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As pequenas ilhas e o país continental. Fluxos entre Cabo Verde e Brasil

The small islands and the continental country. Flows between Cape Verde and Brazil

Resumo

O artigo tem por objetivo contribuir para o mapeamento e as reflexões sobre as mobilidades de populações negras oriundas do continente africano para a América do Sul. Como é sabido, tais rotas se deram (e se dão) de maneira continuada, porém com especificidades, ritmos e características bastante diversos. A partir de dados sobre as mobilidades de cabo-verdianos para países sul-americanos , focando no caso do Brasil, pretendemos demonstrar como tal fluxo se insere em movimentos mais amplos da diáspora cabo-verdiana e se conecta com dinâmicas históricas do lado de lá e de cá do Atlântico, que acabam por moldar as estratégias, os ritmos e as características de tais fluxos ao longo do tempo. Nosso recorte temporal segue a dinâmica já mapeada por historiadores, ou seja, o século XX é nosso cenário a partir das vagas de fluxos de cabo-verdianos que nos trazem até os dias atuais, o que nos permite incorporar movimentos diversos e que não se restringem às migrações, apesar de se interconectarem com estas.

Palavras-chave:
migrações; Cabo Verde; Brasil; ciências sociais

Abstract

This article aims to contribute to mapping and reflecting on the mobility of black populations from the African continent to South America. As is known, such routes have been (and still are) continued over time, but with very different specificities, rhythms and characteristics. Based on data on the mobility of Cape Verdeans to South American countries, focusing on the case of Brazil, we intend to demonstrate how this flow is part of broader movements of the Cape Verdean diaspora and is connected to historical dynamics on both sides of the Atlantic, which have shaped the strategies, rhythms and characteristics of such flows over time. Our temporal frame follows the dynamics already mapped by historians, that is, the twentieth century is our scenario from the waves of Cape Verdean flows that bring us to the present day, which allows us to incorporate diverse movements and that are not restricted to migrations, despite being interconnected with these.

Keywords:
migrations; Cape Verde; Brazil; social sciences

Nossa intenção neste artigo é, sobretudo, contribuir para o mapeamento e as reflexões sobre as mobilidades de populações negras oriundas do continente africano para a América do Sul. Como é sabido, tais rotas se deram (e se dão) de maneira continuada no tempo, porém com especificidades, ritmos e características bastante diversos. Ora forçada ora espontânea, ora estimulada ora repelida, ora destino ora passagem, fato é que as mobilidades transoceânicas de pessoas oriundas do continente africano face a países do Sul das Américas são marcadas por uma escala temporal e uma diversidade tal - de ritmos, origens, estratégias, estilos - que justificam um olhar mais detido das ciências sociais sobre tais fluxos no sentido de: primeiro, compreender a diversidade de tais mobilidades não só no que diz respeito a origens e destinos, mas também às suas geografias e dinâmicas e; segundo, instituir uma agenda de pesquisa sobre as mobilidades que coloque em relevo os movimentos de populações negras, dando conta da sua multiplicidade geográfica, temporal e sociocultural.

Tal como pretendemos demonstrar ao longo deste artigo, deslocar o olhar para os fluxos em outras direções (que não face ao Norte) possibilita complexificar as reflexões sobre as dinâmicas de mobilidade contemporâneas, que não estão restritas à busca por ganhos econômicos ou uma dita modernidade vinculada ao mundo euro-americano. Tal como têm demonstrado estudos recentes (Bógus, 2018BÓGUS, Lucia; BAENINGER, Rosana; VEDOVATO, Luís Renato; FERNANDES, Duval, et al. (orgs.). Migrações Sul-Sul. Campinas: Núcleo de Estudos de Populações (NEPO/Unicamp), 2018.; Jarochinski-Silva, Baeninger, 2022JAROCHINSKI-SILVA, João Carlos; BAENINGER, Rosana. O êxodo venezuelano como fenômeno da migração Sul-Sul. REMHU, Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 29, p. 123-139, 2022.), tais fluxos podem estar associados a redes de pessoas, valores e bens que têm muitas direções, motivações e dinâmicas que alimentam relações que prescindem de uma triangulação com o Norte Global.

São com tais questões em mente que reuniremos aqui um conjunto de dados sobre as mobilidades de cabo-verdianos para países da América do Sul, focando no caso do Brasil. Como iremos demonstrar, tal fluxo se insere em movimentos mais amplos da diáspora cabo-verdiana para as Américas e se conecta de forma interessante com dinâmicas históricas do lado de lá e de cá do Atlântico que acabam por moldar as estratégias, os ritmos e as características de tais fluxos ao longo do tempo. Nosso recorte temporal segue a dinâmica já mapeada por historiadores, ou seja, o século XX é nosso cenário a partir das vagas de fluxos de cabo-verdianos que nos trazem até os dias atuais, o que nos permite incorporar movimentos diversos e que não se restringem às migrações, apesar de se interconectarem com estas.

Para além de trazer para o debate deste dossiê o exemplo das populações cabo-verdianas em direção a países da América do Sul, nossa reflexão compõe o interesse dos autores em pensar de forma mais aprofundada sobre as mobilidades de pessoas cabo-verdianas face a outras destinações que não as já tão estudadas diásporas cabo-verdianas para países da Europa e dos Estados Unidos. Os dados em que se baseiam nossa análise advêm de décadas de pesquisas no e sobre o arquipélago (Lobo, 2012LOBO, Andréa. A família em Cabo Verde: uma perspectiva antropológica. Revista de Estudos Cabo-Verdianos, Praia, v. 4, p. 99-114, 2012., 2014LAURENT, Pierre-Joseph; FURTADO, Cláudio; PLAIDEAU, Charlotte. L’Eglise Universelle du Royaume de Dieu du Cap-Vert. Croissance urbaine, pauvreté et mouvement néo-pentecôtistes. Bulletin de l’APAD, n. 29-30, p. 19-38, 2009., 2015LOBO, Andréa. A família em Cabo Verde: uma perspectiva antropológica. Revista de Estudos Cabo-Verdianos, Praia, v. 4, p. 99-114, 2012., 2022______. Tão longe e tão perto: famílias e “movimentos” na Ilha da Boa Vista de Cabo Verde. e-book. Brasília: ABA Publicações, 2014.; Furtado, 2017FURTADO, Claúdio. A desconstrução de Cabo Verde como um brasilin: um cabo-verdiano em terras brasileiras. Revista de Antropologia, v. 60, n. 3, p. 45-64, 2017.). Nossa base são fatos históricos articulados com bibliografia pertinente e experiências pessoais e profissionais com cabo-verdianos que vivem ou viveram no Brasil1 1 Cláudio Furtado é caboverdiano, sociólogo, tem trabalhado sobre o pensamento social cabo-verdiano e sua interface com os estudos africanos. Tem, nos últimos anos, trabalhado sobre as mobilidades de cabo-verdianos na Guiné-Bissau e também tem desenvolvido algumas reflexões sobre a mesma questão no contexto brasileiro. Andréa Lobo é brasileira, antropóloga, estudiosa da sociedade caboverdiana desde os anos 2000. Dedica-se a compreender as dinâmicas familiares locais em relação com os fluxos migratórios e comerciais de mulheres. Com base em suas próprias trajetórias de idas e vindas e de laços aprofundados com famílias caboverdianas cujos membros vivem e/ou viveram no Brasil, interessou-se por organizar dados coletados nesses anos de convivência no presente escrito. . O que propomos nesta escrita a quatro mãos é um compilar das mobilidades que unem os dois países, em tom ensaístico e inicial, com o objetivo maior de, a partir de uma escrita que se pretende linear, reconstruir as memórias e histórias dessas idas e vindas.

