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A arte enquanto potenciadora de inclusão social de refugiados e imigrantes. Estudos de caso, em Portugal

Art as an enabler of social inclusion of refugees and immigrants. Case studies, in Portugal

Resumo

Neste artigo reflito sobre as formas como certos projetos artísticos têm um papel importante a desempenhar na resistência às desigualdades, desafiando os sistemas políticos que falham na inclusão de refugiados e imigrantes. Apresento quatro estudos de caso, em Portugal, que cruzam investigação antropológica e arte participativa. Concluo, apresentando algumas evidências de como os projetos artísticos que envolvem migrantes são eficazes nos seus propósitos facilitadores de inclusão social, nomeadamente na aprendizagem da língua do país de acolhimento.

Palavras-chave:
refugiados e imigrantes; arte; inclusão; projetos

Abstract

In this article I reflect on the ways in which certain art projects have an important role in resisting inequalities, challenging political systems that fail to include refugees and immigrants. I present four case studies, in Portugal, that intersect anthropological research and participatory art. I conclude by presenting some evidence of how artistic projects involving migrants are effective at social inclusion, such as learning the language of the host country.

Key words:
refugees and immigrants; art; inclusion; projects

Introdução1 1 Este artigo resulta de uma investigação que é também parte integrante do seguinte projeto: Negotiating Livelihoods under transformative politics: crisis, policies and practices in Portugal 2010-20” PTDC/SOC-ANT/32676/2017.

Este artigo baseia-se na minha mais recente experiência no acompanhamento de projetos de arte inclusiva constituídos por refugiados e imigrantes. Pretendo demonstrar que existem vias mais humanistas e eficazes para a inclusão sociocultural do que a maioria dos programas estatais até agora existentes. Uma dessas vias passa, justamente, pelos projetos artísticos, onde os migrantes se constituem, ativamente, como produtores de cultura e não como “dependentes” de sistemas assistencialistas, tal como, frequentemente, são categorizados pelo aparato burocrático.

A abordagem metodológica não foi sempre a mesma, dependendo das características de cada um dos projetos que apresento. Em todos eles fiz observação participante, assumindo-a como compromisso ontológico, isto é: observei atentamente, escutei e senti com o mesmo sentido de responsabilidade e a mesma intenção de devolver algo em troca a todos os que me acolheram. Houve, porém, algumas diferenças relacionadas com a posicionalidade em cada projeto. Num deles, a minha participação extravasou a investigação antropológica, no sentido em que me tornei parte do espetáculo, ao ser convidada para representar-me a mim própria em palco. Noutro, assumi a investigação-ação, ao criar (juntamente com outros) um projeto próprio, com a intenção assumida de contribuir ativamente para a melhoria das condições de inclusão de refugiados na universidade. Noutro ainda, para além da observação participante e da realização de entrevistas em profundidade, coordenei um estudo, essencialmente quantitativo, solicitado pelo diretor artístico.

Considero a Antropologia Pública (Borofsky, De Lauri, 2019BOROFSKY, Robert; DE LAURI, Antonio. Public Anthropology in Changing Times. Public Anthropologist, v. 1, n. 1, p. 3-19, 2019.) como a abordagem científica mais adequada quando trabalhamos com populações excluídas e vulnerabilizadas, como é o caso dos refugiados e imigrantes. Esta dá-nos um contexto epistemológico, bem como ferramentas metodológicas que nos permitem, em simultâneo, ter uma visão crítica e política da sociedade, podendo colaborar, ativamente, para a melhoria das condições de vida dos mais marginalizados do ponto de vista sociocultural. Tratando-se de refugiados e imigrantes parece-me ainda mais pertinente esta colaboração.

1ª Parte - Breve reflexão teórica em torno da arte inclusiva enquanto palco de resistência

A produção académica contemporânea, a nível internacional, está repleta de exemplos de projetos de investigação, publicação de livros e artigos em revistas científicas, que refletem a análise da experiência do cruzamento entre arte e ciências sociais. Como sabemos, esta relação não é recente. No campo da antropologia, uma das primeiras referências indicadoras do interesse que esta ciência dedica à arte, em particular ao estudo da produção artística em sociedades não-ocidentais, é a publicação do livro de Franz Boas, intitulado Arte Primitiva (1927BOAS, Franz. Primitive Art. New York: Dover Books, 1927.). Desde então, muitas outras obras se seguiram, em diferentes países, testemunhando uma longa tradição deste cruzamento.

De acordo com Rikou e Yalouri (2018RIKOU, Elpida; YALOURI, Eleana. The Art of Research Practices Between Art and Anthropology. 2018. Disponível em: Disponível em: http://field-journal.com/editorial/introduction-the-art-of-research-practices-between-art-and-anthropology . Acesso em: 02.09.2022.
http://field-journal.com/editorial/intro...
), na Revista “FIELD, a Journal of Socially-Engaged Art Criticism”, a partir dos anos 80 do século XX, a colaboração específica entre artistas e antropólogos tem vindo a produzir resultados profícuos, em particular, pela mútua necessidade de intersecção de práticas de investigação colaborativa, nomeadamente em contextos socialmente fragilizados.

Definir o conceito de arte é sempre uma tarefa árdua e redutora. Porém, sabemos que a arte desempenha diversos papéis, com diferentes significados, amplamente debatidos ao longo dos séculos. Um dos papéis que aqui nos ocupa é o que expõe e reflete os contextos sociais e culturais contemporâneos, nomeadamente aqueles que resultam da análise política de fenómenos causadores de injustiças sociais. No final dos anos 90, o antropólogo Alfred Gell (1998GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Oxford University Press, 1998.) escrevia sobre a arte enquanto abordagem social mais dinâmica. Gell propunha que esta pudesse ser encarada como um sistema de ação social e não apenas como uma abordagem estética, ou de significação. A questão que ele próprio colocava era: "como pode a obra de arte atuar" em vez de "o que significa a obra de arte?" (Gell, 1998GELL, Alfred. Art and Agency: An Anthropological Theory. Oxford: Oxford University Press, 1998., p. 163-164).

No livro recentemente publicado em Portugal, intitulado A Arte de Constituir Cidadania. Juventude, Práticas Criativas e Ativismo, Sarrouy et al. referem: “as artes da cidadania revelam-se enquanto aptidões e energias mobilizadas para o envolvimento na comunidade, nos debates e lutas que constituem a vida e determinam o futuro coletivo” (2022SARROUY, Alix; SIMÕES, José Alberto V.; CAMPOS, Ricardo (eds.). A Arte de Constituir Cidadania. Juventude, Práticas Criativas e Ativismo. Lisboa: Tinta-da-china, 2022., p. 12). E, mais à frente: “As artes da cidadania também exploram formas próprias de fazer política, protagonizadas por ativistas e militantes, que se assumem igualmente como artistas ou criadores”. Nesta mesma obra, refere-se a Isin (2017ISIN, Engin F. Performative Citizenship. In: SHACHAR, Ayelet; BAUBÖCK, Rainer; BLOEMRAAD, Irene; VINK, Maarten (eds.). The Oxford Handbook of Citizenship. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 500-523. DOI: https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780198805854.013.22.
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), salientando que, para este autor, a cidadania também pode conter uma dimensão performativa, em particular na forma como estas artes são veículos cada vez mais comuns para o exercício de ativismos, através do cruzamento de diferentes grupos sociais e comunidades políticas (2022ISIN, Engin F. Performative Citizenship. In: SHACHAR, Ayelet; BAUBÖCK, Rainer; BLOEMRAAD, Irene; VINK, Maarten (eds.). The Oxford Handbook of Citizenship. Oxford: Oxford University Press, 2017, p. 500-523. DOI: https://doi.org/10.1093/oxfordhb/9780198805854.013.22.
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, p. 13).

No contexto artístico, onde os palcos se transformam em lugares de sensibilização política e social, um dos elementos fundamentais, veículo de expressão de emoções é, sem dúvida, o corpo enquanto “lugar de fala”. Os corpos migrantes2 2 Uso o termo “migrantes” sempre a que me refiro, sem distinção, a pessoas em situação de refúgio (refugiados) e imigrantes. , em particular, comunicam entre si e com o público, a partir da legítima apropriação das suas diversas pertenças culturais, visões do mundo, idiomas, modos de se relacionarem e exprimirem. Adquirem, igualmente, uma dimensão potenciadora de ativismos, no sentido em que (re)conquistam o poder de se afirmar, contrariando silenciamentos e invisibilidades forçadas pelos sistemas de acolhimento que tendem a subalternizá-los, falando por eles, e despolitizando-os (Malkki, 2015MALKKI, Liisa H. The need to help: The domestic arts of international humanitarianism [e-book]. USA: Duke University Press, 2015., p. 158). É através do uso do corpo performático, contador de histórias, que os migrantes se reapropriam de capital simbólico, angariam empatias e solidariedades com o público, potenciam diálogos mais construtivos e tendencialmente mais sensíveis às injustiças sociais.

