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Duplo pertencimento cultural: filhos de casais luso-brasileiros em Portugal

Double cultural belonging: being children of Luso-Brazilian couples in Portugal

Resumo

O artigo discute resultados de uma pesquisa de campo sobre a transmissão geracional na segunda geração de imigrantes brasileiros em Portugal. Objetiva compreender a construção do duplo pertencimento cultural de filhos de casais luso-brasileiros em Portugal. Realizou-se uma pesquisa qualitativa na qual foram entrevistados doze participantes entre os 18 e os 31 anos de idade. Os resultados foram analisados de acordo com o método de análise de conteúdo, vertente temático-categorial e discutidos a partir do referencial teórico da Psicanálise e das Ciências Sociais. Discutimos as categorias duplo pertencimento cultural e vínculos com as famílias de origem. Concluímos que a dinâmica familiar privilegiou a biculturalidade, ancorada na identificação com os aspectos considerados positivados de ambas as culturas. Os vínculos com as famílias de origem brasileiras foram mais investidos na esfera privada, como forma de proteção contra a estigmatização.

Palavras-chave:
segunda geração; transmissão geracional; transmissão cultural

Abstract

The article discusses the results of a field research on generational transmission in the second generation of Brazilian immigrants in Portugal. It aims to understand the construction of the double cultural belonging of children of Portuguese-Brazilian couples in Portugal. A qualitative research was carried out in which twelve participants were interviewed. The results were analyzed according to the content analysis method, thematic-category aspect and discussed from the theoretical framework of Psychoanalysis and the Social Sciences. We discussed the categories of double cultural belonging and ties to families of origin. We conclude that family dynamics favored biculturalism, anchored in the identification with aspects considered positive in both cultures. The bonds with families of Brazilian origin were more invested in the private sphere, as a form of protection against stigmatization.

Keywords:
second generation; generational transmission; cultural transmission

Introdução

O debate em torno da designação segunda geração de imigrantes remonta à década de 1980, a partir dos trabalhos de Abdelmalek Sayad sobre a importância social da imigração argelina na França (Santelli, 2007SANTELLI, Emanuelle. De la “seconde génération” aux descendents d’immigrés: constructions identitaires et enjeux sociaux. Migrations Société, v. 113, n. 5, p. 51-56, 2007. DOI : https://doi.org/10.3917/migra.113.0051
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). Até então, os estudos sobre a imigração incidiam sobre a perspectiva laboral e temporária, desconsiderando-se que a imigração é um “fato social total” (Sayad, 1998SAYAD, Abdelmalek. Imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998.). A partir de então, face à visibilidade dos estudos acerca dos descendentes de imigrantes em geral, adotaram-se, dentro das diferentes posições teóricas, as expressões filhos de imigrantes, descendentes de imigrantes ou, segunda geração de imigrantes.

Ainda que a designação “segunda geração de imigrantes” seja questionada devido ao fato de os filhos de imigrantes serem, em rigor, nacionais do país adotado pelos pais imigrantes, tornou-se convencional o seu emprego em termos acadêmicos e científicos pela importância da categoria social que representa (Portes, Rumbaut, 2010PORTES, Alejandro; RUMBAUT, Rubén. Legacies: the story of the immigrant second generation. Los Angeles: University of California Press, 2010.). Diz respeito aos filhos de imigrantes que nasceram ou chegaram ainda crianças ao país para o qual um ou ambos os pais imigraram (Portes, Zhou, 1993PORTES, Alejandro; ZHOU, Min. The New Second Generation: Segmented Assimilation and its Variants. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 530, p. 74-96, 1993.; Portes, Rumbaut, 2010PORTES, Alejandro; RUMBAUT, Rubén. Legacies: the story of the immigrant second generation. Los Angeles: University of California Press, 2010.). Não obstante estabelecerem-se vários critérios para abarcar a história e o contexto familiar da imigração com base na idade da segunda geração, nomeadamente a geração denominada 1.0, 1.25, 1.5, 1.75, 2.0, 2.5 (Rumbaut, 2004RUMBAUT, Rubén G. Ages, Life Stages, and Generational Cohorts: Decomposing the Immigrant First and Second Generations in the United States. International Migration Review, v. 38, n. 3, p. 1160-1205, 2004. ), concordamos com a designação filhos e segunda geração de imigrantes, que destaca a vertente geracional implícita nos laços de filiação. Enquanto categoria social expõe as consequências do fenômeno imigratório da primeira geração a da segunda geração através do processo de assimilação sociocultural (Portes, Rumbaut, 2010PORTES, Alejandro; RUMBAUT, Rubén. Legacies: the story of the immigrant second generation. Los Angeles: University of California Press, 2010.).

O fenômeno migratório tem apresentado mudanças significativas na sociedade ocidental nas últimas décadas. Não obstante as motivações migratórias de cunho econômico permanecerem como principal motivo para o deslocamento voluntário, a maior facilidade de contato e de disponibilidade de meios produziram condições para o surgimento de novas tendências de migrações voluntárias internacionais (Falicov, 2019FALICOV, Celia. Transnational Journeys. In: McGOLDRICK, Monica; HARDY, Kenneth (orgs.). Revisioning Culture, Race and Class in Family Therapy. New York: Guilford Press, 2019, p. 108-122.; Portes, 2004PORTES, Alejandro. Convergências teóricas e dados empíricos no estudo do transnacionalismo imigrante. Revista Crítica de Ciências Culturais, n. 69, 2004, p. 73-93.). Ressaltamos o rápido desenvolvimento dos meios de transporte e de comunicação, nomeadamente a tecnologia, como vias que facilitam a aproximação entre os países de origem e de destino da migração, assim como favorecem um maior contato com a diversidade cultural. Deste modo, ao se pensar em imigração voluntária na atualidade, deve-se ter em conta as motivações migratórias inscritas em tempos e espaços flexíveis que favorecem a formação de famílias no contexto migratório.