As migrações cabo-verdianas constituem um caso paradigmático e com vasta bibliografia acumulada nas ciências sociais (Carreira, 1977CARREIRA, António. Migrações nas ilhas de Cabo Verde. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1977.; Andrade, 1996ANDRADE, Elisa Silva. As ilhas de Cabo Verde: da descoberta à independência nacional (1460-1975). Paris: L’Harmattan, 1996.; Monteiro, 2009MONTEIRO, César Augusto. Músicos imigrantes cabo-verdianos na área metropolitana de Lisboa: perfis, trajectos e contactos transnacionais. CIES e-Working Paper, Lisboa, n. 72, p. 1-51, 2009.; Carling, 2001CARLING, Jorgen. Aspiration and ability in international migration: Cape Verdean experiences of mobility and immobility. Oslo: University of Oslo, 2001.; Akesson, 2004AKESSON, Lisa. To make a life: meanings of migration in the transnational homeland of Cape Verde. Tese de doutorado em Antropologia Social. University of Gothenburg, Gothenburg, 2004.; Fikes, 2007FIKES, Kesha. Emigration and the spatial production of difference from Cape Verde. Cultures of the Lusophone Black Atlantic. Nova Iorque: Palgrave Macmillan, 2007, p. 159-173.; Lobo, 2014______. Tão longe e tão perto: famílias e “movimentos” na Ilha da Boa Vista de Cabo Verde. e-book. Brasília: ABA Publicações, 2014.; Laurent, 2018LAURENT, Pierre-Joseph. Amours pragmatiques: familles, migrations et sexualité au Cap-Vert aujourd’hui. Paris: Karthala, 2018.; Defreyne, 2016DEFREYNE, Elisabeth. Au rythme des tambor: ethnographie des mobilités des “gens de Santo Antão” (Cap-Vert, Belgique, Luxembourg). Thèse de Doctorate en Sciences Politiques et Sociales: Anthropologie. Université Catholique de Louvain, Louvain, 2016.; Fortes, 2016FORTES, Celeste. “Regressar é regredir”: estudantes cabo-verdianas em Lisboa e discursos sobre os projectos de retorno a Cabo Verde. In: ÉVORA, Iolanda (org.). Diáspora cabo-verdiana. Lisboa: CEsA - Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina, 2016, p. 88-105.; Évora, 2016ÉVORA, Iolanda (org.). Diáspora cabo-verdiana. Lisboa: CEsA - Centro de Estudos sobre África, Ásia e América Latina, 2016., dentre outros/as). Cabo Verde é correntemente conhecido como um pequeno estado insular que tem sua gente espalhada pelos quatro cantos do mundo. Sua emigração é cantada em verso e prosa, é componente estrutural e estruturante desta sociedade que se constitui no e pelo movimento que funda a modernidade a partir de seu mal de origem colonial, o tráfico de pessoas negras pelo Atlântico. Porém, se há cabo-verdianos nos quatro cantos deste vasto mundo, o interesse das ciências sociais tem se voltado e privilegiado algumas direções, nomeadamente a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América. Pensamos que já passa o momento de voltarmos o olhar para os continuados fluxos entre Cabo Verde e localidades do Sul global. Pensar essas relações com o Brasil e os fluxos que daí se atualizam faz parte deste movimento, o que nos dará a oportunidade de contribuir com o debate sobre os desafios teórico-metodológicos que deem conta dos fluxos de pessoas em outras direções, pois certamente as teorias que são acionadas para pensar os movimentos Sul-Norte não darão conta - e se o dão, isso ocorre apenas de forma parcial - dos movimentos Sul-Sul.

Antes de adentrar na temática que aqui propomos, falemos um pouco de Cabo Verde a partir de seu processo de formação. O arquipélago de Cabo Verde é formado por dez ilhas com topografia, solo e clima diferenciados. Foi povoado originalmente por portugueses e, majoritariamente, por uma grande quantidade de africanos da costa adjacente que haviam sido levados para lá em situação de servidão. Com o tempo, foi se desenvolvendo uma sociedade crioula, produto de um complexo arranjo de misturas entre pessoas de origens étnicas, religiosas e linguísticas diferenciadas. O papel do país como intermediário num sistema de trocas intersocietárias foi a base de sua reprodução social; como agentes no comércio atlântico e com a costa da África. Na falta de um sistema produtivo local suficientemente robusto e diversificado que desse conta das necessidades de subsistência dos ilhéus, Cabo Verde foi duramente marcado pelas fomes provocadas por secas que, regularmente, assolam as ilhas.

Uma vez que a historiografia aponta a chegada dos portugueses em 1460, o arquipélago de Cabo Verde teria sido encontrado desabitado. Em um primeiro momento, a posição geográfica das ilhas, isto é, a distância que as separava do reino, foi apresentada como um fator negativo, um entrave nas tentativas de colonização. A sua posição geográfica não era estratégica pelo fato de elas estarem situadas demasiado ao Sul do mundo até então conhecido pelos portugueses. Outro ponto negativo seria a sua localização numa zona quente e seca, não podendo proporcionar o cultivo de produtos mediterrâneos como o trigo, a cevada, a azeitona, entre outros.

Até 1466, a ilha de Santiago, como as demais, encontrava-se escassamente habitada. Porém, foi nesse ano que tal quadro começou a mudar, mediante a apresentação de um documento (carta régia ou carta de privilégios publicada a mando do rei D. Afonso V de Portugal) que dava permissão, aos fixados em Santiago, de comercializarem com as sociedades ribeirinhas do continente africano e com a Europa. A prática desse comércio era considerada ilícita, senão mediante expressa autorização régia. Portanto, o referido documento constituía um trunfo para os povoadores de Santiago, ou seja, estar em Santiago representava aquisição do direito do exercício do comércio euro-africano. Esta prerrogativa jurídica vai tornar a ilha um lugar atrativo e um polo de imigração, reclassificando seu valor estratégico, embora uma nova carta régia, esta de 1672, viesse limitar os dispositivos constantes da primeira.

Além disso, a montagem de uma boa infraestrutura em Santiago fez da ilha uma importante fornecedora de água potável, mantimentos e alimentos, frutos, carne salgada, tartaruga, permitindo que os navios pudessem ali se abastecer e efetivar longas e morosas viagens para o Sul da África. Cabe lembrar que, durante vários anos, não houve na costa africana outro ponto seguro de reabastecimento da navegação. Foi, portanto, a criação dessas instalações e a fixação de europeus, apoiados na mão de obra escravizada, que permitiu o ingresso do arquipélago nas correntes de comércio mundial no findar do século XV.

No mesmo período, a economia começou a se diversificar para além do tráfico de escravizados para o Sul da Espanha, Algarve, Ilha da Madeira, Antilhas e Américas e da exportação de urzela para a França, Itália e Inglaterra. Iniciou-se também o cultivo da cana-de-açúcar para a fabricação de aguardente destinada ao comércio na costa africana, e de algum açúcar mascavo para o consumo local e exportação. No começo do século XVI, vemos crescer a figura dos lançados (reinóis - cristãos, judeus e cristãos-novos - e mestiços que se instalaram nos portos africanos, comercializando sem licença régia e considerados perdidos para a cristandade e para a civilização europeia), que tomaram conta do comércio costeiro, entre os rios Senegal e o Norte da Serra Leoa atual.

A diferença entre esses e outros agentes que comercializavam anteriormente advém da diminuição daquela inicial liberdade de ação comercial por parte do governo português com relação aos moradores de Santiago, sendo estabelecido um conjunto de medidas que acarretava graves prejuízos para estes. Neste contexto, o papel central das ilhas tende a diminuir, iniciando-se um período de decadência no comércio local e o consequente abandono relativo por parte da metrópole. Aos moradores de Santiago, para sobreviverem, não restava alternativa que não fosse a de desobedecer às determinações régias em tudo quanto dissesse respeito às leis do comércio e cair no contrabando e na informalidade.

O que esse breve sobrevoo histórico vem mostrar é que, após a chegada dos portugueses e aparente desinteresse de Portugal diante das ilhas, Cabo Verde cresce em importância graças à sua localização e adquire o status de rota comercial. Esta condição possibilitou seu processo de povoamento e sua relação com outros contextos (o que teve influência no histórico das emigrações que, atualmente, tão bem caracterizam essa sociedade). Cabo Verde, portanto, nasce e se fortalece como rota comercial (em larga medida informal), sendo animado por migrantes, comerciantes e objetos em fluxo.

Traçando os fluxos migratórios: momentos e estratégias

Os estudos que reconstroem os fluxos entre Cabo Verde e países da América do Sul permitem-nos mapear os momentos e algumas características dessas rotas. Comecemos com António Carreira, que identifica que esses movimentos migratórios têm a sua origem no início do século XX. Carreira (1977CARREIRA, António. Migrações nas ilhas de Cabo Verde. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1977.) afirma que os cabo-verdianos chegaram à América do Sul (Argentina, Brasil, Chile, Uruguai e Venezuela) no ano de 1903. Conforme dados apresentados pelo autor, no período de 1900 a 1973 teriam saído pouco mais de 3.000 cabo-verdianos em direção à América do Sul.

É interessante observar que os diversos fluxos migratórios ligavam cidades-porto. Da cidade do Mindelo na ilha de São Vicente, cujo Porto Grande teve em alguns momentos um papel importante na ligação entre o Atlântico Sul e Atlântico Norte (Correia e Silva, 2000CORREIA E SILVA, António Leão. Nos tempos do Porto Grande do Mindelo. Lisboa: CNCDP, 1998.), às cidades-porto sul-americanas.

