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Quebrar o silêncio sobre a Àfrica

Rompiamo il silenzio sull’Africa”. Este foi o apelo do comboniano Alex Zanotelli, em julho de 2017. Uma denúncia das omissões da mídia internacional em relação à conjuntura do continente africano. Omissões que se configuram como um verdadeiro “encobrimento” (Dussel, 1993DUSSEL, Enrique. 1492, o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993. ), que visa ocultar intervenções militares, invasões de contractors e mercenários, depredações do meio ambiente, exploração de trabalhadores, violações de direitos humanos, destruição de culturas ancestrais, land grabbing de países estrangeiros, multinacionais e fundos de investimentos. Uma conjuntura marcada, por assim dizer, por violências e expulsões (Sassen, 2016SASSEN, Saskia. Expulsões. Brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2016.).

Mas é também o encobrimento de histórias de luta e resistência. Histórias de povos enriquecidos por suas culturas milenárias, que criam e recriam suas “táticas” - na acepção de De Certeau (2008CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2008.) - de sobrevivência biológica e social. Entre estas táticas, cabe destacar as migrações intracontinentais, que constituem um desses caminhos de superação das adversidades e reconstrução do cotidiano. Trata-se de migrações que, com frequência, fogem das taxonomias e das classificações burocráticas com suas tentativas de padronizar e controlar a mobilidade de quem teima em não aceitar o próprio lugar - e o próprio destino.

Nessa ótica, quebrar o silêncio sobre a África e suas migrações não significa apenas “informar”, mas também interpretar a mobilidade intracontinental a partir de categorias analíticas específicas, chaves epistêmicas e metodológicas endógenas. De fato, como é possível falar em migração “inter-nacional” quando o deslocamento ocorre no interior de uma mesma “nação”, que compartilha língua, etnia e tradições culturais, mas que foi brutalmente despedaçada por fronteiras de origem colonial? Como falar em migrações “econômicas”, quando o que está em jogo não é apenas a “economia”, e sim a “sobrevivência”?

Quebrar o silêncio sobre a África significa, finalmente, ouvir as melodias e os ruídos das pisadas no continente, um continente sofrido e festivo, violentado e resiliente, onde a utopia é encarnada pelo conhecido conto de Nelson Mandela, de um viajante em visita à África do Sul que “poderia parar em uma aldeia sem ter que pedir comida ou água. Uma vez que ele para, as pessoas dão-lhe comida”. As utopias nos ajudam a escolher os rumos de nossos projetos históricos: o acolhimento incondicional do viajante inspira um humanismo que desafia práticas xenófobas e racistas, tanto no interior do continente africano quanto fora dele.

É com o objetivo de pautar as migrações intracontinentais na África, em suas diferentes tipologias, que a REMHU, n. 54 sai com um dossiê sobre o tema “Migrações na África: sujeitos, impactos e desafios”. Mesmo focando alguns países específicos, o dossiê aborda dinâmicas migratórias transfronteiriças e regionais que envolvem grande parte do continente.

No primeiro artigo, Gonçalves Patrício e João Peixoto apresentam uma panorâmica geral das migrações no interior do continente africano, com destaque pelas assim chamadas migrações forçadas em Moçambique. Entre os vários aportes, teóricos e fenomenológicos, os autores aferem que as migrações no continente tendem a ser induzidas pela combinação de vários fatores, relacionados com “desestabilização política, conflitos armados, perseguições étnicas e religiosas, problemas ambientais e climáticos”. A intensa mobilidade intracontinental, de alguma forma, desmistifica a espraiada crença na fuga maciça do continente.

Sempre focando Moçambique, Ramos Cardoso Muanamoha e Inês Macamo Raimundo analisam os fluxos migratórios no interior do país a partir de dados censitários, buscando detectar os fluxos interprovinciais e suas principais causas, bem como a participação feminina. O quadro comparativo dos últimos dois censos (1997 e 2017) revela a dinamicidade dos deslocamentos internos, relacionada a fatores sociais, econômicos e políticos, referentes tanto a Moçambique quanto aos países fronteiriços.

Carlos Lopes analisa as dinâmicas migratórias em Angola a partir de uma contextualização histórica. As migrações transfronteiriças são interpretadas em estrita relação com as migrações internas. O destaque é dado principalmente ao fenômeno da urbanização e seus desafios. O autor infere que, apesar de Angola apresentar intensos e constantes deslocamentos populacionais, a migração, em termos de políticas públicas, ainda não é interpretada como um recurso para o desenvolvimento.

A questão dos direitos humanos de migrantes e refugiados em Angola é o tema do artigo de Avelino Chico. O autor aprofunda o assunto a partir da visita no país de François Crépeau, relator especial da ONU para os Direitos Humanos dos Migrantes. Além de ressaltar as violações apontadas por Crépeau, Avelino chama atenção acerca de alguns desafios ‘análogos’ aos de países economicamente mais desenvolvidos (detenção de migrantes, escassez de canais regulares de ingresso, carências de políticas de integração, dificuldade de regularização, entre outros), mas num contexto substancialmente mais precário e instável.

