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Conjuntos e comunidades autóctones andinas altiplânicas na cidade de São Paulo: panoramas temporais e espaciais

Highland Andean autochthonous groups and communities in São Paulo city: temporal and spatial panoramas

Resumo.

Hoje em dia, pela cidade de São Paulo, centenas de pessoas vindas do Altiplano andino se expressam através de seus grupos de música e dança de referência autóctone. Em certas alturas do ano, no Canindé e na Vila Guilherme, pelas zonas norte e sul da capital, se escutam instrumentos de vento e bombos tocados sobretudo por conjuntos de homens, geralmente seguidos ou rodeados por mulheres que dançam ao compás desses sopros. Fundados por pessoas nascidas em território (hoje) boliviano ou peruano e dinamizados também por seus filhos já nascidos no Brasil, estes grupos diversificam os retratos bolivianos e peruanos na cidade. A partir da observação participante, da realização de entrevistas e vídeos com integrantes desses conjuntos e comunidades desde 2015, este artigo trará panoramas referenciais histórico, geográfico e estilístico que pretendem dar conta de nomear os grupos formalizados e ativos hoje em dia, relacionando-os a nível cronológico, espacial e performático.

Palavras-chave:
migração andina; São Paulo; música; dança; autoctonia

Abstract.

Today, across the city of São Paulo, hundreds of people from the Andean Highland express themselves through their music and dance groups of indigenous reference. At certain times of the year, in Canindé and Vila Guilherme, in the north and south of the capital, wind instruments and bass drums can be heard played mainly by groups of men, usually followed or surrounded by women who dance to the compass of these wind instruments. Founded by people born in (today) Bolivian or Peruvian territory and also encouraged by their children already born in Brazil, these groups diversify Bolivian and Peruvian portraits in the city. From participant observation, interviews and videos with members of these groups and communities since 2015, this article will bring historical, geographic and stylistic referential panoramas that intend to give an account of naming the formalized and active groups today, relating them to chronological, spatial and performative level.

Keywords:
Andean migration; São Paulo; music; dance; autochthony

Se escutam ventos altiplânicos na cidade de São Paulo: preâmbulo etnográfico1 1 Em agradecimento a Beatriz Morales, Juanito Cusicanki, César Chuí Quenta, Oscar Condori e a todas as pessoas envolvidas nestes anos de vida (e de investigação doutoral) e em homenagem a Don Severo Condori e Jaime Flores. Jallalla Tata Severo! Jallalla Jilata Jaime!

Ali, no epicentro do Bom Retiro, em São Paulo, pelas ruas de atacados de roupas, vão se aglomerando dezenas, de repente, centenas de pessoas trajadas de vários jeitos. Começam a ocupar algumas ruas e o trânsito já é notório, carros de famílias e jovens, vão saindo um a um, com suas roupas coloridas, aguayos2 2 Aguayo é uma manta tecida de lã de lhama ou de ovelha, manual ou industrialmente, organizado em faixas de cores contrastantes, com motivos figurativos da fauna e flora andinos e abstrações geométricas e cromáticas com diferentes significados, por exemplo, a passagem entre os três mundos da cosmogonia andina (Uku Pacha, Kay Pacha, Hanan Pacha). Estas mantas são usadas seja para carregar nenéns ou levar algo às costas, para proteção daquele ou do que é levado, seja por cima de alguma superfície plana, normalmente sobre o chão de terra, para distribuição do Apthapi (partilha comunitária de alimentos e bebidas), para mediação entre o mundo debaixo, dos mortos (Uku Pacha), e o mundo terrenal, dos viventes (Kay Pacha). Atualmente o aguayo vem sendo reapropriado para novos e variados usos, mas segue com uma forte associação às pessoas e práticas originárias andinas. e lantejoulas, muitos com grandes botas com chocalhos metálicos, algumas com saias curtas plissadas, outras com saias abaixo dos joelhos também muito rodadas e cheias. Entre as cholitas3 3 Cholitas é o diminutivo plural de chola, mulher originária ou descendente originária, que se veste de maneira não-ocidental, com suas saias rodadas, duas tranças longas e chapéu. Todos elementos que variam de região para região. resplandecentes das Fraternidades de Caporales, se vê passar um grupo de cholitas vestidas de branco, com os cabelos afro trançados, calçadas com ojotas4 4 Ojotas é a palavra em espanhol para sandálias em geral e, no caso andino, são chilenos feitos de pneu, muito resistentes e baratos, relacionados com as populações camponesas, indígenas e afro-andinas. pretas: lá vai parte do corpo de baile dos Saya Afro, o conjunto de música e dança afro-boliviana. É carnaval e quase todos os grupos de dança e música autóctones e folclóricos da comunidade imigrante boliviana de São Paulo (Silva, 2012SILVA, Sidney Antônio. Bolivianos em São Paulo. Dinâmica cultural e aspectos identitários. In: BAENINGER, Rosana (coord.). Imigração boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudios de População (NEPO), 2012, p. 19-34.) desfilam pelos seus vários circuitos, reafirmando-os como territórios em movimento (Mendes, 2021MENDES, Vinicíus de S. A cidade em festa: fraternidades folclóricas bolivianas em São Paulo. Brazilian Journal of Latin American Studies, v. 20, n. 39, p. 213-236, 2021. Doi: https://doi.org/10.11606/issn.1676-6288.prolam.2021.180561
https://doi.org/10.11606/issn.1676-6288....
) que localizam a Bolívia e, principalmente, os Andes bolivianos em São Paulo através da música e da dança (Branco, Teófilo, 2021BRANCO, Cristina de; TEÓFILO, Mariana. Musicando translocalidades aymaras e quechuas em São Paulo. Revista GIS, Dossiê Musicar Local, São Paulo, v. 6, n. 1, 2021.).

Em anos anteriores, desde a década de noventa, setores da comunidade boliviana desfilavam principalmente no carnaval da Praça Kantuta, entre sprays de espuma e bexigas de água, reproduzindo intensamente o carnaval boliviano (Silva, 2012SILVA, Sidney Antônio. Bolivianos em São Paulo. Dinâmica cultural e aspectos identitários. In: BAENINGER, Rosana (coord.). Imigração boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudios de População (NEPO), 2012, p. 19-34.). Imigrantes bolivianos também festejaram seus carnavais no Memorial da América Latina, na Barra Funda, na Rua Coimbra, no Brás, entre outros locais pontuais. Em 2020, pela segunda vez consecutiva, a Associação Cultural Folclórica Bolívia Brasil (ACFBB) organizou um desfile de grupos e fraternidades folclóricas e autóctones que integrou a extensa programação do Carnaval de Rua de São Paulo. Entre os mais de vinte grupos programados para desfilar, estava a Moseñada Luribay por Siempre, o Grupo Folclórico Huaycheños de Corazón e a Comunidad Autóctona Vientos del Ande, todos coletivos representantes das expressividades autóctones andinas através da música e dança de referência altiplânica boliviana.

Se escutam ao longe os moseños5 5 Moseño é um instrumento de vento andino (aerófano) de apenas um tubo de bambu, de tamanhos variados, tocado em províncias do departamento de La Paz, região predominantemente aymara. As moseñadas, estilo de música protagonizado pelo moseño, são tocadas durante o Jallu Pacha, tempo da umidade e das chuvas, entre novembro/dezembro e março. e seus agudos vibrantes. Em direção à Estação da Luz, vão desfilando dezenas de homens tocadores, imersos na exigência performática própria desse sopro, a cabeça se eleva e se abaixa, os olhos apertam no esforço da tocada. À frente e atrás dos tocadores, o corpo de baile se divide em dois, dezenas de mulheres e homens enfileirados, eles de calça social e camisa, elas de polleras6 6 Pollera, em castelhano significa “saia” e, no caso andino, remete às saias rodadas utilizadas pelas cholitas. Cada zona tem seu estilo de pollera, por exemplo, em La Paz, são mais pesadas e mais longas (em correspondência ao frio altiplânico), em Cochabamba, as polleras têm poucas camadas e acabam logo acima do joelho (respondendo ao clima ameno dos vales cochabambinos). abaixo do joelho, camiseta e sombreros7 7 Sombrero, em castelhano significa “chapéu” e nos Andes é muitas vezes relacionado com os chapéus, ou bombines, que as cholitas usam. Também diferentes de zona para zona, os sombreros identificam a região de onde a cholita que o usa é. com duas longas tranças negras, todas e todos com seus aguayos coloridos, dobrados atravessando seus torsos, dançando ininterruptamente. Mais adiante se seguem os Huaycheños de Corazón, iniciados por vários casais que dançam de mãos dadas ao ritmo da tarkeada8 8 Tarkeada é o estilo musical tocado principalmente por um conjuntos de tarkas - instrumento de vento andino de apenas um tubo de madeira, de diferentes medidas - acompanhadas por bombos. A partir dos departamentos altiplânicos de Puno (Peru), La Paz e Oruro (Bolívia), extensa região aymara, a tarkeada é musicada e dançada também durante o Jallu Pacha, como a moseñada. tocada por cerca de vinte tocadores de tarkas e alguns de bombos, com figurino semelhante ao grupo anterior. Passadas poucas horas, se seguem os Vientos del Ande, também com casais de dançantes adiante, mulheres de polleras e sombreros e homens de calça social, com seus aguayos a tiracolo, e um bloco de vinte e tantos músicos com suas tarkas e bombos logo atrás. Entre os tocadores da Comunidad Autóctona, se reconhecem alguns que também tocam em outros grupos autóctones, como no Conjunto Autóctono Jach’a Sikuri de Italaque - Nuevo Amanecer e no Centro Cultural Kollasuyu Maya, tal como entre os Huaycheños de Corazón, encontramos tocadores dos Qhantati Ururi de Conima. Em sua grande maioria, escutamos e vemos pessoas nascidas no alto dos Andes, hoje imigrantes na cidade de São Paulo, reunidas em comunidades e conjuntos dedicados a reverberar e divulgar expressividades performático-culturais de suas localidades e de sua região de origem, a manter círculos familiares, fraternos e recreativos entre compatriotas e vizinhos e a transmitir suas práticas autóctones altiplânicas aos seus filhos, filhas, sobrinhos e sobrinhas já nascidos no Brasil. Desde a virada do milênio, esta dedicação é partilhada por vários grupos que circulam pelo calendário de festas comunitárias andinas, bolivianas e também peruanas da cidade, como também por eventos privados e familiares.