Recuperando a bibliografia relacionada ao fluxo sobre o qual aqui nos debruçamos, a mobilidade de cabo-verdianos para a Argentina talvez tenha sido aquela que foi objeto de pesquisas de mais fôlego (Maffia, 2000______. La inmigración caboverdeana hacia la Argentina: análisis de una alternativa. Trabalhos de Antropología e Etnología, v. 25, p. 191-207, 2000., 2004______. La emergencia de una identidad diaspórica entre los caboverdeanos de Argentina. Global Migration Perspectives, n. 13, p. 1-21, 2004., 2007MAFFIA, Marta. El mar también era mi camino. Migración, parentesco y familia entre los caboverdeanos de Argentina. Tesis de Doctorado en Ciencias Naturales. Universidade Nacional de La Plata, La Plata, 2007.; Correa, 2000CORREA, Natalia Otero. Afroargentinos y caboverdeanos. Las luchas identitarias contra la invisibilidad de la negritud en la Argentina. Tesis de Maestría en Antropología Social. Universidad Nacional de Misiones, Misiones, 2000.; Maffia, Ceirano, 2007MAFFIA, Marta; CEIRANO, Virginia. Estrategias políticas y de reconocimiento en la comunidad caboverdeana de Argentina. Contra Relatos desde el Sur. Apuntes sobre África y Medio Oriente, v. 3, n. 4, p. 81-107, 2007.). Conforme tais autoras, na Argentina, a imigração cabo-verdiana pode ser rastreada até o final do século XIX, ganhando relevância a partir dos anos 19202 2 Os vapores das carreiras da América do Sul, África, Oriente e Estados Unidos passaram a fazer escala no porto de São Vicente, onde, desde 1850, haviam se instalado os depósitos de carvão para abastecimento da navegação que, com frequência, ali passava. No entanto, nenhuma (ou pouca) influência exerceu a navegação a vapor na evolução das correntes migratórias de Cabo Verde. . Os outros períodos de maior afluência foram entre 1927 e 1933, e o terceiro depois de 1946, ondas essas que podem ser relacionadas a duas grandes fomes que marcam a história do arquipélago, bem como ao refluxo da migração de cabo-verdianos para os Estados Unidos da América em função das restrições colocadas pela administração norte-americana, diminuindo de intensidade por volta da década de 1960, um período que coincide com o aumento do fluxo de cabo-verdianos para Portugal e outros países europeus, tais como França, Itália, Holanda e Bélgica (Maffia, 2007MAFFIA, Marta. El mar también era mi camino. Migración, parentesco y familia entre los caboverdeanos de Argentina. Tesis de Doctorado en Ciencias Naturales. Universidade Nacional de La Plata, La Plata, 2007.). Entre os anos 1970 e 1980, há registros da entrada de alguns grupos familiares e indivíduos que não eram numericamente significativos. Os cabo-verdianos que migraram para a Argentina o fizeram com nacionalidade portuguesa; a grande maioria são agora argentinos naturalizados que, após a independência de Cabo Verde em 1975, solicitaram nova documentação cabo-verdiana (Maffia, 2000______. La inmigración caboverdeana hacia la Argentina: análisis de una alternativa. Trabalhos de Antropología e Etnología, v. 25, p. 191-207, 2000.).

Com relação ao Brasil, em um estudo sobre cabo-verdianos no Rio de Janeiro, Alves (2015)ALVES, Maria de Fátima C. Memórias, identidades e representações sociais dos Caboverdianos no Rio de Janeiro. In: NATÁRIO, Celeste; BEZERRA, Cícero; CARLOS, Elter; EPIFÂNIO, Renato (orgs.). Errâncias de um imaginário: entre Brasil, Cabo Verde e Portugal. Porto: Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2015, p. 321-336. remete a dados oficiais para afirmar que há registros de entrada de cabo-verdianos na década de 19203 3 Não vamos nos aprofundar em uma análise histórica das relações entre Brasil e Cabo Verde no contexto colonial, mas cabe mencionar o estudo de Daniel Pereira (2011) sobre as relações entre Brasil e Cabo Verde, quando se refere ao comércio triangular de mercadorias, tendo Cabo Verde e Brasil posição de destaque enquanto laboratórios na fabricação de produtos e animais a serem enviados às restantes colônias portuguesas. . Esses registros são confirmados por Carreira (1977CARREIRA, António. Migrações nas ilhas de Cabo Verde. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1977.), quando afirma que, em 1927, o cônsul de Portugal em Pernambuco teria enviado um comunicado ao governador de Cabo Verde informando-lhe da chegada de quinze cabo-verdianos àquele Estado. Estes teriam desembarcado de um navio brasileiro que mantinha rota frequente com o arquipélago africano. No referido documento, o cônsul recomendou ao governador que esses imigrantes escolhessem como destino os Estados do Rio de Janeiro e Bahia, uma vez que, em Pernambuco, não havia “facilidade de trabalho”.

A literatura mapeia que se a imigração de cabo-verdianos para o Brasil teve a sua origem no início do século passado, seu auge ocorreu entre 1952 e 1973 (Bento, 2005ANDRADE, Elisa Silva. As ilhas de Cabo Verde: da descoberta à independência nacional (1460-1975). Paris: L’Harmattan, 1996.; Hirsch, Giacomini, 2007HIRSCH, Olivia Nogueira; GIACOMINI, Sonia Maria. “Hoje eu me sinto africana”: processos de construção de identidades em um grupo de estudantes cabo-verdianos no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.). Esse foi o período em que houve uma migração em massa de portugueses para o Brasil, e os cabo-verdianos que fixaram residência entre 1950 e 1970 teriam chegado ao Brasil como portugueses da província de Cabo Verde (então colônia portuguesa). O fato de esses cabo-verdianos adentrarem no país com nacionalidade portuguesa justifica, de certo modo, a dificuldade em obter os dados precisos sobre os imigrantes cabo-verdianos no Brasil. Os interlocutores de Bento (2009______. Memória, espaço e identidade: a experiência de imigrantes caboverdianos no Rio de Janeiro (1950-1973). Tese de Doutorado em Memória Social. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.), cabo-verdianos assentados no Rio de Janeiro, vão apontar as facilidades de sua entrada no Brasil até as vésperas da independência nacional, em 1975. Segundo eles, naquela época, quem era do Cabo Verde Colônia tinha facilidade de entrar no Brasil sem carta de chamada, pois o Brasil não a exigia para o caso de cabo-verdianos portugueses (Bento, 2009______. Memória, espaço e identidade: a experiência de imigrantes caboverdianos no Rio de Janeiro (1950-1973). Tese de Doutorado em Memória Social. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009., p. 93).

É interessante cruzar essa entrada de cabo-verdianos na qualidade de cidadãos portugueses com os aspectos que privilegiavam a imigração de determinadas classes de pessoas no Brasil desde o final do século XIX, o que não incluía os africanos. A antropóloga Giralda Seyferth dedicou parte de sua carreira a pesquisar sobre as políticas migratórias e as questões nacional e racial no Brasil, portanto, é ela quem nos fornece a possibilidade de entrelaçar as dinâmicas dos dois lados do Atlântico e a janela de oportunidades utilizada por pessoas cabo-verdianas em suas trajetórias de mobilidade.

Seyferth argumenta que o pressuposto da superioridade branca esteve nas bases das políticas imigratórias do Brasil desde meados do século XIX, enquanto justificativa de um modelo de povoamento que tinha como foco o incentivo às pequenas propriedades e a recepção de imigrantes europeus. Ao analisar as legislações que vigoram a partir de 1850 até o início do século XX, a autora demonstra como as regras de admissão de estrangeiros estavam pautadas pelo imaginário de um imigrante ideal, portanto merecedor de subsídios, e esse era: agricultor, branco, europeu4 4 “O privilegiamento da Europa, imaginado 'celeiro de imigrantes' no Império e na República, não significou uma abertura irrestrita a essa imigração: na legislação são especificados os indesejáveis (incluindo os brancos) – desordeiros, criminosos, mendigos, vagabundos, portadores de doenças contagiosas, profissionais ilícitos, dementes, inválidos, velhos, etc., constantes, por exemplo, do Decreto 9.081, de 1911, que regulamentou o Serviço de Povoamento (e nos decretos que o antecederam). Ciganos, ativistas políticos, apátridas, refugiados, também figuraram em muitas listagens de indesejáveis (especialmente depois da I Guerra Mundial). Restrições explicitamente racistas, porém, foram menos comuns, aparecendo, de forma clara, no Decreto nº 528, de 1890, que dificultou a entrada de 'indígenas da Ásia ou da África', dispositivo que desapareceu na nova regulamentação da imigração, constante do decreto que criou a Diretoria Geral de Povoamento em 1907, pouco antes de iniciar-se a imigração japonesa” (Seyferth, 1996, p. 15). e que migra com a família. Ressalta-se que os princípios das políticas de atração de imigrantes para áreas destinadas aos “colonos” europeus se deram em um período de ampla discussão sobre as ações necessárias para transformar o Brasil em um país de imigração, o que significava, distante do escravismo (Seyferth, 1991______. Os paradoxos da miscigenação. Estudos Afro-Asiáticos, n. 20, p. 165-185, 1991.). É ainda digno de nota que nas legislações raramente existem referências raciais, “estando elas subsumidas no substantivo imigração, cujo significado genérico remete a europeu” (Seyferth, 1996SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, p. 41-58., p. 15).

Caminhando para o período do Estado Novo, encontramos uma legislação que reflete pressupostos eugênicos ao restringir a entrada de doentes, aleijados etc., para além dos critérios raciais, como no caso dos ciganos. O Decreto-Lei nº 406 (04/05/1938), em seu artigo 2º, reserva ao governo federal o “direito de limitar a entrada de indivíduos de determinadas raças ou origens”. Como afirma Seyferth,

não há especificação sobre os indesejáveis (com exceção dos ciganos) mas é preciso ter em vista o fato de que vários membros do Conselho de Imigração e Colonização exprimiram sua crença no mito do branqueamento, sob o eufemismo da “formação nacional”, e suas restrições a imigrantes não brancos, nas páginas da Revista de Imigração e Colonização. (Seyferth, 1996SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, p. 41-58., p. 38)

Os estudos de Seyferth fornecem-nos, ainda, o desenvolvimento da política imigratória a partir da década de 1930, período no qual não é possível dissociar a legislação restritiva sobre imigração das campanhas de nacionalização planejadas para impor a assimilação, cerceando as etnicidades e suas manifestações através da intervenção direta na organização comunitária e na cultura dos grupos imigrados.

