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O protagonismo de mulheres imigrantes na construção de redes sociais para o fortalecimento identitário: o caso das Brasileiras em Chicago (EUA)

The immigrant women protagonism in the building of the social networks to strengthening identity: the case of Brazilian women in Chicago (USA)

Resumo

O presente artigo aborda a questão de redes sociais transnacionais migratórias a partir da ideia de identidade nacional e cultural e fazendo uso da perspectiva de gênero. Assim, propomos uma pesquisa com mulheres brasileiras que vivem em Chicago (EUA) e constroem seus laços de interação simbólica a partir da realização, na cidade, de festividades e eventos artísticos relacionados a aspectos variados da cultura do Brasil. De abordagem qualitativa, o método de pesquisa utilizado foi o Estudo de Caso. Entre os principais resultados, destacamos como essa rede contribui para a composição identitária, interação simbólica e socialização dessas mulheres e possibilita uma vivência de protagonismo, autonomia e empoderamento.

Palavras-chave
processos migratórios; gênero; redes sociais transnacionais; comunicação

Abstract

This article is about the transnational migratory social networks from the idea of national and identity and making use of the gender perspective. So, we propose a research with Brazilian women who living in Chicago (USA) and building their symbolic interaction links from the organization and promotion of festivals and artistic events related to various aspects of Brazil’s culture in the city. The research method used was the Case Study, in a qualitative approach. Among the main results, we highlight how the social network contributes to the identity composition, symbolic interaction and socialization of these women and provides them an experience of autonomy and empowerment.

Keywords
migratory process; gender; transnational social networks; communication

Introdução

Sabe-se que é no país receptor que, muitas vezes, as identidades culturais, étnicas, sociais e nacionais do imigrante tornam-se mais autênticas e reforçadas, do que no país de origem. Percebe-se, nestes casos, a necessidade de se imprimir um universo simbólico, uma necessidade despertada no momento em que o imigrante se viu lançado na tarefa de construir para si mesmo uma realidade familiar – que o confortasse em meio à subjetividade constituída entre tantas coisas novas e desconhecidas encontradas no processo de deslocamento.

É justamente nesse contexto que começam a ser construídas as redes sociais migratórias a partir de uma ideia de identidade nacional. No país de acolhida, o fato de o imigrante estar na mesma situação desconhecida, solitária e de expectativa, ou ainda de ter uma origem comum, em relação a outros sujeitos localizados no mesmo espaço físico, pode servir como recurso para uma identificação, aproximação e convívio, estabelecendo, muitas vezes, um sentimento de fraternidade que poderia não aflorar caso estas pessoas estivessem no país de origem.

Soma-se a esses dois pontos, um terceiro: a característica empreendedora que parece ser natural do imigrante, bem como seu desejo de mudança. Ao construir todo um plano migratório material e subjetivo (como ir, para onde ir, onde ficar, o que deixar para trás, o que levar etc.), o imigrante adquire conhecimentos, coragem e, de certa maneira, se abre para o novo, para o desconhecido. Nesse processo, por mais doloroso e traumático que seja lidar com perdas e rupturas, mostra sinais, ainda que em diferentes níveis, de que não é uma pessoa acomodada, alienada e que está fadada a uma condição de inércia eterna. Pelo contrário, o deslocamento não deixa de ser uma iniciativa para resolver um problema ou uma situação que causa desconforto ou insatisfação, o que costuma demonstrar grande caráter de pró-atividade e de mobilização.

Assim, este artigo se propõe a estudar o caso de imigrantes brasileiras estabelecidas em Chicago (EUA), que construíram – por meio de atividades relacionadas a festividades e eventos artísticos envolvendo aspectos variados da cultura do Brasil na cidade – uma rede social transnacional e intercultural. Nosso principal objetivo é entender como e por que esse tipo de rede pode se mostrar relevante para a composição identitária e interação simbólica de seus membros, bem como o papel específico da mulher neste processo.

Para isso, propomos uma pesquisa com base teórica nos Estudos Culturais e na perspectiva de gênero, que, entendemos, como uma produção social e construção cultural do sexo biológico e como representação da imagem do poder relacional do homem e da mulher na sociedade02 2 OAKLEY, Ann. Sex, gender and Society; STREY, Marlene. Gênero. . Acreditamos que ambas as correntes têm contribuído muito para as investigações e análises das migrações internacionais nos últimos anos, proporcionando novas interpretações sobre aspectos tradicionais do campo, como organização e integração social, transnacionalismo, interculturalismo, comunicação, entre outros.

A metodologia utilizada foi o Estudo de Caso, seguindo as orientações de Yin03 3 YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos. e Duarte04 4 DUARTE, Marcia Y. M. Estudo de caso. de abordagem qualitativa. Trata-se de uma inquirição empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de um contexto da vida real, quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é suficientemente clara e onde múltiplas fontes de evidência são utilizadas para responder a questões do tipo “como” e “por que”. No caso deste trabalho, realizamos entrevistas semi-estruturadas e observação direta.

Nosso corpus foi constituído por dez mulheres brasileiras, com alto grau de instrução (todas possuem, pelo menos, graduação completa), que vivem em Chicago há, no mínimo, dez anos05 5 Neste artigo, os nomes de todas as entrevistadas foram trocados para garantir privacidade. . Todas desenvolvem na cidade, como atividade principal (profissional) ou paralela, eventos como: shows de música brasileira (samba, forró, bossa nova e MPB, principalmente), mostras de filme nacional, aulas de Língua Portuguesa e encontros de conversação, reuniões e eventos gastronômicos, com comida típica brasileira (feijoada, tapioca, brigadeiro, pão de queijo, coxinha etc.), e realização de Festa Junina, Carnaval, Sete de Setembro, entre outras datas comemorativas.

