escolhas conceituais, assim como pelo auxílio na compreensão de palavras berberes. Agradecemos também a Emmanuel Brasil pela análise cuidadosa da versão final e suas contribuições para que alguns termos pudessem melhor correr ao longo do texto. As omissões e imprecisões são de nossa responsabilidade.
  • 3
    Esse artigo conta com fontes coletadas nos projetos de pesquisa 405869/2021-5, financiado pelo CNPq, e APQ-03323-22, financiado pela FAPEMIG.
  • 4
    Dentre elas, destacamos as críticas aos conceitos de Dupla Ausência e Retorno, que, de forma equivocada, se baseiam exclusivamente na dimensão física (Sayad, 2010, 2002, 1973). Embora as revoluções tecnológicas tenham possibilitado uma intensa interconectividade transfronteiriça e, consequentemente, uma maior presença virtual e/ou física de migrantes em mais de uma localidade, é crucial ressaltar que as definições de ausência e retorno, segundo Sayad, não se restringem apenas ao aspecto físico. Ausência, para ele, refere-se à inexistência política (Sayad, 1998, 2010). Estar presente em um determinado país requer uma presença política; é reconhecer o sujeito além da definição de migrante, preso a uma existência temporária e à condição de trabalho. Sem uma existência política que lhe permita transcender a condição migratória, ele torna-se um ser ausente, desprovido de direitos e proteção social. Uma análise semelhante pode e deve ser realizada em relação à definição de retorno, um tema frequentemente abordado por Sayad ao longo de sua carreira. Inicialmente, o conceito de retorno foi refletido a partir das políticas migratórias francesas, que tinham como objetivo controlar o aumento do desemprego no país e evitar a sedentarização dos migrantes (Sayad, 1973; Araújo, Cortés, 2024). Contudo, em sua última versão, a dimensão temporal ganha maior protagonismo na compreensão do migrante e dos estados de origem e destino (Sayad, 2000). Preso na ilusão da provisoriedade, o retorno se apresenta, para o migrante, como uma eventual tentativa de voltar a um passado que já se foi. Para os estados argelino e francês, isso estaria conectado a narrativas sobre passados fictícios, cujo único objetivo é legitimar políticas nacionalistas.
  • 5
    Suas análises sociolinguísticas iniciaram-se na década de 1960, período em que a sistematização daqueles estudos que viriam a ser chamados de sociolinguística, com uma visão social da linguagem, ganhou maior vigor.
  • 6
    Meillet, estudioso da sociologia durkheimiana, foi um dos responsáveis pela criação de uma linguística sociológica, ao defender a abordagem social da linguagem. Na sua concepção, a linguagem não se trata de uma capacidade inata, mas advinda do meio social. Caberia, portanto, ao linguista conciliar os estudos da mudança linguística com os estudos da estrutura da sociedade. Para ele, a existência da linguagem estaria atrelada à própria existência das sociedades humanas “[...] nas quais ela é, por sua vez, o mais indispensável e comumente empregado dos instrumentos. Salvo algum acidente histórico, os limites das diversas línguas tendem a coincidir com os limites dos agrupamentos sociais a que chamamos de nações” (Meillet, 2016, p. 29).
  • 7
    Benveniste, discípulo do próprio Antoine Meillet e teórico sobre o discurso e a enunciação, destacava a importância da diacronia e do sujeito para se compreender a linguagem. Segundo ele, embora o discurso obedeça a uma dada estrutura linguística, ele é um acontecimento. Portanto, é imprescindível que se investigue o contexto social e histórico e os atores envolvidos no processo discursivo. Similar relevância deve ser dada à enunciação, o discurso em ação. Analisar o ato enunciativo demanda considerar os sujeitos envolvidos: um “eu” que enuncia e um “tu” enunciatário. Assim como o discurso, esses sujeitos envolvidos no ato enunciativo existem numa dada situação sócio histórica
  • 8
    Uma perspectiva analítica que guarda similaridades com a preocupação de Sayad em refletir temas sociológicos através de casos empíricos concretos, desde seus primeiros estudos ao lado de Pierre Bourdieu, na Cabília.
  • 9
    Entre 1977 até 1987, esse programa era apresentado aos domingos pela manhã. Ele se distinguia por convidar especialistas, representantes das populações migrantes e o poder público para debater temas concernentes a migração na França (Sayad, 2014). Trata-se de um momento em que a sociedade francesa passa a compreender que a migração atinge um estágio de povoamento em seu território (Rea, 2021). Portanto, sob tutela do estado francês, o programa vem com o objetivo de não apenas debater politicamente o fenômeno em si, mas valorizar a diversidade cultural presente no tecido social francês.
  • 10
    Jornalista e romancista, foi, também, diretor do semanário Notre République, destinado à esquerda gaulista.
  • 11
    Político pró-migração com longa trajetória na Argélia e França.
  • 12
    https://trumpwhitehouse.archives.gov/briefings-statements/remarks-president-trump-illegal-immigration-crisis-border-security/
  • 13
    https://trumpwhitehouse.archives.gov/presidential-actions/proclamation-suspending-entry-aliens-present-risk-u-s-labor-market-following-coronavirus-outbreak/
  • 14
    Lembrar que durante a pandemia tivemos ainda a “variante indiana” e a “variante brasileira”.
  • 15
    https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/unica-saida-fugir-socialismo-cria-maior-crise-migratoria-america-latina/
  • 16
    https://veja.abril.com.br/brasil/debandada-de-brasileiros-ao-exterior-atinge-recorde-no-governo-bolsonaro
  • 17
    https://www.cnj.jus.br/especialista-destaca-como-crises-ambientais-geram-fluxos-migratorios-desordenados/
  • 18
    https://oglobo.globo.com/blogs/portugal-giro/post/2024/05/brasileiros-perdem-direitos-durante-crise-na-imigracao-de-portugal.ghtml
  • 19
    https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/paises-da-uniao-europeia-chegam-a-um-acordo-para-lidar-com-a-crise-migratoria/
  • 20
    https://oglobo.globo.com/mundo/crise-acao-de-coiotes-elevam-detencao-de-brasileiros-nos-eua-24138334
  • 21
    https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/pessoas-sem-patria-e-terra-a-crise-mundial-de-migrantes-e-refugiados-em-2021/
  • 22
    https://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2022-07-01/brasileiro-conheceu-coiotes-mexicanos-quando-tentou-entrar-nos-eua.html
  • 23
    O que faz com que a definição de legal e ilegal se torne um exercício demasiado complexo, quando não sob risco de um viés moralista.
  • 24
    https://veja.abril.com.br/brasil/onda-migratoria-de-venezuelanos-volta-a-crescer-mas-com-novo-perfil
  • 25
    Na figura, a estátua da liberdade parecia estar compenetrada recitando o soneto “New Colossus” da poetisa Emma Lazarus, filha de exilados e que, em seu poema, nomeia a própria estátua como a “mães dos exilados”.
  • Editores do dossiê
    Gustavo Dias, Gennaro Avallone

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2024
  • Aceito
    05 Nov 2024
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