O imigrante ideal, portanto, é um branco adjetivado, cabendo ao Estado o fomento da imigração europeia dentro dos parâmetros da eugenia, da conveniência política e das tendências à assimilação. Isso significa que, entre os brancos, são excluídos os doentes, portadores de deficiência física e mental, velhos, criminosos, gente de “conduta nociva”, etc.; além de refugiados, apátridas e as etnias “inassimiláveis”. Alemães, judeus e japoneses estavam incluídos entre os “avessos à assimilação” - uma clara recusa aos contingentes étnicos “irredutíveis”; portugueses e italianos e, eventualmente, espanhóis, satisfaziam os padrões da “evolução étnica brasileira” - [...] tinham suficiente “fusibilidade” para compor o melting pot. (Seyferth, 1996SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, p. 41-58., p. 45)

Dado o contexto da Segunda Guerra e das preocupações com tendências nazistas no seio dos imigrantes alemães no Sul do país - às quais o Estado brasileiro formalmente era contrário e pretendia debelar -, os discursos que permeavam as regras para a imigração a definiam cada vez mais nos termos de um processo de nacionalização. Ou seja, a política imigratória, vinculada à de povoamento do território, estava condicionada ao princípio da nacionalidade luso-brasileira, e as escolhas deveriam levar em conta as possibilidades da “fusão” - termo alternativo para caldeamento ou miscigenação.

Pareceu-nos interessante fornecer, ainda que de forma breve, os debates que permeavam a política imigratória no Brasil do início do século XX, primeiramente, porque este é o cenário de entrada destes cabo-verdianos. É provável que a reunião de alguns fatores tenha facilitado sua entrada e permanência em solo brasileiro, apesar de sua africanidade e cor da pele, quais sejam, o acionar da nacionalidade portuguesa, o caráter mestiço dessa população e uma capacidade de - para ficarmos com as expressões da época - se “fusionar” no seio da população brasileira, graças à língua e à não opção por se organizar em comunidades fechadas (os ditos “quistos étnicos” tão característicos dos colonos alemães e italianos do período anterior).

Se levarmos em consideração que se, em um dado momento, as ideias eugenistas importadas da Europa sobre raça, que viam na mestiçagem a degradação do homem e a decadência das civilizações, permearam os debates sobre imigração, a tese do branqueamento no Brasil sofreu questionamentos consistentes. E assim ganha força a elaboração do que viria a se tornar uma ideologia da democracia racial, baseada em uma imaginada harmonia e convivência entre as raças e a suposta ausência de preconceito racial, marcas até muito recentes de uma propagada “igualdade das três raças” no país continental. Tal tese pode ser melhor entendida como um “branqueamento à brasileira”, visto que a mestiçagem, concebida de forma positiva, produziria gradual e naturalmente uma população mais clara, à medida que pressupunham que negros e pardos tenderiam a procurar parceiros mais claros5 5 Leituras obrigatórias sobre os efeitos dessas teorias na conformação da violência racial e do racismo no Brasil são as obras de Lélia González (2020), Abdias Nascimento, 2020; Kabengele Munanga (1996, 2010), dentre outros/as. . Soma-se a tudo isso, não por acaso, um processo de incorporação de imigrantes europeus brancos como mão de obra considerada a mais apta e qualificada para a construção do Brasil.

Nesse sentido, parece-nos acertado pensar que os imigrantes cabo-verdianos, na verdade cidadãos portugueses de fato e com direitos à nacionalização brasileira, eram de alguma forma bem-vindos, uma vez que eram potencialmente incorporáveis. Bento, em uma análise sobre cabo-verdianos no Rio de Janeiro, lembra-nos que apesar de o Brasil ter proibido a entrada de africanos no território brasileiro após a abolição da escravatura, acabou por permitir a entrada de portugueses dos países adjacentes de Portugal. “Sendo assim, podemos dizer que a tese de branqueamento englobava também os cabo-verdianos, vistos no mesmo pano de fundo ‘mulato’ e propensos a casar com pessoas mais claras, o que satisfazia os ideais da nação brasileira” (Bento, 2009______. Memória, espaço e identidade: a experiência de imigrantes caboverdianos no Rio de Janeiro (1950-1973). Tese de Doutorado em Memória Social. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009., p. 56).

Inserindo o fluxo Cabo Verde-Brasil nos contextos das demais estratégias migratórias de cabo-verdianos, não podemos deixar de concordar com Laurent (2018LAURENT, Pierre-Joseph. Amours pragmatiques: familles, migrations et sexualité au Cap-Vert aujourd’hui. Paris: Karthala, 2018.) quando o autor se surpreende com a capacidade dos cabo-verdianos de se moldarem às legislações migratórias dos países de acolhimento e aos seus mercados de trabalho. Talvez o caso que trazemos aqui seja mais um exemplo das estratégias que fazem das migrações cabo-verdianas exemplos paradigmáticos das migrações contemporâneas, incluindo os fluxos para países do Sul como destino de passagem ou parada.

Brasil, sempre uma opção? Estudantes, comerciantes e os fluxos atuais

Algumas dimensões da fixação desses cabo-verdianos no Brasil merecem maiores estudos. Primeiro, eram imigrações direcionadas exclusivamente para cidades-porto e do Sudeste e Sul do Brasil, e a partir dessas com alguma irradiação para outras cidades e regiões. Eram sempre para Santos, Rio de Janeiro e Paranaguá, para, mais tarde, conhecer-se uma outra imigração para Itajaí, Santa Catarina. Como já referenciado, a imigração para o Brasil começa no final dos anos 1920, essencialmente no contexto da crise de 1929, que fez diminuir a imigração de cabo-verdianos para os Estados Unidos, por causa do “crash” da bolsa de Nova York. Então nos parece que nesse momento começa uma migração para o Rio de Janeiro, Santos e outras cidades, que é, novamente, retomada depois nos anos 1950 e 1960. Uma outra onda de migração viria ocorrer a partir da segunda metade dos anos 1970, constituída essencialmente por cabo-verdianos que viviam na costa africana. Com o processo de descolonização, muitos não voltam para Cabo Verde e nem para Portugal, deslocando-se para o Brasil, distribuindo-se entre São Paulo e Itajaí6 6 De forma relativamente marginal, encontramos caboverdianos que nos idos dos anos 1960 se exilam no Brasil. Eram nacionalistas cabo-verdianos que se opunham à dominação colonial portuguesa de Cabo Verde. Alguns deles estudaram e fixaram residência em Salvador (Bahia). Não se pode também esquecer a presença em Natal, Rio Grande do Norte, do escritor e romancista Luís Romano, autor do romance Famintos, colaborador da Revista Africa, do Centro de Estudos Africanos da USP. . São, na sua maioria, cabo-verdianos originários das ilhas do Barlavento, principalmente, e tem-se um núcleo interessante, que é o pessoal de Santo Antão, São Vicente e de São Nicolau, a mesma leva, aliás, que migra também para a Argentina, onde existem núcleos em Buenos Aires, Rosário etc.

Vale sublinhar também, nos finais dos anos 1960, um tipo específico de emigração direcionada para São Paulo, para as cidades de Santo André e Campinas. Trata-se de missionários da Igreja do Nazareno que, nessa altura, se expandia para o Brasil. Com efeito, como aponta Couto (2019COUTO, Vinicius. Breve história da Igreja do Nazareno: suas origens, heranças e chegada ao Brasil. Revista Caminhando, v. 24, n. 2, p. 217-237, 2019.), o primeiro missionário da Igreja do Nazareno foi o reverendo José Zito de Oliveira, originário da Ilha de Santo Antão que, inicialmente, pretendia deslocar-se à Argentina onde residia o seu irmão, mas acabou por instalar-se em São Paulo. Na senda desse missionário, suas famílias e outros missionários cabo-verdianos deslocaram-se para o Brasil, contribuindo com a expansão e a consolidação da Igreja do Nazareno.

Os fluxos migratórios de cabo-verdianos para o Brasil que tiveram, como mencionado, um relativo continuum até meados dos anos 1970 (sendo os migrantes, do ponto de vista de seu estatuto legal, portugueses, encontravam-se, por isso, subsumidos entre os lusos) conheceram uma nova leva que se inicia a partir de 1974 por duas razões. A primeira se prende aos fluxos migratórios de cidadãos portugueses, incluindo cabo-verdianos, residentes nas então colônias africanas de Portugal, principalmente de Angola, e que, na sequência da Revolução dos Cravos e dos processos de independência, tiveram que deixar rapidamente as colônias7 7 A Revolução dos Cravos é a denominação por que ficou conhecido o golpe militar de 25 de abril de 1974, que colocou fim ao Estado Novo Português, iniciando o processo de redemocratização da sociedade portuguesa e o arranque dos processos negociais formais que viriam a conduzir às independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. . Grande parte se dirigiu a Portugal, mas um grupo relativamente importante, eventualmente por relações familiares e comunitárias preexistentes, escolheu o Brasil para fixar residência.