A imigração como uma experiência de vida

A mudança das brasileiras que compõem nosso corpus de pesquisa para Chicago ocorreu por uma combinação de fatores em um tempo e em um espaço determinados no percurso de vida de cada uma, ou seja, numa perspectiva microssociológica, a partir se suas ações e reações em interação.

Segundo Goffman, a microssociologia tem por objetivo estudar as formas rotineiras ou inéditas do comportamento humano e seu engajamento numa dada situação: “(...) descreve detalhadamente uma perspectiva sociológica a partir da qual é possível estudar a vida social, principalmente aquela que é organizada dentro de limites físicos”06 6 GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana, p. 9. .

Inicialmente, não se trata de um projeto de vida elaborado e articulado como, por exemplo, a escolha de uma carreira profissional, que exige investimentos (financeiros e emocionais) prévios. O deslocamento, no caso destas brasileiras, foi planejado a partir do momento que a possibilidade de migrar apareceu e, dessa hora em diante, vislumbrado como uma nova experiência. Entretanto, em nenhum caso, se revelou um desejo e/ou sonho pessoal antes disso. As duas únicas motivações recorrentes para a concretização da saída do Brasil foram: casamento e/ou situação financeira e profissional.

Se, no início, esse projeto migratório tem uma finalidade prática e específica – “porque se casou com um norte-americano” ou o “marido brasileiro foi trabalhar nos EUA” ou ainda porque queria tentar “uma vida melhor” (profissional ou financeiramente) – ao longo do tempo ele se modifica e ganha múltiplas dimensões. Além disso, o que, primeiramente, era para ser um projeto de vida temporário, não se concretiza. Neste sentido, é curioso que uma das expressões recorrentes nas falas de praticamente todas as entrevistadas seja: “e fui ficando...”, como ilustram os exemplos abaixo:

Márcia: Eu vim fazer meu doutorado na Universidade de Illinois, mas aí eu me casei com um americano e fui ficando. Agora eu moro aqui (risos).

Cecília: Eu e meu marido morávamos na Suíça. Ele então ganhou uma bolsa de estudo. Ele é médico e pesquisador. Ele ganhou uma bolsa de pesquisa para ficar aqui, em Chicago, por três anos. Durante o terceiro ano, ele teve uma proposta para ficar aqui e como as perspectivas de voltar para a Suíça não eram muito interessantes para ele, ele acabou aceitando. E assim, no fim, fomos ficando. Nós chegamos com nossos filhos de 5 e 7 anos e eles cresceram aqui e agora moram na Califórnia.

Gabriela: Eu fiz Letras, no Brasil, em Português-Inglês, e meus planos eram vir para cá [EUA], aperfeiçoar meu inglês, e voltar e dar aula de inglês, trabalhar, ser professora. Então esse era meu plano (...) Só que as coisas foram acontecendo aqui e fui ficando. Eu nunca sonhei isso. (...) Eu também me casei com um americano, o que também não estava nos meus planos (risos). Mas é como as coisas acontecem.

É interessante, também, notar que, depois da passagem do tempo, o desejo de retorno não é mais prioridade e as comparações entre os países de origem e destino (no aspecto social, profissional ou afetivo) passam a ser utilizadas, com frequência, como justificativas para a permanência em Chicago. São ilustrativos os discursos seguintes:

Bárbara: Não penso em voltar para o Brasil. (...) Eu acho que a questão da violência é uma coisa que preocupa muito no Brasil e depois que você vive aqui, dá ainda um valor maior para a liberdade, a tranquilidade. Não precisa se preocupar com assaltos. Então esse aspecto da segurança seria difícil para mim, ter que readaptar.

Helena: Eu não penso em voltar (...) Porque eu já validei meu diploma aqui, eu já moro aqui há muito tempo. Meu marido é médico, não tem como ele trabalhar lá. Então, eu acho muito difícil eu voltar para o Brasil. Como é que a gente ia viver lá? Quer dizer, eu como dentista, tudo bem, eu me formei lá. Mas ele teria que validar o diploma, as crianças teriam que se adaptar a uma nova escola, tudo diferente. Seria muito difícil. Então, não tenho vontade de voltar. Já me acostumei muito com a vida aqui.

Mariana: É engraçado porque ainda ontem eu estava falando com minha irmã no Brasil, e ela me disse: ‘Mas por que você trabalha tanto nisso? Podia estar viajando, fazendo outras coisas... Voltar para cá.’ (...) Mas eu penso. Aqui, agora, é o meu lugar.

Esse desejo de não querer retornar definitivamente não significa, necessariamente, um sentimento de abandono com relação ao Brasil (uma ruptura) e/ou um sentimento de “pertencimento cultural” aos Estados Unidos. Nenhuma delas disse “se sentir americana”. Além disso, é preciso considerar que algumas dessas imigrantes saíram do Brasil e passaram por outros países antes de se fixarem em Chicago, o que implica em outras identidades.

De maneira geral, essa vivência num país estrangeiro costuma se traduzir num sentimento de lealdade (‘allegiance’) para com o país de origem e, simultaneamente, em um sentimento de gratidão ao país de destino (por lhes dar condições de vida). Nesse sentido, ainda que haja o reconhecimento de que “aqui” é o lugar delas agora, o país de origem sempre será considerado “a casa” dessas imigrantes, oferecendo uma situação de intimidade, conforto e familiaridade, ainda que quando elas voltam não encontram o mesmo lugar e se sensibilizam com as mudanças.

Elsa: Eu tenho minha família aqui do samba, nessa escola, e eu tenho uma família musical. Família que eu adquiri pelo coração. Mas a minha família de sangue está lá [no Brasil]. A minha alma está lá. A minha cultura que eu trouxe para cá está lá. Para eu poder renovar a minha cultura aqui e me renovar também como pessoa, como espírito e tudo, eu preciso ir lá. Eu fico lá 30, 40 dias... Para voltar para cá mais forte, para passar o inverno rigoroso, enfrentar a saudades... Para enfrentar tudo isso.