Atualmente9 9 Consideramos os grupos que estiveram ativos até o ano de 2019, levando em consideração que todos os grupos tiveram suas atividades pausadas durante a pandemia e vários deles ainda não foram plenamente reativados em decurso da crise financeira e do redirecionamento de fluxos migratórios durante 2020 e 2021. Alguns tocadores e dançantes faleceram de covid-19, outros regressaram à Bolívia e ao Peru, desencadeando a inevitável reorganização dos conjuntos e retomada gradativa de atividades. são vários os conjuntos ativos na cidade de São Paulo: o Grupo Folclórico Huaycheños del Corazón, o Centro Cultural Kollasuyu Maya, a Comunidad Autóctona Vientos del Ande, a Moseñada 5ª Sección Araca, a Fraternidad Moseñada Luribay por Siempre, o Bloque Moseñada Hijos de Luribay, o Conjunto Moseñada Hijos de Murumamani 100x100 Brasil Bolívia, a Fraternidad Moseñada Central Huari Belen, o Conjunto de Música y Danza Autóctonas Qhantati Ururi de Conima - Filial Brasil, o Grupo de Arte 14 de Septiembre de Moho - Base São Paulo Brasil, a Comparsa Juventud Chicheña, o Conjunto Autóctono Juvenil Waly Wayras, as Lakitas Sinchi Warmis, o Sentimiento Autóctono Suma Waynas, entre outros. Destes conjuntos, apenas dois deles - os Qhantati Ururi de Conima e os 14 de Septiembre de Moho - são formados por integrantes peruanos, referenciados por duas cidades altiplânicas do departamento de Puno, Conima e Moho. Para além de todos estes, existiam conjuntos, comunidades e grupos autóctones que tiveram suas atividades pausadas ou finalizadas por diferentes motivos, como o Centro Autóctone Flor de Phuya (1998-2006) e o Conjunto Autóctono Jach’a Sikuri de Italaque - Nuevo Amanecer (2008-2016), entre outros. Em outras cidades próximas a São Paulo, como Itaim Paulista, Guarulhos e Barueri, existem também vários grupos semelhantes, como a Comunidad Autóctona Coquero, em Itaquaquecetuba.

Para além dos conjuntos formalizados, existem muitas pessoas que tocam e dançam entre familiares e vizinhos sem se formalizar em grupos. Ao caminhar pelo cemitério municipal da Vila Formosa num dia 2 de novembro, Día de todos los Santos, podemos ouvir pessoas tocando pinquillos10 10 Pinquillo é um instrumento de vento andino de um tubo de bambu, osso ou madeira, tocado em comunidades originárias aymaras e quechuas, com variações em outras sociedades indígenas andinas, como entre os quichuas (Equador) e os mapuches (Chile e Argentina). A pinquillada é musicada e dançada durante o Jallu Pacha, época das chuvas e das colheitas, e o Lapak Pacha, o tempo de calor entre setembro e dezembro, nomeadamente na Fiesta de Todos los Santos, nos primeiros dias de novembro. e sikus11 11 Siku, também conhecido na sua tradução para castelhano como zampoña, é um instrumento de vento formado por uma ou duas fileiras de tubos paralelos com diferentes dimensões, à semelhança da flauta de pan. O siku é tocado secularmente em muitas províncias dos departamentos altiplânicos peruanos e bolivianos e, nos dias de hoje, é um dos aerófonos andinos mais difundidos pela América do Sul. O chamado movimento sikuri, daqueles que tocam o siku, se espalha pelas capitais da Argentina, Chile, Peru, Bolívia e Colômbia, conformando grandes e diferentes eventos anuais, como o Mathapi Aphtapi Tinku, em agosto, em Buenos Aires, e o Encuentro de Sikuris Tupac Katari, em novembro, em Lima. O siku é tocado, sobretudo, durante o Awti Pacha e o Juyphi Pacha, o tempo frio e seco entre março e setembro, ainda que a sazonalidade da tocada varie de região para região. ao redor de campas ou diante de ossadas perpétuas, e ver famílias dançando ao compás, oferecendo frutas e pães aos visitantes. Nem sempre estas pessoas representam um grupo específico, não raras vezes são vizinhos de povoados altiplânicos que se reencontram para conviver, tocar, dançar, celebrar seus mortos, sem firmar um compromisso como grupo formal. Estes conjuntos se formalizam ou não conforme suas dinâmicas comunitárias internas e suas relações com pessoas, entidades e circuitos paulistanos. Ao se formalizarem, normalmente, estes grupos se reúnem em forma de assembleia e decidem em coletivo o nome do conjunto, bem como deliberam pela primeira junta diretiva, elegendo o presidente, o vice-presidente, o tesoureiro e o diretor musical (com diferenças de funções e nomeações de grupo para grupo). Em geral, apresentam uma faixa, bandeira ou um estandarte representativo do conjunto ou da comunidade, com a data de fundação, o nome completo do grupo e símbolos que os representem. Alguns estão vinculados à Associação Cultural Folclórica Bolívia Brasil (ACFBB) e a toda a agenda de eventos e reuniões que essa vinculação implica. Outros têm cartão de contacto e circulam, sobretudo, através de contratos para eventos privados da comunidade boliviana e peruana na capital e na área metropolitana de São Paulo, como em festas de aniversário e de casamento ou em eventos organizados pelos Consulados de cada país.

Todos estes grupos se relacionam pela expressão da música e dança autóctones de referência andina altiplânica (boliviana e peruana), ainda que a partir de origens, interpretações e circuitos distintos. Entre os integrantes destes grupos, a validação da autoctonia varia grandemente conforme os estilos tocados, os instrumentos musicais e os trajes usados, o seguimento da sazonalidade de cada estilo e instrumento, a origem dos integrantes, entre outras características que determinam os níveis de autoctonia de cada conjunto, conforme diferentes pessoas. Por exemplo, para muitos integrantes desses grupos, os grupos que tocam tarka fora do período tradicional para se tocar tarkeada, ou que vestem trajes readaptados não coincidentes com o estilo tocado, ou ainda que misturam os sopros e percussões autóctones com instrumentos de corda, amplificados ou percussões de metais, não deveriam ser nomeados como “autóctones” porque, nestes casos, são grupos que misturam a expressão autóctone com elementos não autóctones e não seguem os tempos cosmogônicos originários (sobre os quais veremos mais adiante). Para alguns integrantes, conjuntos que tocam por contrato também não poderiam ser considerados “autóctones”, argumentando que estas músicas não deveriam ser tocadas, nem as danças apresentadas em troca de dinheiro porque isso deturparia o sentido ritual e sagrado dessas expressões. Por outro lado, nessa disputa pelo termo e valor da autoctonia, existem também aqueles que consideram autóctone, por exemplo, todo o grupo que priorize instrumentos e estilos musicais autóctones em detrimento dos criollos12 12 Na região das Américas colonizadas pelo Império espanhol, o termo criollo remete a pessoa de origem espanhola, nascida em território americano, ou as manifestações culturais de grande influência espanhola e colonial. Muitas vezes, o termo traz um sentido de classe marcado por uma diferença hierárquica político-económica e simbólica entre as pessoas e práticas criollas em relação às autóctonas e afrodescendentes. , ou seja, que tocam e dançam sobretudo sikuriadas, pinquilladas, tarkeadas, entre outros, ainda que também toquem e dancem cuecas, morenadas, huaynos e outros estilos considerados mestiços.

