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Vidas interrompidas e futuros suspensos: experiências de estudantes brasileiros em Portugal durante a pandemia Covid-19.

Interrupted lives and suspended futures: experiences of Brazilian students in Portugal during the COVID-19 pandemic

Resumo

Este artigo apresenta uma investigação sobre os desafios enfrentados pelos estudantes brasileiros no ensino superior em Portugal durante a pandemia de Covid-19. Utilizando questionários e entrevistas online, o estudo destaca o impacto significativo da pandemia na mobilidade, estabilidade financeira e saúde mental desses estudantes. Apesar dos desafios que enfrentaram e incertezas sobre suas perspectivas de carreira, os estudantes brasileiros demonstraram resiliência e adaptabilidade. O suporte que tiveram de suas redes de contato e as suas expectativas temporais desempenharam um papel relevante em seus agenciamentos. O estudo ressalta a importância de uma perspectiva transnacional na compreensão dos fatores sociais, econômicos e emocionais que moldam as experiências dos estudantes internacionais, e oferece evidência empírica valiosa para abordar os desafios da mobilidade humana em um contexto global complexo. Os resultados podem ser utilizados para informar o desenvolvimento de políticas e programas que atendam às necessidades dos estudantes internacionais em tempos de crise.

Palavras chaves:
estudantes internacionais; Portugal; Brasileiros; transnacionalismo; mobilidade

Abstract

This article presents an investigation into the challenges faced by Brazilian students in Portugal during the COVID-19 pandemic. Using online survey data and interviews, the study highlights the significant impact of the pandemic on these students' mobility, financial stability, and mental health. Despite the challenges they faced and the uncertainties about their career prospects, Brazilian students demonstrated resilience and adaptability. The support they had from their contact networks and their temporal expectations played a relevant role in their agency. The study underlines the importance of a transnational perspective in understanding the social, economic, and emotional factors that shape international students' experiences. The paper offers valuable insights into addressing human mobility challenges in a complex global context and the results can be used to inform the development of policies and programs that meet the needs of international students in times of crisis.

Keywords:
international students; Portugal; Brazilians; transnationalism; mobility

Introdução

A pandemia provocada pelo coronavírus (Covid-19) causou um impacto profundo na mobilidade global, resultando em transformações significativas nos âmbitos social, econômico e político, e restringindo liberdades anteriormente consideradas garantidas (Cresswell, 2021CRESSWELL, Tim. Valuing mobility in a post COVID-19 world. Mobilities, v. 16, n. 1, p. 51-65, 2021.; Salazar, 2021SALAZAR, Noel. Existential vs. essential mobilities: Insights from before, during and after a crisis. Mobilities, v. 16, n. 1, p. 20-34, 2021.). O esforço mundial para conter a propagação da Covid-19 levou ao fechamento de muitas fronteiras internacionais e à imposição de restrições severas à circulação de pessoas, mesmo dentro de seus próprios países. Nesse contexto, tornou-se essencial pesquisar as consequências da pandemia para os estudantes internacionais (EIs) (Iorio et al., 2020IORIO, Juliana; SILVA, Adélia; FONSECA, Lucinda. O impacto da Covid-19 nos e nas estudantes internacionais no ensino superior em Portugal: uma análise preliminar. Finisterra, v. 55, n. 115, p. 153-161, 2020.; Ruseishvili, Truzzi, 2020RUSEISHVILI, Svetlana; TRUZZI, Oswaldo. Mobilidade migratória e a pandemia da COVID-19. Contemporânea, v. 10, n. 1, p. 473-485, 2020.).

Desde 2008, Portugal tem registrado um notável aumento no número de EIs no ensino superior, especialmente oriundos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) (Fonseca, Hortas, 2011FONSECA, Lucinda; HORTAS, Maria. International Students in Portugal. Canadian Diversity, v. 8, n. 5, p. 98-104, 2011.). Cairns et al. (2022CAIRNS, David; FRANÇA, Thais; MALET, Daniel, C.; AZEVEDO, Leonardo. Immobility, precarity and the Covid-19 pandemic: the impact of lockdown on international students in Portugal. Journal of Youth Studies, v. 25, n. 9, p. 1301-1315, 2022.) e Iorio e Silva (2022), ao pesquisarem os impactos da pandemia nos EIs em Portugal, destacaram a diversidade socioeconômica do corpo estudantil, incluindo os estudantes provenientes da União Europeia (sobretudo do programa ERASMUS), do Brasil e dos Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP). Essa diversidade evidenciou vulnerabilidades enfrentadas por muitos desses estudantes durante a crise pandêmica. Ademais, os EIs experimentaram uma redução ou desvalorização do seu capital de mobilidade - conceito utilizado por diversos pesquisadores para avaliar o desenvolvimento pessoal e profissional obtido durante o estudo no exterior - como a aquisição de habilidades interculturais e o aumento de oportunidades globais de emprego (Cairns, 2021CAIRNS, David; FRANÇA, Thais; MALET, Daniel, C.; AZEVEDO, Leonardo. An immobility turn? The Covid-19 pandemic, mobility capital and international students in Portugal. Mobilities, v. 16, n. 6, p. 874-887, 2021.). Ou seja, os impactos da pandemia trouxeram uma série de desafios para o EIs, que incluíram novas formas de precariedade, dependência econômica e emocional, insegurança habitacional, dificuldades de acesso aos cuidados de saúde, e preocupações com o futuro profissional e de (i)mobilidade (Iorio, Silva, 2022IORIO, Juliana; SILVA, Adélia. Mobility in times of immobility: international students in Portugal during the COVID-19 pandemic. Revista Brasileira de Educação, v. 27, 2022.).

Contudo, alguns estudos têm lançado luz sobre o papel ativo dos EIs durante esse período, cujas experiências resultaram em uma "temporalidade de choque" (Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.). Ou seja, uma experiência temporária ou transitória, originalmente prevista e limitada, que é abruptamente interrompida de forma forçada e ocorre fora do controle individual. Nesse aspecto, o trabalho de Hari et al. (2021HARI, Amrita; NARDON, Luciara; ZHANG, Hui. A transnational lens into international student experiences of the COVID‐19 pandemic. Global Networks, v. 23, n. 1, p. 14-30, 2023.) revela que os EIs em geral não se resignaram passivamente aos obstáculos impostos pela pandemia de Covid-19; em vez disso, adotaram uma postura ativa, reconfiguraram os seus planos, redirecionaram as suas rotinas diárias e exploraram novas trajetórias de vida, respondendo às mudanças econômicas, sociais e políticas, tanto nos seus países de origem como nos de destino.