Os estudos sobre a exogamia familiar são relativamente recentes, só a partir da segunda metade do século XX passou a ser considerada elemento constituinte do processo migratório, inserindo-se no contexto geral das transformações das relações de casal e de família ao longo das últimas décadas. A perspectiva de transnacionalismo permitiu uma abordagem migratória a partir da construção de territórios instituídos por vínculos familiares, econômicos e simbólicos entre fronteiras (Le Gall, Therrien, 2013LE GALL, Josianne; THERRIEN, Catherine. Lien conjugal, migration et transnationalisme: reconfiguration des formes de conjugalité et impacts sur les processus d’intégration et de construction identitaire.Diversité urbaine, v. 13, n. 2, p. 3-8, 2013. DOI: https://doi.org/10.7202/1025158
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). O aumento do número de casamentos mistos em nível global enquadra-se neste contexto de maior mobilidade e facilidade tecnológica, promovendo a interação presencial e virtual entre a origem e o destino, assim como a constituição e manutenção dos vínculos amorosos e familiares.

O fenômeno da constituição de famílias luso-brasileiras é decorrente deste cenário global. A partir da década de 1980, pesquisadores portugueses começaram a aprofundar os estudos sobre esta população, com foco na sua evolução. A literatura sobre a imigração brasileira em Portugal é unânime em elencar os possíveis motivos que explicam o aumento do número de imigrantes brasileiros a partir da referida década. Destacam a implementação do regime democrático, consequência da Revolução de 25 de Abril de 1974, o fim do período colonial em países africanos e a entrada de Portugal na Comunidade Europeia em 1986 (Barbosa, Lima, 2020BARBOSA, Allani; LIMA, Àlvaro. Brasileiros em Portugal: De volta às raízes lusitanas. Brasília: FUNAG, 2020.; Pinho, 2014PINHO, Filipa. Transformações na Emigração Brasileira em Portugal - De Profissionais a Trabalhadores. Coleção Teses n. 44. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações, 2014.; Malheiros, 2007MALHEIROS, Jorge. Os brasileiros em Portugal - A síntese do que sabemos. In: MALHEIROS, Jorge (org.). A imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACIDI, 2007, p. 11-37.). Concomitantemente, a legislação de ambos os países foi sendo modificada e atualizada em decorrência de acordos políticos e diplomáticos firmados entre Brasil e Portugal, viabilizando, assim, a entrada de um maior número de brasileiros em Portugal (Barbosa, Lima, 2020BARBOSA, Allani; LIMA, Àlvaro. Brasileiros em Portugal: De volta às raízes lusitanas. Brasília: FUNAG, 2020.; Padilla, Ortiz, 2017PADILLA, Beatriz; ORTIZ, Alejandra. Políticas migratórias. O acesso à nacionalidade como instrumento de cidadania em Portugal. In: PADILLA, Beatriz; AZEVEDO, Joana; FRANÇA, Thaís. Migrações internacionais e políticas públicas portuguesas. Lisboa: Mundos Sociais, 2017, p. 91-115.). Neste contexto, de acordo com os estatutos econômicos e laborais, foram estipulados dois principais períodos que caracterizam o fenômeno migratório de origem brasileira em Portugal (Barbosa, Lima, 2020BARBOSA, Allani; LIMA, Àlvaro. Brasileiros em Portugal: De volta às raízes lusitanas. Brasília: FUNAG, 2020.; Pinho, 2014PINHO, Filipa. Transformações na Emigração Brasileira em Portugal - De Profissionais a Trabalhadores. Coleção Teses n. 44. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações, 2014.; Malheiros, 2007MALHEIROS, Jorge. Os brasileiros em Portugal - A síntese do que sabemos. In: MALHEIROS, Jorge (org.). A imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACIDI, 2007, p. 11-37.). O primeiro entre o final dos anos de 1980 até final da década de 1990 englobava, majoritariamente, profissionais de formação superior. O segundo entre o final dos anos de 1990 e o final da década de 2000, foi caracterizado por altos índices de feminização, e incluiu, sobretudo, imigrantes com baixos níveis de escolaridade, inseridos em setores menos qualificados do mercado de trabalho português (Pinho, 2014PINHO, Filipa. Transformações na Emigração Brasileira em Portugal - De Profissionais a Trabalhadores. Coleção Teses n. 44. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações, 2014.; Malheiros, 2007MALHEIROS, Jorge. Os brasileiros em Portugal - A síntese do que sabemos. In: MALHEIROS, Jorge (org.). A imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACIDI, 2007, p. 11-37.). Os pais brasileiros dos participantes deste estudo enquadram-se no primeiro ciclo migratório, mas os filhos cresceram durante o segundo, época marcada por fortes estigmas e estereótipos associados à nacionalidade brasileira, em particular ao gênero feminino (Malheiros, 2007MALHEIROS, Jorge. Os brasileiros em Portugal - A síntese do que sabemos. In: MALHEIROS, Jorge (org.). A imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACIDI, 2007, p. 11-37.; Padilla, 2007PADILLA, Beatriz. A Imigrante Brasileira em Portugal: Considerando o Género na Análise. In: MALHEIROS, Jorge (org.).A imigração brasileira em Portugal . Lisboa: ACIDI , 2007, p. 113-134.; Machado, 2009MACHADO, Igor. Cárcere Público: Processos de Exotização entre Imigrantes Brasileiros no Porto. Lisboa: ICS, 2009.).