No âmbito deste texto, todos os grupos considerados dançam ao som de instrumentos autóctones andinos, como o siku, a tarka e o moseño, e de bombos e outras percussões afins, tocados pelos próprios integrantes, na sua maioria, pessoas nascidas no Altiplano andino, entre a Bolívia e o Peru, imigrantes na cidade de São Paulo. De maneira mais específica, consideramos aqui como conjunto autóctone aqueles que se autodenominam como “autóctones”, como a Comunidad Autóctona Vientos del Ande e o Sentimiento Autóctone Suma Waynas. Igualmente, abarcamos aqueles grupos que têm uma forte vinculação territorial local referida no nome do conjunto, como as Moseñadas de Luribay, de Murumamani e de Huari Belen, pequenas localidades do Departamento de La Paz (Bolívia), e como os Qhantati Ururi de Conima, formado por uma maioria de integrantes filhos de conimeños ou nascidos em Conima, pequena cidade às margens peruanas do Lago Titicaca. Por fim, levamos em conta também aqueles grupos que tomam como maior referência estilos musicais autóctones, ainda que incorporando instrumentos ou músicas não estritamente autóctones ou se apresentando em eventos não convencionalmente andinos ou sequer organizados por bolivianos ou peruanos, como, respectivamente, os Waly Wayra e os Kollasuyu Maya. Assim, para além de partirmos de uma noção ampla de autoctonia que abraça vários conjuntos, também os relacionamos adiante em suas diferentes referências territoriais, temporais e estilísticas, bem como em suas diversas origens e percursos migratórios enquanto tocadores e dançantes.

Autoctonias imigrantes: contexto histórico e migratório

Importa considerar que entre os integrantes entrevistados, “autóctone” é um adjetivo utilizado para valorar algo intrínseco, nato, próprio de um território específico, e geralmente referente a uma temporalidade anterior à invasão espanhola. Nesse sentido, nos Andes e em territorialidades imigrantes andinas, como em tantas praças e ruas na cidade e área metropolitana de São Paulo, esse é um termo profusamente relacionado com expressividades identitárias originárias andinas, entre as quais aymaras e quechuas (Branco, 2020BRANCO, Cristina de. Presenças, paisagens e atuações aymaras e quechuas imigrantes na cidade de São Paulo. Anais da 32 Reunião Brasileira de Antropologia, 2020.). Ao historiografar o surgimento e os primeiros usos do termo “autóctone” na Bolívia13 13 Pela presença diminuta de conjuntos formados por pessoas nascidas no Peru e pela brevidade do ensaio, decidimos priorizar aqui a consideração analítica sobre a articulação histórico-política do autoctono/camponês/indigena na Bolívia. , Cecília Wahren argumenta que no início do século XX, depois da Guerra do Chaco (1932-1935) e consequente fragilização de setores da hegemonia oligárquica criolla, se deram caminhos de construção de uma bolivianidade republicana na qual as populações indígenas deveriam ser parcial e seletivamente incorporadas (2016WAHREN, Cecilia. Encarnaciones de lo autóctono: prácticas y políticas culturales en torno a la indianidad en Bolivia a comienzos del siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2016.). Através de discursos e performances públicas, manifestações artísticas e iniciativas de patrimonialização de rituais, práticas e elementos indígenas andinos, a elite boliviana (sobretudo paceña) folclorizou, autorizou e incorporou alguns traços do "indio autoctono” a fim de projetar uma certa bolivianidade administrável. Como escreve Wahren, “la noción de lo autóctono que folkloriza a la población indígena forma parte de una estrategia de apropiación que hacia el interior busca neutralizar la agencia indígena y proyectar la hegemonía paceña, y hacia el exterior presentar la singularidad boliviana” (2016WAHREN, Cecilia. Encarnaciones de lo autóctono: prácticas y políticas culturales en torno a la indianidad en Bolivia a comienzos del siglo XX. Buenos Aires: Teseo, 2016., p. 134).

Com o passar das décadas, a construção pública do “indio autoctono” foi somada à substituição do léxico indígena pelo de “campesino” nas zonas rurais, as áreas de maior densidade demográfica originária. Durante a Revolução Nacional (1952-1964), simultaneamente à intensificação do controle estatal dos recursos naturais do país, ao estabelecimento do sufrágio universal, à expansão da reforma agrária, entre outras iniciativas de transformação por um Estado Social forte e inclusivo, se deu um processo de “campesinización” da pessoa indígena. Como nota Xavier Albó, “se proscribió del lenguaje oficial el término 'indio', por considerarlo discriminador, y se empezó más bien a llamar 'campesinos' a toda la población de origen rural fuere cual fuere su identidad y origen cultural” (2009ALBÓ, Xavier. Movimientos y poder indígena en Bolivia, Ecuador y Perú. La Paz: CIPCA, Cuadernos de investigación, n. 71, 2009., p. 32). Conforme o mesmo autor, a finais da década de sessenta, já dissolvido o processo revolucionário pelo Golpe de Estado de 1964, a ilusão de que a transformação lexical do imenso e diverso setor popular indígena em campesinato “era la vía para liberarse de una pobreza y estigma seculares empezó a hacer aguas” (2009ALBÓ, Xavier. Movimientos y poder indígena en Bolivia, Ecuador y Perú. La Paz: CIPCA, Cuadernos de investigación, n. 71, 2009., p. 36). Ainda assim, tal como a adjetivação autóctona segue vigente, também a conexão do imaginário indígena andino ao camponês segue arraigada nos discursos públicos e nas entrevistas que coletamos desde 2015, entre pessoas de conjuntos autóctones em São Paulo.

Ao autóctone e campesino se junta mais uma camada fundamental para compreender a constituição identitária desses grupos enquanto conjuntos autóctones, fundados por uma maioria de imigrantes de zonas rurais que se autodeclaram aymaras e quechuas: o que Albó denomina de “el retorno de lo étnico” ou “el retorno del indio” acionado pelo movimento katarista (2009ALBÓ, Xavier. Movimientos y poder indígena en Bolivia, Ecuador y Perú. La Paz: CIPCA, Cuadernos de investigación, n. 71, 2009.). Herdeiro direto da intensa resistência indígena aymara e quechua contra o colonialismo espanhol, o Katarismo assim se nomeia em homenagem à Tupac Katari, líder de mais de 40 mil indígenas que cercaram La Paz, em 1781, no então Alto Peru. Passados mais de 180 dias de cerco da cidade, o levante foi derrotado pela incursão de tropas coloniais vindas de Buenos Aires e de Lima, levando ao assassinato tortuoso de Tupac Katari. Muitos referentes da resistência indígena andina defendem que antes de morrer Tupac Katari terá dito “volveré y seré millones”, consigna máxima pública e amplamente retomada a partir da década de setenta pelo movimento katarista. Assinado pelo Centro Campesino Tupak Katari, entre outras três entidades indígenas camponesas, as palavras iniciais do primeiro Manifesto de Tiahuanaco (1973) recordam uma frase de Tupa Inka Yupanqui (1441-1493):

"Un pueblo que oprime a otro pueblo no puede ser libre" dijo el Inca Yupanqui a los españoles. Nosotros, los campesinos quechuas y aymaras lo mismo que los de otras culturas autóctonas del país, decimos lo mismo. Nos sentimos económicamente explotados y cultural y políticamente oprimidos.

Retomando Albo, além de se integrar e transformar por dentro estruturas sindicais camponesas e fortalecer estruturas de resistência contra a exploração interna e imperialista, o Katarismo

irrumpió con una ideología étnica expresada no sólo en su nombre y héroes, sino también en su bandera propia -la wiphala-, en la revalorización de las autoridades tradicionales, en sus programas de radio en aymara y en otros muchos detalles que seguían presentes pero reprimidos en el imaginario de la gente. (2009BRANCO, Cristina de; TEÓFILO, Mariana. Musicando translocalidades aymaras e quechuas em São Paulo. Revista GIS, Dossiê Musicar Local, São Paulo, v. 6, n. 1, 2021., p. 38)

A mesma wiphala foi levantada como símbolo nacional, junto à bandeira republicana da Bolívia, em 2006, aquando a vitória eleitoral do Movimiento al Socialismo (MAS), eleito Evo Morales Ayma, o primeiro presidente aymara da democracia boliviana, sindicalista cocalero (e tocador de tarka). A mesma wiphala queimada durante o Golpe de Estado de 2019 e retomada ao alto da Casa Grande del Pueblo em finais de 2020, com a reeleição do MAS, liderado por Luiz Arce como Presidente e do aymara David Choquehuanca como Vice-presidente. Alguns dos conjuntos de São Paulo levam adiante a wiphala, cantam músicas em quechua e em aymara, se distinguem como autóctones, como originários, aymaras e/ou quechuas, muitas vezes se remetendo à sua origem e infância camponesa em suas conversas e à transmissão destes valores étnico-culturais e espirituais às gerações seguintes em seus discursos internos e públicos. Em vista disso, estas camadas étnico-políticas de sentidos sobre a autoctonia e a indigeneidade andina se justapõem. Em alguns grupos se entende maior prevalência do discurso e da expressão da autoctonia campesina, em outros a indianidade katarista. Aliás, internamente, em alguns conjuntos, convivem pessoas de discurso katarista e pessoas que se identificam profunda e nostalgicamente com o meio camponês e cosmogônico andino, sem se vincular à abordagem mais veemente política própria do movimento katarista. Cada colocação de suas autoctonias, manifesta através dos símbolos nos estandartes, das bandeiras alçadas, das práticas rituais ativadas, dos discursos ideológicos colocados ou omitidos, varia conforme suas possibilidades e suas vias estratégicas de existência e expressão enquanto pessoas indígenas altiplânicas atravessadas pelo contexto histórico andino e agentes na retomada e transformação de suas identidades e expressividades aqui em São Paulo.