Bárbara: Vamos uma vez por ano para o Brasil e minha mãe vem duas vezes por ano para cá. Lá, minhas filhas se sentem em casa. Elas falam português fluentes, não têm sotaque. Conhecem tudo de lá, comida, costumes, gibi da Turma da Mônica, tudo (...) Elas nasceram aqui, mas não tem como não falar que são brasileiras também. (...) É assim que a gente vê que é possível ter duas culturas interagindo e vivendo dentro da gente.

Vera: Eu volto, gosto, mas está tudo tão diferente, quando a gente conversa com eles... Hoje mesmo eu estava falando com minha mãe [via Skype], ela está no Brasil, na casa de uma tia e até ficou me mostrando a casa dela, eu disse: ‘Deixa eu ver a casa para ver se está igual’. E ela ficou me mostrando tudo. (risos). Mas, assim, não tem nada a ver de quando eu deixei. (...) Eu gosto de lá, gosto de ir visitar, mas não é mais a mesma coisa.

Consideramos este cenário bem ilustrativo de três perspectivas teóricas, em especial, muito utilizadas nos estudos migratórios, nos últimos 20 anos: o transnacionalismo, o estudo de gêneros e o interculturalismo.

Sobre a primeira, o transnacionalismo, Glick-Schiller, Basch e Blanc-Szanton07 7 GLICK-SCHILLER, Nina, BASCH, Linda, BLANC-SZANTON, Cristina. Transnationalism – A new analytic framework for understanding migration. sugerem que o deslocamento de pessoas não mais implica na imagem de permanente ruptura, de desenraizamento e abandono de suas origens em troca do aprendizado de uma nova cultura, um novo idioma etc. Pelo contrário, mostra que o sujeito deslocado estabelece relações entre mais de uma nação percebidas além de uma cultura, de um território e de uma língua. Nesse contexto, emerge um novo tipo de espaço, composto de redes, atividades e parceiros que envolvem as vidas desses imigrantes tanto no local de origem quanto no local de acolhida num único campo social. O conceito leva em consideração a flexibilidade de capital e trabalho, e enfatiza a urbanização ao expor os processos mediante os quais os imigrantes constroem relações sociais que conectam as sociedades de origem e destino para além das fronteiras nacionais.

Já os estudos de gênero revelam o papel da mulher, não só na decisão de migrar, mas, também, na de permanecer no país de acolhida e, consequentemente, seu papel na estrutura familiar, no contexto das transformações sociais do atual quadro civilizacional e organizacional marcado pela globalização econômica e cultural. O protagonismo dessas mulheres atravessa as relações complexas que incluem a desigualdade de gênero e, simultaneamente, a constituição do que Herrera08 8 HERRERA, Gioconda. Género y migración internacional en la experiencia latinoamericana. De la visibilización del campo a una presencia selectiva. classifica de “família transnacional”, ou seja, que mantêm vínculos materiais e emocionais entre seus membros, bem como os mecanismos de articulação da tomada de decisções sobre o futuro das famílias. Vale ressaltar que o conceito de “família transnacional” proposto pela autora enfatiza a natureza socialmente construída da família, sem negar a existência de relações de poder dentro e processos seletivos que diferentes agentes se comprometem a atuar dentro de suas redes.

Por fim, a perspectiva interculturalista representa um conjunto de políticas compensatórias acerca das identidades. De acordo com Canclini09 9 CANCLINI, Nestor G. Diferentes, Desiguais e Desconectados. , o reconhecimento do “outro” permite que as relações de contato e intercâmbio cultural que se tornam efetivas em diferentes grupos podem refazer-se, garantindo, assim, sua inclusão na lógica atual da globalização. A ideia sobre a interculturalidade do autor refere-se à mistura de indivíduos e sociedades – o que acontece quando as diferenças se encontram em situações de negociações e trocas recíprocas.

Novos rumos em uma nova vida

Uma vez estabelecidas em Chicago, ainda que consideremos o caráter de transitoriedade do imigrante – se não no espaço físico, no subjetivo, também, ou seja, não ser daqui nem de lá –, essas mulheres tomaram a iniciativa de promover e participar de expressividades, dramaticidades e festividades artísticas e culturais envolvendo o Brasil na cidade. Entre as motivações iniciais para esta participação figuram: um contato direto com a cultura de origem; a transmissão de tradições, costumes e hábitos brasileiros (especialmente para os filhos); uma “seção de terapia” ou de “suporte emocional” como forma de desviar as tensões cotidianas referentes à identidade diaspórica; e/ou uma via para socialização e construção de redes sociais no território estrangeiro (onde, até então, tudo é desconhecido). Nesse sentido, destacamos os trechos a seguir:

Tânia: No começo, era principalmente pela língua, eu não queria perder, desaprender o português. Mas agora, a razão que eu sou muito envolvida ainda é que é uma oportunidade ótima para encontrar pessoas com diversas bagagens culturais. (...) Para o brasileiro é muito fácil fazer amigos. (...) As pessoas aqui em Chicago também são amáveis, mas a cultura dos Estados Unidos é diferente, demora muito mais tempo para você fazer amigos.

Bárbara: Quando as minhas filhas nasceram, eu sempre tive o intuito muito grande de que elas mantivessem a cultura brasileira (...) A gente entrou em contato com uma escola de Português, para criar um curso de línguas para crianças brasileiras aqui em Chicago. Minhas filhas fizeram esse curso e foi ótimo.