Os filhos de casais biculturais ou mistos são inscritos em uma genealogia que os diferencia dos filhos de casais monoculturais. É a geração que recebe a transmissão direta de valores e práticas culturais diferenciadas, repercutindo na sua singularidade. Dependendo de como maneja os estigmas e os estereótipos sociais, decide sobre a manutenção, a recusa ou a transformação da cultura da família de origem (Moro, 2010MORO, Marie Rose. Grandir en situation transculturelle. Bruxelles: Yapaka, 2010.). Segundo Hall (2014HALL, Stuart.A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2014.), a identidade cultural é conceituada como a permanente construção de significados com base na diversidade e heterogeneidade da experiência humana. Movido por mudanças, encontros e desencontros, o processo identitário é construído por meio da tensão entre as representações de sujeito, cultura e espaços de mobilidade.

A transmissão geracional enquadra-se, portanto, na produção contínua operada pela cultura e pelas relações de parentesco através de valores e de práticas, mas também nos recursos internos subjacentes à apropriação da transmissão e das representações da memória cultural em diferentes tempos e espaços (Eiguer, 2011EIGUER, Alberto. Transmission psychique et trans-générationnel. Champ psy, n. 60, 2011, p. 13-25. DOI : https://doi.org/10.3917/cpsy.060.0013.
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, Muxel, 2007MUXEL, Anne. Individu et mémoire familiale. Paris: Hachette, 2007.). Face ao exposto, o objetivo deste trabalho é compreender a construção do duplo pertencimento cultural de filhos de casais luso-brasileiros em Portugal.

Método

Foi realizada uma investigação de natureza qualitativa por meio de uma pesquisa de campo, visando compreender a dimensão subjetiva e simbólica atribuída aos fenômenos estudados.

Participantes

Foram entrevistados 12 participantes, 7 homens e 5 mulheres entre os 18 e 31 anos, filhos de casais biculturais, luso-brasileiros, cujos pais de origem brasileira migraram voluntariamente, considerando o critério de amostra por saturação (Minayo, 2015MINAYO, Maria Cecília Souza. O desafio do conhecimento. 14a. Ed., São Paulo: Hucitec, 2015. ). Trata-se de uma amostra por conveniência, o acesso aos participantes ocorreu por meio de contatos da pesquisadora. Com a exceção de um participante que nasceu no Rio de Janeiro e foi para Portugal com 1 ano de idade, todos os restantes nasceram e se desenvolveram em Portugal. O grupo de 12 participantes tem em comum a chegada a Portugal dos pais de origem brasileira entre os anos de 1989 e 1993, durante a denominada primeira vaga de imigração brasileira em Portugal. Somente a mãe de um participante se enquadra da clássica imigração com fins de melhoria sócio econômica. Os restantes 11, os pais imigraram por motivos de casamento, ascensão profissional e acadêmica.

Tabla 1
Dados Socioeconômicos e biográficos dos participantes

Instrumentos

Os dados foram coletados por meio de entrevistas elaboradas a partir de um roteiro semiestruturado com temas relacionados aos objetivos da investigação, formulado após uma ampla revisão da literatura sobre o tema, contemplando questões abertas.

Procedimentos

As entrevistas ocorreram em território português, Lisboa, Cascais, Estoril, Évora, Setúbal e Portimão, com início em dezembro de 2019, interrompidas em março de 2020 devido à pandemia Covid19 e retomadas em maio de 2020. Tiverem duração de 1h a 3h em local e data agendados pelos participantes. Os dados foram submetidos ao método de análise de conteúdo, vertente temático-categorial (Bardin, 2015BARDIN, Florence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2015.), com suporte técnico do software Nvivo12 e discutidos a partir do referencial teórico da Psicanálise e das Ciências Sociais com a finalidade de investigar as significações atribuídas pelos entrevistados aos fenômenos. O projeto de pesquisa que deu origem a este estudo foi aprovado pelo comitê de ética da universidade onde foi desenvolvido (104/2019). Os participantes assinaram o TLC autorizando a divulgação de resultados. Para a apresentação de dados foram atribuídos nomes fictícios.

Na pesquisa mais ampla sobre a transmissão geracional na segunda geração de imigrantes brasileiros em Portugal emergiram várias categorias de análise. No presente estudo analisamos a categoria duplo pertencimento cultural, que se desdobrou na subcategoria vínculos com as famílias de origem.

Análise e discussão de dados

Duplo pertencimento cultural

Esta categoria abarca os elementos culturais e os valores transmitidos pelos pais e famílias de origem, assim como a percepção sobre as diferenças culturais na identidade dos entrevistados. É desdobrada em vínculos com a família de origem que destaca os meios e os recursos usados para a manutenção dos vínculos familiares.

Os termos pertencer e identidade possuem sentidos polissêmicos, no passado associados à ideia de determinismo social e linear (Hall, 2014HALL, Stuart.A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2014.). Atualmente, estão no centro do debate sobre a construção da subjetividade em diferentes áreas do conhecimento. Fazemos uso de ambos os termos no sentido de bases de sustentação psíquica, no contexto de um processo dinâmico, constituído pelos grupos primário e secundários e indissociáveis da continuidade geracional e cultural.