Uma outra obra que merece referência é Arte e Comunidade, coordenada por Hugo Cruz e publicada em Portugal em 2016CRUZ, Hugo (coord.). Arte e Comunidade. 2ª Edição, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016. (2ª edição) pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em mais de quinhentas páginas, apresentam-se abordagens de diferentes autores que refletem sobre a relevância de projetos artísticos de cariz comunitário. Destacam-se exemplos deste cruzamento entre arte comunitária e teatro, música, dança e analisam-se os seus efeitos em contextos tão díspares como o teatro nas prisões, teatro com surdos, mulheres de contextos sociais e habitacionais periféricos (bairros sociais), centros comunitários, entre muitos outros contextos sociais.

Um dos aspetos fundamentais desta obra é colocar em evidência, em cada um dos projetos mencionados, as práticas artísticas comunitárias, de carácter eminentemente transdisciplinar (influenciadas, também, pela antropologia) e como estas contribuem significativamente para a transformação social. Muitos dos contributos invocam o Teatro do Oprimido3 3 O Teatro do Oprimido foi fundado pelo dramaturgo brasileiro Augusto Boal, em 1971. Os principais objetivos desta metodologia teatral são a democratização dos meios de produção, através do acesso das camadas sociais menos favorecidas e, também, a transformação da realidade através do diálogo. , que se tem vindo a constituir como elemento estrutural dos projetos comunitários, implementados em contextos de países muito diversos. Estes projetos mantêm um princípio comum: a ação crítica (e política) através da cocriação entre todos os elementos que dele fazem parte, incluindo, por vezes, o próprio público, para além da capacidade de envolvimento autorreflexivo, entre os vários atores profissionais e, ou, amadores. Também para Salgado (2022)SALGADO, Ricardo Seiça. Etnoteatro como modo partilhado de fazer mundo numa prisão. In: FRADIQUE, Teresa; LACERDA, Rodrigo (orgs.). Modos de Fazer, Modos de Ser: Conexões Parciais Entre Antropologia e Arte [en ligne]. Lisboa: Etnográfica Press, 2022 Disponível em: http://books.openedition.org/etnograficapress/8107.
http://books.openedition.org/etnografica...
, o etnoteatro deve ser encarado como "uma prática crítica e afetiva em que a participação de todos é intensa e colaborativa, e que combina etnografia, conhecimento social e educação artística, de um modo horizontal, criativo e consequente” (2022, p. 5).

Atualmente, o neoliberalismo e o recrudescimento de políticas fascistas e nacionalistas (nalguns países europeus) contribuem para aprofundar as injustiças sociais, tendentes à exclusão de imigrantes e refugiados. Porém, nos países democráticos, onde as narrativas políticas são tendencialmente inclusivas, como é o caso de Portugal, mas onde o aparato institucional é ainda muito insuficiente para as necessidades pragmáticas dos migrantes, os projetos de arte comunitária (teatro, música, dança…) têm proporcionado espaços de familiaridade entre os seus membros, bem como o alargamento das redes sociais.

Estes espaços de partilha coletiva em ambientes protegidos (no sentido em que neles participam pessoas que estão ali presentes com o mesmo fim) têm-se revelado como lugares catárticos, onde os atores, refugiados, imigrantes e também portugueses constroem sociabilidades, tanto no interior como no exterior do grupo, e onde dão visibilidade às suas histórias, frequentemente dramáticas, a partir de um palco aberto à sociedade. Tendencialmente, constroem-se novas solidariedades e empatias, por causas que, antes, apenas eram conhecidas à distância, através dos meios de comunicação social.

Portugal é um país onde o número de pessoas em condição de refúgio é irrisório comparativamente ao total da população4 4 De acordo com o ACNUR (UNHCR), em fevereiro de 2022, Portugal contava com um total de 2,650 refugiados; 303 requerentes de asilo e 45 apátridas. Relativamente aos 3 países de origem, mais significativos, de refugiados temos: Síria: 932; Ucrânia: 443; Iraque: 221. Quanto aos 3 países de origem, mais significativos, de requerentes de asilo, temos: Angola: 34; Gâmbia: 31; Guiné-Bissau: 26. Disponível en: https://www.unhcr.org/publications/operations/623469d0f/bi-annual-fact-sheet-2022-02-portugal.html?query=Portugal. Há ainda a salientar o facto de, em 2020, de Portugal ser o 20º país da União Europeia a acolher refugiados, correspondendo a 0,1% (In: Observatório das Migrações, 2022). . Como consequência, é a própria experiência de um sentimento de vida em comunidade que se encontra ameaçada (Bauman, 2003BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.). Não só são poucos os indivíduos em situação de refúgio que provêm da mesma área de origem, como ainda estão sujeitos à obrigatoriedade de dispersão geográfica pelo país, onde ficam frequentemente a residir em pequenas aldeias constituídas por alguns portugueses, maioritariamente idosos. Esta circunstância, além de impedir a formação de núcleos de sociabilidade de apoio mútuo à inclusão, vem ainda reforçar o sentimento de isolamento e abandono sentido por cada pessoa (Rebelo, 2020REBELO, Dora. Mobilidades e Resistências. Solidariedade informal e atos de cidadania com refugiados, requerentes de asilo e outras categorias moventes, na Europa pós 2015. Tese de doutoramento. ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, 2020., p.161).

Por essa razão, quando surgem projetos artísticos que convidam à participação de migrantes, a adesão destes é bastante significativa. De acordo com os próprios, estes projetos representam um espaço de liberdade, de encontro de amigos, de aprendizagem. Enfim, um lugar onde são verdadeiramente reconhecidos como pessoas e não como “casos” sociais, sujeitos às demandas institucionais. É nos encontros frequentes para as atividades de ensaio de preparação dos espetáculos, que se vão formando redes de relações de confiança, proteção e cuidado, a que os próprios se referem como sendo grupos “substitutos de família”. Isso não significa que a participação de cada interveniente esteja garantida do princípio ao fim do projeto, uma vez que a vida dos migrantes está sempre sujeita a grandes flutuações de mobilidade. Quando se apresenta a possibilidade de aceitarem um emprego remunerado, este é raramente compatível com os horários de ensaio. Sendo o emprego a sua maior prioridade, acontece, frequentemente, que as pessoas com que se termina o projeto não são exatamente as mesmas com que o mesmo se iniciou. Cabe aos diretores artísticos conseguir adaptar-se às flutuações do grupo.

Constatamos, igualmente, que as manifestações artísticas observadas, independentemente das suas variantes, partem de um ponto comum: uma pessoa (diretor artístico) ou coletivo (associação), que já possuía uma visão crítica e política sobre injustiças sociais e direitos humanos (é este o caso de todos os criadores dos grupos que a seguir menciono). Este fator contribui para o facto de que a produção de espetáculos públicos, resultantes destes projetos, torna-se um meio fundamental para exercer ativismos. O palco traz à esfera pública aspetos da vida de refugiados e imigrantes que pertenciam, essencialmente, aos corredores burocráticos e assistencialistas das instituições responsáveis pelo acolhimento. Através da arte estimula-se, junto do público dos espetáculos, o pensamento crítico, a necessidade de exercício de cidadania e de justiça social.

2ª Parte - Os recorrentes problemas institucionais da inclusão social de migrantes e caminhos alternativos

É, justamente, esta vocação da arte inclusiva (teatro, música, dança, performance…) enquanto veículo potenciador de inclusão social que interrelaciona os projetos artísticos que tenho acompanhado, enquanto investigadora. Todos eles têm em comum pessoas que, pela sua situação de vulnerabilidade sociopolítica5 5 “Sociopolítica”, no sentido em que tudo o que diz respeito a pessoas em situação de refúgio provém de um ato político desrespeitador dos direitos humanos e, por isso, com consequências sociais. , ou até biológica (pessoas invisibilizadas pela sua deficiência6 6 Uso o termo “deficiência”, no sentido em que é referenciado no projeto “Dançando com a Diferença”, adiante mencionado. ), almejam pertencer a uma comunidade, construir novas amizades, alargar as redes sociais e encontrar um espaço seguro de expressão. O recurso ao conceito (romantizado) de “família”7 7 A referência ao conceito de “família” tem sido frequentemente referido pelos grupos de teatro com refugiados, como é o caso dos exemplos que a seguir apresento (RefugiActo e Une Histoire Bizarre). como símbolo de conhecimento íntimo e proteção mútua contra as agressões sociais exteriores é recorrente entre os participantes nestes grupos de teatro, como referi anteriormente.