Já em contexto migratório, Sérgio Caggiano (2014)CAGGIANO, Sergio. Riesgos del devenir indígena en la migración desde Bolivia a Buenos Aires: identidad, etnicidad y desigualdade. Amérique Latine Histoire et Mémoire, Les Cahiers ALHIM [Online], 2014. Disponível em : http://alhim.revues.org/4957
http://alhim.revues.org/4957...
defende que diante destes processos políticos mais recentes, desde 2006, no caso de Buenos Aires, vem se dando

el devenir indígena de la migración desde Bolivia, es decir, en el proceso de identificación y etnización de una parte significativa de estos migrantes, el cual sí se da en los últimos años, produciendo una mayor visibilización de la presencia indígena y aymara, arribada tanto recientemente como en el pasado. (2014CAGGIANO, Sergio. Riesgos del devenir indígena en la migración desde Bolivia a Buenos Aires: identidad, etnicidad y desigualdade. Amérique Latine Histoire et Mémoire, Les Cahiers ALHIM [Online], 2014. Disponível em : http://alhim.revues.org/4957
http://alhim.revues.org/4957...
, p. 1)

Tanto imigrantes da primeira como da segunda e terceira geração da migração boliviana em Buenos Aires vêm se identificando crescentemente enquanto pessoas indígenas, aymaras, quechuas e quechua-aymaras, graças aos recentes processos de tomada política administrativa central da Bolívia por parte de movimentos sindicais indígenas e a sua reverberação nas maiores cidades bolivianas fora do território republicano boliviano. Através do vai e vem de transmigrantes bolivianos, que retornam à Bolívia com alguma periodicidade e que mantém círculos familiares e fraternais ativos em seus locais de origem, mas também por meio das visitas de lideranças do MAS a Buenos Aires e a São Paulo e a extensão e facilitação do voto migrante, se fortalecem as relações políticas e cidadãs destes imigrantes com seu país de origem, como também seus processos étnico-culturais próprios e comunitários se potencializam em suas cidades de migração. Nesta sequência argumentativa, Caggiano indica que “el uso del idioma aymara o la ejecución de algunos instrumentos y ritmos de música tradicional andina operan como indicadores de una renovación de la pertenencia étnica” (2014CAGGIANO, Sergio. Riesgos del devenir indígena en la migración desde Bolivia a Buenos Aires: identidad, etnicidad y desigualdade. Amérique Latine Histoire et Mémoire, Les Cahiers ALHIM [Online], 2014. Disponível em : http://alhim.revues.org/4957
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, p. 4). Nesse sentido, consideramos a possibilidade desses grupos de música e dança serem ativados como forma de autodeclaração performática destas autoctonias camponesas e indígenas andinas (Branco, 2020BRANCO, Cristina de. Presenças, paisagens e atuações aymaras e quechuas imigrantes na cidade de São Paulo. Anais da 32 Reunião Brasileira de Antropologia, 2020.).

No entanto, tal como também acontece em Buenos Aires, até a data não temos em São Paulo registros estatísticos que cruzem dados migratórios com étnico-raciais, pelo que não sabemos ao certo quantas pessoas indígenas imigrantes internacionais vivem na cidade ou no país, menos ainda quais os dados demográficos da população aymara e quechua residente aqui. Por mais que já contemos com avanços importantes diante dos fluxos migratórios waraos vindos da Venezuela para o Brasil, ainda há muito a percorrer no sentido de desconstruir o “nacionalismo metodológico” que segue permeando os Estados e as instituições acadêmicas e da sociedade civil. Para além de algumas menções pontuais a estas populações em trabalhos acadêmicos (por exemplo, em Silva, 2009SILVA, Sidney Antônio. Faces da latinidade: hispano-americanos em São Paulo. Textos Nepo, n. 55, Fev 2008. e Xavier, 2012XAVIER, Iara Rolnik. A inserção socioterritorial dos migrantes bolivianos. Uma leitura a partir da relação entre projetos migratórios, determinantes estruturais e os espaços da cidade. BAENINGER, Rosana (coord.). Imigração boliviana no Brasil . Campinas: Núcleo de Estudios de População (NEPO) , 2012, p. 109-115.), nos últimos anos vêm se multiplicando vozes de reivindicação da consideração estatística, política e pública sobre as pessoas indígenas imigrantes internacionais, principalmente a partir de São Paulo e pela atuação de mulheres aymaras, quechuas e descendentes, como Jobana Moya, da Equipe de Base Warmis, a jornalista Karla Burgoa e Nataly Mamani, Tania Sayre e outras companheiras do coletivo Cholitas da Babilônia.

De qualquer forma, partindo do cenário demográfico nacional republicano14 14 Referimos “nacional republicano” ao considerarmos que existem outros paradigmas de nação colocados em pauta nas últimas décadas pelos movimentos indígenas pela América Latina. Se existem nações e nacionalidades indígenas, pensadas e estabelecidas a partir das regiões da Bolívia, do Equador, do México, entre outras, não interessa seguir repetindo o “nacional” numa constante auto-evidência moderna, mas sim desestabilizá-lo ao anexar o adjetivo “republicano”. , percebemos que a cidade de São Paulo é uma das maiores cidades bolivianas fora da Bolívia, tal como a comunidade boliviana é uma das maiores entre as imigrantes da capital. Até abril de 2022, dos cerca de 1 milhão e 780 mil imigrantes registrados no Brasil (NEPO-UNICAMP, 2022Observatório das Migrações em São Paulo. Banco Interativo - Números da imigração internacional para o Brasil, 2020-22 (jan.-abr.). Campinas, SP: Observatório das Migrações em São Paulo - NEPO-UNICAMP. Data do download: 20 de abril de 2019, com atualização em 06 de maio de 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/ . Acesso em: 18.08.2022.
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)15 15 Os números apresentados anualmente pelo Observatório das Migrações (NEPO-UNICAMP) são calculados a partir dos registros no SINCRE/SISMIGRA, da Polícia Federal (PF). Como dito em nota metodológica adjunta à base de dados, “essa fonte de informação não estima o total de imigrantes internacionais residentes no país”, uma vez que soma os Registros Nacionais Migratórios (RNM), computados pela PF, sendo que uma vez registrada, mesmo que falecida ou fora do país, a pessoa segue sempre registrada. Para além disso, não são considerados aqui os indocumentados, nem os solicitantes de refúgio. , mais de 140 mil são pessoas nascidas na Bolívia, dos quais 103 mil são residentes na cidade de São Paulo (2022Observatório das Migrações em São Paulo. Banco Interativo - Números da imigração internacional para o Brasil, 2020-22 (jan.-abr.). Campinas, SP: Observatório das Migrações em São Paulo - NEPO-UNICAMP. Data do download: 20 de abril de 2019, com atualização em 06 de maio de 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/ . Acesso em: 18.08.2022.
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). Deste universo demográfico, 54% são pessoas que se autodeclaram como homens, quase 74 mil se afirmam “costureiros e assemelhados”, mais de 10 mil estudantes e apenas 49 pessoas se colocam como “artista, ator, músico ou assemelhado” (2022Observatório das Migrações em São Paulo. Banco Interativo - Números da imigração internacional para o Brasil, 2020-22 (jan.-abr.). Campinas, SP: Observatório das Migrações em São Paulo - NEPO-UNICAMP. Data do download: 20 de abril de 2019, com atualização em 06 de maio de 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/ . Acesso em: 18.08.2022.
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).

Estas estatísticas confirmam as tendências que registramos nos conjuntos autóctones: uma maioria de integrantes homens, associados aos trabalhos da costura, e poucos que se colocam como músicos (sempre com outros trabalhos paralelos). Embora entre os tocadores existam pessoas que tocam vários instrumentos musicais ou integram grupos musicais autóctones (ou outros) através dos quais são pagos, em geral eles não se colocam como músicos no sentido artístico. Pelos testemunhos recolhidos, a maioria destas pessoas não apenas não parece se identificar com essa categoria de músico/artista, como também desde a cosmogonia andina percebe esta música em outro sistema simbólico e espiritual que não é imediatamente adaptável à categorias exógenas (e coloniais) como a do léxico artístico vigente. Como comentou um deles, “no se trata de ser o no músico así estrictamente, es la vida misma, uno toca su siku como quien vive, así nomás”. No mesmo sentido, estes conjuntos ensaiam e performam as músicas e as danças autóctonas em contexto migratório como forma de gerar momentos recreativos que também sirvam à transmissão de memórias e princípios comunitários andinos, como o ayni (reciprocidade) e o chachawarmi (complementariedade). Mesmo que a música e a dança possam ser entendidas como artes em outras esferas, parece que esse sentido recreativo, comunitário e espiritual prevalece em relação à consideração dessas expressões como algo próprio do campo artístico. Ainda assim, existem excepções: pessoas nascidas na cidade e/ou imigrantes com grande circulação entre referentes e coletivos culturais e artísticos brasileiros, isto é, pessoas com maior experiência negocial com ambientes e redes não indígenas, como Juan Cusicanki que se apresenta como músico e ator (Braga, Prandi, 2021BRAGA, Adriana; PRANDI, Francisco. Artistas Imigrantes em São Paulo: o papel da arte na integração da América Latina. In: SUZUKI, Júlio César; NEPOMUCENO, Maria Margarida Cintra; ARAÚJO, Gilvan Charles Cerqueira de (orgs.). Organismos internacionais nas políticas culturais para a América Latina - Arte e Cultura de resistência às hegemonias. São Paulo: FFLCH/USP, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/743 . Acesso em: 04.10.2022.
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).