A identificação com a cultura das famílias de origem pode ser compreendida a partir do discurso e das práticas simbólicas transmitidas entre as gerações (Moro, 2010MORO, Marie Rose. Grandir en situation transculturelle. Bruxelles: Yapaka, 2010.; Eiguer, 2011EIGUER, Alberto. Transmission psychique et trans-générationnel. Champ psy, n. 60, 2011, p. 13-25. DOI : https://doi.org/10.3917/cpsy.060.0013.
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; Plivard, 2014PLIVARD, Ingrid. La notion de culture. Psychologie interculturelle. Belgique: De Boeck Supérieur, 2014.; Benghozi, 2007BENGHOZI, Pierre. Transmission généalogique de la trace et de l'empreinte: temps mythique en thérapie familiale psychanalytique.Cahiers critiques de thérapie familiale et de pratiques de réseaux, n. 38, 2007, p. 43-60. DOI : https://doi.org/10.3917/ctf.038.0043.
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). Em casais biculturais, com residência no país de origem de um dos cônjuges, é comum o predomínio da cultura local, o que não invalida a emergência de um código cultural comum (Le Gall, Therrien, 2013LE GALL, Josianne; THERRIEN, Catherine. Lien conjugal, migration et transnationalisme: reconfiguration des formes de conjugalité et impacts sur les processus d’intégration et de construction identitaire.Diversité urbaine, v. 13, n. 2, p. 3-8, 2013. DOI: https://doi.org/10.7202/1025158
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). Segundo os entrevistados, a identificação com a cultura dos pais de origem brasileira é decorrente da reciprocidade do interesse dos membros casal conjugal pelas respectivas culturas, portuguesa e brasileira, levando à transmissão de elementos culturais conciliadores.

Acho que foi natural essa minha mistura. Tipo música, comida, ela (mãe portuguesa) até foi aprender a dançar forró e a cozinhar com a minha avó do Brasil! Cresci numa casa que era normal coisas do Brasil e portuguesas, mesmo na casa da minha avó daqui (Portugal), ela fazia tapioca para o lanche porque sabia que eu gostava. E, óbvio, até hoje faço comida brasileira e portuguesa! (Marta, 28 anos)

Para mim sempre foi normal ser português e brasileiro porque desde pequeno que os meus pais me educaram assim. A minha mãe (portuguesa), acho que até gosta mais do Brasil que o meu pai! O meu pai (brasileiro) é mais português que a minha mãe! Sempre foi normal comer uma feijoada à brasileira, como comer um cozido à portuguesa. (José, 28 anos)

A culinária e a música operaram como veículos de identificação entre culturas, tornando-se principais veículos de transmissão de práticas de interação familiar e de apropriação cultural. Os valores simbólicos atribuídos às práticas alimentares transmitidas pelos pais estenderam-se à família extensa na figura dos avós portugueses que, ao introduzirem elementos da culinária brasileira reconhecem o duplo pertencimento cultural dos netos. A refeição familiar é um dos principais veículos de transmissão de práticas de interação familiar e de apropriação da cultura alimentar (Morgenstern, Sirota, 2019MORGENSTERN, Aliyah; SIROTA, Régine. Rituels de l’enfance et transmission: raconter des histoires. Strenae, n. 15, 2019. DOI: https://doi.org/10.4000/strenae.4112
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). A maioria dos participantes ilustra a transmissão de uma memória afetiva infantil e a valorização posterior da coexistência dinâmica de elementos das origens.

Eu lembro-me que quando era puto (criança) ficava doido quando a minha avó mandava, ou alguém trazia massa de pastel de feira e catupiry! Adorava quando a minha mãe fazia frango com catupiry! Tudo isso era totalmente diferente e só fui perceber isso já pra aí com 14 ou 15 anos. (João, 25 anos)

Eu tenho memórias fantásticas da minha mãe (portuguesa) a fazer comidas brasileiras quando chegavam coisas do Brasil, todos na cozinha ao som dos Kid Abelha! (Júlio, 28 anos)

Enquanto elementos culturais de origem brasileira, a culinária e a música desempenharam a função, não só de inscrição familiar e cultural, mas também de marcadores identitários reconhecidos na adolescência a partir de um diferencial social. De acordo com Muxel (2007MUXEL, Anne. Individu et mémoire familiale. Paris: Hachette, 2007.) a transmissão da memória familiar sustenta os vínculos ao longo das gerações, ligando eventos a sensações, denominando arquivistas do efémero os cheiros ou os sons que conferem uma idiossincrasia familiar.

Esses elementos culturais desempenharam a função, não só de inscrição familiar e cultural, mas também de marcadores identitários reconhecidos na adolescência a partir de um diferencial social. Os marcadores de identidade fazem parte da construção da herança bicultural (Le Gall, Therrien, 2013LE GALL, Josianne; THERRIEN, Catherine. Lien conjugal, migration et transnationalisme: reconfiguration des formes de conjugalité et impacts sur les processus d’intégration et de construction identitaire.Diversité urbaine, v. 13, n. 2, p. 3-8, 2013. DOI: https://doi.org/10.7202/1025158
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) promovendo a diferenciação e a constatação de uma mais valia na aquisição de experiências em relação aos pares monoculturais. Esse período do ciclo vital, caracterizado por uma maior autonomia e identificação fora do ambiente familiar, foi marcado pela apropriação de uma subjetividade atravessada por um duplo pertencimento cultural.

Eu só percebi que realmente a minha maneira de ser era diferente dos meus amigos lá para os meus 15 ou 16 anos, porque a minha educação foi muito conjunta. E eu tinha uma vida super diferente dos meus amigos, tipo, eu sabia dançar forró, tava a aprender a tocar tamborim, tinha um mundo mais alargado. (Paulo, 25 anos)

Eu sou português, claro, e sinto-me português, mas eu tenho um plus e só percebi isso pra aí com 16 ou 17 anos! Eu tinha uma abertura para falar, não era tanto de cerimónias, metia conversa mais facilmente, era mais descomplicado para falar, isso vem do meu pai! (José, 28 anos)

Tenho a marca dos 17 anos quando fiz casadinho de goiaba, cocada e manjar branco para umas amigas! Eu senti-me tão naturalmente brasileira! (Ana, 30 anos)

A entrada na adolescência representa uma etapa do desenvolvimento em que há uma maior tendência em rejeitar, aceitar ou promover a cultura dos pais migrantes, dependendo, sobretudo, da aceitação ou não dos grupos de pertencimento externos. Para os entrevistados, à semelhança da culinária, também os elementos da cultura popular brasileira, como saber dançar forró ou aprender a tocar tamborim, tornaram-se um diferencial social e uma escolha pessoal a partir da adolescência.