De 2007 até ao presente a minha principal área de investigação tem tido como foco as razões para a dificuldade de inclusão de refugiados na sociedade portuguesa, ancoradas nas suas relações individuais com as instituições responsáveis pelo seu acolhimento e integração8 8 Por vezes, uso o termo “integração”, no sentido em que é o termo utilizado oficialmente e juridicamente, em Portugal. Do ponto de vista antropológico, o conceito de inclusão parece-me muito mais apropriado porque mais abrangente e igualitário em relação à sociedade de acolhimento. , tanto a nível estatal, como a nível de algumas organizações não governamentais. Uma das constatações a que tenho chegado é a de que os discursos proferidos pelos responsáveis políticos governamentais e as narrativas das instituições que gerem são formalmente adequadas em termos de legislação, evocação da defesa dos Direitos Humanos, da solidariedade social e do respeito pelas diversidades culturais e religiosas. Porém, a realidade do dia a dia vivida por refugiados e imigrantes permanece distante das boas intenções oficialmente proclamadas. Na verdade, muito pouco tem mudado ao longo do tempo. Passados vários anos de vivência permanente em Portugal, e apesar da existência de leis tendencialmente inclusivas, as pessoas em situação de refúgio, em particular, continuam a sentir as mesmas dificuldades no acesso às aulas de língua portuguesa, à saúde, ao reagrupamento familiar, ao reconhecimento das suas capacidades e conhecimentos profissionais e académicos, ao emprego, à habitação (Rebelo, 2020REBELO, Dora. Mobilidades e Resistências. Solidariedade informal e atos de cidadania com refugiados, requerentes de asilo e outras categorias moventes, na Europa pós 2015. Tese de doutoramento. ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, 2020., p. 165-182), enfim, a todos os aspetos que podem garantir o acesso aos direitos de cidadania e a uma vida digna e autónoma.

Em parte, as razões para a falha da inclusão de refugiados na sociedade portuguesa devem imputar-se ao Estado, bem como às escolhas dos executivos governamentais, no sentido em que as boas intenções discursivas não têm correspondido a planos estruturados e sistemáticos que sustentem e deem exequibilidade efetiva aos programas de apoio até agora criados. As exceções a esta realidade generalizada verificam-se ao nível municipal, sobretudo nos municípios onde existe um maior número de migrantes e onde existem organizações não governamentais que trabalham de perto com estas populações, como é o caso de Lisboa. A proximidade geográfica conduz, frequentemente, a um empenho maior e mais célere em encontrar mecanismos para a resolução de problemas visíveis relativos a carências sociais de toda a ordem.

A mesma limitação quanto aos financiamentos insuficientes e ao modo negligente como se tratam os problemas estruturais relativos às migrações, em Portugal, tem afetado, constantemente, setores que não lidam apenas com as migrações, mas com os cidadãos de um modo geral (os grupos mais marginalizados socialmente são, claramente, os que mais sofrem com estas políticas). Eis alguns exemplos: reduzido número de funcionários nos serviços públicos; ausência de formação adequada para o desempenho das suas funções, de modo a dar resposta às necessidades dos utentes com quem interagem; recurso à utilização de voluntários impreparados (na maioria das vezes, apenas motivados pelo espírito caritativo), por parte das organizações responsáveis pelo acolhimento e integração de refugiados. Assiste-se, efetivamente, a uma crescente desresponsabilização por parte do aparato estatal que delega em organizações da sociedade civil o dever que lhe compete de acolher, proteger e integrar. Como referem Padilla et al. (2022PADILLA, Beatriz; FRANÇA, Thais; VIEIRA, Adriane. Trajetórias de refúgio: análise de género, intersecionalidade e políticas públicas em Portugal. 1ª ed., Estudos OIM, 71. Lisboa: OIM, 2022.. p. 69):

o distanciamento do Estado do terreno e da experiência quotidiana dos refugiados e a falta de monitorização adequada permite que a ‘não integração’ seja avaliada pelo Estado como uma falha das entidades de acolhimento, as quais também não tinham experiência, e como uma negligência individual, responsabilizando os refugiados pelo seu “fracasso” (Bauman, 1999BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.).

Uma das maiores dificuldades estruturais para uma inclusão eficaz na sociedade dos portadores da condição de refúgio - ou seja, com pleno acesso a todos os direitos consagrados na lei - deve-se, em grande parte, à enorme deficiência no acesso ao ensino da língua portuguesa, destacando-se: a) pouca ou nenhuma oferta de cursos, em particular longe das grandes cidades; b) cursos insuficientes e desadequados à heterogeneidade dos refugiados - de género, países de origem, etnias, idiomas, classe social e formação académica ou profissional; c) falta de preparação adequada dos professores; d) número diminuto de horas de aulas; e) turmas demasiado heterogéneas, onde se misturam, por vezes, pessoas iletradas, com pessoas com altos níveis de estudos superiores. Isto verifica-se apesar do reduzido número de refugiados em Portugal9 9 “Portugal não se encontra entre os principais destinos de proteção internacional no mundo ou na Europa: dos 26,4 milhões de refugiados no mundo em 2020, apenas 2,7 milhões (12,9%) estavam em países da União Europeia (UE27) e desses, Portugal somente acolheu cerca de 2,4 mil, ou seja, 0,1% do total dos refugiados da UE27. Em 2020 Portugal posicionava-se na vigésima posição entre os 27 Estados-membros, por ordem dos que receberam maior número de refugiados para os que receberam menos. Na primeira posição mantém-se a Alemanha, que em 2020 registou 4,5% do total de refugiados do mundo, concentrando 45,6% dos refugiados acolhidos na UE27, ou seja, 1,2 milhões de pessoas". In: Requerentes e Beneficiários de Proteção Internacional em Portugal. Relatório Estatístico do Asilo 2022. Catarina Reis Oliveira. Coleção Imigração em Números Observatório das Migrações Lisboa: ACM, 2022. Estudo disponível em: https://www.om.acm.gov.pt . , comparativamente a outros países europeus, e de um fluxo centrífugo contínuo em direção a outros países da União Europeia (nomeadamente Alemanha) devido, como alegam, às enormes dificuldades de inclusão. “Portugal é bonito e bom para passar férias, mas viver aqui é muito difícil para nós”, dizem-me.

A aprendizagem do idioma do país de residência é um dos fatores estruturantes para uma boa integração (Rebelo, 2020REBELO, Dora. Mobilidades e Resistências. Solidariedade informal e atos de cidadania com refugiados, requerentes de asilo e outras categorias moventes, na Europa pós 2015. Tese de doutoramento. ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, 2020., p. 365). Sem o domínio da língua, encontrar empregos adequados aos seus saberes torna-se uma tarefa hercúlea, para além de serem sistematicamente empurrados para os últimos lugares na longa fila dos cidadãos com nacionalidade portuguesa que também procuram emprego. Do mesmo modo que lhes será muito difícil aceder, ou permanecer com êxito, no ensino superior (bastantes refugiados, homens e mulheres, tinham anteriormente formação académica), onde o esforço para acompanhar a matéria, a somar à insegurança das suas condições de vida, acaba por criar novos sentimentos de desadequação e de desistência do tão almejado percurso académico. A precarização laboral conduz a salários incomportáveis ao sustento de uma família, ou mesmo de cada pessoa individualmente, num país onde o simples acesso à habitação, consagrado na Constituição da República Portuguesa, se tornou proibitivo para a maioria de nós, cidadãos portugueses, devido ao altíssimo valor do arrendamento, ou compra de apartamento, por comparação aos baixos salários.

Os projetos artísticos, nesta perspectiva, podem tornar-se um espaço de resistência às desigualdades, desafiando os sistemas políticos locais, num palco onde as histórias pessoais e coletivas ganham visibilidades. Quando o ensino da língua é parte integrante de projetos artísticos - disponibilizando-se aulas de português outorgadas por professores especializados no ensino da língua para estrangeiros e sensibilizados para a necessidade de adequação a grupos multiculturais - a aprendizagem pode tornar-se mais célere e eficaz ao fazer-se com recurso a metodologias de ensino sustentadas na própria construção das peças teatrais, como foi o caso de três dos projetos aqui mencionados (nomeadamente: o Living Culture Band; RefugiActo e Une Histoire Bizarre).