O objetivo central deste estudo é pesquisar as implicações do choque que o período pandémico teve na vida cotidiana dos estudantes brasileiros em Portugal, abrangendo as dimensões econômicas, sociais e emocionais de forma transnacional, a fim de alcançar uma visão holística das experiências desses estudantes, enquanto um grupo mais vulnerável (Firang, 2020FIRANG, David. The impact of COVID-19 pandemic on international students in Canada. International Social Work, v. 63, n. 6, p. 820-824, 2020.). Este trabalho responde às recentes chamadas que enfatizam a necessidade de pesquisas mais abrangentes sobre as experiências dos EIs (Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.; Phan et al., 2019PHAN, Huong Le Thanh; TRAN, Ly Thi; BLACKMORE, Jill. Internationalization, student engagement, and global graduates: A comparative study of Vietnamese and Australian students’ experience. Journal of Studies in International Education, v. 23, n. 1, p. 171-189, 2019.). A metodologia envolveu a análise de dados provenientes de questionários online e entrevistas individuais.

Embora este estudo não apresente conclusões definitivas sobre todos os impactos da pandemia nas trajetórias de mobilidade dos EIs, os resultados revelaram como os estudantes brasileiros criaram estratégias para manter suas vidas transnacionais, mesmo diante das limitações impostas pela pandemia (Ortiga, Macabasag, 2021ORTIGA, Yasmi; MACABASAG, Romeu. Temporality and acquiescent immobility among aspiring nurse migrants in the Philippines. Journal of Ethnic and Migration Studies, v. 47, n. 9, p. 1976-1993, 2021.). Além disso, elucidam como a experiência de aprendizado internacional passou de uma vivência antes relativamente positiva e despreocupada, para uma realidade caracterizada por significativos riscos e incertezas.

Estudantes Brasileiros em Portugal

Considerando a importância das relações históricas/coloniais, pode dizer-se que, desde o período em que o Brasil era colônia de Portugal, existe uma mobilidade da “elite” colonial brasileira para a metrópole. Contudo, foi somente no século XX, mais precisamente “… a partir dos anos de 1950 (e mais intensamente nos anos de 1980), que se desenvolveu uma política 'voluntarista' de apoio aos intercâmbios com concessão de bolsas de diferentes tipos (doutorado, pós-doutorado, modalidade 'sanduíche'), pelas agências de financiamento à pesquisa no Brasil”, alterando, significativamente, o “recrutamento social dos efetivos” que partiam para o exterior" (Almeida, 2004ALMEIDA, Ana Maria Fonseca. Circulação internacional e formação intelectual das elites brasileiras. Campinas: Editora Unicamp, 2004., p. 18). Assim, a partir da década de 80, a circulação internacional no ensino superior “metamorfoseou-se em padrão valorativo entre os pares” e passou a existir “uma hierarquia distintiva de lugares, instituições e tradições que legitima e confere prestígios diferenciados à experiência da circulação internacional como processo formador” (Mazza, 2008MAZZA, Debora. A internacionalização dos processos formativos - a circulação de pessoas, saberes e práticas no campo das Ciências Humanas. In: 32º Encontro Anual da ANPOCS, Outubro 2008., p. 21). Nesse sentido, países como Portugal, por exemplo, não gozavam do mesmo valor distintivo que os Estados Unidos da América (EUA).

Contudo, no final do ano 2000, o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta, firmado entre os governos brasileiro e português, estabeleceu uma Cooperação no Domínio do Ensino e da Pesquisa - com o Reconhecimento de Graus e Títulos Acadêmicos, e de Títulos de Especialização obtidos em instituições de ensino superior nesses dois países. Isso, de acordo com Zamberlam et al. (2009ZAMBERLAM, Jurandir; CORSO, Giovanni; BOCCHI, Luis; FILIPPIN, Joaquim; KULKAMP, Wladymir. Os estudantes internacionais no processo globalizador e a internacionalização do ensino superior. Solidus: Porto Alegre, 2009., p. 62), fez com que, a partir de 2001, uma nova forma de intercâmbio por meio de “parcerias universitárias” e de “consórcios de universidades” possibilitasse que mais estudantes brasileiros fossem para o exterior.

Assim, no início do século XXI alguns fatores voltaram a colocar os estudantes brasileiros do ensino superior na rota do ensino superior português (Iorio, 2021______. The motivations that put Portugal back on the route of Brazilian higher education students. Globalisation, societies and education, v. 19, n. 3, p. 326-342, 2021.). O Brasil atravessou um período em que os investimentos em educação pelo Governo Federal não só proporcionaram que mais estudantes tivessem acesso ao ensino superior dentro do país, como também que o ensino superior brasileiro ganhasse maior credibilidade externa (Leite, 2010LEITE, Denise. Brazilian higher education from a post‐colonial perspective. Globalisation, Societies and Education, v. 8, n. 2, p. 219-233, 2010.). Nesse sentido, universidades de todo o mundo passaram a ter maior interesse em atrair estudantes brasileiros. Assim, o lançamento de programas como: Expansão das Universidades Federais Brasileiras (2003); Universidade para Todos - PROUNI (2005) e o Plano de Desenvolvimento da Educação (2007), contribuíram para que não só uma elite conseguisse aceder ao ensino universitário no país (Iorio, 2018IORIO, Juliana. Trajetórias de mobilidade estudantil internacional: estudantes brasileiros no ensino superior em Portugal. (Tese de doutorado) Universidade de Lisboa, Portugal, 2018.). Além disso, em 2011 foi criado o Programa Ciência sem Fronteiras (CsF), cujo objetivo foi promover “a consolidação, expansão e internacionalização da ciência e tecnologia, da inovação e da competitividade brasileira, por meio do intercâmbio e da mobilidade internacional”1 1 CsF - Informação disponível em: http://www.cienciasemfronteiras.gov.br/web/csf/o-programa. Acedido em: 04.10.2016. . Deste modo, mais estudantes passaram a ter a possibilidade de estudar no exterior, com financiamento do CsF, mas também como o país estava a atravessar uma fase economicamente mais positiva, mais estudantes de diferentes classes sociais passaram a ter recursos próprios para financiarem os seus estudos internacionais (Iorio, 2018IORIO, Juliana. Trajetórias de mobilidade estudantil internacional: estudantes brasileiros no ensino superior em Portugal. (Tese de doutorado) Universidade de Lisboa, Portugal, 2018.). Contudo, como o aprendizado e domínio de uma segunda língua no Brasil ainda continuava restrito a uma elite, a escolha por Portugal mostrava-se como a mais viável (Alves, Iorio, 2021ALVES, Elisa; IORIO, Juliana. Da mobilidade estudantil à mobilidade social: os estudantes angolanos, brasileiros e cabo verdianos em Portugal. Finisterra, v. 118, n. 56, p. 221-239, 2021.).