A construção da memória familiar em contexto migratório é perpassada pelas esferas pública e privada, dado que as imposições sociais colidem muitas vezes com a cultura de origem (Moro, 2010MORO, Marie Rose. Grandir en situation transculturelle. Bruxelles: Yapaka, 2010.; Plivard, 2014PLIVARD, Ingrid. La notion de culture. Psychologie interculturelle. Belgique: De Boeck Supérieur, 2014.). De acordo com as falas dos entrevistados é possível perceber que, a transmissão de práticas culturais de origem brasileira restringiu-se à esfera privada. O espaço público foi marcado por vivências e testemunhos de estigmas sociais e de nacionalidade, com mensagens implícitas e explícitas.

“Tinha que ser brasileiro” podia contar mil e um “tinha que ser brasileiro”. Quando era puto (criança) eu não percebia, eu ficava muito envergonhado, essas coisas faziam-me muita confusão. Os meus pais sempre fugiram de brasileiros, não gostam quando se casam com portugueses e até hoje fujo desses guetos. (Luís, 23 anos)

Para as mulheres acho que foi pior porque havia muita prostituição, muita confusão com brasileiros. Dos meus colegas nunca senti nada, mas das mães deles sim, sempre a perguntar o que é que a minha mãe fazia e era muito mau porque eu percebia que desconfiavam quando eu dizia que era advogada. Não íamos para lugares de samba, era tudo em casa. Conheço brasileiros, claro, mas não somos amigos. (Marta, 28 anos)

As narrativas acima corroboram os estudos prévios que evidenciaram as dificuldades de inserção social e laboral devido aos estereótipos associados, sobretudo, à mulher brasileira (França, Padilla, 2018FRANÇA, Thaís; PADILLA, Beatriz. Imigração brasileira para Portugal: entre o surgimento e a construção midiática de uma nova vaga. Cadernos de Estudos Sociais, Recife, v. 33, n. 2, p. 207-237, 2018.; Padilla, Ortiz, 2017PADILLA, Beatriz; ORTIZ, Alejandra. Políticas migratórias. O acesso à nacionalidade como instrumento de cidadania em Portugal. In: PADILLA, Beatriz; AZEVEDO, Joana; FRANÇA, Thaís. Migrações internacionais e políticas públicas portuguesas. Lisboa: Mundos Sociais, 2017, p. 91-115.; Pinho, 2014PINHO, Filipa. Transformações na Emigração Brasileira em Portugal - De Profissionais a Trabalhadores. Coleção Teses n. 44. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações, 2014.; Malheiros, 2007MALHEIROS, Jorge. Os brasileiros em Portugal - A síntese do que sabemos. In: MALHEIROS, Jorge (org.). A imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACIDI, 2007, p. 11-37.). A forte produção cientifica sobre esta temática, principalmente ao longo dos anos 2000, destacou o papel da mídia portuguesa na ampla divulgação de episódios de migrantes em situação ilegal ligados à prostituição ou à criminalidade, estimulando a generalização de estereótipos e preconceitos ligados à figura da mulher imigrante brasileira em Portugal (Machado, 2012MACHADO, Igor. The management of difference: reflections on policies concerning immigration and the control of foreigners in Portugal and Brazil. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology [online], v. 9, n. 1, p. 311-332, 2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1809-43412012000100011
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; França, 2012FRANÇA, Thaís. Lindas Mulatas com Rendas de Portugal: A inserção das mulheres brasileiras no Mercado de Trabalho Português. Tese de Doutorado em Sociologia, Universidade de Coimbra, 2012.; Pinho, 2014PINHO, Filipa. Transformações na Emigração Brasileira em Portugal - De Profissionais a Trabalhadores. Coleção Teses n. 44. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações, 2014.; Malheiros, 2007MALHEIROS, Jorge. Os brasileiros em Portugal - A síntese do que sabemos. In: MALHEIROS, Jorge (org.). A imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACIDI, 2007, p. 11-37.). Independentemente da condição social e econômica, os estigmas percebidos pelos filhos em relação aos pais revelam uma tendência à privatização das relações familiares como forma de proteção contra a estigmatização.

A transmissão geracional e cultural engloba princípios educacionais que reproduzem valores e crenças, participando da construção da individualidade (Eiguer, 2011EIGUER, Alberto. Transmission psychique et trans-générationnel. Champ psy, n. 60, 2011, p. 13-25. DOI : https://doi.org/10.3917/cpsy.060.0013.
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; Benghozi, 2007BENGHOZI, Pierre. Transmission généalogique de la trace et de l'empreinte: temps mythique en thérapie familiale psychanalytique.Cahiers critiques de thérapie familiale et de pratiques de réseaux, n. 38, 2007, p. 43-60. DOI : https://doi.org/10.3917/ctf.038.0043.
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). Os entrevistados, ancorados na transmissão oral dos pais e, em escolhas próprias, conciliam as heranças psíquicas e o reconhecimento da alteridade, negociando os valores que eles consideram positivados em ambas as culturas.