É interessante observar que se os fluxos migratórios iniciais, isto é, os que recobrem 1920-1970, privilegiaram as cidades-porto do Sudeste do Brasil, a partir da metade dos anos 1970, diversificam-se para outras regiões do Brasil, embora ainda com maior concentração no Sudeste e Sul. O Nordeste brasileiro, fortemente presente nos contos, romances e poesias de escritores cabo-verdianos a partir dos anos 1930, apenas marginalmente constitui o destino final de cabo-verdianos. Ocasionalmente, encontramos registro de cabo-verdianos que migraram para estados do Nordeste, antes da independência. Na década de 1960, com o acirramento das lutas pelas independências e o agravamento da ação da polícia política portuguesa contra os nacionalistas africanos e democratas portugueses, alguns cabo-verdianos exilaram-se no Brasil anos antes da instalação do regime militar em 1964. Assim, encontramos o escritor Luis Romano, que fixa residência em Natal, Rio Grande do Norte, e Irineu Gomes e seu irmão José Gomes, que se instalaram em Salvador. O primeiro faria medicina na Universidade Federal da Bahia - UFBA, onde viria a lecionar durante algum tempo, e o segundo cursou arquitetura.

A segunda razão. Já depois das independências, no quadro de acordos e protocolos de cooperação, se inicia, de forma sistemática, a deslocação de estudantes para a frequência de cursos universitários no âmbito, num primeiro momento, do Programa de Estudante-Convênio Graduação (PEC-G) e, num segundo, do Programa de Estudante-Convênio Pós-Graduação (PEC- PG). Nesse processo, para além do estabelecimento de fluxos e refluxos permanentes, assiste-se também aos que fixam residência permanente no Brasil.

Estudantes cabo-verdianos

Tal como mapeado por Hernandes (2002), o acesso à educação formal foi um dos fatores de diferenciação do lugar de cabo-verdianos durante a colonização. Em um dado momento, o acesso ao Ensino Médio já era o suficiente para garantir cargos de prestígio dentro do sistema colonial. Um exemplo é o uso dos ilhéus como trabalhadores da coroa em Guiné-Bissau e outras colônias portuguesas no continente africano. Quanto aos jovens da elite intelectual, eles se dirigiam principalmente à metrópole, aos Estados Unidos ou à União Soviética. Assim, formavam-se no exterior e no regresso conseguiam cargos dentro do sistema colonial, fora ou dentro de seu país de origem. Portanto, deslocamentos para estudos não são recentes, até mesmo porque uma incipiente estrutura para formação em nível superior só se constitui, em Cabo Verde, nos finais da década de 1970.

Embora a educação em Cabo Verde tenha se constituído como uma marca nesse cenário colonial, a nação recém-independente carecia de profissionais em nível superior, o que acarretou uma série de acordos diplomáticos para que os jovens cabo-verdianos pudessem cursar graduações nos chamados “países amigos” que, em tais acordos, ofertavam inclusive bolsas de estudo. Segundo Duarte (2019DEFREYNE, Elisabeth. Au rythme des tambor: ethnographie des mobilités des “gens de Santo Antão” (Cap-Vert, Belgique, Luxembourg). Thèse de Doctorate en Sciences Politiques et Sociales: Anthropologie. Université Catholique de Louvain, Louvain, 2016.), no pós-independência, a primeira iniciativa em direção à criação do ensino superior foi voltada para a formação de professores, com ênfase nos cursos de licenciatura, devido ao déficit de professores que se manteve até o início dos anos 2000, não só do Ensino Básico, como também universitários.

O Brasil foi um dos que firmaram acordos com países em desenvolvimento, sobretudo com os Países de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), e alguns estudos se dedicam à compreensão dessas mobilidades (Hirsch, 2009HIRSCH, Olívia Nogueira. “A gente parece um camaleão”: (re) construções identitárias em um grupo de estudantes cabo-verdianos no Rio de Janeiro. Pro-Posições, v. 20, n. 1, p. 65-81, 2009.; Mungoi, 2006MUNGOI, Dulce Maria Domingos Chalé João. “O Mito Atlântico”: relatando experiências singulares de mobilidade dos estudantes africanos em Porto Alegre no jogo de reconstrução de suas identidades étnicas. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.; Subuhana, 2008SUBUHANA, Carlos. O estudante convênio: a experiência sociocultural de universitários da África Lusófona em São Paulo, Brasil. In: 26ª REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, Porto Seguro, Bahia, 2008.; Morais, 2012MORAIS, Sara Santos. Múltiplos regressos a um mundo cosmopolita: moçambicanos formados em universidades brasileiras e a construção de um sistema de prestígio em Maputo. Dissertação de Mestrado em Antropologia. Universidade de Brasília, Brasília, 2012.; Duarte, 2019DEFREYNE, Elisabeth. Au rythme des tambor: ethnographie des mobilités des “gens de Santo Antão” (Cap-Vert, Belgique, Luxembourg). Thèse de Doctorate en Sciences Politiques et Sociales: Anthropologie. Université Catholique de Louvain, Louvain, 2016.). Os convênios que disponibilizavam vagas para estudantes cabo-verdianos, que é o que aqui nos interessa, são denominados Programa Estudante-Convênio Graduação (PEC G) e Programa Estudante-Convênio Pós-graduação (PEC PG). O PEC G corresponde à principal via dentre acordos e cooperações no âmbito educacional para estudantes estrangeiros que optam por cursar o ensino superior no Brasil8 8 Duarte (2019) mapeia que antes da criação desse sistema, em 1961 Jânio Quadros teria criado o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos (IBEAA), que associava o Ministério das Relações Exteriores ao meio acadêmico, propiciando estudos e acompanhamento de eventos na África e na Ásia. Portanto, nesse período, surgiu a primeira iniciativa de estudo da cultura africana, além da oferta de vagas na graduação para africanos. As bolsas de estudo foram destinadas a países que já haviam alcançado a independência, como, por exemplo, Senegal, Nigéria e Gana. “Após Jânio, João Goulart tentou implementar um Centro de Estudos de Cultura Africana, que não teve a mesma relevância da iniciativa anterior, do IBEAA. A vinda dos estudantes em larga escala só aconteceu de fato após o convênio cultural na década de 1960, que posteriormente seria rebatizado como Programa Estudante Convênio Graduação” (Duarte, 2019, p. 54). .

Não cabe entrar aqui em detalhes dos dados de estudantes cabo-verdianos que acessaram o programa, pois tais informações podem ser encontradas com qualidade nos trabalhos supracitados. Vale somente mencionar que Cabo Verde ingressou no programa (PEC G) em 1977 e que, quando este foi incrementado pelo estado brasileiro, sobretudo nos governos Lula e Dilma, o número de estudantes cabo-verdianos (entre 2000 e 2017) era consideravelmente superior a quaisquer outro país africano, inclusive os de língua portuguesa.

Nesse período há um aumento da presença de estudantes cabo-verdianos, particularmente no Ceará e na Bahia. Segundo Duarte (2019DEFREYNE, Elisabeth. Au rythme des tambor: ethnographie des mobilités des “gens de Santo Antão” (Cap-Vert, Belgique, Luxembourg). Thèse de Doctorate en Sciences Politiques et Sociales: Anthropologie. Université Catholique de Louvain, Louvain, 2016.), a universidade brasileira que teria atraído a maior quantidade de estudantes cabo-verdianos, foi a Universidade Federal do Ceará (UFC). A procura por universidades no Nordeste é bem alta, associada aos baixos custos de manutenção na região, além da proximidade geográfica, considerando que o deslocamento podia ser realizado por voo direto em apenas 3 horas (falaremos disso no próximo tópico). Tal fluxo veio conhecer um incremento ainda mais significativo a partir da criação da Universidade Internacional de Integração da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) durante o segundo mandato do Presidente Luís Inácio Lula da Silva em meados dos anos 2000, mantendo-se uma tendência de crescimento até o presente momento.

O interessante dos fluxos de estudantes é que embora, em tese, sejam ou devessem ser temporários, isto é, teriam a duração dos cursos escolhidos, constata-se uma tendência crescente de - ao menos para uma parte relativamente importante - se alongarem no tempo. Com efeito, um número cada vez mais significativo de estudantes busca prosseguir seus estudos pós-graduados (mestrado e doutorado), numa cada vez maior mobilidade interna no Brasil. E outros transformam os vistos de estudante em vistos permanentes, sendo que outros ainda pleiteiam a nacionalidade brasileira, fixando definitivamente a residência. A expansão das Universidades e dos Institutos Federais e a demanda de docentes mediante abertura de concursos públicos, pelo menos até meados de 2018, fez com que muitos cabo-verdianos que tenham estudado ou não no Brasil pudessem ter tido oportunidade de ingressar na carreira do Magistério do Ensino Superior, alavancando e consolidando as comunidades cabo-verdianas no país.