Portugal, por sua vez, devido à entrada na Comunidade Econômica Europeia (CEE) em 1986, que atraiu muitos imigrantes, entre eles brasileiros (Malheiros, 2007MALHEIROS, Jorge. Os brasileiros em Portugal-a síntese do que sabemos. Lisboa: Acidi, 2007.), passou, a partir dos anos 90, a estimular também o interesse de acadêmicos e pesquisadores (Rocha, 2010ROCHA, Fabricio. Noções de imigração e cultura na era da globalização: o caso dos estudantes brasileiros da Universidade de Coimbra. Atas do 1º Seminário de Estudos Sobre Imigração Brasileira na Europa, novembro, Barcelona: Facultat de Geografía i Historia Universitat de Barcelona, 2010.). Por um lado, o Processo de Bologna facilitou o intercâmbio de estudantes nacionais da CEE (atual União Europeia), por outro, a criação de acordos bilaterais entre universidades brasileiras e portuguesas, a partir de 2000, e as alterações introduzidas com a Lei da Imigração nº 23/2007, de 4 de julho, facilitaram a admissão de nacionais de países terceiros para efeitos de estudos no país. Assim, a partir de 2008, os estudantes brasileiros passaram ser a maior comunidade no ensino superior português (Fonseca, Hortas, 2011FONSECA, Lucinda; HORTAS, Maria. International Students in Portugal. Canadian Diversity, v. 8, n. 5, p. 98-104, 2011.).

Também a partir de 2008, o continente europeu começou a ressentir a crise econômica e financeira iniciada em 2007 no continente norte-americano, e Portugal viu o abrandamento das suas atividades econômicas, a redução da oferta de empregos, o aumento dos seus emigrantes, e o retorno de muitos dos seus imigrantes, sobretudo de brasileiros (Nunan, Peixoto, 2012NUNAN, Carolina; PEIXOTO, João. Crise econômica e retorno dos imigrantes brasileiros em Portugal. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 20, n. 38, p. 233-250, 2012.). No entanto, enquanto muitos imigrantes brasileiros iam embora devido à crise econômica em Portugal, os estudantes brasileiros do ensino superior continuavam a procurar este país, justamente porque a crise fez com que o custo de vida e com os estudos em Portugal ficassem mais baixos (Iorio, 2018IORIO, Juliana. Trajetórias de mobilidade estudantil internacional: estudantes brasileiros no ensino superior em Portugal. (Tese de doutorado) Universidade de Lisboa, Portugal, 2018.).

As universidades portuguesas, por sua vez, devido à necessidade de atrair EIs, uma vez que muitos nacionais não tinham como custear os seus estudos e outros haviam emigrado, tomaram várias medidas, a partir de 2012, para agilizar os processos de entrada e permanência de EIs. A partir de 2013, algumas passaram a utilizar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no Brasil, como forma de captar esses EIs. Contudo, também em 2013, Portugal deixou de fazer parte do edital do CsF, o que provocou uma estagnação no número desses EIs entre os anos letivos de 2012/2013 e 2013/2014, e uma ligeira queda em 2014/2015. A partir de então, e até 2019/2020, se tem verificado um crescimento contínuo desses EIs no país, apesar de outra pequena queda durante a pandemia da Covid-19. Ainda assim, os estudantes brasileiros se têm mantido como o grupo mais numeroso, contabilizando 15.613 em 2022/2023, o que representa 23% dos EIs no país.

(I)mobilidade estudantil e COVID-19: Resiliência e Suporte

A pandemia de Covid-19 teve um impacto significativo nos estudantes, tanto em termos acadêmicos como em termos socioemocionais e financeiros. Os desafios apresentados pelo ensino remoto ou híbrido exigiram habilidades digitais adequadas e, consequentemente, atrasos nas atividades acadêmicas e progressão dos estudos (de Boer, 2021DE BOER, Harry. COVID-19 in Dutch higher education. Studies in higher education, v. 46, n. 1, p. 96-106, 2021.). A interrupção de atividades práticas, como estágios e internatos clínicos em programas de saúde, levou a incertezas em relação ao progresso e conclusão dos cursos (Carolan et al., 2020 CAROLAN, Clare; DAVIES, Caitlin L.; CROOKES, Patrick; MCGHEE, Stephen; ROXBURGH, Michelle. COVID 19: Disruptive impacts and transformative opportunities in undergraduate nurse education. Nurse education in practice, v. 46, 102807, 2020.). A pesquisa e trabalho em laboratório, os ensaios clínicos e os trabalhos de campo também foram afetados, causando atrasos, especialmente ao nível do doutorado (van Schalkwyk, 2021VAN SCHALKWYK, François. Reflections on the public university sector and the covid-19 pandemic in South Africa. Studies in Higher Education, v. 46, n. 1, p. 44-58, 2021.).