Em todos os aspetos acho que é uma coisa muito positiva ter duas culturas, tenho essas duas culturas! Ter a parte séria do português e a espontaneidade do brasileiro. Tenho isso, a leveza e alegria do brasileiro e a responsabilidade e os pés no chão do português. (Marta, 28 anos)

Eu sinto-me português porque sou trabalhador, responsável, tenho 25 anos e totalmente independente financeiramente, mas sinto-me brasileiro em viver mais a vida! Eu tenho isso do brasileiro, sabe aproveitar a vida melhor, é mais leve. (João, 25 anos)

Transitando entre a autonomia e a lealdade familiar, os participantes apoiam-se em valores transmitidos pelos pais. Consideramos não haver uma pretensão de repetir um padrão familiar cristalizado. Pelo contrário, parecem justificar as suas escolhas a partir de recursos psíquicos que lhes conferem uma maior flexibilidade subjetiva para construírem a sua individualidade, negociando o duplo pertencimento cultural pautado na escolha de atributos que correspondam às suas aspirações e contextos. Para Plivard (2014PLIVARD, Ingrid. La notion de culture. Psychologie interculturelle. Belgique: De Boeck Supérieur, 2014.), a diversidade cultural é constituinte da identidade interna e externa, tornando-se uma ferramenta inerente ao processo de construção da individualidade, requerendo, muitas vezes, um maior investimento psíquico na diferenciação familiar de modo a acomodar internamente ambas as culturas.

Ao longo das narrativas de alguns participantes foram realçadas a qualidade do contato com a família extensa e dos vínculos com as famílias de origem. A complexidade do processo de construção de identidade envolve uma heterogeneidade de fatores que contribuem para a transmissão geracional e da cultura. Dentre esses fatores, destacamos o fato de os migrantes contemporâneos disporem de novos meios de comunicação que possibilitam uma maior dinâmica intercultural, facilitando o contato com a cultura e as famílias de origem.

Vínculos com a família de origem

A inscrição nas famílias de origem decorre de uma complexidade de fatores, sendo a qualidade das relações familiares um elemento decisivo na intermediação entre gerações, sobretudo durante a infância. Em fases posteriores do desenvolvimento há uma maior autonomia. Não obstante todos os 12 participantes da presente pesquisa terem iniciado os deslocamentos para o Brasil durante a infância, a família de origem portuguesa constituiu importante rede de apoio ao longo do desenvolvimento, levando, em alguns casos, a estados ambivalentes na constituição de vínculos com a família brasileira durante a infância, como ilustram as falas.

A minha avó do Brasil também fui muito próxima, desde os 4 ou 5 anos que vou lá, mas no início era diferente porque não estava todos os dias com ela, e isso era um bocadinho confuso quando era miúda (criança). Porque era assim: íamos lá era uma alegria, música, a casa cheia o dia todo, passeios, só mimos! Mas, depois eu sofria muito porque quando vínhamos embora a minha avó ficava a chorar e o meu pai também, e eu não entendia porque ela não mudava para Portugal como o meu pai fez, e eu só via o meu pai chorar quando íamos lá! (Sofia, 27 anos)

As férias grandes eram sempre lá! Eu adorava, era muito mimado, ganhava muitos presentes e tal, andava de barco, comia o que queria, era tudo muito diferente de Portugal. Mas quem tomava conta de mim era a minha avó daqui, portanto, a minha avó do Brasil só me estragava e a de Portugal... consertava (rs). Mas, o que eu não entendia mesmo era por que é que não podíamos morar lá se a vida lá era bem melhor, até aos 11 ou 12 fazia-me muita confusão! (Júlio, 28 anos)

A maioria dos participantes foram deixados aos cuidados dos avós portugueses enquanto os pais trabalhavam, recebendo uma transmissão direta e reconhecendo esse contato como uma rede de apoio emocional importante para o seu desenvolvimento. Por outro lado, a manutenção dos vínculos entre os dois países foi beneficiada em decorrência de uma posição socioeconômica que permitiu o contato direto e regular com a família de origem e a cultura brasileira na sua vertente mais aprazível, no contexto de férias.

De acordo com Gondar (2016GONDAR, Jô. Cinco proposições sobre memória social. In: DODEBEI, Vera et al. (orgs.). Revista Morpheus, edição especial, v. 9, n. 15, 2016. p. 19-40.), não existem memórias fora do contexto afetivo que as produziu, sendo o afeto a primeira etapa da produção da memória, que confere a singularidade às experiências. Neste contexto, as memórias dos participantes reproduzem afetos ambíguos provocados pela distância que o fenômeno migratório impõe, gerando um sentimento de continuidade vincular com a família portuguesa e de provisoriedade com a família brasileira ao longo da infância.

Os entrevistados enquadram-se no novo paradigma das temáticas migratórias no contexto global contemporâneo. A dinâmica de trocas entre culturas e a continuidade de vínculos são facilitados pelas novas tecnologias, incidindo sobre a manutenção dos vínculos familiares. Todos os entrevistados mantinham contato permanente via telefone e plataformas on-line facilitando as relações de proximidade com familiares e a cultura da sociedade de origem brasileira, aspecto promovido pela figura materna.