Durante a minha observação participante pude constatar o gosto de cada um destes atores migrantes nos ensaios semanais, num grupo entre pares onde, para além da liberdade de se exprimirem nos seus próprios idiomas, aprendem a comunicar em português, num ambiente protegido, onde se cultiva a empatia e existe a liberdade e mesmo o incentivo para o uso das respetivas línguas maternas, integrando-as no espaço cénico. Tenho vindo a observar que esta participação de refugiados e imigrantes, enquanto atores das suas próprias histórias, contribui para facilitar o seu processo de inclusão social, ao mesmo tempo que contraria representações estereotipadas. Efetivamente, alguns participantes destes projetos encontram-se já a frequentar o ensino universitário, facilitado pela aprendizagem da língua portuguesa. Outros, conseguiram melhores postos de trabalho, ou maior autonomia na constituição dos seus próprios empregos.

3ª Parte: Os projetos artísticos, com refugiados e imigrantes.

São quatro, os projetos que aqui apresento. O “RefugiActo”10 10 https://www.facebook.com/refugiacto/. foi o primeiro grupo de teatro constituído por refugiados e teve início em 2004. Formou-se no contexto do 1º Centro de Acolhimento do Conselho Português para Refugiados (CPR), em Portugal.

O segundo, intitula-se “Living in a Different Culture”/“Living Culture Band”11 11 https://www.iscte-iul.pt/noticias/1215/inauguracao-curso-com-estudantes-refugiados-living-in-different-culture (2017-2019). Este projeto de investigação-ação que coordenei efetivou-se, inicialmente, num curso dirigido a refugiados e imigrantes que teve como objetivo inicial facultar e facilitar o acesso e integração dos mesmos no meio académico. Dele resultou, espontaneamente, um grupo de música e canto constituído por alunos, de diversas nacionalidades e idiomas, incluindo portugueses, e que se veio a denominar “Living Culture Band”.

O terceiro, denominado “SAFE”12 12 https://danca-inclusiva.com/trabalho/72/safe , é um espetáculo realizado em 2019, produzido pelo grupo “Dançando com a Diferença”. Este grupo existe com caráter permanente e tem por objetivo a inclusão de pessoas com diversas deficiências, nas artes cénicas. O projeto SAFE visou sensibilizar participantes e público em geral, para as dificuldades da vida dos refugiados, na travessia do Mediterrâneo. Neste projeto participei como consultora para as questões de refúgio, tendo sido igualmente convidada a representar-me em palco (enquanto professora), como um dos personagens do espetáculo. É exemplo de um projeto de inclusão que já se tornou internacional e que tem a particularidade de o seu elenco permanente ser constituído, maioritariamente, por pessoas “diferentes”, neste caso: crianças, jovens e adultos com trissomia 21, para além de outras enfermidades.

Finalmente, o quarto projeto: “Une Histoire Bizarre”13 13 https://www.unehistoirebizarre.pt (2021-2022). É o mais recente projeto de artes inclusivas. Visa dar a conhecer as histórias de refugiados e imigrantes, narradas em cena pelos próprios. Teve uma componente de investigação científica que é da minha responsabilidade, enquanto coordenadora, e da minha equipa de investigação, constituída por antropólogos e sociólogos. Até ao momento, foram realizados cinco espetáculos em grandes auditórios, estando prevista a continuação do projeto, com novos participantes.

"RefugiActo"

Figura 1 -
RefugiActo

O Grupo de Teatro “RefugiActo” teve como mentora e coordenadora a professora de português do CPR, Isabel Galvão, que conhecia a eficácia do teatro para a aprendizagem da língua, para além de ter criado metodologias de aprendizagem específicas para alunos refugiados provenientes de vários contextos culturais e linguísticos. As aulas de português passaram a integrar temáticas relacionadas com momentos do quotidiano vividos pelos refugiados na diáspora e nas suas relações com instituições e pessoas, o que contribuiu para um maior envolvimento e adesão dos alunos quer às aulas de português, quer ao grupo de teatro, já que se sentiam realmente representados.

Foi através da partilha de experiências mútuas que se facilitou o diálogo no interior do grupo e se construiu a autoconfiança e a autonomia. Tal como é referido por Galvão e Cabrita no capítulo “Refúgio e Teatro: Dormem Mil Gestos nos Meus Dedos” (Galvão, Cabrita, 2019GALVÃO, Isabel; CABRITA, Sofia. Refúgio e Teatro: Dormem Mil Gestos nos Meus Dedos. In: CRUZ, Hugo (coord.). Arte e Esperança. Percursos da Iniciativa PARTIS 2014-2018. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, setembro 2019, p. 193-200., p. 196) “os participantes da expressão dramática eram convidados a partilhar a sua experiência, manifestando invariavelmente interesse e entusiasmo por aprenderem palavras novas, ficarem a conhecer mais sobre a cultura portuguesa, estarem com os outros e por lhes proporcionar momentos de alegria e bem-estar”.

O êxito deste projeto teatral deveu-se, de modo significativo, ao profissionalismo e dedicação da professora de português e também da encenadora profissional, Sofia Cabrita. Juntas, acolheram no projeto pessoas de proveniências muito diferentes (abarcando os cinco continentes), diferentes idades e géneros, diferentes antecedentes socioculturais, sem redes sociais nem familiares, sem ferramentas de comunicação em português e sem formação ou experiência em teatro.

Uma das formas de financiamento do RefugiActo tem sido através das candidaturas à Iniciativa PARTIS14 14 Tal como diz no site: “Práticas Artísticas para a Inclusão Social: “PARTIS é uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian que apoia, através de financiamento e ações de capacitação, organizações que desenvolvem projetos que utilizam as práticas artísticas (plásticas, audiovisuais e/ou performativas) como ferramenta privilegiada para promover a inclusão social” (disponível em: https://gulbenkian.pt/programas/programa-gulbenkian-coesao-e-integracao-social/inovacao-e-investimento-social/partis/). , da responsabilidade da Fundação Calouste Gulbenkian.

Não é fácil ver aprovadas as candidaturas a estes programas. É importante garantir uma equipa de retaguarda, com experiência e conhecimento prévio dos procedimentos a seguir. Outro dado que pode influenciar positivamente a decisão de apoio a projetos é a existência de um histórico com bons resultados e dados mensuráveis que indiquem a sustentabilidade dos mesmos.

O RefugiActo tem conseguido fazê-lo, essencialmente, porque os refugiados que dele fazem parte (e que vão flutuando na sua composição, ao longo dos anos), veem enormes benefícios na participação ativa no grupo, já que potenciam, através do teatro, o êxito na aprendizagem de português e, consequentemente, uma melhor inclusão social. Contudo, os financiamentos são escassos. Após o término do financiamento, em 2018, o RefugiActo voltou a ter que se auto sustentar com os poucos recursos que vai conseguindo angariar. Tal como referi na minha tese de doutoramento (Santinho, 2011SANTINHO, Cristina. Refugiados e requerentes de asilo em Portugal: contornos políticos no campo da saúde. Tese de doutoramento. Lisboa, ISCTE-IUL, 2011. Disponível em: https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/179891/Tese48_paginacao_06_lr.pdf/700654fe-64e8-401d-9d8d-3b13b2da125c.
https://www.om.acm.gov.pt/documents/5842...
, p. 258) a seu propósito:

As peças teatrais apresentadas dão também voz a um sentimento coletivo dos refugiados em Portugal, através das narrativas de sofrimento que apresentam ao público. Diria que o RefugiActo permite potenciar as vozes silenciadas destes atores sociais, no palco, mas apenas figurantes sem nome, no contexto da sociedade portuguesa.

“Living in a Different Culture/ Living Culture Band”

Figura 2 -
“Living in a Different Culture/ Living Culture Band”

De 2017 a 2019, implementei um projeto, na minha universidade, intitulado “Living in a Different Culture” (LDC), (entretanto interrompido pela pandemia Covid-19) e que aqui vou resumir, de modo a estabelecer a ponte com outro projeto que deste resultou, o “Living Culture Band”.

Ambos projetos se enquadram na minha perspetiva da Antropologia Pública (ou Antropologia Aplicada), no sentido em que, como referem Borofsky, De Lauri

a definição básica de antropologia pública está relacionada com a capacidade (e até certo ponto dever) da antropologia de efetivamente levar em conta (não apenas em termos de publicações, mas, de forma abrangente, através de diferentes produções, eventos, práticas docentes, ação e participação) problemas que estão além da disciplina. (Borofsky, De Lauri, 2019BOROFSKY, Robert; DE LAURI, Antonio. Public Anthropology in Changing Times. Public Anthropologist, v. 1, n. 1, p. 3-19, 2019., p. 5-6)

A implementação destes projetos resultou da constatação de que as políticas públicas estatais que visam a integração social das pessoas em situação de refúgio, nomeadamente no acesso ao ensino superior, não contemplam a valorização e reconhecimento dos seus percursos académicos interrompidos pelas guerras e perseguições de vária ordem.