A saúde mental dos estudantes foi impactada negativamente, com relatos de estresse, depressão, ansiedade, raiva e frustração (Aristovnik et al., 2020ARISTOVNIK, Aleksander; KERŽIČ, Damijana; RAVŠELJ, Dejan; TOMAŽEVIČ, Nina; UMEK, Lan. Impacts of the COVID-19 pandemic on life of higher education students: A global perspective. Sustainability, v. 12, n. 20, p. 8438, 2020.; Odriozola-Gonzáleza et al., 2020ODRIOZOLA-GONZÁLEZ, Paula; PLANCHUELO-GÓMEZ, Alvaro; IRURTIA, Maria; LUIS-GARCÍA, Rodrigo. Psychological effects of the COVID-19 outbreak and lockdown among students and workers of a Spanish university. Psychiatry research, n. 290, 113108, 2020.). Os que viviam sozinhos enfrentaram maior isolamento social e distúrbios de saúde mental (Elmer et al., 2020ELMER, Timon; MEPHAM, Kieran; STADTFELD, Christoph. Students under lockdown: Comparisons of students’ social networks and mental health before and during the COVID-19 crisis in Switzerland. Plos one, v. 15, n. 7, e0236337, 2020.), uma vez que as restrições à mobilidade afetaram as suas vidas sociais, impossibilitando encontros com amigos, viagens e etc (Elmer et al., 2020ELMER, Timon; MEPHAM, Kieran; STADTFELD, Christoph. Students under lockdown: Comparisons of students’ social networks and mental health before and during the COVID-19 crisis in Switzerland. Plos one, v. 15, n. 7, e0236337, 2020.). A situação financeira dos estudantes também foi afetada, especialmente devido à perda de empregos, às alterações nos preços dos bens de consumo essenciais, e à perda do poder de compra devido às alterações cambiais. Isso gerou preocupações sobre o futuro e perspectivas de carreira (Aristovnik et al., 2020ARISTOVNIK, Aleksander; KERŽIČ, Damijana; RAVŠELJ, Dejan; TOMAŽEVIČ, Nina; UMEK, Lan. Impacts of the COVID-19 pandemic on life of higher education students: A global perspective. Sustainability, v. 12, n. 20, p. 8438, 2020.; Iorio, Silva, 2022IORIO, Juliana; SILVA, Adélia. Mobility in times of immobility: international students in Portugal during the COVID-19 pandemic. Revista Brasileira de Educação, v. 27, 2022.).

Portanto, pode-se dizer que os efeitos da pandemia atingiram mais duramente os EIs do que os nacionais pois, longe de suas famílias e redes de apoio, com o fechamento de suas instituições, os confinamentos obrigatórios e as restrições às viagens, houve uma diminuição dos contatos sociais e um aumento dos problemas financeiros, sobretudo devido às estadias forçosamente prolongadas nos países de destino (Sahu, 2020SAHU, Pradeep. Closure of universities due to coronavirus disease 2019 (COVID-19): impact on education and mental health of students and academic staff. Cureus, v. 12, n. 4, 2020.). Os EIs de países em desenvolvimento na Ásia, África ou América Latina enfrentaram estados de ansiedade, angústia social e psicológica mais intensos, pois, além de maiores dificuldades com a utilização das ferramentas digitais, apresentaram maiores escassez de equipamentos e dificuldades financeiras acentuadas (Firang, 2020FIRANG, David. The impact of COVID-19 pandemic on international students in Canada. International Social Work, v. 63, n. 6, p. 820-824, 2020.). No âmbito da educação online, o processo de adaptação ao ensino à distância tornou-se mais difícil para esses estudantes, como observado em alunos africanos e brasileiros em Portugal. Estes enfrentaram desafios econômicos, estresse emocional e dificuldades na transição para o ensino online (Malet et al., 2022MALET, Daniel, C.; CAIRNS, David; FRANÇA, Thais; AZEVEDO, Leonardo. ‘There was no freedom to leave’: Global South international students in Portugal during the COVID-19 Pandemic. Policy Futures in Education, v. 20, n. 4, p. 382-401, 2022.). Consequentemente, a mudança para a educação online levantou preocupações sobre o papel social da educação, a qualidade do ensino e a capacidade de adaptação dos alunos a esse novo ambiente (Gemelli, Cerdeira,, 2020GEMELLI, Catia Eli; CERDEIRA, Luísa. Covid-19: impactos e desafios para a educação superior brasileira e portuguesa. Janelas da Pandemia, p. 115-124, 2020.). Assim, para Malet et al. (2022MALET, Daniel, C.; CAIRNS, David; FRANÇA, Thais; AZEVEDO, Leonardo. ‘There was no freedom to leave’: Global South international students in Portugal during the COVID-19 Pandemic. Policy Futures in Education, v. 20, n. 4, p. 382-401, 2022.), a pandemia de Covid-19 revelou custos e riscos anteriormente ocultos para os EIs, nomeadamente preocupações com a saúde, segurança e possíveis interrupções nos estudos, trazendo novas reflexões e questionamentos sobre o significado e o valor atribuídos à aprendizagem internacional.

Wang (2021WANG, Bingyu. Time, temporality, and (im) mobility: Unpacking the temporal experiences among Chinese international students during the COVID‐19. Population, Space and Place, v. 28, n. 5, e2545, 2021.) argumentou que, embora os EIs tenham deparado com diversas dimensões desafiadoras, demonstraram ações ativas de agência para navegar por essas experiências de disrupções temporais. A agência é entendida como a capacidade individual de fazer escolhas entre diferentes cursos de ação e agir com “intencionalidade” em resposta a uma circunstância específica. E as disrupções temporais na pandemia incluíram momentos entediantes e suspensos, caracterizados por lentidão, espera e êxtase direccional, causados por rupturas temporais inesperadas, bem como por situações onde se deparam com ritmos temporais estranhos e descontinuidades em suas trajetórias. O autor demonstrou que essa temporalidade gerou incertezas, desafios e limitações, mas que os EIs adotaram estratégias para se adaptarem, reorganizarem suas rotinas e encontrarem significados produtivos em meio às adversidades. Ao exercer a agência temporal, o EIs demonstram resiliência e capacidade de superar os obstáculos, buscando maneiras de avançar em suas metas pessoais e acadêmicas mesmo diante das incertezas impostas pela pandemia (Wang, 2021WANG, Bingyu. Time, temporality, and (im) mobility: Unpacking the temporal experiences among Chinese international students during the COVID‐19. Population, Space and Place, v. 28, n. 5, e2545, 2021.).

No mesmo sentido, Hari et al. (2021HARI, Amrita; NARDON, Luciara; ZHANG, Hui. A transnational lens into international student experiences of the COVID‐19 pandemic. Global Networks, v. 23, n. 1, p. 14-30, 2023.) destacam que a utilização de uma perspectiva transnacional é vantajosa para compreender as experiências dos EIs durante a pandemia, pois enfatiza a importância das conexões sociais, econômicas e culturais que transcendem as fronteiras nacionais. O seu trabalho evidenciou como foi fundamental para EIs no Canadá terem o apoio familiar para enfrentarem os desafios da pandemia. Alguns EIs receberam ajuda financeira de suas famílias para cobrirem as despesas de moradia e outros receberam apoio emocional através de uma comunicação regular com os parentes no país de origem. Os autores argumentaram que o grupo de EIs emerge como uma população especialmente pertinente para refletirmos sobre o transnacionalismo no contexto pandêmico, destacando a relevância de compreender como esses estudantes conseguiram, com o suporte de suas redes transfronteiriças, resignificarem suas trajetórias diante de desafios globais excepcionais (Hari et al., 2021HARI, Amrita; NARDON, Luciara; ZHANG, Hui. A transnational lens into international student experiences of the COVID‐19 pandemic. Global Networks, v. 23, n. 1, p. 14-30, 2023.).