Cecília: Uma vez, do nada, eu vi um cartaz de um workshop que estava tendo de dança brasileira, música afro-brasileira, de samba especificamente. E eu, que sempre gostei de dançar, disse: ‘Uau!’ Aquilo para mim foi uma válvula de escape porque eu tinha os meninos pequenos, era muito trabalho, eu era sozinha aqui.

Entendemos “identidade diaspórica” como um conceito resultante da mistura de características diversas da terra natal, de acolhida, e da experiência de vida do imigrante, constantemente se produzido, reproduzido e se transformando, em movimentos circulares localizados no interior das representações. Esse conceito é baseado na definição de identidade de Hall10 10 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. e Canclini11 11 CANCLINI, op. cit. . O primeiro autor entende que a identidade, que ele chama de “identidade cultural”, contextualizada na pós-modernidade, é fragmentada, provisória, por vezes contraditória, e compõe em um sistema de representação localizado em um espaço e um tempo simbólico. Já o segundo autor, acrescenta à identidade o termo "híbrido" para definir (a chamada “identidade híbrida”), especialmente no contexto da América Latina, o conceito de identidade sociocultural, construído a partir de trocas simbólicas entre tradicional e moderno, popular e erudito, massivo e individual.

Para Brinkerhoof12 12 BRINKERHOFF, Jennifer M. Digital diasporas – Identity and transnational Engagement. , os imigrantes mostram várias motivações para explicar porque se mobilizam em torno de uma identidade diaspórica e dirigem essa mobilização para a terra natal, a sociedade de acolhimento, ou ambos. Entre elas, estão: comportamento, capacitação e motivação psicológica dos indivíduos. Em outras palavras, o fato de essa mobilização servir: 1) como fonte de identidades defensivas que servem de refúgio e/ou reação a tendências sociais predominantes; 2) como práticas de ações solidárias e de generosidade que culminam, em última instância, num associativismo com reflexos em outros campos, além do cultural (político, econômico etc.); e 3) como formas de organização em torno de um conjunto específico de valores cujo significado e usos compartilhados são marcados por códigos específicos de autoidentificação e pertencimento.

E é justamente em torno dessa mobilização e participação, bem como na rotina que essas atividades impõem no cotidiano, que se estabelecem as redes sociais, ou seja, um laço que une imigrantes e não-imigrantes como uma rede complexa de papéis sociais complementares e relações interpessoais que são mantidas por um conjunto informal de expectativas mútuas e comportamentos prescritos13 13 MASSEY, Douglas S., ALARCON, Rafael, DURAND, Jorge, GONZALEZ, Humberto. The Social Organization of Migration. .

De acordo com Herrera14 14 HERRERA, Gioconda. Gender and International Migration: Contributions and Cross fertilizations. , a teoria das redes sociais foi significativamente revista quando a análise de gênero mostrou que essas redes não eram nem neutras, nem sempre organizadas mediante normas de solidariedade social. Pelo contrário, mostrou como elas podem ser altamente contestadas como recursos sociais. E é exatamente isso que essa pesquisa também indica, ao revelar que, na construção de uma rede social, essas mulheres brasileiras em Chicago conseguem vivenciar uma experiência de protagonismo, autonomia e empoderamento.

Num segundo momento, e a partir da passagem do tempo, da inserção do imigrante na sociedade de acolhida e do contato maior tanto com a manifestação artística em si, como com as pessoas envolvidas, essa motivação originária se transforma. No caso das brasileiras entrevistadas, ela ganhou tamanha intensidade, que não só resultou num reforço das propostas iniciais, mas numa ampliação de atitudes e posicionamentos ou, como vimos em alguns casos, numa atividade profissional (principal ou paralela) que passou, inclusive, a ditar outros aspectos da vida da mulher e de sua “família transnacional”: local de moradia, formação educacional (dela e dos filhos), modalidade de lazer, situação financeira etc.

Nota-se que a escolha em seguir por determinadas atividades – música, dança, idioma, gastronomia, eventos festivos etc. – está relacionada a preferências subjetivas, bem como a conhecimentos prévios e afinidades adquiridos ainda no país de origem e, na maioria das vezes, influenciados pela família. No entanto, o desenvolvimento, aperfeiçoamento e até profissionalismo, em alguns casos, ocorre no território de recepção.

Gabriela: O meu pai é músico. Mas, assim, no Brasil, eu tinha uma banda, na minha cidade, em Bauru [SP]. E a gente tocava em várias festas, bares, eventos. Isso foi na época que eu fazia faculdade lá. Mas aí eu vim para cá e parei. Perdi essa conexão nos primeiros anos. Mas eu sentia muita falta dessa expressão cultural, de expressar isso, porque isso sempre foi muito forte em mim. Então, por isso, que eu resolvi montar esse grupo aqui.

Elsa: Desde pequena eu quis ir para a escola de dança no Rio de Janeiro. Mas, digamos que, 50 anos atrás (risos), não tinha essa facilidade, até mesmo na educação da minha família, não tinha essa abertura de dizer assim: ‘Eu quero ser bailarina’ e os pais patrocinarem isso para a criança. Existia muito mais uma facilidade de você ir aprender piano, estudar na escola normal, se preparar para ser professora, e essa coisa... E minha família era uma família tradicional. Então, meus pais matricularam todos os filhos em aulas de música. Eu queria dançar, mas eu tive que ir aprender a tocar piano. (...) A dança eu desenvolvi aqui.

Se, por um lado, tanto o ato de migrar e de se estabelecer no país de acolhida, bem como a entrada nessas atividades artísticas e culturais que envolvem festividades brasileiras, são encarados por essas mulheres – nos discursos elaborados tempos depois – de uma maneira mítica, como uma “obra do destino”, ou “algo que, simplesmente, aconteceu”, por outro, todas reconhecem que são resultados de decisões tomadas, consciente e normalmente, a partir de uma situação de conflito, “de encruzilhadas”, ocasionadas pelo processo migratório como um todo.