Em 2016, propus ao departamento de antropologia e centro de investigação de que faço parte, um novo projeto que tinha como objetivo promover o acolhimento de imigrantes e refugiados nos níveis de licenciatura, mestrado e doutoramento. Tal implicou a elaboração de um curso de curta duração, especialmente desenhado para esse fim. Durante 5 semanas os estudantes aprendiam português com um professor especializado em português para estrangeiros e recebiam formação em várias áreas relativas a Portugal (diversidade cultural e social; diversidade de género; diversidade religiosa; conceitos de família; gastronomia, entre outros temas). As aulas foram dadas, voluntariamente, por colegas antropólogos, também eles professores universitários. Ao grupo de docentes vieram associar-se sociólogos, psicólogos e juristas (especialistas em lei de asilo), para além de alguns estudantes de antropologia.

Sobre este curso, que durou dois anos letivos, é necessário esclarecer que não envolveu financiamentos, nem candidaturas a projetos e que teve o apoio incondicional da Reitoria, que colocou à disposição dos alunos e professores todos os meios logísticos necessários para a realização do mesmo. Houve ainda três outros apoios: o CPR e o Alto Comissariado das Migrações (ACM), que fizeram a divulgação do curso, e a Câmara Municipal de Lisboa (Pelouro da Ação Social), que deu apoio logístico e colaborou na preparação da festa de encerramento. O curso foi igualmente gratuito para os alunos, tendo alguns deles, no final, recebido bolsas de estudo para estudar no Iscte-IUL15 15 Cinco destes alunos prosseguiram os seus estudos, a nível de mestrado, em várias áreas. A reitoria do ISCTE-IUL decidiu assumir este encargo, de forma a que estes alunos não tivessem quaisquer despesas. .

Um dos resultados deste projeto foi o subprojecto que lhe sucedeu, a que demos o nome de “Living Culture Band”. Para a festa de encerramento do LDC foram programados vários momentos como a tradicional entrega de diplomas, gastronomia árabe elaborada por alguns dos alunos (que, posteriormente, veio a resultar na abertura de um dos mais prestigiados restaurantes de comida síria, em Lisboa) e um concerto musical. Este foi o culminar de diferentes diálogos com origens em músicas tradicionais tocadas por alunos refugiados provenientes da Eritreia, Síria e Camarões, acompanhados pelo professor de português, também ele músico. Para além do prazer sensorial da escuta, dei-me conta de algo, certamente já conhecido de muitos ligados a esta forma de arte, mas que nunca tinha presenciado enquanto processo: aquelas expressões musicais, ensaiadas em conjunto por pessoas que não partilhavam a mesma língua materna, nem os mesmos referentes culturais, eram o perfeito exemplo de como a arte que envolve a música e o canto não requer nem mediação, nem tradução. Mais, ao ser praticada em conjunto, permite criar sentimentos de comunhão e empatia que em contextos de exclusão social podem desempenhar um papel integrador.

O grupo continuou a ensaiar nas instalações da universidade, tendo-se apresentado várias vezes em público, com repertórios que incluíam música portuguesa (fado), eritreia e camaronesa. O elo aglutinador foi, novamente, o professor de português que deu aulas no LDC e que também é músico amador. O facto de estar com os alunos diariamente, ao longo das cinco semanas, ajudou a criar relações de proximidade e confiança entre todos, base fundamental para o surgimento desta banda. Tal como aconteceu na sequência da formação académica do projecto LDC, também neste caso alguns dos refugiados e imigrantes que participaram nesta experiência musical encontraram os seus caminhos para a autonomia, tornando-se profissionais contratados noutros grupos artísticos, nomeadamente no Grupo “Dançando com a Diferença”, que refiro em seguida16 16 Foi o caso da Celestine Nzanga, refugiada proveniente dos Camarões, infelizmente falecida em 2021. .

“Dançando com a Diferença”17 17 https://danca-inclusiva.com/

Figura 3 -
“Dançando com a Diferença”

O terceiro projeto intitula-se: “Dançando com a Diferença”. Tem como residência permanente o Funchal, capital da Ilha da Madeira. Internacionalizou-se com a participação de espetáculos em diversos países e em diversos continentes, somando já duas décadas de atividade. Um dos lemas do projeto, proferido pelo diretor artístico, Henrique Amoedo é: “A beleza da dança é ser e estar para todos e em todos os lugares”. Podemos ler no site18 18 Mencionado anteriormente. :

O Dançando com a Diferença surgiu como um projeto piloto no ano de 2001 na Região Autónoma da Madeira. Pretendia-se implementar atividades de Dança Inclusiva, inexistentes na Madeira naquela altura e, anos depois, constituiu-se como uma companhia profissional que, atualmente, tem vários objetivos destacando-se, entre eles a possibilidade de juntar em palco pessoas com e sem deficiências por uma só causa: Dançar.

Tornou-se uma referência nacional e internacional dentro das artes inclusivas, ocupando um patamar de referência dentro do panorama artístico nacional. Assume como missão:“promover a Inclusão Social e Cultural através da Dança Inclusiva”. Como visão:“modificar a imagem social das pessoas com deficiência e conquistar espaços para a diversidade humana no universo profissional das Artes Contemporâneas”. E tem como valores: “desenvolver o potencial criativo, produtivo e a valorização profissional dos grupos inclusivos; estimular o trabalho em equipa e a evolução das sociedades no sentido da valorização das capacidades e não discriminação das pessoas com deficiência, com a sua inclusão nos mais variados setores sociais”.

Destaco, em particular, um dos muitos espetáculos da companhia e ao qual dei o meu contributo, enquanto investigadora e consultora, sobre a problemática dos refugiados. Este espetáculo, levado à cena em 2019, intitulou-se: SAFE. Tal como é também apresentado no site,

SAFE(2019) será uma viagem por caminhos que não necessariamente são aqueles que escolhemos, mas sim aqueles que tivemos como opção para fugir com a (falsa) certeza (interna) de que encontraríamos um mundo melhor. Assim como nas duas peças anteriores, a dança, o vídeo e a música ao vivo continuarão a ser uma base sólida para que possamos nos posicionar de frente para a atualidade. Nesta última obra que compõe a trilogia da dignidade e das relações humanas (ou da falta delas), o observar ou o agir será, sempre, uma decisão individual.

Este grupo é mais um testemunho de como a arte é potenciadora de inclusões várias: não só de pessoas sem e com deficiências (nomeadamente casos de trissomia 21), como também ao nível da diversidade de género, idade e origens dos seus participantes. Tal como referi no projeto anterior, foi graças a este grupo, e em particular ao seu mentor, Henrique Amoedo, que se acolheu, profissionalmente, uma das refugiadas que antes fazia parte do LDC.

O “Dançando com a Diferença” é, sem dúvida, um marco de inclusão na Ilha da Madeira. Destaca-se dos outros projetos aqui mencionados pelos anos de experiência e por ser constituído por uma equipa de profissionais que, graças ao currículo desenvolvido ao longo dos anos, tem sabido manter-se ativo através da angariação de apoios financeiros constantes. Uma forte componente de parceiros, incluindo o do governo municipal do Funchal, são, igualmente, parte do sucesso deste projeto. Assume uma componente educativa e social fundamental, visível através do combate ao estigma e discriminação de pessoas com trissomia 21. Tem sido, frequentemente, a única resposta a muitas famílias da ilha que não tinham, até então, como valorizar as capacidades de muitas das crianças e jovens com esta enfermidade e que fazem, agora, parte integrante do projeto, participando ativamente em espetáculos internacionais de dança.