De qualquer forma, os fundadores e integrantes destes grupos formais correspondem a um perfil étnico-migratório maioritário: são pessoas nascidas nas décadas de sessenta e setenta, entre o departamento de Puno (Peru) e o departamento de Potosí (Bolívia) no eixo territorial que conforma grande parte do Kollasuyo, quadrante sudeste do vasto Tawantinsuyo16 16 Tawantinsuyo corresponde ao território interconectado pela sociedade inca, entre aymaras, quechuas e outras sociedades indígenas, entre inícios do século XV e finais do século XVI. . De língua materna aymara ou quechua (ou ambas), estas pessoas nasceram em pequenas localidades ou cidades do Altiplano peruano e boliviano, filhos e filhas de famílias camponesas ou mineiras. Aprenderam espanhol a partir da escolaridade obrigatória, aos cinco ou seis anos, e adolescentes migraram para a capital de departamento mais próxima. Nos anos noventa ou início do segundo milênio, quando adultos, por vezes já com filhos, migraram para São Paulo ao encontro de conhecidos ou familiares, cumprindo um segundo movimento migratório.

Existe também um perfil minoritário de pessoas da mesma geração, filhos e filhas de camponeses ou mineiros, mas já nascidos próximos ou em grandes cidades. Alguns aprenderam aymara e/ou quechua em casa, mas com a priorização do espanhol antes da escolaridade obrigatória. Normalmente, estas pessoas têm níveis escolares mais altos que aqueles que notamos no perfil anterior e a par da transmissão musical entre familiares ou amigos, por vezes, também houve um aprendizado mais formal e vinculações com grupos musicais andinos (não exclusivamente autóctones) que circularam pela Bolívia e para países sul-americanos e europeus. Algumas destas pessoas chegaram ao Brasil, no final da década de setenta e no início da década de oitenta, como músicos em digressão e decidiram ficar em São Paulo ao invés de retornar à Bolívia. Importa notar que alguns deles saíram da Bolívia como músicos, com a intenção de se desviar da vigilância e da perseguição política durante a ditadura militar boliviana (1964-1982). Ao recolhermos estes testemunhos, coincidimos com perfis históricos da migração boliviana em São Paulo (Silva, 2009SILVA, Sidney Antônio. Faces da latinidade: hispano-americanos em São Paulo. Textos Nepo, n. 55, Fev 2008.) e também nos damos conta da relação entre a militância indígena, os processos de resistência antifascistas e anti-imperialistas e as músicas autóctones andinas.

Um terceiro perfil de integrantes desses conjuntos, geralmente minoritário, é aquele de jovens nascidos nos anos 2000, já em São Paulo ou migrantes ainda ao colo, filhos e filhas dos fundadores destes grupos, trazidos desde pequenos aos ensaios e apresentações, vestidos com os trajes autóctones e portando seus pequenos bombos ou sikus. É nesta geração que maior se revela o distanciamento linguístico originário causado pelo silenciamento do aymara e do quechua em casa, por pais receosos diante das possíveis dificuldades de adaptação escolar e social de seus filhos no Brasil e do aconselhamento equivocado e insistente das escolas brasileiras. Não obstante, estes e estas jovens mantêm ou retomam este convívio familiar e comunitário, relembram ou aprendem a tocar e dançar, reativam através da música e da dança a sociabilidade e espiritualidade aymara e quechua muitas vezes bloqueadas pelo racismo estrutural histórico brasileiro e boliviano.

A presença destes perfis varia de grupo para grupo. Em alguns conjuntos não vemos este perfil jovem tão evidente, outros grupos são formados principalmente por integrantes com estas características. O segundo perfil também é quase inexistente em alguns grupos, ainda que estruturante de outros. Além disso, estes perfis demarcam níveis de autenticidade da transmissão e da performance da autoctonia. Normalmente, uma pessoa “de território", isto é, nascido e criado em alguma das localidades de referência da música e da dança performadas é considerado alguém com maior legitimidade enquanto tocador ou dançante, enquanto que uma pessoa que nasceu em ambiente urbano ou nasceu no Brasil (ainda que de família andina) tendem a não contar com tamanha credibilidade. De qualquer forma, essa variação de perfis migratórios e geracionais em cada grupo é apenas um dos diferenciais entre eles.

Do Altiplano andino às terras baixas atlânticas: panoramas espaciais

Como pessoas aymaras e quechuas imigrantes, a maioria dos integrantes desses conjuntos de música e dança autóctone convive com diversas percepções de tempo e espaço. Em aymara e em quechua, pacha designa tempo e espaço de modo simultâneo e interconectado - o cosmos em uma unidade indivisível e dinâmica. O cosmos se entende em três dimensões interdependentes: o Hanan Pacha, o Kay Pacha e o Uku Pacha. Tomemos a figura de três esferas concêntricas que se acolhem uma dentro da outra. Hanan Pacha denomina a esfera de fora, vastidão celestial, a dimensão das deidades e da ancestralidade, da espiritualidade, representada pelo condor. Kay Pacha, simbolizado pelo puma, é o encontro entre a esfera externa e interna, o terrenal, a existência e a consciência, onde e quando somos. Por sua vez, Uku Pacha é a esfera de dentro, infinitamente subterrânea, densa, a dimensão dos mortos e das sementes, figurada pela serpente. Estas três dimensões também ilustram a percepção dos aymaras e quechuas sobre o passado, o presente e o futuro. Ao contrário das sociedades de base religiosa abraâmica, que concebem o tempo de forma linear, como uma flecha que segue adiante, para o futuro brilhante, deixando o passado obscuro para trás, a cosmogonia aymara e quechua entende o tempo de forma cíclica e em zigue e zague. O passado vai adiante e acima, iluminado e transparente diante das memórias passadas de geração em geração. O passado é aquilo que sabemos, lembramos e transmitimos (Hanan Pacha). O presente é o lapso deste instante (Kay Pacha). O futuro é a incógnita que submergirá, é a semente que ainda não brotou, que não vemos, debaixo da terra, no escuro da gestação (Uku Pacha).

Em concomitância ao pensamento aymara e quechua, por defeito da colonização histórica e da colonialidade ainda perpetuada, as sociedades aymaras e quechuas convivem, compulsória e inevitavelmente, com as cosmogonias modernas, percepções de tempos lineares e fragmentados, alinhados em minutos e horas, de espaços quadriculados e fronteirizados, percorridos em metros e quilômetros. Entre cosmogonias próprias e outras forçadas, os aymaras e quechuas vivem a sobreposição destas temporalidades e espacialidades numa mesma vivência. Por isso, interessa aqui abordar estes grupos a partir seja da percepção da Pacha multidimensional e interrelacionada, como também dos tempos e espaços colocados da forma imperiosa nos quais se vive. Dividindo, então, desde já o tempo do espaço, elegemos começar a relacionar estes grupos e seus integrantes em suas pertenças, percursos e referências espaciais para logo seguirmos pelos seus panoramas temporais.

Existem três dimensões espaciais que se complementam na compreensão da atuação destes conjuntos autóctones: o território ancestral, os territórios republicanos e os territórios migrantes altiplânicos, entre suas localidades de referência e os bairros e circuitos na cidade de São Paulo. O Tawantinsuyo e o Kollasuyo constituem a paisagem ancestral da cosmogonia, das ritualidades, da infância, da nostalgia e da memória melódica e corporal. Levando em conta que são pessoas originárias, alguns deles não se consideram imigrantes, nem estrangeiros neste território, mas sim pertencentes e correspondentes a ele. Para outros, uma maioria, é consensual a partilha das identidades nacionais republicanas. No que diz respeito à descrição destes grupos, é especialmente característico o forte sentido local de cada estilo e de cada conjunto.

O mapa abaixo informa sobre as referências espaciais da maioria dos conjuntos autóctones ativos na cidade de São Paulo. Esta referencialidade se dá pelo local de nascimento da maioria dos integrantes e pela origem do estilo musical e dançante do grupo.