Em outras palavras: essa aproximação com os aspectos culturais do país de origem no país de recepção ocorre muito mais no sentido de sobrevivência (material e/ou emocional), do que como algo pré-estabelecido, que foi pensado, planejado e/ou que a imigrante tenha se preparado para isso - ainda que já tenha tido contato prévio com tal atividade cultural e artística no Brasil.

Pioneirismo, liderança e ‘mente aberta’

O protagonismo e a mobilização dessas mulheres imigrantes em torno de algum aspecto da cultura brasileira e o grau de organização, sofisticação e expansão de suas redes sociais criadas a partir de então estão relacionados com o tipo de inserção na sociedade de acolhimento e com as oportunidades locais e estruturas que elas encontram15 15 BADA, Xóchitl. Mexican Hometown Associations in Chicagoacán – From Local to Transnational Civic Engagement; ESCUDERO, Camila. Imprensa imigrante & identidade: uma história de reconhecimento. . Em uma cidade grande e urbana como Chicago, temos fatores que contribuem para o desenvolvimento dessas atividades: a localização estratégica dos aeroportos internacionais, a boa qualidade do transporte público e o acesso fácil aos avanços tecnológicos, hoje, telefone, celulares e smartphones, Internet, Wi-FI etc.

É curioso notar que, apesar de fazerem parte de grupos variados, morarem em locais geograficamente distantes, terem diferentes níveis econômicos e estarem engajadas em eventos que, apesar de estarem sob o guarda-chuva das “manifestações artísticas e culturais brasileiras”, se distinguem por sua própria natureza, todas as dez mulheres que compõem o corpus deste trabalho se relacionam, se não intimamente, como amigas ou colegas, como “conhecidas”, isto é, são integrantes de uma mesma rede social criada a partir de uma identidade nacional comum e por meio de suas práticas culturais. Elas costumam frequentar os eventos (independentemente de ser: música, encontro gastronômico, de conversação, apresentação de dança etc.) como convidadas (integrando o público, em geral) ou até mesmo participando, ajudando na organização etc. Aliás, foi recorrente uma indicar outra para ser entrevistada nessa pesquisa.

Um exemplo prático foi quando o grupo de bateria de Cecília fez uma apresentação num espaço cultural de Chicago e convidou Elsa (cantora profissional, independente) para cantar MPB e samba; outra é a mostra de filmes brasileiros organizada por Mariana, que conta, anualmente, com a colaboração efetiva de Márcia, membro da Casa de Cultura Brasileira de Chicago. Esta, aliás, organizou uma Feijoada Brasileira, na qual Gabriela colaborou levando guaraná e couve mineira. Fernanda também integra a Casa de Cultura Brasileira, mas participa com Vera em projetos culturais da Igreja Adventista de Brasileiros em Chicago. E assim por diante.

Nesse processo de construção e manutenção dessa rede social, verifica-se que há quatro posicionamentos principais dessas mulheres: 1) a imigrante aparece como uma pioneira que abriu caminhos no país de acolhida; 2) destaca-se o caráter empreendedor das mulheres imigrantes verificado, nesses casos, não só por meio das entrevistas realizadas, mas também por seu engajamento, atitude e participação nas atividades festivas desenvolvidas; 3) a imigrante aparece como uma pessoa versátil, eclética, não só no sentido de lidar com uma nova cultura ou um novo território e toda sorte de adversidades, mas para conseguir alcançar seus objetivos, profissionais ou pessoais; e 4) a imigrante se descrever como uma pessoa de “mente aberta”, disposta a “enfrentar mudanças”, “sem preconceitos”.

Estes quatro pontos vão muito de acordo com o papel da mulher na sociedade contemporânea: profissional, mãe, esposa, dona de casa, tudo ao mesmo tempo. Assim, nos deparamos com mulheres engajadas, articuladas, conscientes de que têm um papel social a exercer, seja ele qual for, tanto no país de origem, como no de acolhida – papel este exercido por meio de suas atividades artística e cultural.

Destacamos que é preciso considerar que, nesse estudo, estamos trabalhando com mulheres com alto grau de instrução e que atuam com movimentos artísticos e culturais e, é sabido, que a arte e a cultura têm uma dimensão de despertar afetos, sensibilidades, percepções e novas formas de ver o mundo. Simultaneamente, porém, o processo de deslocamento parece atuar nesse sentido também, no momento em que a imigrante se vê tendo que enfrentar o desconhecido e estar aberta a novas possibilidades e experiências. São ilustrativos os trechos abaixo:

Helena: Eu adoraria participar mais, mas eu não tenho tempo. Porque eu tenho que ajudar meus meninos na escola... E como eles estudam em escola pública, sempre tem festas, reuniões e coisas. Então eu acho muito difícil me dedicar a tanta coisa. Eu trabalho em três lugares diferentes, então meu trabalho demanda muito de mim. Tem a minha casa, o meu marido... Então eu não tenho tempo para nada porque é muita coisa na minha cabeça, sabe?

Fernanda: Por muitos anos, todo fim de ano, a gente fazia uma campanha para arrecadar dinheiro e mandar para o Brasil, para um grupo que fazia cestas de Natal e comprava brinquedos para crianças lá do Brasil. (...) No ano passado nós fizemos uma campanha para um grupo de crianças daqui, que um membro do nosso grupo conhecia. Então a gente pegou o nome das crianças, cada pessoa do nosso grupo pegou um nome. E aí cada um montou uma caixa com coisas de crianças, com roupas, presentes... Então, no fim do ano, fizemos um encontro, numa tarde, e distribuímos os presentes. Foi ótimo. E eu fiz tudo isso.