De modo geral, interessa-nos destacar que a perspectiva transnacional e o foco na agência individual possibilita alcançar um entendimento mais abrangente e profundo das complexidades das experiências dos EIs em uma situação de "temporalidade de choque" (Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.). Como referido anteriormente, a pandemia, ao impor restrições e promover a imobilidade, não apenas interrompeu as trajetórias de vida dos EIs, mas também suscitou reflexões profundas sobre seus futuros profissionais e pessoais. A "temporalidade de choque" encapsula, assim, a experiência desses EIs, cujas expectativas de vivências temporárias foram abruptamente truncadas, gerando uma marcante sensação de falta de controle sobre suas vidas, ao perceberem que suas agendas e aspirações acadêmicas foram colocadas em espera. Sob esta perspectiva é possível reconhecer a interação entre as redes sociais transnancionais e a resiliência dos EIs, bem como seus cruciais papeis na redefinição das suas trajetórias, diante de circunstâncias tão extraordinárias. O exame dessas facetas contribui, portanto, para compreendermos a intrincada dinâmica que liga a Covid-19, os EIs, a mobilidade e os desafios cotidianos, expandindo, assim, nosso conhecimento de como a pandemia impactou e reconfigurou as vidas transnacionais desses estudantes (Hari et al., 2021HARI, Amrita; NARDON, Luciara; ZHANG, Hui. A transnational lens into international student experiences of the COVID‐19 pandemic. Global Networks, v. 23, n. 1, p. 14-30, 2023.; Wang, 2021WANG, Bingyu. Time, temporality, and (im) mobility: Unpacking the temporal experiences among Chinese international students during the COVID‐19. Population, Space and Place, v. 28, n. 5, e2545, 2021.; Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.).

Metodologia

A pesquisa utilizou métodos de análise quantitativo e qualitativo. Inicialmente um questionário online foi aplicado para compreender o impacto da Covid-19 e das medidas de confinamento governamentais na rotina dos participantes. Esse questionário, desenvolvido pelas autoras com base em um estudo conduzido por Iorio (2018IORIO, Juliana. Trajetórias de mobilidade estudantil internacional: estudantes brasileiros no ensino superior em Portugal. (Tese de doutorado) Universidade de Lisboa, Portugal, 2018.), esteve disponível durante um mês (de 7 de abril a 7 de maio de 2020), cobrindo a maior parte do primeiro Estado de Emergência em Portugal. O questionário consistia em perguntas sobre a influência da Covid-19 no desempenho acadêmico e na estadia desses estudantes em Portugal; abrangeu a questão do auxílio a esses estudantes, perguntando a quem eles estavam a recorrer durante a pandemia, quando precisavam de algum tipo de ajuda; e explorou as expectativas desses estudantes em relação ao futuro. Embora não tenha sido representativo de todos os estudantes brasileiros que estavam em Portugal, conseguiu-se obter 429 respostas válidas - 285 do sexo feminino (65,4%) e 144 do sexo masculino (34,4%). A faixa etária dos respondentes variou entre 18 e 50 anos, e a maioria era solteira e residia com familiares antes de emigrar. A maior parte havia chegado a Portugal nos anos 2018 e 2019 e apenas 35 possuíam dupla nacionalidade. No que tange à universidade e ao grau de ensino, esses estudantes estavam distribuídos por 23 universidades, sendo que 89 estavam no doutorado, 159 no mestrado, 180 na graduação, e apenas um num curso de especialização.

Com base na análise dos resultados desse questionário, foram identificadas as vulnerabilidades dos estudantes brasileiros que frequentavam uma Instituição de Ensino Superior (IES) em Portugal durante os estágios iniciais da pandemia, e delineou-se um roteiro para as entrevistas que seriam realizadas posteriormente.

As entrevistas foram estruturadas em três tópicos: (1) Ensino - com o objetivo de compreender os planos iniciais de mobilidade desses estudantes e como eles foram alterados pela pandemia; (2) Bem-Estar Físico e Psicológico - para avaliar como a pandemia estava afetando a renda, as condições de moradia e a saúde física e mental desses indivíduos; (3) Ajuda - buscando informações sobre os apoios financeiros, materiais, institucionais e emocionais que os estudantes acionaram durante a pandemia, bem como as suas maiores preocupações em relação ao futuro. Nessa segunda fase da coleta de dados foram realizadas 22 entrevistas com EIs, dos quais 12 eram brasileiros. Essas entrevistas foram conduzidas através de plataformas de comunicação virtual entre setembro de 2020 e janeiro de 2021. Alguns estudantes brasileiros, que haviam respondido ao inquérito, se voluntariaram também para esta etapa e, por meio do método da bola de neve, obtivemos acesso a outros estudantes. O critério de participação era estarem residindo em Portugal e matriculados em uma IES portuguesa. Essas entrevistas foram posteriormente anonimizadas e analisadas à luz do método de conteúdo de Bardin (2011BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), e a amostra incluiu 8 estudantes brasileiros do sexo feminino e 4 do sexo masculino, matriculados em diferentes universidades portuguesas e níveis de ensino (graduação, mestrado e doutorado). Apenas 3 desses estudantes tinham bolsa de estudos.

A experiência transnacional de estudantes brasileiros durante a pandemia.

Cerca de dois terços (66,4%) dos respondentes do questionário demonstraram apreensão quanto ao potencial impacto adverso da crise da Covid-19 no desempenho de suas atividades acadêmicas em Portugal. Essa perspectiva resultou de uma maioria (86,7%) não ter bolsa de estudos e de um número considerável depender de financiamento dos pais ou de outros familiares (67,34%), de poupanças próprias (63%) ou do rendimento do trabalho (23%) para custearem as suas despesas em Portugal.

Os relatos a seguir exemplificam o mal-estar e a apreensão decorrentes das preocupações financeiras, demonstrando como o descompasso entre a perspectiva antecipada e a atual situação econômica foi uma fonte adicional de estresse e incerteza para os EIs, contribuindo para a sensação de falta de controle sobre suas vidas (Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.). As preocupações de como enfrentarem o futuro, conseguirem trabalho e lidarem com a falta de suporte financeiro, nos fornecem uma visão do impacto psicológico que a instabilidade económica pode provocar (Sahu, 2020SAHU, Pradeep. Closure of universities due to coronavirus disease 2019 (COVID-19): impact on education and mental health of students and academic staff. Cureus, v. 12, n. 4, 2020.).