Cabe ainda pontuar que, nas últimas décadas, as comunidades acadêmicas cabo-verdianas no Brasil, a par de um crescente número de especialistas brasileiros em Cabo Verde, têm feito aumentar as interfaces e os fluxos e refluxos entre os dois lados do Atlântico Negro (Gilroy, 1993GILROY, Paul. Black Atlantic. Modernity and Double-Consciousness. Cambridge: Harvard University Press, 1993.). Com efeito, se os primeiros fluxos (1920-1973; 1975-1990) tiveram períodos de importantes intermitências, a partir da década de 1990, as mobilidades estudantis, primeiro, e a dos empreendedores, em seguida, fizeram reavivar, de forma mais contínua, as ligações entre os dois países. Do lado brasileiro, não sendo embora o recorte de nossa reflexão, é neste mesmo período que o afluxo para Cabo-verde de missionários das igrejas neopentecostais se faz sentir de forma mais significativa e contínua (Laurent, 2008______. A Igreja Universal do Reino de Deus de Cabo Verde: crescimento urbano, pobreza e movimento neopentecostal. Revista de Estudos Cabo-Verdianos, n. 2, p. 31-54, 2008.; Laurent, Furtado, 2008LAURENT, Pierre Joseph; FURTADO, Cláudio. Le pentecôtisme brésilien au Cap-Vert. Croissance urbaine. L’Eglise Universelle du Royaume de Dieu. Archives des Sciences Sociales des Religions, n. 141, p. 113-131, 2008.; Laurent, Plaideau, 2009LAURENT, Pierre-Joseph; FURTADO, Cláudio; PLAIDEAU, Charlotte. L’Eglise Universelle du Royaume de Dieu du Cap-Vert. Croissance urbaine, pauvreté et mouvement néo-pentecôtistes. Bulletin de l’APAD, n. 29-30, p. 19-38, 2009.).

O Brasil como lugar de negócio

O Brasil tem sido um destino de compras pelo ao menos desde os anos 1990, sendo que São Paulo se destaca como o principal foco de atenção das mulheres comerciantes oriundas de Cabo Verde, mais especificamente, a rua 25 de Março, famosa por ser um dos “nós” do comércio popular global (Ribeiro, 2007RIBEIRO, Gustavo Lins. Other globalizations. Alter-native transnational process and agents. Série Antropológica, 389. Brasília: Editora da UnB, 2007.). Em pesquisa realizada com mulheres comerciantes da ilha de Santiago, Lobo conseguiu mapear algumas que dizem viajar para o Brasil com regularidade há mais de quarenta anos (Lobo, 2015______. Buying and selling between different worlds: the Rabidantes from Cape Verde. Journal Urbanities, v. 5, n. 1, p. 72-82, 2015.). Conforme tais relatos, podemos traçar algumas etapas desse fluxo, que obedeciam aos ritmos das conexões aéreas entre os dois países, ou seja, as viagens dependiam das companhias aéreas que faziam a ligação entre os países. De acordo com as entrevistadas de Lobo, houve o tempo dos voos da Aeroflot, uma companhia aérea russa que fazia a conexão entre Cabo Verde e Brasil via África do Sul. Houve também o período da Fly, voos charters e ocasionais que ligavam os dois países de forma direta, sem conexões. Por vezes, a única opção era a TAP, via Portugal. Era uma viagem relatada como cara e longa, passando por Lisboa e terminando em São Paulo. É certo que, por um lado, faziam suas compras em dois países em uma única viagem, porém, levavam menos produtos, e as viagens aconteciam com pouca frequência, uma ou duas vezes por ano.

Obedecendo tal lógica, um evento marca esta relação de forma significativa, pois altera suas proporções. Foi em 2001 que a relação entre os dois países mudou, tanto em intensidade quanto no local de destino de compra. Foi neste ano que a companhia aérea TACV (Transportes Aéreos de Cabo Verde), em parceria com a companhia aérea brasileira VARIG, iniciou um voo semanal que ligava diretamente os dois países em apenas três horas e meia de viagem. Originalmente, o voo conectava a ilha do Sal à cidade de Fortaleza, no estado brasileiro do Ceará. Posteriormente, a ligação era entre as cidades da Praia e Fortaleza, ampliada por um breve período para outras cidades do Nordeste brasileiro. Com a proximidade entre os dois países, os custos da viagem diminuíram (a passagem de ida e volta custava, em média, entre 300 e 500 dólares).

Para além da introdução da cidade de Fortaleza como destino de compra de produtos para a revenda posterior, os impactos do comércio entre os dois países são refletidos nos seguintes números: em 2003, estimou-se que as cabo-verdianas tenham comprado 400 toneladas de mercadorias produzidas no Brasil, o que equivale a um gasto de 5 milhões de dólares. Ainda segundo essas estimativas, em algumas semanas, desembarcavam no aeroporto de Fortaleza cerca de 150 comerciantes cabo-verdianas; e cada uma dessas mulheres retornava para Cabo Verde com um número aproximado de 15 malas e tendo gastado, in cash, cerca de 10.000 dólares.

Uma das reportagens publicadas em jornais e revistas do Ceará reflete a importância destas mulheres para a economia do Estado. O título da reportagem é “O Paraguai delas”, comparando a vinda dessas comerciantes a Fortaleza ao importante fluxo de brasileiros (os “sacoleiros”) que faziam compras no país vizinho para revenda nas feiras de diversas cidades brasileiras:

Acontece todas as sextas-feiras: cerca de 150 mulheres lotam a área de embarque produzindo uma cena de espantar. Rodeadas por bagagens de todos os tamanhos, elas provocam congestionamentos nunca vistos no aeroporto internacional de Fortaleza. Tal confusão é reflexo de um fenômeno recente protagonizado por sacoleiras vindas de Cabo Verde. Com a abertura de uma linha aérea direta da Ilha do Sal para a capital cearense, elas passaram a cruzar o Atlântico para comprar de tudo: calcinhas, biquínis, bijuterias, sandálias, vestidos e até eletrodomésticos de qualidade duvidosa para revender no maior camelódromo do arquipélago africano, batizado de Sucupira em homenagem à novela O Bem-Amado, já exibida por lá. (...) O esquema da viagem é pesado. Elas enfrentam uma maratona de até doze horas de compras visitando pelo menos dez lojas por dia. (...) A maioria das compras é feita em pequenas confecções de fundo de quintal da periferia de Fortaleza. As sacoleiras são conhecidas como rabidantes (traduzida como “revendedor”). As rabidantes costumam comprar de costureiras e artesãos que trabalham sem registro no Ceará. Sai mais barato. Em uma fábrica de calcinhas improvisada nos fundos de uma casa, a média de encomendas em uma semana é de 10.000 unidades. Não se tem nota fiscal, mas o pagamento é feito em dólar, na hora. Para driblarem a fiscalização da Receita Federal, as lojinhas conseguem notas com confecções maiores. Nenhuma sacoleira viaja sem comprovante por medo de ter toda a mercadoria apreendida na alfândega do aeroporto. (Revista Veja, 15/12/2004. Disponível em: http://veja.abril.com.br/151204/p_086.html)

O impacto do comércio fronteiriço realizado pelas rabidantes9 9 O termo crioulo rabidar significa “dar a volta”, “desenrascar-se”, sendo utilizado para indicar habilidade. O termo rabidante é atribuído àqueles que fazem negócios no espaço dos mercados em Cabo Verde, sendo o maior deles o mercado da Sucupira, situado na Cidade da Praia, a capital do país. Esse tipo de comércio é constituído principalmente por mulheres, as rabidantes. Estas vendedoras ambulantes foram objeto de estudo de Grassi (2003) cujo objetivo era compreender a função empresarial desenvolvida por elas e questionar seu lugar nos processos de mudança em curso no nível das relações entre atores sociais e instituições. Foi objetivo da autora, também, perceber como essa função influenciava o caminho do desenvolvimento cabo-verdiano e a sua inserção na economia global (2003, p. 29). Outros estudos se debruçaram sobre a situação dessas mulheres e sua prática comercial (ver Venancio, 2017). na produção local de Fortaleza é o principal foco desta e de diversas outras reportagens que refletem a importância desse comércio no período. É difícil estimar o número de confecções de fundo de quintal que surgiram no âmbito desse comércio transfronteiriço, entretanto, em visita a Fortaleza, Lobo (2015______. Buying and selling between different worlds: the Rabidantes from Cape Verde. Journal Urbanities, v. 5, n. 1, p. 72-82, 2015.) afirma ter tido a oportunidade de conhecer a periferia da cidade e observar uma quantidade considerável de pequenas empresas familiares, construídas nos fundos das casas e que trabalhavam na produção de roupas íntimas, biquínis e malhas em geral. Em conversa com tais produtores, a autora afirma que era comum que eles remetessem a origem de seus negócios ao início do comércio com as cabo-verdianas. Confirmando esse dado, observa-se que a maioria das confecções encontrada durante a pesquisa tinha como data de nascimento os anos de 2002, 2003 e 2004 (Lobo, 2015______. Buying and selling between different worlds: the Rabidantes from Cape Verde. Journal Urbanities, v. 5, n. 1, p. 72-82, 2015.).

Estes teriam sido os anos áureos do comércio entre os dois países e que trouxeram impactos também para o comércio dito formal. Conforme dados coletados em fontes do Sebrae-Ceará, a ponte-aérea Cabo Verde-Fortaleza movimentou, em 2005, a soma de 5 milhões de dólares, sendo que em 2002 os dados registram o valor de 140 mil dólares para as exportações do Ceará para o arquipélago. Vale salientar que estes são dados oficiais, ou seja, certamente não refletem o volume total do comércio das rabidantes. Além disso, revelam que, ao observar o potencial de compra de Cabo Verde, grandes e médios exportadores do dito mercado formal pegaram carona no comércio informal e intensificaram suas relações comerciais com o arquipélago.