Infográfico 1 -
Referências espaciais dos conjuntos autóctones de São Paulo

Primeiramente, é notória a predominância de conjuntos de referência paceña, maiormente de províncias do sul do Departamento de La Paz, como Loayza, Aroma e Gualberto Villaroel. Também se nota a profusão de grupos referenciados por localidades próximas ao Lago Titicaca, como aqueles de Moho (Peru), Camacho e Bautista Saavedra (Bolívia). De seguida, nos damos conta de que apenas dois conjuntos se referenciam em território peruano e só um grupo, a Comparsa Juventud Chicheña, referenciada pelas tarkeadas de Tupiza, no Departamento de Potosí (Bolívia), não está no Altiplano e sim muito próximo, nos vales. Por fim, alguns destes grupos, como os Vientos del Ande e os Kollasuyu Maya, têm mais do que uma referência territorial e estilística. Enquanto os Vientos del Ande dançam e tocam zampoña/sikus dos estilos de jach’a sikus de Italaque (Província de Camacho, La Paz), qhantus de Charazani (Província de Bautista Saavedra, La Paz) e ainda tarkeadas “ao estilo orureño”, os Kollasuyu Maya tocam estilos vindos de várias províncias dos departamentos de La Paz, Oruro e Potosí. Note-se que grande parte dos integrantes destes dois conjuntos são nascidos nestes departamentos de referência. Por fim, importa ressaltar que os Waly Wayras, as Lakitas Sinchi Warmis e os Suma Waynas não estão presentes neste infográfico porque seus repertórios têm influências de várias regiões, bem como tocam com instrumentos autóctones estilos musicais não reconhecidos como autóctones, pelo que mesclam estilos e instrumentos de diferentes zonas.

A partir desta relação espacial figurada no infográfico, se evidencia também que os conjuntos autóctones atuantes na cidade de São Paulo se dedicam acima de tudo a repertórios de zonas que historicamente são reconhecidas como territórios de procedência de sikuriadas/zampoñadas, tarkeadas e, principalmente, moseñadas. Como demonstrado por vários colegas pelo continente afora, em capitais sul-americanas vem se dando um “movimiento regional transnacional” (Castelblanco, 2018CASTELBLANCO, Daniel. Sikuris altipláncos, regionales y metropolitanos: Revisión de un esquema de clasificación. In: HUARINGA, Carlos Sanchéz (ed.). Música y sonidos en el mundo andino: Flautas de pan, zampoñas, antaras, sikus y ayarachi. Lima: Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2018, p. 485-510.) de pessoas que se dedicam a estudar e interpretar estilos musicais sikuris. Através de uma rede de grupos musicais e um intenso circuito de festivais, congressos e encontros, e de publicações diversas, como a Revista Mundo Sikuri (Lima), milhares de pessoas se conectam e se reúnem dedicadas a investigar e tocar siku, partilhar vias de transmissão, modos de patrimonialização, dinâmicas comunitárias e processos de transformação da prática e dos próprios grupos e integrantes. Ainda que também dinamizado por pessoas originárias andinas, este movimento é fortemente marcado por sikuris metropolitanos e acadêmicos não-indígenas.

Em São Paulo, o grupo mais próximo que encontramos semelhante a estes são as Lakitas Sinchi Warmis, formado como frente de ação da Equipe de Base Warmis - Convergência de Culturas, em 2016 (Pizarro, 2017PIZARRO, Mariela. Lakitas Sinchi Warmis: Inserción y reinterpretación de una práctica musical andina en la ciudad de Sao Paulo, como herramienta de resistencia. Mundo Sikuri, special edition, p. 79-82, 2017.). Dinamizado por mulheres de várias procedências, desde quechuas e aymaras bolivianas e peruanas a imigrantes não indígenas, argentinas, chilenas, mexicanas, entre outras, as Sinchi Warmis interpretam músicas autóctones e não autóctones, tocadas ao estilo lakita17 17 Lakita é um estilo musical oriundo das fronteiras entre o norte chileno e sudoeste boliviano que interrompem a extensão sul do Kollasuyo, protagonizado pelo toque do instrumento de sopro laka, semelhante ao siku, acompanhado pelo bombo, pelo tambor e pelos platillos (pratos metálicos). . Elas ensaiam no Centro Cultural São Paulo e se apresentam em atividades da Equipe de Base Warmis, como também em manifestações políticas, escolas e atividades culturais relacionadas com o circuito dos movimentos migrante e feminista. Sendo um conjunto determinantemente misto entre indígenas e não indígenas, exclusivamente de mulheres, circulante por outras redes que não as comunitárias andinas da cidade (ainda que atuantes no Ano Novo Andino-Amazônico, em 2019) este é um grupo excepcional no contexto dos conjuntos autóctones de São Paulo. Excepcional também porque experimentando esta liminaridade entre o autóctone e o imigrante desde uma perspectiva e vivência urbana e politizada, tem sido um grupo importante no acolhimento e empoderamento étnico-político de mulheres imigrantes que iniciam seus caminhos de retomada identitária como indígenas.

De qualquer modo, se existe um movimento sikuri em Buenos Aires (Barragán, Mardones, 2012BARRAGÁN, Fernando; MARDONES, Pablo. Che Sikuri. Su rol en las dinámicas de reproducción aymara-quechuas y su constitución como parte de la identidad cultural de la Ciudad de Buenos Aires. III Congreso Latinoamericano Antropología, Santiago, Chile, 2012.), em Lima (Acevedo, 2007ACEVEDO, Saúl Raymundo. Em torno de nuevos sikuris. Revista del Folklore: Arte, cultura y sociedad, n. 1, p. 11-30, 2007.) e em Bogotá (Bonilla, 2013BONILLA, Julio Romero. El sikuri y el Encuentro de tropas en Colombia. Revista Cultural Sikuri, v. 2, p. 22-24, 2013., Sinti, 2017SINTI, Nirvana. Llegó a Bogotá sin migrantes: génesis de la práctica musical sikuri en la capital colombiana. Mundo Sikuri , edição especial, p. 83-87, 2017.) e um movimento lakita em Santiago do Chile (Ibarra, 2016IBARRA, Miguel Angel. Zampoña, lakita y sikuri en Santiago de Chile: trenzados y contrapuntos en la construcción de sonoridades andinas en y desde el espacio urbano-metropolitano. Tesis de maestría, Universidad de Chile, Santiago, 2016.), talvez exista em São Paulo um movimento moseño. Seja pela quantidade de conjuntos e grande dimensão de cada um deles, seja pelo circuito próprio que dinamizam, como o Encontro Regional de Moseñada e a Gran Moseñada Interprovincial São Paulo realizados na capital e em outras cidades próximas, como na Praia Grande, parece que vem se formando um movimento moseño paulistano. Movimento este predominantemente intracomunitário, mesmo que difundidos por vídeos publicados nas redes sociais e realizados em espaços públicos ou semi-privados.

Mas não apenas os conjuntos de moseñadas se articulam para a realização de grandes eventos. Também conjuntos dedicados a outros estilos musicais e dançantes se conectam ora para fortalecer apresentações de algum grupo (como vimos no início do texto), ora para criarem seus eventos comunitários. Em 2019, da articulação entre os J’acha Sikuris de Italaque - Nuevo Amanecer, os Huaycheños de Corazón, os Kollasuyu Maya, os Waly Wayras e as Lakitas Sinchi Warmis surgiu o Centro Cultural Andino-amazônico, criado para a realização das comemorações do Ano Novo Andino-Amazônico18 18 O Ano Novo Andino-Amazônico é outra forma de nomear o Inti Raymi, em quechua, ou Willka Kuti, em aymara, a festividade de solstício e de homenagem à deidade solar da cosmogonia quechua e aymara. Assim denominado por alguns setores sociais desde 2006, a partir do discurso e das iniciativas de patrimonialização do Inti Raymi por parte do Governo de Evo Morales, as celebrações de virada do ano aymara e quechua, em outros tempos proibida, se multiplicou pela Bolívia e pelas cidades de maior população imigrante boliviana. em São Paulo. Celebrado de maneira pública e divulgada desde 2014 e de modo mais amplo a partir de 2019, o Ano Novo Andino-Amazônico foi retomado após dois anos da pandemia do Covid-19, em 2022, em Itaquaquecetuba, com apoio do associativismo boliviano da cidade vizinha. Vale referir que grupos de moseñada estiveram presentes em outra festividade de passagem do ano, na zona norte da capital19 19 Em São Paulo, também vemos a organização de outras festas de Inti Raymi por parte de setores da comunidade kichwa otavalo (Equador). .

Entre tempos sazonais e o Jacha Uru: panorama temporal

A amplitude e pulverização das festividades do Ano Novo Andino-Amazônico na cidade e área metropolitana demonstram o crescimento e fortalecimento das dinâmicas culturais autóctonas altiplânicas e provam a importância da prática, partilha e divulgação pública da cosmogonia aymara e quechua para estas pessoas. A festividade do solstício de inverno percorre toda a noite mais longa do ano, do dia 21 ao 22 de junho, até a saudação aos primeiros raios de Sol, ao Tata Inti, imprescindível à existência de tudo e de todos. Este momento marca o início do tempo frio - Juyphi Pacha - até o equinócio da primavera, no dia 22 de setembro. Do equinócio ao solstício de verão, no dia 22 de dezembro, passando pelo dia 2 de novembro, dia de Todos los Santos (ou dos finados), se dá o período de calor - Lapaka Pacha. De seguida, do solstício de verão ao equinócio de outono, pelo dia 22 de março, se vive o período de umidade - Jallu Pacha. Então, até ao seguinte solstício de inverno, se estende o período seco - Awti Pacha.