A maior preocupação se prende com a parte financeira: ...eu juntei um pé de meia e vim. Só que o meu cálculo todo, ele era feito com uma perspectiva de que o euro chegaria, no máximo, a 5 reais. Eu não imaginava que ia acontecer o que aconteceu… o euro disparando, e aí o desespero. E aí pronto, eu sempre tenho a quem recorrer lá no Brasil, meus tios, mas que a gente nunca quer? Tipo, me empresta 5 mil reais aí, porque 5 mil reais no Brasil é muita coisa! Só que 5 mil reais é mil euros aqui! Aqui você usa para passar 2 meses, entendeu? (Álvaro, Licenciatura, entrevistado em 28/09/2020)

A minha principal preocupação no começo foi com a parte financeira, porque fui dispensado do meu trabalho e não tive direito a nada. Como não tinha contrato não podia ter apoio do governo de Portugal. Tentei a ajuda do governo brasileiro, mas não consegui nem acessar o portal porque estava fora do Brasil. Então pensava: como vou fazer se ficar sem dinheiro? Como vai ser isso daqui para frente? Vou conseguir trabalho novamente? Isso era o que vinha na minha mente. (Marcelo, Doutorado, entrevistado em 21/09/2020)

Portanto, constatou-se que o nível de vulnerabilidade a circunstâncias desfavoráveis entre os EIs brasileiros aumentou com a ausência de apoio social e familiar. Além disso, a pandemia e as medidas de distanciamento social exacerbaram ainda mais os sentimentos de isolamento, solidão, ansiedade e estresse. A falta de apoio emocional e a separação das redes sociais pioraram as dificuldades de adaptação e a saúde mental desses estudantes (Hari et al., 2021HARI, Amrita; NARDON, Luciara; ZHANG, Hui. A transnational lens into international student experiences of the COVID‐19 pandemic. Global Networks, v. 23, n. 1, p. 14-30, 2023.). Os desafios comumente relatados incluíram falta de motivação para realizar as atividades diárias (83%), ausência de pensamento positivo (74%), insônia (73%), maiores sentimentos de agitação (68%), falta de esperança no futuro (65,70%), dificuldade em manter a calma em situações estressantes (47%), e dificuldade em relaxar (47%).

Figura 1: Desafios relatados pelos EI Brasileiro

Figura 1 -
Desafios relatados pelos EIs Brasileiros

Esses sintomas podem ser indicativos das consequências emocionais e psicológicas das mudanças drásticas no estilo de vida, restrições sociais e indeterminações provocadas pela pandemia. Bianca, descreveu como a mudança súbita gerou incerteza, medo e angústia em relação ao seu futuro, refletindo interrupções nas suas expectativas temporais (Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.). A dúvida sobre a continuidade do doutorado e o possível retorno ao Brasil representaram uma quebra das suas projeções acadêmicas e profissionais.

Eu tinha toda a minha vida programada em relação ao doutorado. Estava tudo estruturado, o tempo de ficar em Coimbra, de fazer o trabalho de campo em Buenos Aires, e de morar em Lisboa. Tirei licença do trabalho, juntei uma grana e planejei direitinho a minha estadia aqui junto com a minha companheira. Tínhamos a intenção de aproveitar esse tempo da melhor maneira, porque era uma oportunidade tanto em termos profissionais como pessoais para gente. Mas de repente tudo mudou, veio a incerteza, o medo e a angústia de como vai ser isso agora. Será que vou ter que voltar para o Brasil sem meu doutorado? Pensar isso gera em mim uma ansiedade e um sofrimento pelo futuro. (Bianca, Doutorado, entrevistada em 17/09/2020)

A transição para o ensino online e a adaptação aos novos métodos de ensino também foi um aspecto desafiador para os EIs. Nesse ínterim, a tecnologia desempenhou um papel fundamental nas suas vidas, uma vez que a utilização de plataformas virtuais e mídias sociais permitiu que muitos estudantes brasileiros se “socializassem” através de redes sociais à distância e participassem de atividades acadêmicas e extracurriculares (Iorio, Silva, 2022IORIO, Juliana; SILVA, Adélia. Mobility in times of immobility: international students in Portugal during the COVID-19 pandemic. Revista Brasileira de Educação, v. 27, 2022.). Apesar de sabermos que o acesso às Tecnologias da Informação e da Comunicação não contempla todos os estudantes de igual forma, a esmagadora maioria (80,4%) expressou sua participação em aulas remotas e o fato de ter um computador (94,4%) e acesso à Internet (98,1%) em sua residência. No entanto, 10% dos entrevistados compartilhavam o computador com outra pessoa, e 6,2% com mais de uma pessoa. 34% dos inquiridos referiram, ainda, estarem apreensivos com a utilização das ferramentas digitais, essenciais para participarem de aulas por videoconferência:

O meu computador não é uma maravilha. É um computador que eu comprei para realizar trabalhos, ele não tem uma velocidade excelente para a internet, então, primeira dificuldade. Segunda dificuldade, o acesso remoto que a Universidade oferece para que a gente tenha acesso a banco de dados e tal, ele quase não funcionou. Então quando a pandemia veio, inclusive realizei entrevistas também via Skype, então foi uma dificuldade muito grande manter a conexão, manter as pessoas também, porque as pessoas também não têm... têm condições precárias às vezes... aqui em casa também, tem momentos que não funciona bem pra todo mundo. Quando todo mundo tá precisando usar, fica difícil. (Sirlene, Mestrado, entrevistada em 24/09/2020)

Diante das dificuldades com que foram confrontados durante a crise despoletada com a pandemia, 57,6% dos inquiridos salientaram como a ajuda recebida de familiares e amigos residentes no país de origem foi fundamental para manter os laços emocionais à distância e enfrentar esse período. Já o apoio da IES (27,7%), e mais especificamente dos professores na realização das tarefas (38,3%), para além de formações remotas para a participação em aulas online (25,8%), foram ajudas menos destacadas. Apenas 27,3% dos estudantes brasileiros que responderam ao questionário buscaram suporte junto das suas instituições de ensino. Como é o caso de Sirlene que lamentou a falta de apoio institucional diante dos desafios financeiros causados pela disparidade cambial. Em contraste, Mirela compartilhou experiências positivas, como a assistência alimentar e o apoio emocional, destacando a dualidade vivenciada durante esse período de incertezas. Esses exemplos sublinham a crucial importância do suporte pessoal e institucional diante das incertezas da pandemia (Iorio, Silva, 2022IORIO, Juliana; SILVA, Adélia. Mobility in times of immobility: international students in Portugal during the COVID-19 pandemic. Revista Brasileira de Educação, v. 27, 2022.).