“Une Histoire Bizarre”19 19 https://www.unehistoirebizarre.pt/; https://www.youtube.com/watch?v=qabt79d9zEE

Figura 4 -
“Une Histoire Bizarre”

“Une Histoire Bizarre” é um projeto de teatro participativo criado a partir de histórias de imigrantes e refugiados residentes em Portugal e que constituem o principal elenco do espetáculo. À semelhança do “SAFE” (Dançando com a Diferença), a minha participação surgiu através de um convite do criador e diretor artístico, Sebastião Martins, para fazer parte do mesmo enquanto investigadora. Na primeira reunião entre ambos, Sebastião disse-me que pretendia começar um projeto de inclusão de migrantes, através da arte participativa, sendo que também pretendia um olhar científico sobre o mesmo. Sebastião é médico e, durante algum tempo, foi voluntário em vários campos de refugiados, nomeadamente em Mória, Grécia. Foi, aliás, através dessa experiência e de uma consulta (de saúde) a uma residente refugiada aí instalada, que lhe surgiu a ideia de constituir este projeto e de o intitular “Une Histoire Bizarre” (ver site disponibilizado em rodapé). Apresentou-me a ideia geral do que pretendia fazer e informou-me que já tinha iniciado os contactos com vista à formação do grupo20 20 Nomeadamente, com o (igualmente) diretor artístico e encenador, Júlio Martín, bem como com elementos que viriam a constituir a equipa técnica: profissionais de interpretação, voz e música; expressão teatral; corpo e movimento, entre outros. Da equipa técnica, passou também a fazer parte um meu orientando de mestrado que se propôs fazer investigação sobre pessoas refugiadas, tendo como principal metodologia o uso da imagem (fotografia e vídeo-documentário). .

Sebastião começou por contactar associações e organizações não governamentais de apoio a migrantes, com o intuito de apresentar o projeto, convidando-os a fazer parte do mesmo. Foram selecionados através de entrevistas, com critérios como a manifestação de interesse e disponibilidade de tempo. Pouco a pouco, o elenco foi-se compondo: 14 pessoas, homens e mulheres de vários grupos etários, sem experiência de teatro, de 10 países diferentes: Sudão, Síria, Paquistão, Moçambique, Irão, Iraque, Ucrânia, Nigéria, Afeganistão e Gâmbia. O guião para a peça foi sendo construído entre os participantes, partindo das histórias e memórias de cada um. Do espetáculo constam igualmente danças, canções, poemas das terras de origem, mas também relatos das próprias experiências de vida antes da grande viagem em direção à Europa, já em Portugal, bem como as aspirações para o futuro. O site do projeto conta-nos a história de cada uma destas pessoas21 21 https://www.unehistoirebizarre.pt/ (abrir no separador “participantes”) .

À semelhança dos outros projetos aqui apresentados, a viabilidade e êxito desta experiência assentam, a meu ver, em quatro elementos fundamentais: os princípios humanistas da equipa, as parcerias, os financiamentos e, obviamente, os participantes, isto é, pessoas migrantes que desejam sair da invisibilidade a que são sistematicamente remetidas, contando as suas histórias, através do teatro, dança ou música.

A pedido do diretor, coordenei uma equipa constituída por antropólogos e sociólogos, com um objetivo específico: apresentar dados quantitativos, através de aplicação de inquéritos relativos às expetativas do público que assistiu aos espetáculos e do elenco. No total foram realizados cinco espetáculos em grandes auditórios, tendo-se contabilizado mais de mil espetadores no total. Os resultados deste estudo seriam importantes, na medida em que constituiriam evidências científicas que consubstanciassem a maior facilidade na aprovação de candidaturas a financiamentos posteriores22 22 O relatório produzido a partir desta investigação surge de um trabalho de articulação entre o Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), instituição científica onde me enquadro, e a “Associação Wamãe I Antropologia Pública”, que constituiu a equipa que coordenei para a aplicação e análise dos inquéritos. No total, foram inquiridos 12 dos 14 participantes (migrantes) e 331 elementos do público, de forma aleatória. Eis o acesso ao mesmo: https://mcusercontent.com/9df242707bbeb4ef1d055b3ae/files/9d33912a-1c2a-fd41-6b9e-375cf4e3520c/Relato_rio_de_pu_blicos_e_de_elenco_2022.pdf. .

Na pesquisa efetuada procurou-se perceber como é que tanto o público, como o elenco, analisam o potencial do projeto e em que medida este poderia contribuir para dar maior visibilidade às questões de refúgio e quebra de estereótipos associados a esta condição. A recolha de dados conduzida no terreno pela equipa incidiu, além disso, sobre as visões que o público possui sobre a condição de refugiado; as condições de acolhimento de pessoas com este estatuto; a perceção que o elenco formou sobre a integração em Portugal.

O tratamento e análise dos dados conduziu, resumidamente, às seguintes conclusões:

  • A visibilidade das histórias individuais de refugiados e imigrantes contribui para diminuir generalizações e preconceitos dos portugueses acerca destes cidadãos.

  • A participação no projeto, isto é, o facto de as pessoas em situação de refúgio, ou imigrantes, subirem a um palco e serem ouvidos e vistos por um público vasto, contribui para um aumento da autoestima e o reforço da confiança em si, o que irá facilitar a resolução de diversos tipos de dificuldades, no dia a dia.

  • A experiência da interculturalidade, em particular o tempo passado em conjunto durante ensaios e espetáculos, ofereceu oportunidades para pessoas de diferentes culturas e origens sociais se conhecerem, quebrarem preconceitos, perceberem e aceitarem melhor contextos culturais menos familiares, com que se confrontam num quotidiano cada vez mais diverso.

  • A iniciativa contribui para a quebra de “barreiras culturais de género”. Ao longo dos ensaios e, em particular, nos exercícios de relaxamento, os participantes - homens e mulheres, inicialmente desconhecidos uns dos outros – desenvolveram, paulatinamente, uma relação diferente com o corpo; com o próprio corpo e com o corpo dos outros. Se no início não se tocavam e muito menos se olhavam nos olhos devido a tabus religiosos e culturais, após algumas semanas de ensaios o evitamento mútuo, em particular entre homens e mulheres, deu lugar ao abraço, a uma comunicação mais aberta e sem tabus, ao desenvolvimento de relações de confiança e mesmo amizade.

  • Uma atitude generalizada e permanente de reconhecimento e admiração por parte do elenco face à abertura, sensibilidade e dedicação das equipas técnicas, artísticas e de produção. A sensibilidade que estas demonstraram na interação e trabalho com pessoas que não possuem uma língua comum, que vivem em condições de fragilidade social e económica e que decidiram expor essas mesmas fragilidades em termos próprios fez a diferença num projeto com as características deste, distanciando-se definitivamente de uma lógica de vitimização e de criação artística “pura”, que trabalha com profissionais e com códigos de interação previamente definidos.

4ª Parte - A arte também pode cumprir um papel social

Para finalizar, uma reflexão sobre a experiência de fazer investigação antropológica na interseção entre arte e intervenção social. Qual a razão para considerarmos que a arte, em particular, a arte participativa, é um dos melhores veículos para persuadir a consciência social de que é preciso desenvolver políticas públicas que levem à inclusão de grupos ou pessoas excluídos? A resposta mais imediata é: porque a arte nos chama a atenção para as problemáticas sociais, através de uma relação emotiva. Como Carolline Lenette refere (2019LENETTE, Caroline. Arts-Based Methodes in Refugee Research. Creating Sanctuary. Australia: Springer, 2019. DOI: https://doi.org/10.1007/978-981-13-8008-2.
https://doi.org/10.1007/978-981-13-8008-...
, p. vii, tradução livre),

os métodos baseados nas artes, evocam novas formas de conhecimento e compreensão. Isto é, através de métodos participativos, somos capazes de entrar em contacto com as nossas próprias experiências e com as experiências vividas por outros, através de metodologias que exigem uma reflexão crítica. O papel contra-hegemónico do trabalho produzido, através de metodologias artísticas, permite-nos conectar com mundos micro-relacionais, numa relação subjetivo-reflexiva; conectar os nossos mundos de sentimentos com os mundos de sentimentos do 'outro’.

Mas, mesmo quando estes projetos se concretizam em espetáculos abertos ao público, difundidos nas redes sociais e nos meios de comunicação, como se poderá garantir que haja, efetivamente, um investimento político e financeiro que reverta não só para os participantes diretos dos projetos através de ações concretas, mas, também, que a sensibilização política e social, daí resultante, seja acompanhada de mudanças estruturais, em prol da inclusão das minorias desfavorecidas?

Um dos aspetos que me parece fundamental, e que está subjacente nos projetos que mencionei, é que partiram da sociedade civil, isto é: organizações, ou mesmo pessoas individuais, que desejavam cocriar iniciativas artísticas nas quais participassem ativamente refugiados e imigrantes. Concomitantemente, os seus autores e responsáveis consideraram que, havendo uma abordagem científica (em particular da antropologia e sociologia), ficaria salvaguardada, desde o início, a aplicação de metodologias de investigação conducentes à análise e produção de dados que pudessem reforçar a adequabilidade dos resultados e a sua utilização posterior em candidaturas a financiamentos.

Para tal, tomaram-se em conta os conhecimentos já anteriormente adquiridos sobre migrantes, na sociedade portuguesa; procuraram-se novas referências teóricas que abordassem a arte inclusiva; traçaram-se objetivos e metodologias específicas aplicadas a cada projeto; reforçou-se a observação participante; estabeleceram-se diálogos contínuos, tanto com os responsáveis dos projetos quer com os migrantes envolvidos.