Para além da correspondência agrícola própria das cosmogonias andinas, estes tempos também devem ser correspondidos por músicas e danças específicas, expressas em rituais e festas de agradecimento e oferenda à Pachamama, ao tempo e espaço que gesta, pari, enterra e faz transcender cada ser vivente. Por exemplo, as tarkeadas e moseñadas aprazem a Pachamama que ao sentir a melodia e dança nos presenteia as chuvas que irrigam os campos e enchem os rios. Por isso, a tarka e o moseño devem ser tocados durante o Lapaka Pacha e Jallu Pacha, entre novembro e finais de março, tornando-se os instrumentos principais dos carnavais. As sikuriadas musicalizam os tempos frio e seco, o Awti Pacha e Juyphi Pacha, principalmente durante a noite do Inti Raymi, a grande noite sikuri.

De qualquer modo, a sazonalidade dos estilos musicais e suas respectivas danças parecem variar de região para região. Aliás, em São Paulo, não raras vezes escutamos sikus em tempos quentes ou as vibrantes tarkeadas são tocadas em alguma festa fora de época. Existem comunidades, como os Vientos del Ande, que ensaiam e tocam tarkeadas nas festas de carnavais e apresentam sikuriadas (qhantus ou j’acha sikuris) na Festa da Bolívia, no dia 6 de agosto, correspondendo a sazonalidade dos estilos. Enquanto isso, outros grupos buscam compatibilizar suas tocadas com os calendários de eventos pátrios, católicos e recreativos das comunidades boliviana e peruana e com os convites recebidos de escolas, centros culturais e festivais não bolivianos, nem peruanos. Além disso, alguns destes conjuntos tocam por contrato para festas de aniversários, casamentos e outros festejos particulares.

Num panorama genérico, as datas festivas mais importantes para os conjuntos autóctones altiplânicos atuantes em São Paulo são: Alasitas (finais de janeiro), Anata e Carnaval (fevereiro/março), o Ano Novo Andino-amazônico (21-22 de junho), o dia de La Paz (28 de julho), o dia do Peru (29 de julho), o dia da Bolívia (6 de agosto), o dia de Todos los Santos (2 de novembro), para além das festividadas marianas (Virgen de Copacabana, Virgen del Socavón e Virgen de Urkupiña) e de Tata Bombori. Pela correspondência a sazonalidade de cada estilo musical, nem todos os conjuntos atendem a todas estas datas, alguns se apresentam mais na primeira metade do ano, outros na segunda.

A consideração por estas várias temporalidades e agendas dá conta do agenciamento de cada grupo sobre a justaposição entre tempos aymaras e quechuas e os tempos moderno-coloniais impostos e hoje em dia normalizados. Assumindo a temporalidade dominante e tentando incorporar elementos das temporalidades originárias, nesse exercício inevitavelmente desequilibrado, buscamos criar uma cronologia que demonstre o contexto histórico geral implicado na fundação dos conjuntos autóctones. Olhando de frente para o passado que se ilumina a cada conversa, entrevista e leitura, encontramos três sequências temporais que se relacionam mutuamente. Como base, compreendemos períodos histórico-políticos gerais: como as ditaduras militares na Bolívia (1964-1982) e no Brasil (1964-1985), o conflito militar no Peru (1980-2000), a vitória eleitoral do MAS a partir de 2006, o Golpe de Estado boliviano de 2019 e a retomada democrática em 2020. A seguir, notamos o início do período de maior fluxo migratório boliviano para São Paulo (Silva, 2012SILVA, Sidney Antônio. Bolivianos em São Paulo. Dinâmica cultural e aspectos identitários. In: BAENINGER, Rosana (coord.). Imigração boliviana no Brasil. Campinas: Núcleo de Estudios de População (NEPO), 2012, p. 19-34.).

Infográfico 2 -
Referências cronológicas dos conjuntos autóctones de São Paulo

A partir dessa base histórica que atravessou a região nos últimos quase sessenta anos, apontamos as datas de fundação de vários conjuntos autóctones que estão ou estiveram atuantes na cidade de São Paulo20 20 Percebemos que a fundação de alguns destes conjuntos se relaciona com o surgimento e circulação de grupos musicais intérpretes da Nueva Canción Latinoamericana no Brasil, como Tarancón (1972), Raza India (1976), Raíces de América (1980), entre outros. Estes grupos abriram caminho à formação de um público latinoamericanista e seu circuito musical, trazendo instrumentos e elementos musicais latino-americanos aos palcos brasileiros (Teófilo, 2016), criando um contexto mais propício para o entendimento brasileiro sobre os conjuntos autóctones. Além disso, sabemos que alguns dos integrantes de Vientos del Ande e Kollasuyu Maya, e de outros grupos musicais andinos ativos hoje em dia, foram músicos e dançantes do grupo Raza India. Estas pessoas coincidem que este foi o primeiro grupo a trazer músicas e danças autóctonas da região altiplânica, dedicando-se à difusão desse repertório e também à formação de gerações de músicos e dançantes bolivianos e não bolivianos. .

Ao relacionar estes períodos históricos e as datas de fundação de conjuntos autóctones percebemos que os grupos começam a se formar quando a comunidade começa a estabilizar suas redes migratórias na capital paulista, isto é, a partir da virada do milênio. Outra convergência de fatos especialmente interessante é a profusão de conjuntos que surgiram a partir de 2006. Esta confluência poderá ser parte do “devenir indígena” sugerido por Caggiano (2014CAGGIANO, Sergio. Riesgos del devenir indígena en la migración desde Bolivia a Buenos Aires: identidad, etnicidad y desigualdade. Amérique Latine Histoire et Mémoire, Les Cahiers ALHIM [Online], 2014. Disponível em : http://alhim.revues.org/4957
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) e poderá também, na perspectiva aymara, ser entendida como decorrência do Jacha Uru. Para alguns integrantes aymaras desses conjuntos, desde a virada do milênio ou mais poderosamente em (ou desde) 2006 chegou o Jacha Uru (em aymara, “o grande dia”). Os aymaras acreditam que neste novo milênio se afirmará a transição para uma outra era de transformação social e política na qual os povos até hoje submetidos econômica e culturalmente ressurgirão. Junto à Praça da Kantuta, em roda, com seus sikus em punho, ao ritmo cardíaco de seus bombos, lá vão os Vientos del Ande cantando: “uka jach'a uru jutaskiway / amuya sipxañani jutaskiway (x2) / tajpacha llakinacasti / amuya sipxañani tukusiniu (x2) / tatanaka mamanaka / uka jach'a uru jutaskiway (x2)”21 21 “O grande dia está vindo (x2) / Meditemos, está vindo (x2) / Todos com tristeza / Meditemos, está terminando (x2) / Senhores e senhoras, o grande dia está vindo (x2)” (tradução de César Chui). .

Conclusão

Como clamava Tupak Katari, “volveré y seré millones”: milhões de pessoas aymaras e quechuas pelo território ancestral do Tawantinsuyu e do Kollasuyu, centenas de milhares descendo a cordilheira até as terras baixas, para Santiago do Chile, para Buenos Aires, para São Paulo, soprando seus sikus, tarkas e moseños, dançando seus ventos andinos muito para além dos Andes. A relação cronológica destes grupos comprova que estes territórios imigrantes altiplânicos andinos, musicados e performados para além do Altiplano, em São Paulo, vêm se gestando há mais de vinte anos, a partir de uma diversidade de inspirações musicais e estilísticas vindas do seu território de referência. Ora, se estes grupos autóctones são relacionados com a expressão originária indígena e se a maioria dos integrantes dos conjuntos atuais se autodeclaram aymaras e/ou quechuas, talvez essa relação cronológica complemente a percepção de que entre a população imigrante boliviana e peruana em São Paulo (e área metropolitana) existem setores indígenas há pelo menos duas décadas. Hipótese que, por sua vez, fortalece a urgência de contarmos com dados étnico-raciais interseccionados com os migratórios, bem como questiona a fortaleza da ideia nacional nos estudos migratórios e entidades ligadas a contextos afins.

Por outro lado, dando conta da multiplicidade de estilos musicais e performáticos advindos da variação das referências territoriais, a relação espacial dos conjuntos demonstrada aqui ilustra a diversidade dessas expressões autóctones, aludindo talvez à variedade de entendimentos próprios sobre suas autodeclarações enquanto pessoas originárias. Referenciados em diferentes locais altiplânicos, estes conjuntos trazem ora um discurso localista, ora nacional boliviano ou peruano, tanto através de falas mais nostálgicas sobre a ruralidade altiplânica, como mais diretamente políticas, próximas à ideologia katarista. São articuladas, assim, várias e diferentes ideias de autoctonias transmigrantes que aqui se fazem possíveis através da presença, da fala, da expressão performática, da música e da dança de referência autóctone altiplânica.