"...um dos problemas que aconteceu foi o câmbio, é, que disparou. Então eu pedi para parcelar (a mensalidade) e não tive retorno do gabinete. Eu pedi a redução da propina (mensalidade), mas não fui correspondida (email), e solicitei esse atendimento psicológico, mas foi uma vez só, uma conversa de mais ou menos uma hora, que me ajudou muito. A minha orientadora, foi fundamental para esse período, ela me deu todo o apoio que eu precisava." "O que falta mesmo é aquele apoio por e-mail, que me deixaram sem nenhuma satisfação sobre o meu pedido". (Sirlene, Mestrado, entrevistada em 24/09/2020)

"A universidade me auxiliou, fornecia alimentação para mim, gratuitamente, almoço e jantar todos os dias. Então, essa foi uma possibilidade, porque não ter essa preocupação com alimentação, já me possibilitou me manter até o fim do intercâmbio lá”. "Emocional, tive de uma ex supervisora minha, daqui da universidade, que eu falei para ela, ’eu estou enlouquecendo, eu preciso passar por terapia’, e aí ela me indicou uma pessoa e eu busquei esse processo terapêutico". (Mirela, Licenciatura, entrevistada em 18/09/2020)

Mirela também destacou como a pandemia afetou sua expectativa de mobilidade académica, ao quebrar suas expectativas temporais em relação à sua formação (Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.). A impossibilidade de experimentar a troca cultural, bem como a adaptação ao ensino remoto sem interações presenciais, contribuíram para uma visão limitada e fragmentada do curso no exterior (Gemelli, Cerdeira, 2020GEMELLI, Catia Eli; CERDEIRA, Luísa. Covid-19: impactos e desafios para a educação superior brasileira e portuguesa. Janelas da Pandemia, p. 115-124, 2020.).

Afetou "...no sentido de que, além da possibilidade ideal, de experiência de mobilidade, de troca cultural, entendimento de como é aplicado esse ensino em outro país, da mesma disciplina e mesmo curso de graduação que eu faço no Brasil, como que funciona fora, não me permitiu ter uma visão ampla e integral, principalmente pela complicação de não estar no meio, de sempre ter que adaptar as possibilidades de ensino à distância, sem contato com outros de forma direta em trocas, pessoalmente eu digo, então isso foi um agravante significativo..." "...inclusive, não tive um aproveitamento como eu havia planejado”. (Mirela, Licenciatura, entrevistada em 18/09/2020)

A pandemia trouxe mudanças significativas nas trajetórias acadêmicas e profissionais desses EIs como no caso de Marcelo e Álvaro. A falta de controle sobre a estabilidade financeira e as mudanças imprevistas nas condições de vida os forçaram a reavaliar seus planos originais. Contudo, a busca por controle sobre suas circunstâncias, expressa nas estratégias adotadas, como a mudança de curso e a mudança geográfica, destaca a resiliência desses EIs diante desse período disruptivo e de incerteza para o futuro (Wang, 2021WANG, Bingyu. Time, temporality, and (im) mobility: Unpacking the temporal experiences among Chinese international students during the COVID‐19. Population, Space and Place, v. 28, n. 5, e2545, 2021.).

Eu tive que mudar de Lisboa para o Algarve. Isso não estava em meus planos. Não queria estar longe da faculdade, mas não conseguir achar emprego em Lisboa. Fui dispensado do meu emprego no meio da pandemia, o restaurante onde eu trabalhava fechou. Tenho as propinas da universidade em atraso. Achei esse emprego aqui no Sul, vai começar o verão e aqui eles têm contratado mais pessoas que em Lisboa. Decidi vir aqui para fazer uma grana para pagar as contas. O que eu não sei é se vou ter tempo de me dedicar aos meus estudos. Mas, por hora, é isso ou voltar para o Brasil, sem estudo. (Marcelo, Doutorado, entrevistado em 21/09/2020)

“Eu tive que mudar de curso por causa disso, as propinas estavam a aumentar...”"...eu tinha dinheiro suficiente para me manter aqui, mas a moeda (1 euro) custava 4 reais, 4,50, 4,20 há um ano atrás e agora já é 6,50, com perspectivas de aumentar muito mais. E aí eu pensei, vou trocar por um curso que eu já pensava em fazer depois de fazer a engenharia, que é línguas e relações internacionais, e vou aproveitar para diminuir o tempo de curso para conseguir logo um emprego e também para conseguir diminuir as propinas (mensalidades), porque, nesse caso, as propinas, elas caem pela metade, são dois anos a menos e propinas pela metade." "Era isso ou voltar para o Brasil". “Foi a alternativa que eu achei para continuar aqui e continuar a estudar.” (Álvaro, Licenciatura, entrevistado em 28/09/2020)

Ainda resta destacar que a indeterminação em torno dos estágios, essenciais para a formação, e a falta de previsão sobre o retorno dessas atividades revelou uma dimensão mais ampla da "temporalidade de choque": a desconexão entre esforço, planejamento e resultados tangíveis, uma experiência desorientadora e desafiadora (Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.). Por trás das afirmações aparentemente práticas sobre financiamento e estágios, as narrativas de Vitória e Mirela sugerem um embate emocional e cognitivo mais profundo, onde a busca por sentido em meio à incerteza se tornou uma parte intrínseca das experiências do EIs durante a pandemia (Carolan et al., 2020 CAROLAN, Clare; DAVIES, Caitlin L.; CROOKES, Patrick; MCGHEE, Stephen; ROXBURGH, Michelle. COVID 19: Disruptive impacts and transformative opportunities in undergraduate nurse education. Nurse education in practice, v. 46, 102807, 2020.).