Parece-me importante refletir um pouco sobre a importância das parcerias. O cumprimento dos objetivos de um projeto, e também a sua eficácia junto aos grupos e contextos a quem se dirige, depende do envolvimento prévio das populações locais e/ou das organizações que as representam (ONGs) e que estão implementadas no mesmo território. O seu impacto será tanto maior quanto melhor se sentir representada essa mesma população. É igualmente pertinente garantir o apoio das autarquias locais, tanto por razões políticas, como financeiras e até logísticas. Cabe, em primeiro lugar, aos responsáveis políticos saber cuidar da sua população, em particular a mais vulnerabilizada, já que têm responsabilidades sobre o território social que administram. Esse apoio (político, logístico e financeiro) ganha ainda maior expressão se for concedido, não apenas por via de programas de apoio social a grupos excluídos - o que, infelizmente, reforça o estigma e os estereótipos -, mas, sobretudo, através de programas de apoio cultural. Os migrantes que participam nestes projetos devem também ser considerados produtores de cultura, já que dão o seu contributo ativo para o enriquecimento da diversidade do nosso tecido social e cultural.

Outros contributos relevantes são as universidades e centros de investigação (através da produção de conhecimento); os institutos de apoio social estatal, especialmente vocacionados para o acolhimento dos migrantes; as confissões religiosas de caráter humanista e, ainda, as instituições de âmbito privado, como é o caso de determinadas empresas (através de patrocínios).

Outro elemento que contribui para a garantia de eficácia destes projetos artísticos e sociais é, como mencionamos anteriormente, o profissionalismo dos seus técnicos, a par dos princípios humanistas dos elementos envolvidos. Verificou-se que, em todos os projetos mencionados, os formadores (diretores técnicos, encenadores, coreógrafos, bailarinos, músicos, fotógrafos) eram profissionais com currículos de excelência. Esta profissionalização foi sempre determinante para que os espetáculos não fossem desconsiderados como “amadores”23 23 Não desconsideramos, de nenhum modo, a importância do trabalho amador, já que tem a sua própria função social. e, sobretudo, para que a relação com os grupos vulnerabilizados que deles fazem parte implicasse, sempre, dignidade e respeito pela diferença.

Nem todos os profissionais das artes possuem uma consciência social ativa ou, sequer, sabem o que significa ser refugiado ou imigrante. Mas, enquanto antropólogos engajados, podemos dar o nosso contributo ao planeamento de outros projetos, já que somos mediadores de perspetivas e conhecimentos diversos, no sentido em que estabelecemos um compromisso entre grupos culturais e sociais distintos e as instituições públicas e privadas que com eles interagem. A nossa maior colaboração talvez seja poder informar, contextualizando politicamente, sobre as vidas quotidianas das pessoas migrantes para, em seguida, partilharmos o que sabemos sobre a importância da escuta ativa e atenta das histórias das pessoas, de modo a não contribuir para estigmatizações redutoras (ninguém é refugiado. Quando muito está-se numa situação de refúgio).

Um outro aspeto relevante é a construção de relações de proximidade entre os técnicos (profissionais de teatro) e as pessoas beneficiárias dos projetos. Nas residências artísticas, por exemplo, o tempo dedicado aos ensaios e, simultaneamente, à aprendizagem da língua do país de acolhimento desempenha um papel crucial porquanto permite a todos conhecer-se melhor, criar laços de confiança e até de amizade. É nos contextos de proximidade que as histórias pessoais dos refugiados e imigrantes vão sendo partilhadas e as experiências passadas sobre perseguição política, tortura, ou violência de género, se manifestam. É também aqui que a arte e a antropologia aplicada se encontram: compreende-se o lugar da fala e da escuta ativa, outorgando-lhes um sentido sociocultural, político e também artístico.

Relativamente à sustentabilidade, a arte, enquanto subsídio para a inclusão social, não pode estar sujeita a financiamentos pontuais e de curta duração. Deve, sim, fazer parte de um sistema holístico (suporte financeiro, educativo, social e cultural) pensado em permanência. Por essa razão, as estratégias de continuidade das ações devem ser projetadas no início e não quando o mesmo se aproxima do final. Porque no processo de desenvolvimento, oferecem-se expetativas de novos e melhores futuros às pessoas que neles participam. Em particular, as pessoas vitimizadas, vulnerabilizadas, excluídas da sociedade contam com a sua participação nos projetos, como alavanca para refazer as suas vidas, uma vez que foram adquirindo mais competências. Frustrar estas expetativas é contribuir para pôr em causa as possibilidades de inclusão digna.

De um modo geral, as associações responsáveis pelos projetos artísticos produzem relatórios periódicos, abertos a escrutínio. Cabe aos financiadores analisá-los e avaliar a continuidade do seu apoio, em função da qualidade e eficácia demonstrada. Contudo, raramente isso acontece: os ciclos de financiamento são curtos (geralmente um ano, ou menos), o que faz com que para existir continuidade no trabalho desenvolvido é necessário construir novos projetos de modo a concorrer a novas candidaturas.

Conclusão

Os princípios subjacentes às metodologias baseadas nas artes inclusivas e participativas ajudam a promover a cidadania sociocultural dos migrantes e outros excluídos, e contribuem, igualmente, para estimular o pensamento crítico, tanto dos próprios, como do público que assiste aos espetáculos.

De acordo com Finley (2008FINLEY, Susan. Arts-based research. In: KNOWLES, Gary; COLE, Ardra (eds.). Handbook of the arts in qualitative research: Perspectives, methodologies, examples, and issues. Thousand Oaks: Sage Publications, 2008, p. 71-91.), a investigação baseada nas artes representa uma epistemologia particular para dar sentido ao mundo à nossa volta. Como um paradigma de investigação alternativo por direito próprio, esta pode alargar "as possibilidades limitadas que a mente didática produz" (Foster, 2016FOSTER, Victoria. Collaborative arts-based research for social justice. Oxon, UK: Routledge, 2016., p. 8), ao encorajar o uso da criatividade educativa, nomeadamente através de novas epistemologias no ensino da língua. Constatei essa mesma possibilidade quando, ao observar as dinâmicas metodológicas no ensino de português nos projetos artísticos aqui mencionados, me apercebi que a eficácia da aprendizagem da língua, nos alunos migrantes, era substancialmente maior do que a obtida através dos cursos formais existentes providenciados pelo Estado. Tal, deve-se a vários fatores: as relações de proximidade e confiança entre professores e alunos; o tempo passado em conjunto; as metodologias de aprendizagem que não se restringem à compreensão das palavras descontextualizadas, mas àquelas que estão intrinsecamente relacionadas com o contexto social quotidiano.

Neste sentido, podemos considerar que a aprendizagem da língua, através de projetos artísticos, configura um ato político humanizador, ancorado nas suas próprias experiências de vida e necessidades atuais. Talvez os programas estatais de apoio aos refugiados possam considerar, a partir destas e outras experiências, que a inclusão de refugiados e imigrantes na sociedade de acolhimento não devem depender apenas dos processos burocráticos e profundamente assistencialistas.

Os refugiados e imigrantes, que participam nestes projetos, não são nunca meros espectadores. Tornam-se, antes, produtores culturais, intervindo diretamente nas decisões sobre o papel e a personagem que vão representar, a história que vão contar, ou o idioma que vão usar em palco. É, pois, nessa qualidade de produtores de cultura que devem ser valorizados, enquanto contribuintes significativos para a sociedade que os acolheu e não como meros “casos sociais” que têm que ser “resolvidos” a custo pelas entidades oficiais formalmente responsáveis por eles.

Como antropóloga defendo em absoluto a multiplicação de projetos como os que referi acima e cuja natureza e propósito é a humanização, através do incentivo à aprendizagem partilhada de diversidades. Talvez criando novos e mais produtivos diálogos com as autoridades estatais possamos abrir o leque das alternativas de inclusão, através de projetos mais criativos, prazenteiros e, por isso, potencialmente mais eficazes. Através desses diálogos contribuímos, todos, para a legitimação do pensamento crítico, participando ativamente na sociedade, através do reconhecimento e valorização dos diferentes modos de estar e viver a vida que nos trazem os migrantes que acolhemos.