Todos os domingos era sagrado: falar com a avó do Brasil, e claro, com a parentada toda que tava lá em casa. A minha mãe era muito chata com isso, irritante mesmo! A minha mãe tá há 30 anos pendurada no telemóvel (celular) aos domingos! (Paulo, 25 anos)

Eu já cresci numa época que a gente fazia vídeos e tal, mas o meu pai ficava preguiçoso, hoje é tudo por whatsapp, mas tenho memória da minha mãe ficar a falar com a minha avó e as minhas tias e também de pôr a minha avó daqui a falar com elas. (Luís, 23 anos)

Os entrevistados sublinharam a importância da mãe na manutenção dos vínculos com a família brasileira desde a infância. Independentemente da origem, portuguesa ou brasileira, as mães desempenharam a função de manter o contato entre a família nuclear e alargada, introduzindo, em alguns casos, a família de origem portuguesa, o que antevê uma dinâmica de inclusão de modo a estreitar os laços familiares. Para os entrevistados, o valor simbólico atribuído à facilidade tecnológica é relacionado à continuidade dos vínculos com a cultura e a família no Brasil.

A minha família do Brasil sempre esteve aqui e nós lá. Acabamos por participar da vida de todos como aqui. Eu falo com eles e é como se tivesse lá! O cheiro da gasolina das ruas de São Paulo, o cheiro do boteco, do mar, da casa da minha avó! (João, 25 anos)

Para mim o Brasil está ali, sempre foi assim, fazíamos tudo pela internet com o pessoal de lá, até cozinhar! (rs). Isso é meio maluco! A gente sabe como as coisas funcionam lá, nem precisamos tar lá para saber, desde miúdo que sei como é a vida no Brasil, no dia a dia, da minha família. (José, 28 anos)

De acordo com os entrevistados, as relações familiares biculturais construídas precocemente foram aprofundadas via tecnologia, contribuindo para o processo de interação e identificação cultural e familiar. O valor simbólico atribuído à facilidade tecnológica é relacionado à continuidade dos vínculos com a cultura e a família no Brasil. Neste sentido, a tecnologia é constituinte da dinâmica familiar, em que o Brasil, enquanto território, é concebido como espaço familiar reconhecido via sensoralidade.

Os cheiros, a visão de espaço e os sabores da culinária familiar e cultural compõem uma memória afetiva perpetuada pelos contatos via tecnologia, levando à sensação de encurtamento espacial e de inclusão na dinâmica familiar brasileira. Movidos por mudanças, encontros e desencontros, é por meio da tensão entre as representações de sujeito, cultura e espaço que se vai construindo o processo identitário, de acordo com Hall (2014HALL, Stuart.A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2014.). O autor conceituou identidades culturais como a permanente construção de significados com base na diversidade e heterogeneidade da experiência humana.

A história da migração e mobilidade, com todas as especificidades que lhe são próprias, foi marcada desde sempre por estratégias de comunicação no sentido de estreitar os laços entre a origem e o destino. Significa que evoluíram os meios que facilitaram a realização do desejo de continuidade dos laços familiares, ampliado às gerações seguintes. Com o advento da pandemia Covid19, o denominado “novo normal” levou à generalização de práticas até então normatizadas entre famílias migrantes. Fato esse reforçado pelos entrevistados logo após o primeiro desconfinamento ocorrido em Portugal em maio de 2020.

A minha mãe tá totalmente desesperada, cortaram as viagens pra lá, esse foi o primeiro pensamento que a gente teve! E agora? E se a gente não os vê mais? A gente não mudou nada porque já fazia tudo com eles pela internet, quer dizer, agora faço com os meus pais e sogros e amigos o que fazíamos com o pessoal do Brasil. (Marta, 28 anos)

A gente ainda tá em choque com isto tudo, não é? Não deixa de ser curioso tar aqui a falar consigo destas coisas num momento em que pela primeira vez a gente tem um oceano, tem a família separada. A sorte é que a minha mãe, passado uns anos que se separou do meu pai trouxe a minha avó, nem quero pensar na aflição dela! Mas temos lá família e ainda se fala mais por causa disto! (Rui, 26 anos)

Face à iminência de uma ruptura espacial, os participantes narram a sensação de ameaça aos vínculos por parte das mães brasileiras, evidenciando que a impossibilidade de viajar para o Brasil ativou uma realidade psíquica até então compensada pela facilidade de deslocamento.

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi compreender a construção do duplo pertencimento cultural de filhos de casais bicuturais luso-brasileiros em Portugal. Ressaltamos que não se trata em determinar a identidade cultural em função da reprodução de legados geracionais e culturais, mas compreender como se desenvolveu essa identidade em termos de negação ou apropriação de legados geracionais e culturais.

Os pais dos participantes de origem brasileira enquadram-se na denominada primeira vaga da imigração brasileira em Portugal, no contexto pós entrada na Comunidade Europeia, corroborando os estudos prévios que indicavam um fluxo migratório inserido no mercado de trabalho português mais qualificado (Malheiros, 2007MALHEIROS, Jorge. Os brasileiros em Portugal - A síntese do que sabemos. In: MALHEIROS, Jorge (org.). A imigração brasileira em Portugal. Lisboa: ACIDI, 2007, p. 11-37., Pinho, 2014PINHO, Filipa. Transformações na Emigração Brasileira em Portugal - De Profissionais a Trabalhadores. Coleção Teses n. 44. Lisboa: Alto Comissariado para as Migrações, 2014.). Ao contrário da geração migratória dos seus pais, os entrevistados nasceram e cresceram na emergência e propagação de estigmas relacionados à figura do imigrante brasileiro (Machado, 2009MACHADO, Igor. Cárcere Público: Processos de Exotização entre Imigrantes Brasileiros no Porto. Lisboa: ICS, 2009.; Padilla, 2007PADILLA, Beatriz. A Imigrante Brasileira em Portugal: Considerando o Género na Análise. In: MALHEIROS, Jorge (org.).A imigração brasileira em Portugal . Lisboa: ACIDI , 2007, p. 113-134.). Segundo as narrativas dos entrevistados, este fato parece ter culminado na maior privatização das relações familiares destas famílias com uma dupla função, a proteção e a integração simbólica do duplo pertencimento cultural na esfera doméstica. Neste sentido, os casais luso-brasileiros e os seus filhos não passaram incólumes aos estigmas relacionados à origem cultural, evidenciando que a condição socioeconômica privilegiada não os impediu de sofrer efeitos dos mesmos.