A longa citação da reportagem apresenta outros pontos interessantes para a análise. Um deles é a tradução do termo rabidante para sacoleira. A conexão entre os dois termos reflete tanto a forma como essas mulheres eram percebidas pelos brasileiros quanto a importância de sua movimentação comercial para a cidade de Fortaleza, que passa a ser percebida como “o Paraguai delas”. Tal percepção não se dá por acaso. Ao classificá-las como sacoleiras, atribui-se a elas um conjunto de percepções que os brasileiros possuem dos sacoleiros, pessoas oriundas das camadas populares da sociedade brasileira que realizam comércio informal de produtos contrabandeados na fronteira entre Brasil e Paraguai e vendidos, também informalmente, em camelódromos no Brasil.

Lobo teve a oportunidade de acompanhar, com maiores detalhes, as percepções que os vendedores brasileiros tinham sobre estas mulheres em pesquisa de campo realizada em 2010. Conforme as descrições encontradas, as rabidantes eram caracterizadas como mulheres vindas de

algum lugar da África ou de qualquer outro país pobre e pequeno (alguns chegaram a confundir Cabo Verde com o Haiti ao tentarem explicar de onde elas vinham); são todas negras ou mulatas; falam um português diferente do português “brasileiro” e, quando conversam entre elas, falam uma língua “esquisita” que não se consegue entender; são consideradas firmes na negociação dos preços, ou seja, são profissionais na arte de barganhar (a categoria local para falar da barganha é de que elas “choram muito” para baixar os preços); em contrapartida, compram em grande quantidade e pagam in cash, muitas vezes em dólar. (Lobo, 2015______. Buying and selling between different worlds: the Rabidantes from Cape Verde. Journal Urbanities, v. 5, n. 1, p. 72-82, 2015., p. 78)

Vale notar as imagens veiculadas por esses comerciantes brasileiros. Se, por um lado, as mulheres personificam as percepções estereotipadas que os brasileiros possuem da África e dos africanos, lugar percebido como de extrema pobreza, por outro, elas têm um poder de compra nunca dantes visto em terras cearenses, a não ser pelos turistas europeus que frequentam os hotéis considerados bons da orla marítima da capital. Portanto, apesar de sua origem, na concepção dos brasileiros, as rabidantes eram oportunidades de bons negócios e, nesse sentido, clientes que deveriam ser bem tratadas e ter prioridade nas encomendas, dado o volume, a frequência e a forma de pagamento (in cash) que caracterizavam suas compras. Porém, eram consideradas difíceis de lidar na negociação dos preços.

Sabendo das tensões e oportunidades que permeavam essa relação, as cabo-verdianas, no processo de barganha, lançavam mão das concepções que os brasileiros possuíam delas para tirar vantagem. O fato de serem originárias de um país africano, pobre e pequeno aparecia, portanto, como justificativa para a demanda por um preço mais baixo. Além disso, a pretensa baixa qualidade dos produtos era um foco de tensão na discussão do preço. O fato de serem vendidos em feiras, serem oriundos de fábricas clandestinas e serem, portanto, fonte de riscos para as cabo-verdianas ao cruzar as fronteiras dos dois países, justificaria a demanda por preços mais baixos.

Dentre as cabo-verdianas que Lobo acompanhou em sua pesquisa em Fortaleza, D. Margarida tem uma trajetória interessante e que parece ilustrar bem o contexto desse comércio transfronteiriço (Lobo, 2015______. Buying and selling between different worlds: the Rabidantes from Cape Verde. Journal Urbanities, v. 5, n. 1, p. 72-82, 2015.). Em 2010 ela já tinha relações comerciais com o Brasil há mais de dez anos. Ia, no início, para São Paulo via Lisboa, viajando, na época, uma ou duas vezes por ano. Em 2001, quando começou o voo direto, passou a ir para Fortaleza e a comprar nas fábricas por meio dos corretores de moda. Com o tempo, passou a conhecer os melhores locais de compra, as melhores fábricas e o “jeito” do brasileiro, o que a deslocou da compra nas fábricas para a negociação nas feiras e, consequentemente, a uma menor dependência dos corretores de moda. Conforme seu relato, o brasileiro é muito “malandro” e, por esse motivo, as rabidantes já tiveram grandes prejuízos nas compras no Brasil, desde encomendas pagas com antecedência e nunca recebidas, passando por trocas de produtos de boa qualidade por outros de qualidade inferior, até mercadorias apreendidas por fiscais corruptos na fronteira.

Além disso, naquela altura já se iniciava uma dificuldade que viria a ser um dos fatores responsáveis para o declínio dessa rota comercial: a valorização do real face ao dólar, o que diminuía consideravelmente sua margem de lucro. Outro fator era a forte entrada dos chineses realizando comércio em Cabo Verde. As lojas de chineses oferecem produtos a baixíssimo preço e fazem concorrência direta com as rabidantes. Tais fatores geraram um forte impacto no comércio informal entre os dois países e, a partir de 2008, as notícias eram de diminuição do volume de mercadorias que cruzavam as fronteiras e do fechamento de um grande número das fábricas de fundo de quintal em Fortaleza.

Entre altos e baixos, inclusive de oscilação da moeda brasileira face ao dólar e ao euro, entre 2010 e 2013, durante sua pesquisa, Lobo observa que o número de mulheres comerciantes que continuavam a fazer as viagens havia de fato diminuído consideravelmente. Atualmente, após o trágico evento da pandemia de Covid-19, com início em março de 2020, a rota entre Cabo Verde e Brasil - que nos últimos anos vinha se fortalecendo graças a uma política de tornar a ilha do Sal um hub no trajeto entre a América do Sul e a Europa - encontra-se interrompida.

Um ponto interessante sobre esse fluxo comercial entre os dois países está em como ele se conecta com os movimentos migratórios e de estudantes, constituindo uma rede entrelaçada de apoio mútuo entre pessoas que são implicadas em recepcionar quem chega ou quem passa, fazer transitar mercadorias e recursos financeiros entre os países ou ser um porto seguro para os vindouros, sejam estudantes ou comerciantes. Em última instância, tais fluxos em rede se diversificam, se redimensionam e, assim, se retroalimentam.

Considerações finais

Estimulados pela proposta do Dossiê, nosso objetivo maior foi somar nossos conhecimentos e fornecer ao debate sobre as mobilidades de populações negras na América do Sul esse importante fluxo de cabo-verdianos para o Brasil. Se ele pode ser considerado pouco relevante em termos demográficos, além do fato de que em seus primórdios esteve subsumido na significativa migração portuguesa, esperamos ter demonstrado sua relevância histórica e sociológica e, sobretudo, sua continuidade e diversidade. Das antigas colônias portuguesas em África, Cabo Verde e Angola devem ser as únicas com fluxos históricos, econômicos, sociais e culturalmente mais significativos e permanentes com o Brasil. Desde os migrantes que aqui se estabeleceram, transitaram e/ou se integraram, aos estudantes e comerciantes que, com altos e baixos, fluxos e refluxos, para o Brasil se dirigem, os movimentos aqui narrados inserem o Brasil como lugar de passagem ou residência na conformação desta nação, que tem sua identidade associada à mobilidade como destino.

Do lado brasileiro, este é um fluxo pouco conhecido, não sendo levada em conta a vinda dessas populações em um cenário histórico, primeira metade do século XX, em que as políticas migratórias definiam como “bem-vindos” os imigrantes brancos europeus. Na verdade, os imigrantes cabo-verdianos não estavam entre os indesejáveis, pois formalmente nem cabo-verdianos eram. Lembremo-nos de que, para efeito das estatísticas demográficas, eram, pela lei, portugueses, o que possibilitava invisibilizar sua condição africana e, talvez, a fenotípica. É nesse sentido que a entrada de cabo-verdianos vem amplificar e complexificar esse debate, seja porque sugere, enquanto possibilidade de pesquisa, um alargamento dos estudos sobre a diáspora negra e africana no Brasil, seja também porque pode ajudar a tensionar o debate sobre a questão étnico-racial, igualmente problemática entre os dois países, que o diálogo tenso entre o brasileiro Gilberto Freyre e o cabo-verdiano Baltazar Lopes da Silva testemunham10 10 Para um acompanhamento mais sistemático do debate havido sobre esta questão, sugerimos a leitura de Buanga Fele (1955), Lopes (1956), Almada (1992) e Melo (2014). .

Sob a perspectiva dos estudos cabo-verdianos e suas migrações, pouca tinta tem sido gasta para reflexões sobre os fluxos para a América do Sul e os países da costa africana. Contudo, esse tema começa, nos últimos anos, a ganhar interesse por parte sobretudo de pesquisadores cabo-verdianos em um alargamento que começa a espraiar os espaços compartilhados pela língua portuguesa para, no caso africano, adentrar os países da CEDEAO (Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental). Pensamos que a organização dos dados que aqui realizamos tem o potencial de contribuir prospectivamente para um olhar ampliado sobre as dinâmicas migratórias a partir de Cabo Verde para múltiplas paragens, incorporando à bibliografia as dinâmicas relacionais que implicam ou são implicadas nessas mudanças direcionais. Além disso, em diálogo com os estudos das migrações Sul-Sul, entendemos que o caso de Cabo Verde nos permite reconhecer que é um equívoco afirmar que tais fluxos sejam uma marca do século XXI em decorrência das restrições impostas pelos países do Norte para a entrada e permanência de migrantes internacionais. A profundidade histórica que aqui exploramos, além de sua diversidade de formas e sua persistência no tempo nos apontam para a necessidade de aprofundar essa agenda de pesquisa, bem como de enfrentar os desafios teórico-metodológicos que a engendram.