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  • REBELO, Dora. Mobilidades e Resistências. Solidariedade informal e atos de cidadania com refugiados, requerentes de asilo e outras categorias moventes, na Europa pós 2015 Tese de doutoramento. ISCTE, Instituto Universitário de Lisboa, Portugal, 2020.
  • RIKOU, Elpida; YALOURI, Eleana. The Art of Research Practices Between Art and Anthropology 2018. Disponível em: Disponível em: http://field-journal.com/editorial/introduction-the-art-of-research-practices-between-art-and-anthropology Acesso em: 02.09.2022.
    » http://field-journal.com/editorial/introduction-the-art-of-research-practices-between-art-and-anthropology
  • SALGADO, Ricardo Seiça. Etnoteatro como modo partilhado de fazer mundo numa prisão. In: FRADIQUE, Teresa; LACERDA, Rodrigo (orgs.). Modos de Fazer, Modos de Ser: Conexões Parciais Entre Antropologia e Arte [en ligne]. Lisboa: Etnográfica Press, 2022 Disponível em: http://books.openedition.org/etnograficapress/8107
    » http://books.openedition.org/etnograficapress/8107
  • SANTINHO, Cristina. Refugiados e requerentes de asilo em Portugal: contornos políticos no campo da saúde Tese de doutoramento. Lisboa, ISCTE-IUL, 2011. Disponível em: https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/179891/Tese48_paginacao_06_lr.pdf/700654fe-64e8-401d-9d8d-3b13b2da125c
    » https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/179891/Tese48_paginacao_06_lr.pdf/700654fe-64e8-401d-9d8d-3b13b2da125c
  • SARROUY, Alix; SIMÕES, José Alberto V.; CAMPOS, Ricardo (eds.). A Arte de Constituir Cidadania. Juventude, Práticas Criativas e Ativismo Lisboa: Tinta-da-china, 2022.
  • SHUMAM, Amy; BOHMER, Carol. Representing trauma: political asylum narrative. The Journal of American Folklore, v. 117, n. 466, p. 396-414, 2004.
  • 1
    Este artigo resulta de uma investigação que é também parte integrante do seguinte projeto: Negotiating Livelihoods under transformative politics: crisis, policies and practices in Portugal 2010-20” PTDC/SOC-ANT/32676/2017.
  • 2
    Uso o termo “migrantes” sempre a que me refiro, sem distinção, a pessoas em situação de refúgio (refugiados) e imigrantes.
  • 3
    O Teatro do Oprimido foi fundado pelo dramaturgo brasileiro Augusto Boal, em 1971. Os principais objetivos desta metodologia teatral são a democratização dos meios de produção, através do acesso das camadas sociais menos favorecidas e, também, a transformação da realidade através do diálogo.
  • 4
    De acordo com o ACNUR (UNHCR)ACNUR. Portugal Fact Sheet. 2022. Disponível em: https://www.unhcr.org/publications/operations/623469d0f/bi-annual-fact-sheet-2022-02-portugal.html?query=Portugal.
    https://www.unhcr.org/publications/opera...
    , em fevereiro de 2022, Portugal contava com um total de 2,650 refugiados; 303 requerentes de asilo e 45 apátridas. Relativamente aos 3 países de origem, mais significativos, de refugiados temos: Síria: 932; Ucrânia: 443; Iraque: 221. Quanto aos 3 países de origem, mais significativos, de requerentes de asilo, temos: Angola: 34; Gâmbia: 31; Guiné-Bissau: 26. Disponível en: https://www.unhcr.org/publications/operations/623469d0f/bi-annual-fact-sheet-2022-02-portugal.html?query=Portugal. Há ainda a salientar o facto de, em 2020, de Portugal ser o 20º país da União Europeia a acolher refugiados, correspondendo a 0,1% (In: Observatório das Migrações, 2022Observatório das Migrações. Requerentes e Beneficiários de Proteção Internacional em Portugal. Relatório Estatístico do Asilo, 2022. Lisboa: ACM, 2022. Disponível em: https://www.om.acm.gov.pt/documents/58428/1489887/Relat%C3%B3rio+Asilo+2022+OM.pdf/eba0bc61-c084-4407-b1c5-092229144248.
    https://www.om.acm.gov.pt/documents/5842...
    ).
  • 5
    “Sociopolítica”, no sentido em que tudo o que diz respeito a pessoas em situação de refúgio provém de um ato político desrespeitador dos direitos humanos e, por isso, com consequências sociais.
  • 6
    Uso o termo “deficiência”, no sentido em que é referenciado no projeto “Dançando com a Diferença”, adiante mencionado.
  • 7
    A referência ao conceito de “família” tem sido frequentemente referido pelos grupos de teatro com refugiados, como é o caso dos exemplos que a seguir apresento (RefugiActo e Une Histoire Bizarre).
  • 8
    Por vezes, uso o termo “integração”, no sentido em que é o termo utilizado oficialmente e juridicamente, em Portugal. Do ponto de vista antropológico, o conceito de inclusão parece-me muito mais apropriado porque mais abrangente e igualitário em relação à sociedade de acolhimento.
  • 9
    “Portugal não se encontra entre os principais destinos de proteção internacional no mundo ou na Europa: dos 26,4 milhões de refugiados no mundo em 2020, apenas 2,7 milhões (12,9%) estavam em países da União Europeia (UE27) e desses, Portugal somente acolheu cerca de 2,4 mil, ou seja, 0,1% do total dos refugiados da UE27. Em 2020 Portugal posicionava-se na vigésima posição entre os 27 Estados-membros, por ordem dos que receberam maior número de refugiados para os que receberam menos. Na primeira posição mantém-se a Alemanha, que em 2020 registou 4,5% do total de refugiados do mundo, concentrando 45,6% dos refugiados acolhidos na UE27, ou seja, 1,2 milhões de pessoas". In: Requerentes e Beneficiários de Proteção Internacional em Portugal. Relatório Estatístico do Asilo 2022. Catarina Reis Oliveira. Coleção Imigração em Números Observatório das Migrações Lisboa: ACM, 2022. Estudo disponível em: https://www.om.acm.gov.pt .
  • 10
    https://www.facebook.com/refugiacto/.
  • 11
    https://www.iscte-iul.pt/noticias/1215/inauguracao-curso-com-estudantes-refugiados-living-in-different-culture
  • 12
    https://danca-inclusiva.com/trabalho/72/safe
  • 13
    https://www.unehistoirebizarre.pt
  • 14
    Tal como diz no site: “Práticas Artísticas para a Inclusão Social: “PARTIS é uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian que apoia, através de financiamento e ações de capacitação, organizações que desenvolvem projetos que utilizam as práticas artísticas (plásticas, audiovisuais e/ou performativas) como ferramenta privilegiada para promover a inclusão social” (disponível em: https://gulbenkian.pt/programas/programa-gulbenkian-coesao-e-integracao-social/inovacao-e-investimento-social/partis/).
  • 15
    Cinco destes alunos prosseguiram os seus estudos, a nível de mestrado, em várias áreas. A reitoria do ISCTE-IUL decidiu assumir este encargo, de forma a que estes alunos não tivessem quaisquer despesas.
  • 16
    Foi o caso da Celestine Nzanga, refugiada proveniente dos Camarões, infelizmente falecida em 2021.
  • 17
    https://danca-inclusiva.com/
  • 18
    Mencionado anteriormente.
  • 19
    https://www.unehistoirebizarre.pt/; https://www.youtube.com/watch?v=qabt79d9zEE
  • 20
    Nomeadamente, com o (igualmente) diretor artístico e encenador, Júlio Martín, bem como com elementos que viriam a constituir a equipa técnica: profissionais de interpretação, voz e música; expressão teatral; corpo e movimento, entre outros. Da equipa técnica, passou também a fazer parte um meu orientando de mestrado que se propôs fazer investigação sobre pessoas refugiadas, tendo como principal metodologia o uso da imagem (fotografia e vídeo-documentário).
  • 21
    https://www.unehistoirebizarre.pt/ (abrir no separador “participantes”)
  • 22
    O relatório produzido a partir desta investigação surge de um trabalho de articulação entre o Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA), instituição científica onde me enquadro, e a “Associação Wamãe I Antropologia Pública”, que constituiu a equipa que coordenei para a aplicação e análise dos inquéritos. No total, foram inquiridos 12 dos 14 participantes (migrantes) e 331 elementos do público, de forma aleatória. Eis o acesso ao mesmo: https://mcusercontent.com/9df242707bbeb4ef1d055b3ae/files/9d33912a-1c2a-fd41-6b9e-375cf4e3520c/Relato_rio_de_pu_blicos_e_de_elenco_2022.pdf.
  • 23
    Não desconsideramos, de nenhum modo, a importância do trabalho amador, já que tem a sua própria função social.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    05 Set 2022
  • Aceito
    03 Out 2022
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