Mariana: Eu acho que eu desenvolvi uma consciência social muito grande desde que cheguei aqui. Acho que é muito importante para nós, brasileiros, mostrar nossa cultura de uma maneira diferente daquele modelo estereotipado que todo mundo tem do Brasil. E nós temos tantas coisas boas!

Elsa: Eu sou artista, preciso ter uma mente aberta, não tenho preconceitos de nada. Mas eu não posso aceitar o fato de que o americano tem uma preocupação excessiva e às vezes desnecessária com certas coisas. Tudo quer processar, tudo não pode... Também não é assim, né?

Esse olhar, do sujeito diferente que está disposto a se aproximar, interagir etc. tem base nas ideias de Simmel16 16 SIMMEL, Georg. O Estrangeiro. , que discute a situação do imigrante (nomeado pelo autor como “estrangeiro”), não mais como “aquele que vem hoje e amanhã se vai, mas como o que vem hoje e amanhã pode permanecer”, ou seja, uma figura social distante que se torna próxima.

O estrangeiro, contudo, é também um elemento do grupo, não mais diferente que os outros e, ao mesmo tempo, distinto do que consideramos como o ‘inimigo interno’. É um elemento do qual a posição imanente e de membro compreendem, ao mesmo tempo, um exterior e um contrário17 17 Ibidem, p. 1. .

As várias maneiras de engajamento de imigrantes em espaços públicos ou privados sugerem que a construção de redes sociais serve como um importante veículo de integração na sociedade receptora. De acordo com Bada18 18 BADA, op. cit., p. 80. , elas acabam por proporcionar espaços amistosos para o exercício e reafirmação das identidades étnicas binacionais e lealdades nacionais, incluindo tradições, celebrações, religiosidade e solidariedade ainda que ocorram experiências de práticas de exclusão, desigualdade social e discriminação racial na mesma sociedade de acolhida.

O curioso aqui é que, num primeiro momento, mesmo reconhecendo que, por meio da produção de suas manifestações artísticas e culturais há a construção de uma rede social eficaz e presente, a atitude da maioria das entrevistadas foi de criticar a “falta de união” do brasileiro em geral que vive em Chicago. Tal fator, muitas vezes é atribuído, ao fato da imigração brasileira para a cidade ser recente e em menor quantidade (se comparada a outras nacionalidades, como os mexicanos, ou a outras localidades, como a Flórida, por exemplo)19 19 O Itamaraty estima que, em 2011, eram 1,3 milhão de brasileiros vivendo nos Estados Unidos; desses, 80 mil estavam localizados na região metropolitana de Chicago. Disponível em: http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/a-comunidade/estimativas-populacionais-das-comunidades/Brasileiros%20no%20Mundo%202011%20-%20Estimativas%20-%20Terceira%20Edicao%20-%20v2.pdf. Acesso em: 06.01.2016. e a questões geográficas da cidade.

Bárbara: Porque brasileiro não é como os poloneses que vêm para Chicago e que ficam numa região muito bem definida, como os gregos, como os italianos, como os chineses... O fato de a gente estar muito dissipado, tem muita gente em todos os subúrbios, Norte, Leste, cria realmente uma barreira geográfica. (...) Acho que a gente também tem que considerar que o brasileiro como cultura ele não tem a cultura de engajamento, né? Aquela coisa de que eu vou perder o meu tempo pessoal para fazer uma coisa para o grupo. Como a gente vê por aí em outros grupos. Isso no Brasil não existe.

Fernanda: O nosso sonho, na verdade é um sonho coletivo, é levar a nossa sede para o Norte de Chicago. Para poder alcançar mais brasileiros. Nós estamos num lugar bom, bem cômodo, mas em termos de localização não é bom porque não dá para alcançar brasileiros ali. É muito distante.

Cecília: Acho que a comunidade brasileira aqui em Chicago é um problema. Porque está tudo espalhado e acho que as pessoas não se falam.

Além disso, existe a heterogeneidade natural entre os membros de um único grupo, o que acaba gerando, nas relações cotidianas das redes sociais estabelecidas, conflitos e discussões, conforme os exemplos abaixo:

Helena: Eu gostava muito de ir e fiz boas amizades e tinham algumas pessoas com as quais eu me relacionava mais. Mas, apesar de todas serem mães e serem brasileiras, a diferença cultural e educacional era muito grande entre a gente. Então, quando você ia para essas atividades, você conversava com muitas mães, mas não se conectava... Conectava só com algumas. Eu não me conectava com 90% delas.

Márcia: É muito complicado. Eu que estou envolvida com non-profits desde que eu cheguei aqui, eu sei. As pessoas se empolgam muito, todo mundo tem ideia, todo mundo tem opinião, todo mundo tem crítica... Mas botar a mão na massa é outra história. Na hora de fazer é muito complicado.

Num segundo momento, porém, o associativismo, a solidariedade e a fraternidade aparecem. Todas as entrevistadas contaram sobre suas redes sociais no país de acolhida, destacaram a ajuda especial de determinados membros dessa rede para sua chegada e estabelecimento, ou descreveram trabalhos pelos quais não receberam nenhum tipo de remuneração financeira – realizados a partir de motivações próprias em ajudar o próximo ou realização e desejo pessoal, como visto em relatos anteriores.

Em todas essas atividades, a compreensão do conceito de cultura passa por um “bem de valor”, uma fonte de conhecimento e pertencimento e/ou uma forma de diversão, numa confirmação do uso do termo proposto por Hall20 20 HALL, Stuart. A questão multicultural, p. 44. : “a cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar”. Além disso, ainda que tal atividade seja um meio para se atingir fins práticos costuma ser vista como motivo de orgulho, prazer e sentimento de lealdade (‘allegiance’) para com o país de origem. Daí o fato de algumas destas imigrantes se considerarem “representantes da cultura brasileira”.