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  • 1
    Em agradecimento a Beatriz Morales, Juanito Cusicanki, César Chuí Quenta, Oscar Condori e a todas as pessoas envolvidas nestes anos de vida (e de investigação doutoral) e em homenagem a Don Severo Condori e Jaime Flores. Jallalla Tata Severo! Jallalla Jilata Jaime!
  • 2
    Aguayo é uma manta tecida de lã de lhama ou de ovelha, manual ou industrialmente, organizado em faixas de cores contrastantes, com motivos figurativos da fauna e flora andinos e abstrações geométricas e cromáticas com diferentes significados, por exemplo, a passagem entre os três mundos da cosmogonia andina (Uku Pacha, Kay Pacha, Hanan Pacha). Estas mantas são usadas seja para carregar nenéns ou levar algo às costas, para proteção daquele ou do que é levado, seja por cima de alguma superfície plana, normalmente sobre o chão de terra, para distribuição do Apthapi (partilha comunitária de alimentos e bebidas), para mediação entre o mundo debaixo, dos mortos (Uku Pacha), e o mundo terrenal, dos viventes (Kay Pacha). Atualmente o aguayo vem sendo reapropriado para novos e variados usos, mas segue com uma forte associação às pessoas e práticas originárias andinas.
  • 3
    Cholitas é o diminutivo plural de chola, mulher originária ou descendente originária, que se veste de maneira não-ocidental, com suas saias rodadas, duas tranças longas e chapéu. Todos elementos que variam de região para região.
  • 4
    Ojotas é a palavra em espanhol para sandálias em geral e, no caso andino, são chilenos feitos de pneu, muito resistentes e baratos, relacionados com as populações camponesas, indígenas e afro-andinas.
  • 5
    Moseño é um instrumento de vento andino (aerófano) de apenas um tubo de bambu, de tamanhos variados, tocado em províncias do departamento de La Paz, região predominantemente aymara. As moseñadas, estilo de música protagonizado pelo moseño, são tocadas durante o Jallu Pacha, tempo da umidade e das chuvas, entre novembro/dezembro e março.
  • 6
    Pollera, em castelhano significa “saia” e, no caso andino, remete às saias rodadas utilizadas pelas cholitas. Cada zona tem seu estilo de pollera, por exemplo, em La Paz, são mais pesadas e mais longas (em correspondência ao frio altiplânico), em Cochabamba, as polleras têm poucas camadas e acabam logo acima do joelho (respondendo ao clima ameno dos vales cochabambinos).
  • 7
    Sombrero, em castelhano significa “chapéu” e nos Andes é muitas vezes relacionado com os chapéus, ou bombines, que as cholitas usam. Também diferentes de zona para zona, os sombreros identificam a região de onde a cholita que o usa é.
  • 8
    Tarkeada é o estilo musical tocado principalmente por um conjuntos de tarkas - instrumento de vento andino de apenas um tubo de madeira, de diferentes medidas - acompanhadas por bombos. A partir dos departamentos altiplânicos de Puno (Peru), La Paz e Oruro (Bolívia), extensa região aymara, a tarkeada é musicada e dançada também durante o Jallu Pacha, como a moseñada.
  • 9
    Consideramos os grupos que estiveram ativos até o ano de 2019, levando em consideração que todos os grupos tiveram suas atividades pausadas durante a pandemia e vários deles ainda não foram plenamente reativados em decurso da crise financeira e do redirecionamento de fluxos migratórios durante 2020 e 2021. Alguns tocadores e dançantes faleceram de covid-19, outros regressaram à Bolívia e ao Peru, desencadeando a inevitável reorganização dos conjuntos e retomada gradativa de atividades.
  • 10
    Pinquillo é um instrumento de vento andino de um tubo de bambu, osso ou madeira, tocado em comunidades originárias aymaras e quechuas, com variações em outras sociedades indígenas andinas, como entre os quichuas (Equador) e os mapuches (Chile e Argentina). A pinquillada é musicada e dançada durante o Jallu Pacha, época das chuvas e das colheitas, e o Lapak Pacha, o tempo de calor entre setembro e dezembro, nomeadamente na Fiesta de Todos los Santos, nos primeiros dias de novembro.
  • 11
    Siku, também conhecido na sua tradução para castelhano como zampoña, é um instrumento de vento formado por uma ou duas fileiras de tubos paralelos com diferentes dimensões, à semelhança da flauta de pan. O siku é tocado secularmente em muitas províncias dos departamentos altiplânicos peruanos e bolivianos e, nos dias de hoje, é um dos aerófonos andinos mais difundidos pela América do Sul. O chamado movimento sikuri, daqueles que tocam o siku, se espalha pelas capitais da Argentina, Chile, Peru, Bolívia e Colômbia, conformando grandes e diferentes eventos anuais, como o Mathapi Aphtapi Tinku, em agosto, em Buenos Aires, e o Encuentro de Sikuris Tupac Katari, em novembro, em Lima. O siku é tocado, sobretudo, durante o Awti Pacha e o Juyphi Pacha, o tempo frio e seco entre março e setembro, ainda que a sazonalidade da tocada varie de região para região.
  • 12
    Na região das Américas colonizadas pelo Império espanhol, o termo criollo remete a pessoa de origem espanhola, nascida em território americano, ou as manifestações culturais de grande influência espanhola e colonial. Muitas vezes, o termo traz um sentido de classe marcado por uma diferença hierárquica político-económica e simbólica entre as pessoas e práticas criollas em relação às autóctonas e afrodescendentes.
  • 13
    Pela presença diminuta de conjuntos formados por pessoas nascidas no Peru e pela brevidade do ensaio, decidimos priorizar aqui a consideração analítica sobre a articulação histórico-política do autoctono/camponês/indigena na Bolívia.
  • 14
    Referimos “nacional republicano” ao considerarmos que existem outros paradigmas de nação colocados em pauta nas últimas décadas pelos movimentos indígenas pela América Latina. Se existem nações e nacionalidades indígenas, pensadas e estabelecidas a partir das regiões da Bolívia, do Equador, do México, entre outras, não interessa seguir repetindo o “nacional” numa constante auto-evidência moderna, mas sim desestabilizá-lo ao anexar o adjetivo “republicano”.
  • 15
    Os números apresentados anualmente pelo Observatório das Migrações (NEPO-UNICAMP)Observatório das Migrações em São Paulo. Banco Interativo - Números da imigração internacional para o Brasil, 2020-22 (jan.-abr.). Campinas, SP: Observatório das Migrações em São Paulo - NEPO-UNICAMP. Data do download: 20 de abril de 2019, com atualização em 06 de maio de 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.nepo.unicamp.br/observatorio/bancointerativo/numeros-imigracao-internacional/ . Acesso em: 18.08.2022.
    https://www.nepo.unicamp.br/observatorio...
    são calculados a partir dos registros no SINCRE/SISMIGRA, da Polícia Federal (PF). Como dito em nota metodológica adjunta à base de dados, “essa fonte de informação não estima o total de imigrantes internacionais residentes no país”, uma vez que soma os Registros Nacionais Migratórios (RNM), computados pela PF, sendo que uma vez registrada, mesmo que falecida ou fora do país, a pessoa segue sempre registrada. Para além disso, não são considerados aqui os indocumentados, nem os solicitantes de refúgio.
  • 16
    Tawantinsuyo corresponde ao território interconectado pela sociedade inca, entre aymaras, quechuas e outras sociedades indígenas, entre inícios do século XV e finais do século XVI.
  • 17
    Lakita é um estilo musical oriundo das fronteiras entre o norte chileno e sudoeste boliviano que interrompem a extensão sul do Kollasuyo, protagonizado pelo toque do instrumento de sopro laka, semelhante ao siku, acompanhado pelo bombo, pelo tambor e pelos platillos (pratos metálicos).
  • 18
    O Ano Novo Andino-Amazônico é outra forma de nomear o Inti Raymi, em quechua, ou Willka Kuti, em aymara, a festividade de solstício e de homenagem à deidade solar da cosmogonia quechua e aymara. Assim denominado por alguns setores sociais desde 2006, a partir do discurso e das iniciativas de patrimonialização do Inti Raymi por parte do Governo de Evo Morales, as celebrações de virada do ano aymara e quechua, em outros tempos proibida, se multiplicou pela Bolívia e pelas cidades de maior população imigrante boliviana.
  • 19
    Em São Paulo, também vemos a organização de outras festas de Inti Raymi por parte de setores da comunidade kichwa otavalo (Equador).
  • 20
    Percebemos que a fundação de alguns destes conjuntos se relaciona com o surgimento e circulação de grupos musicais intérpretes da Nueva Canción Latinoamericana no Brasil, como Tarancón (1972), Raza India (1976), Raíces de América (1980), entre outros. Estes grupos abriram caminho à formação de um público latinoamericanista e seu circuito musical, trazendo instrumentos e elementos musicais latino-americanos aos palcos brasileiros (Teófilo, 2016TEÓFILO, Mariana Santos. Música folclórica engajada: Chile e Brasil. Anais do II Simpósio Internacional Pensar e Repensar a América Latina, 2016.), criando um contexto mais propício para o entendimento brasileiro sobre os conjuntos autóctones. Além disso, sabemos que alguns dos integrantes de Vientos del Ande e Kollasuyu Maya, e de outros grupos musicais andinos ativos hoje em dia, foram músicos e dançantes do grupo Raza India. Estas pessoas coincidem que este foi o primeiro grupo a trazer músicas e danças autóctonas da região altiplânica, dedicando-se à difusão desse repertório e também à formação de gerações de músicos e dançantes bolivianos e não bolivianos.
  • 21
    “O grande dia está vindo (x2) / Meditemos, está vindo (x2) / Todos com tristeza / Meditemos, está terminando (x2) / Senhores e senhoras, o grande dia está vindo (x2)” (tradução de César Chui).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2022
  • Aceito
    03 Out 2022
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