...uma das preocupações que eu tinha, porque muitas pessoas me perguntavam isso, “você vai voltar para a Irlanda (onde estava fazendo o seu trabalho empírico), para terminar a sua pesquisa?” e eu também não sabia responder isso, porque a minha preocupação era, como é que eu vou pagar tudo isso. (…) ainda mais que depois o valor do Euro piorou, vamos dizer assim, então, foi um momento, de muita indecisão, de não saber exatamente qual atitude tomar em relação a isso. E agora, vamos desistir no final? A gente pensava isso… agora que falta tão pouquinho? Não, vamos dar um jeito de finalizar, pelo menos. (Vitória, Mestrado, entrevistada em 14/09/2020)

"Antes a minha perspectiva frente ao futuro era de uma coisa que eu podia traçar e que ia fluir daquele jeito, ia acontecer daquela forma. Se eu me esforçar agora, eu vou viver tudo aquilo porque eu me esforcei agora. Pensei em tudo direitinho e vai acontecer. E a pandemia veio e disse assim, ‘não querida, você pode se esforçar, você pode planejar, mas pode ser que nada disso venha a acontecer depois’, porque pode uma circunstância mudar todo o contexto...""...nesse período onde eu estou, eu só tenho estágio... E algumas instituições que eu preciso cumprir os estágios, são cargas horárias massivas, não abriram. Eu sou prounista (bolsista do PROUNI) na minha universidade, o PROUNI está sendo pago normalmente, mas eu não estou podendo ir para o campo de estágio. Essa é uma pergunta que eu me faço todos os dias, se eu vou conseguir concluir, porque esses campos de estágio não retornaram, não tem uma previsão, e ninguém sabe responder como ficaremos”. (Mirela, Licenciatura, entrevistada em 18/09/2020)

Conclusão

A pandemia de Covid-19 introduziu mudanças drásticas e sem precedentes para os estudantes e apresentou desafios e restrições únicas à mobilidade global. As restrições de viagem e o fechamento de fronteiras impostos devido à pandemia, limitaram a permeabilidade e a transcendência das fronteiras frequentemente associadas ao transnacionalismo e à globalização. Consequentemente, os Estados-nação se tornaram recipientes naturais para entender as experiências e os mundos sociais dos atores transnacionais.

Neste contexto, pesquisas anteriores sobre EIs no ensino superior em Portugal (Cairns et al., 2022CAIRNS, David; FRANÇA, Thais; MALET, Daniel, C.; AZEVEDO, Leonardo. Immobility, precarity and the Covid-19 pandemic: the impact of lockdown on international students in Portugal. Journal of Youth Studies, v. 25, n. 9, p. 1301-1315, 2022.; Iorio, Silva, 2022IORIO, Juliana; SILVA, Adélia. Mobility in times of immobility: international students in Portugal during the COVID-19 pandemic. Revista Brasileira de Educação, v. 27, 2022.) e em outros lugares (Firang, 2020FIRANG, David. The impact of COVID-19 pandemic on international students in Canada. International Social Work, v. 63, n. 6, p. 820-824, 2020.), revelaram que os EIs enfrentaram uma série de desafios acadêmicos, financeiros e socioemocionais, semelhantes àqueles relatados neste artigo. Especificamente, a transição para o ensino à distância trouxe dificuldades na adaptação a novos métodos de ensino e limitou as experiências acadêmicas presenciais; os impactos socioemocionais incluíram sentimentos de solidão, ansiedade e estresse; e os EIs provenientes de economias emergentes, como o Brasil, ressentiram mais as implicações econômicas da pandemia (Malet et al. 2021MALET, Daniel, C.; CAIRNS, David; FRANÇA, Thais; AZEVEDO, Leonardo. ‘There was no freedom to leave’: Global South international students in Portugal during the COVID-19 Pandemic. Policy Futures in Education, v. 20, n. 4, p. 382-401, 2022.), pois a alta taxa de câmbio entre o real e o euro agravou as preocupações financeiras desses EIs, visto que a maioria dependia de financiamentos próprios ou de seus familiares para cobrirem as suas despesas. Essas incertezas introduzidas pela pandemia também levantaram dilemas sobre permanecer em Portugal ou retornar ao Brasil.

Embora seja importante discutir os desafios que os EIs brasileiros vivenciaram durante a pandemia de Covid-19, é igualmente importante entender como eles costumam lidar e se adaptar, quando sentem que suas vidas e futuros entram numa crise repentina (Gomes, 2022GOMES, Catherine. Shock temporality: international students coping with disrupted lives and suspended futures. Asia Pacific Education Review, v. 23, n. 3, p. 527-538, 2022.). Os dados apresentados revelaram a notável resiliência e capacidade de ação desses estudantes, que tiveram sobretudo o apoio emocional de suas famílias e redes de suporte no Brasil. Eles encararam ativamente as complexas dimensões econômicas, sociais e emocionais de suas vidas transnacionais durante essa “temporalidade de choque”, de forma a manterem suas atividades acadêmicas no exterior. Pensamos que a abordagem transnacional adotada neste estudo contribui para uma melhor compreensão dos impactos individuais da pandemia, pois alcança os esforços dos estudantes brasileiros em se manterem em Portugal e reconfigurarem seu processo de aprendizagem. Além disso, revela que as escolhas dos EIs geralmente são limitadas e a mobilidade no ensino superior é desigual, dinâmica e altamente suscetível às mudanças econômicas, socioculturais e políticas, tanto nos países de origem quanto nos de destino (Hari et al, 2021HARI, Amrita; NARDON, Luciara; ZHANG, Hui. A transnational lens into international student experiences of the COVID‐19 pandemic. Global Networks, v. 23, n. 1, p. 14-30, 2023.). Dessa forma, esse estudo oferece insights relevantes para a governança da mobilidade global no cenário educacional em momentos de crise.

Por fim, vale ressaltar que esta pesquisa teve certas restrições, particularmente no que diz respeito à dificuldade de avaliar as ramificações autênticas da pandemia nas trajetórias desses estudantes. Contudo, as descobertas deste estudo oferecem importantes subsídios para a formulação de políticas e ações mais efetivas de internacionalização do ensino superior. O reconhecimento da resiliência e dependência dos estudantes que tiveram apoio familiar transnacional durante a pandemia destaca a necessidade de reavaliar os pressupostos que embasam as políticas de suporte e acolhimento de EIs pelas IESs. A pandemia revelou a importância dos laços familiares além das fronteiras e enfatizou a necessidade de proporcionar um suporte mais pragmático, emocional e social local. Como resultado, é essencial que as IESs e os governos considerem as experiências e desafios enfrentados pelos EIs em situações excepcionais, garantindo que políticas e ações sejam mais sensíveis e adequadas às necessidades e realidades transnacionais desses estudantes.

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Editores de seção

Roberto Marinucci, Barbara Marciano Marques

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Ago 2023
  • Aceito
    19 Jan 2024
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