Elsa: O samba é uma coisa de botar você para cima. Isso é uma coisa que eu falo a todo momento na sala de aula. E de samba, eu entendo, sou representante! (risos).

Mariana: Às vezes têm filmes que mostram paisagens lindas, que nem eu conheço, apesar de já ter viajado muito pelo Brasil. (...) Minha ideia é que os filmes que a gente mostra façam as pessoas saírem do cinema com coisas para se pensar, no que elas podem evoluir e ajudar a melhorar nossa sociedade. E nós temos um papel fundamental neste processo.

Com relação aos eventos promovidos por essas imigrantes, destacamos que muitos deles não são voltados exclusivamente para brasileiros, mas para a sociedade local, no caso, os norte-americanos e os hispanos, apesar de haver exceções. Além disso, é comum imaginar, num primeiro momento, que todos os envolvidos nas organizações são brasileiros e mulheres. Engano. A maioria dos grupos tem, pelo menos, uma brasileira, mas está aberta e conta com a participação efetiva de outras pessoas. Tal cenário nos indica dois aspectos: 1) que, apesar de se tratar de uma rede social criada a partir de uma identidade nacional comum, tal elemento não é único; 2) que o conceito de alteridade de Lévinas21 21 LÉVINAS, Emmanuel. O humanismo do outro homem. , como um princípio da relação humana – baseado no respeito às diferenças para o reconhecimento do “Outro” para a existência de uma sociedade plural, fraterna e pacífica –, é possível. Os trechos a seguir revelam o convívio pleno e consciente entre duas ou mais culturas diferentes – ainda que, em determinados momentos, isso cause conflitos (internos ou externos) e exija uma constante negociação de identidades.

Tânia: Eu estimo que 20% do grupo são nativos, são do Brasil mesmo. Mas isso inclui pessoas que acabam de chegar, pessoas que estão em intercâmbio e pessoas que estão casadas com americanos, que já moram aqui há 20 anos. Então é muita variedade. O restante é de americanos ou outras nacionalidades que têm algum interesse no Brasil, tipo, conhecem o país porque já foram turistar lá, tem interesse em praticar o português, essas coisas.

Mariana: Sempre vai brasileiro na Mostra, mas não é a maioria. A maioria é americano que está interessado em alguma coisa do Brasil, já viajaram ao Brasil, de turismo, gostaram... E vem o público em geral, vem os estudantes, os professores. Escutam falar, se interessam e vem.

Fernanda: Nosso grupo é multicultural (risos). Nós temos membros de outros países. O primeiro que participou do nosso grupo era da República Tcheca. A namorada dele, na época, era mexicana e também participava. Temos peruano. Temos agora um brasileiro que é casado com uma hondurenha. Temos um casal venezuelano... De vez em quando aparece um chinês, que é esposo de uma brasileira, tem um coreano que também vem (...) É legal esse contato.

As TICs na manutenção das redes sociais: breve abordagem

A observação direta das manifestações artísticas e culturais promovidas por essas mulheres revelou ainda que cada evento tem uma dinâmica própria, uma espécie de ritual, e a cada edição (ou apresentação) é transformado, atualizado, modificado, incrementado, seja em que modalidade for: festa de Carnaval, show de Bossa Nova, festival de comidas típicas, entre outros. Mesmo que sejam aspectos já conhecidos, preza-se sempre por uma novidade na forma de apresentação. Daí a necessidade de “atualização” e “reciclagem” constantes.

No caso dessas imigrantes especificamente, todas ressaltaram o retorno periódico ao país de origem como possibilidade e fonte de reciclagem e aquisição de novos conhecimentos para, inclusive, ampliação de oportunidades no país de acolhida. Saber “o que está acontecendo” ou “o que tem de novo” em termos de música, cinema, dança, comidas típicas, ensino de idioma etc. para, posteriormente, tudo ser incorporado em suas festividades e encontros em geral.

Gabriela: Em 2014, eu percebi que faltavam livros didáticos aqui ou livros de literatura infantil em português para as famílias brasileiras que estão morando aqui e que vão ficar aqui. (...) Então, a gente conversou com o consulado, mandamos uma proposta, e ganhamos uma verba para comprar livros para essas crianças, para as bibliotecas daqui. (...) Então eu fui para o Brasil para escolher esses livros, fui comprar. Porque a gente não queria livros traduzidos, a gente queria livros originais do Brasil, queria Ana Maria Machado, Ruth Rocha... Então quando eu fui para o Brasil no meio do ano, eu voltei com as malas cheias de livros (risos).

Elsa: Eu vou para o Brasil todos os anos, para eu poder continuar participando do Carnaval e tudo. Então, eu vou no mês de janeiro e só volto depois do Carnaval. Nesse tempo que eu vou para o Brasil eu faço reciclagem. Eu vou para a aula, eu vou para os ensaios e aí eu sou a aluna e não a professora daqui. Porque eu sei que tenho que trazer material para cá. Aí eu procuro música, CDs, converso com coreógrafos, amigos e leio.

Tais necessidades de “atualização” e “reciclagem” constantes, de certa maneira, forçam as mulheres não só ampliarem sua rede social no país de acolhida, mas trabalharem para manutenção de uma rede social no país de origem também. Nesse processo, não só as citadas “visitas periódicas” à terra natal são relevantes, mas destaca-se também o papel das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs).

No início deste milênio, Manuel Castells22 22 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. A era da informação. relacionou a emergência das TICs com a formação da sociedade em rede, aqui, brevemente, uma nova forma de organização social possibilitada pelo surgimento de tecnologias de informação dentro de uma coincidência temporal, com uma necessidade de mudança econômica e social. Assim, como outros meios de comunicação, entre todos que surgiram ao longo do tempo, a Internet e também a comunicação sem fio, 3G e 4G – integrantes das TICs – estão mudando a maneira como nos comunicamos e, consequentemente, influindo em diferentes níveis de comportamentos local e global, em paralelo com a organização econômica e adequação social.