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  • VENANCIO, Vinícius. “Compra li, vende aqui”: comércio transnacional e relações familiares em Mindelo - Cabo Verde. Monografia de Bacharelado em Antropologia Social. Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
  • 1
    Cláudio Furtado é caboverdiano, sociólogo, tem trabalhado sobre o pensamento social cabo-verdiano e sua interface com os estudos africanos. Tem, nos últimos anos, trabalhado sobre as mobilidades de cabo-verdianos na Guiné-Bissau e também tem desenvolvido algumas reflexões sobre a mesma questão no contexto brasileiro. Andréa Lobo é brasileira, antropóloga, estudiosa da sociedade caboverdiana desde os anos 2000. Dedica-se a compreender as dinâmicas familiares locais em relação com os fluxos migratórios e comerciais de mulheres. Com base em suas próprias trajetórias de idas e vindas e de laços aprofundados com famílias caboverdianas cujos membros vivem e/ou viveram no Brasil, interessou-se por organizar dados coletados nesses anos de convivência no presente escrito.
  • 2
    Os vapores das carreiras da América do Sul, África, Oriente e Estados Unidos passaram a fazer escala no porto de São Vicente, onde, desde 1850, haviam se instalado os depósitos de carvão para abastecimento da navegação que, com frequência, ali passava. No entanto, nenhuma (ou pouca) influência exerceu a navegação a vapor na evolução das correntes migratórias de Cabo Verde.
  • 3
    Não vamos nos aprofundar em uma análise histórica das relações entre Brasil e Cabo Verde no contexto colonial, mas cabe mencionar o estudo de Daniel Pereira (2011)PEREIRA, Daniel. Das relações históricas Cabo Verde-Brasil. Brasília: Fundação Alexandre Gusmão, 2011. sobre as relações entre Brasil e Cabo Verde, quando se refere ao comércio triangular de mercadorias, tendo Cabo Verde e Brasil posição de destaque enquanto laboratórios na fabricação de produtos e animais a serem enviados às restantes colônias portuguesas.
  • 4
    “O privilegiamento da Europa, imaginado 'celeiro de imigrantes' no Império e na República, não significou uma abertura irrestrita a essa imigração: na legislação são especificados os indesejáveis (incluindo os brancos) – desordeiros, criminosos, mendigos, vagabundos, portadores de doenças contagiosas, profissionais ilícitos, dementes, inválidos, velhos, etc., constantes, por exemplo, do Decreto 9.081, de 1911, que regulamentou o Serviço de Povoamento (e nos decretos que o antecederam). Ciganos, ativistas políticos, apátridas, refugiados, também figuraram em muitas listagens de indesejáveis (especialmente depois da I Guerra Mundial). Restrições explicitamente racistas, porém, foram menos comuns, aparecendo, de forma clara, no Decreto nº 528, de 1890, que dificultou a entrada de 'indígenas da Ásia ou da África', dispositivo que desapareceu na nova regulamentação da imigração, constante do decreto que criou a Diretoria Geral de Povoamento em 1907, pouco antes de iniciar-se a imigração japonesa” (Seyferth, 1996SEYFERTH, Giralda. Construindo a nação: hierarquias raciais e o papel do racismo na política de imigração e colonização. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo Ventura (orgs.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Editora da Fiocruz, Centro Cultural Banco do Brasil, 1996, p. 41-58., p. 15).
  • 5
    Leituras obrigatórias sobre os efeitos dessas teorias na conformação da violência racial e do racismo no Brasil são as obras de Lélia González (2020)GONZÁLEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Por um feminismo afrolatino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 75-93., Abdias Nascimento, 2020NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. São Paulo: Perspectiva, 2020.; Kabengele Munanga (1996MUNANGA, Kabengele. Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil. Resgate: Revista Interdisciplinar de Cultura, v. 5, n. 1, p. 17-24, 1996., 2010______. Teoria social e relações raciais no Brasil contemporâneo. Cadernos Penesb, v. 12, p. 169-203, 2010.), dentre outros/as.
  • 6
    De forma relativamente marginal, encontramos caboverdianos que nos idos dos anos 1960 se exilam no Brasil. Eram nacionalistas cabo-verdianos que se opunham à dominação colonial portuguesa de Cabo Verde. Alguns deles estudaram e fixaram residência em Salvador (Bahia). Não se pode também esquecer a presença em Natal, Rio Grande do Norte, do escritor e romancista Luís Romano, autor do romance Famintos, colaborador da Revista Africa, do Centro de Estudos Africanos da USP.
  • 7
    A Revolução dos Cravos é a denominação por que ficou conhecido o golpe militar de 25 de abril de 1974, que colocou fim ao Estado Novo Português, iniciando o processo de redemocratização da sociedade portuguesa e o arranque dos processos negociais formais que viriam a conduzir às independências de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe.
  • 8
    Duarte (2019)DUARTE, Andressa. A gente nasceu para imigração: narrativas de estudantes cabo-verdianas no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Sociologia. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019. mapeia que antes da criação desse sistema, em 1961 Jânio Quadros teria criado o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos (IBEAA), que associava o Ministério das Relações Exteriores ao meio acadêmico, propiciando estudos e acompanhamento de eventos na África e na Ásia. Portanto, nesse período, surgiu a primeira iniciativa de estudo da cultura africana, além da oferta de vagas na graduação para africanos. As bolsas de estudo foram destinadas a países que já haviam alcançado a independência, como, por exemplo, Senegal, Nigéria e Gana. “Após Jânio, João Goulart tentou implementar um Centro de Estudos de Cultura Africana, que não teve a mesma relevância da iniciativa anterior, do IBEAA. A vinda dos estudantes em larga escala só aconteceu de fato após o convênio cultural na década de 1960, que posteriormente seria rebatizado como Programa Estudante Convênio Graduação” (Duarte, 2019DEFREYNE, Elisabeth. Au rythme des tambor: ethnographie des mobilités des “gens de Santo Antão” (Cap-Vert, Belgique, Luxembourg). Thèse de Doctorate en Sciences Politiques et Sociales: Anthropologie. Université Catholique de Louvain, Louvain, 2016., p. 54).
  • 9
    O termo crioulo rabidar significa “dar a volta”, “desenrascar-se”, sendo utilizado para indicar habilidade. O termo rabidante é atribuído àqueles que fazem negócios no espaço dos mercados em Cabo Verde, sendo o maior deles o mercado da Sucupira, situado na Cidade da Praia, a capital do país. Esse tipo de comércio é constituído principalmente por mulheres, as rabidantes. Estas vendedoras ambulantes foram objeto de estudo de Grassi (2003)GRASSI, Marzia. Rabidantes: comércio espontâneo transnacional em Cabo Verde. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais; Spleen Edições, 2003. cujo objetivo era compreender a função empresarial desenvolvida por elas e questionar seu lugar nos processos de mudança em curso no nível das relações entre atores sociais e instituições. Foi objetivo da autora, também, perceber como essa função influenciava o caminho do desenvolvimento cabo-verdiano e a sua inserção na economia global (2003GRASSI, Marzia. Rabidantes: comércio espontâneo transnacional em Cabo Verde. Lisboa: Instituto de Ciências Sociais; Spleen Edições, 2003., p. 29). Outros estudos se debruçaram sobre a situação dessas mulheres e sua prática comercial (ver Venancio, 2017VENANCIO, Vinícius. “Compra li, vende aqui”: comércio transnacional e relações familiares em Mindelo - Cabo Verde. Monografia de Bacharelado em Antropologia Social. Universidade de Brasília, Brasília, 2017.).
  • 10
    Para um acompanhamento mais sistemático do debate havido sobre esta questão, sugerimos a leitura de Buanga Fele (1955)BUANGA FELE, Mário Pinto de Andrade. Qu'est-ce que le luso-tropicalismo? Présence Africaine, nouvelle série, n. 4, p. 01-11, 1955., Lopes (1956)LOPES, Baltazar. Cabo Verde visto por Gilberto Freyre: apontamentos lidos ao microfone de rádio barlavento. Praia: Imprensa Nacional, 1956., Almada (1992)ALMADA, David Hopffer. Caboverdianidade & tropicalismo: conferências proferidas por David Hopffer Almada durante as jornadas de tropicologia. Recife: Massanga, 1992. e Melo (2014)MELO, Alfredo César. Relendo Freyre contra Freyre: apropriações contra-hegemônicas do hibridismo no Atlântico Sul. Via Atlêntica, n. 25, 2014, 83-101..

Editores do dossiê

Cédric Audebert, Handerson Joseph, Bruno Miranda (guest editors)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2023
  • Aceito
    06 Mar 2023
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