O nascimento de uma criança tem um valor simbólico na continuidade da linhagem familiar, na qual as famílias de origem intervêm direta ou indiretamente por meio da transmissão geracional e cultural (Darchis, Benghozi, 2019DARCHIS, Élisabeth; BENGHOZI, Pierre. Une approche familiale opérante pour la prévention en psypérinatalité.Spirale, 2019, n. 92, p. 79-83. DOI : https://doi.org/10.3917/spi.092.0079
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). Para os participantes, as figuras das avós e das mães de origem portuguesa tiveram uma influência inclusiva e de reconhecimento da alteridade bicultural, tornando a figura feminina responsável pela construção do duplo pertencimento cultural e dos vínculos com a famílias de origem brasileira.

A transmissão da cultura brasileira foi promovida desde cedo com a inclusão de elementos biculturais na dinâmica familiar, como a culinária e a música. Os vínculos familiares são percebidos como veículos transmissores de um patrimônio cultural, traduzidos em memórias sensoriais e de valor afetivo e simbólico, funcionando como agentes de transmissão da memória familiar e cultural. Rouchy (2014ROUCHY, Jean Claude. Processus archaïque et psychanalyse du lien.Revue de psychothérapie psychanalytique de groupe, 2014, n. 62, p. 53-65. DOI : https://doi.org/10.3917/rppg.062.0053
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) desenvolve os conceitos de grupos primários e secundários como estruturas de transição através das quais ocorre a passagem entre a realidade externa e a realidade psíquica interna. É através da interação verbal e não verbal que o grupo espelha modos de ser e de sentido, denominados de incorporações culturais não mencionadas (incorporats), traduzidos pela sensoralidade.

A intensificação e a manutenção dos vínculos biculturais foram favorecidas pela condição socioeconómica, permitindo o trânsito regular entre ambos os países. Usufruir de aspectos mais agradáveis da cultura e da família brasileira não impediu o emergir de estados psíquicos ambíguos impostos pela distância física, originando um sentimento de provisoriedade ao longo da infância e evidenciando a incorporação da historicidade familiar aliada ao projeto migratório parental. Ao longo de outros períodos do ciclo vital a distância física foi compensada via tecnologia, que exerceu a função de prolongar os vínculos emocionais com a família de origem brasileira. Desde os primórdios dos estudos migratórios constataram-se estratégias de estreitamento dos laços familiares com base na tecnologia (Eiguer, 2011EIGUER, Alberto. Transmission psychique et trans-générationnel. Champ psy, n. 60, 2011, p. 13-25. DOI : https://doi.org/10.3917/cpsy.060.0013.
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), passando muitas vezes despercebidas, ou pouco validadas no senso comum. A sensação de proximidade física foi ameaçada com a interrupção das viagens para o Brasil em decorrência da pandemia Covid 19.

O duplo pertencimento cultural decorre da construção de subjetividades em que a produção de sentido está diretamente ligada ao imaginário social que associa características e recursos culturais (Eiguer, 2011EIGUER, Alberto. Transmission psychique et trans-générationnel. Champ psy, n. 60, 2011, p. 13-25. DOI : https://doi.org/10.3917/cpsy.060.0013.
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). Moro (2010MORO, Marie Rose. Grandir en situation transculturelle. Bruxelles: Yapaka, 2010.) observa que a constituição do duplo pertencimento cultural pressupõe uma relação consonante entre a causalidade dos acontecimentos no espaço e a capacidade para decifrá-los no tempo, como foi ilustrado pelos participantes. Cientes dos aspectos desejáveis e aceites socialmente de ambas as culturas, os participantes auto identificam-se com os atributos culturais de acordo com as circunstâncias sociais, indo ao encontro da problematização das identidades culturais inerentes ao debate sobre migrações e deslocamentos decorrentes do processo de globalização (Hall, 2014HALL, Stuart.A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2014.).

Concluímos que o duplo pertencimento cultural foi transmitido pelo grupo primário e famílias de origem, em consonância com os grupos secundários, de afiliação, que endereçaram os diferenciais culturais e subjetivos dos participantes. Bárbara (1993) pontua que os filhos de casais mistos tendem a uma liberdade de escolha em relação às origens culturais dos pais. Corroborando o pensamento da autora, os participantes elegeram a culinária e os elementos da cultura popular brasileira, como saber dançar forró ou aprender a tocar tamborim, como um diferencial social, incentivados pelos grupos de pertencimento externos. Conforme Rouchy (2014PORTES, Alejandro; ZHOU, Min. The New Second Generation: Segmented Assimilation and its Variants. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 530, p. 74-96, 1993.), é a base psíquica e cultural compartilhada que confere uma identidade única, no sentido singularidade, coletiva. Acrescentamos, também, o desejo e as escolhas individuais como recursos psíquicos que foram incorporados pelos participantes.

As análises produzidas neste estudo não pretendem generalizar este fenômeno. Ressaltamos a importância de desenvolver investigações que abordem os impactos da segunda geração de imigrantes brasileiros em Portugal na psicodinâmica familiar e social. A lacuna de estudos contribui para a invisibilidade desta população que deixa antever a complexidade dos desdobramentos dos projetos migratórios parentais e a produção de subjetividades com impacto na sociedade como um todo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2021
  • Aceito
    13 Jun 2022
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