Paulo Inglês também se debruça sobre a mobilidade em Angola, mas com o objetivo de revisitar as categorias de classificação migratória. Segundo o autor, tende-se, com frequência, a deslocar categorias que surgem em contextos administrativos e burocráticos (migrante forçado, refugiado, retornado, entre outras) para o mundo acadêmico, o que acaba, de certa forma, tipificando processos extremamente complexos e heterogêneos. Inglês sugere repensar a noção de migração, que poderia ser interpretada como recurso habitual utilizado por seres humanos com o objetivo de superar situações adversas e reconstruir a cotidianidade.

Carl-Ulrik Schierup, por sua vez, apresenta um estudo sobre a passagem, na África do Sul, do apartheid para o sistema democrático. Com um sólido embasamento histórico e bibliográfico, o autor enfatiza as contradições do processo e sugere que o apartheid racial, no fundo, foi substituído por um apartheid de classe, que envolve a grande maioria da população negra, pobre e, sobretudo, estrangeira. O foco, agora, está principalmente na precarização do trabalho. Apesar disso, Schierup atenta também no positivo e promissor surgimento de um movimento informal, político e reivindicativo, do precariado sul-africano.

Finalmente, Marco Omizzolo e Pina Sodano aprofundam os recentes rumos das políticas migratórias da União Europeia que impactam profundamente com os fluxos internos do continente africano. O artigo destaca principalmente as assim chamadas políticas de externalização das fronteiras, que visam à criação de barreira à mobilidade tanto nos países de origem quanto naqueles de trânsito. O recente memorandum entre Itália e Líbia é apenas o último exemplo de um conjunto de medidas que, de fato, exportam as violações dos direitos dos migrantes no interior do continente africano.

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A seção Artigos é aberta por Janneth Karime Clavijo que se debruça sobre o processo de elegibilidade de refugiados em Argentina a partir da categoria teórica de ‘rituais estatais’. A autora sublinha as ambiguidades e as implicações de um processo marcado por fatores técnicos e discricionários, relações solidárias e assimétricas, interesses institucionais e cosmopolitas. Debate-se sobre o processo de categorização dos solicitantes de refúgio que, embora necessário em termos burocráticos e administrativos, visa de fato distinguir entre os “verdaderos y falsos refugiados” e selecionar aqueles que apresentam um fundamento “verídico y conmovedor” de seu temor.

Sebastián Umpierrez de Reguero, Paula Nimbriotis Manzur, Germán Campos-Herrera e Ingrid Ríos Rivera focalizam o voto extraterritorial de colombianos residentes em Guayaquil, Ecuador, no Plebiscito de la Paz de 2016, buscando identificar as motivações que mais incidem na decisão de (não) votar. Após a formulação de hipóteses, os autores apresentam os resultados da pesquisa e chamam atenção acerca do “comportamento eleitoral anterior” como uma das dimensões que mais impactam na votação no exterior.

Nuno Moita Jordão, Cláudia de Freitas e Manuel García Ramírez desenvolvem uma Scoping Review sobre a aplicação de políticas de austeridade no contexto da crise econômica de 2008 em países do sul da Europa e seus efeitos na saúde e no acesso ao sistema sanitário da população migrante. Os resultados, entre outros aspectos, apontam para uma piora de vários indicadores, principalmente no que diz respeito à universalidade do acesso aos serviços e às políticas de prevenção.

Finalmente, Patrícia Tavares de Freitas aborda, a partir da perspectiva analítica dos domínios de agência, a formação de uma coalizão - durante a primeira década do período democrático no Brasil, especificamente no Estado de São Paulo - composta por representantes do estado e da sociedade civil com vistas à promoção dos direitos dos migrantes. A perspectiva dos “encaixes” aporta importantes luzes sobre caminhos para promoção institucional dos direitos dos estrangeiros.

Na seção Relatos e reflexões, Tuíla Botega e Marizete Garbin refletem sobre a ação da Pastoral da Mobilidade Humana na diocese de Kisantu, na República Democrática do Congo, evidenciando as características das dinâmicas migratórias na região, os projetos desenvolvidos pela Pastoral, a metodologia de trabalho e as principais dificuldades enfrentadas. A resenha de Roberto Rodolfo Georg Uebel do livro Global Migration: Old Assumptions, New Dynamic encerra o número da Revista.

Desejamos a todas e todos uma boa leitura.

Referências bibliográficas

  • CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano Petrópolis: Vozes, 2008.
  • DUSSEL, Enrique. 1492, o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
  • SASSEN, Saskia. Expulsões Brutalidade e complexidade na economia global. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2018
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