As redes sociais virtuais construídas por essas imigrantes contam com a presença dos membros de sua rede social presencial de Chicago, formada a partir de uma identidade nacional comum e práticas culturais, porém, costumam ser bem mais amplas, uma vez que integram sujeitos para além do espaço físico (familiares e amigos que estão no Brasil, em outros países, pessoas que conheceram exclusivamente pela Internet, por exemplo).

Nas páginas virtuais dessas mulheres, que podem ser mais de uma – já que é comum elas manterem páginas pessoais e também do grupo artístico e cultural que lideram e/ou participam – verifica-se uma intensa troca de mensagens coletivas e públicas, ou seja, não só entre elas, mas com todos os membros que compõem cada perfil, individualmente. Sobre o conteúdo dessas mensagens, há assuntos particulares (fotos de filhos, passeios em família, novidades pessoais, frases motivacionais), além da divulgação dos eventos culturais e artísticos que realizam.

Nesse sentido, foi recorrente, durante as entrevistas, essas mulheres reconhecerem a importância dessas redes sociais virtuais para trocar conhecimentos, ideias e informações e ampliar a rede social presencial. Todas enfatizaram que aplicativos de mensagens individuais (WhatsApp, Messanger, E-mail etc.) são utilizados entre aquelas que têm uma relação mais próxima e íntima.

Bárbara: As pessoas tomam conhecimento sobre nós pela Internet. Elas entram no nosso grupo [Yahoo Groups], enviam perguntas, elas querem participar... Todos os nossos eventos são combinados através da Internet, também no nosso grupo ou por e-mail entre os membros, e nós usamos mensagens por telefone também. No dia do evento está tudo pronto, tudo organizado online.

Fernanda: Temos um site e um Facebook também. Em nosso Facebook, nossos membros compartilham conteúdo, as pessoas falam, todos colocam fotos, enviam comentários e as pessoas tomam conhecimento sobre nós. Mas eu também tenho meu Face particular.

Tânia: Quando temos um evento, eu coloco informações no meu Facebook também, além da página do grupo, para fazer uma publicidade (risos), porque assim, mais pessoas podem ver ou compartilhar e a informação se espalha.

Considerações finais

Entre os principais resultados deste trabalho, destacamos que a rede social construída e mantida por imigrantes brasileiras em Chicago contribui para a composição identitária de seus membros e interação simbólica envolvendo as sociedades de origem e destino. De perspectiva transnacional e intercultural, a rede formada é fundamental para a socialização de aspectos da cultura brasileira que acabam por ganhar marcas presenciais na cidade, ainda que em processos de constantes e naturais resignificações, como a própria construção e evolução das identidades nacional e cultural.

Especificamente no caso das mulheres, tal cenário possibilita uma vivência de protagonismo, autonomia e empoderamento sociocultural em etapas avançadas de seus processos migratórios individuais. O engajamento de cada uma frente a seus grupos e a realização de um trabalho articulado em torno de variados aspectos da cultura brasileira as colocam em posição de reconhecido destaque e liderança, nas sociedades de origem e acolhida, na construção e desenvolvimento de processos estratégias e ações de fortalecimento identitário, seja social, seja subjetivo.

Por meio do trabalho que realiza, essa rede de mulheres ultrapassa a perspectiva presencial e real, se estruturando também no plano virtual, com o uso e apoio das TICs. Ela funciona como uma ferramenta instrumental de veiculação, transmissão e/ou representação de aspectos da cultura brasileira no exterior. Mais ainda: apresenta conotações de vinculação social, interação simbólica e produção subjetiva23 23 APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização; MARTÍN-BARBERO, Jesús. De los medios a las mediaciones: Comunicación, cultura hegemonía. que reflete, em última instância, o grau em que estas migrantes brasileiras plantaram suas raízes nos Estados Unidos e se estabeleceram na forma, nas condições e em propostas concretas da vida norte-americana.

  • 1
    Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
  • 2
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  • 3
    YIN, Robert K. Estudo de caso: planejamento e métodos.
  • 4
    DUARTE, Marcia Y. M. Estudo de caso.
  • 5
    Neste artigo, os nomes de todas as entrevistadas foram trocados para garantir privacidade.
  • 6
    GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana, p. 9.
  • 7
    GLICK-SCHILLER, Nina, BASCH, Linda, BLANC-SZANTON, Cristina. Transnationalism – A new analytic framework for understanding migration.
  • 8
    HERRERA, Gioconda. Género y migración internacional en la experiencia latinoamericana. De la visibilización del campo a una presencia selectiva.
  • 9
    CANCLINI, Nestor G. Diferentes, Desiguais e Desconectados.
  • 10
    HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
  • 11
    CANCLINI, op. cit.
  • 12
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  • 13
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  • 14
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  • 15
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  • 16
    SIMMEL, Georg. O Estrangeiro.
  • 17
    Ibidem, p. 1.
  • 18
    BADA, op. cit., p. 80.
  • 19
    O Itamaraty estima que, em 2011, eram 1,3 milhão de brasileiros vivendo nos Estados Unidos; desses, 80 mil estavam localizados na região metropolitana de Chicago. Disponível em: http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/a-comunidade/estimativas-populacionais-das-comunidades/Brasileiros%20no%20Mundo%202011%20-%20Estimativas%20-%20Terceira%20Edicao%20-%20v2.pdf. Acesso em: 06.01.2016.
  • 20
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  • 21
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2016
  • Aceito
    07 Nov 2016
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