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O tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano em Moçambique: um olhar a partir de 3 estudos realizados pela CEMIRDE

Trafficking in persons, organs and parts of the human body in Mozambique: a look from 3 studies conducted by the CEMIRDE

O tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano, independentemente das formas que possa revestir, constitui, sem dúvida, uma das mais graves violações dos direitos humanos, podendo ser considerado como uma verdadeira “epidemia mundial” lesiva da dignidade humana e da liberdade individual. Em pleno século 21, pessoas ainda são traficadas no mundo, comercializadas como objetos de consumo e lucro. E no contexto Moçambicano o tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano ainda é uma cruel realidade, sendo um país vulnerável à mercantilização de pessoas, seja como fonte, trânsito ou país de destino (Goredema, 2013GOREDEMA, Charles. Getting Smart and Scaling Up: The Impact of Organized Crime on Governance in Developing Countries - A Case Study of Mozambique. 2013., p. 151).

O problema do Tráfico de pessoas e de órgãos humanos em Moçambique é complexo, pois reveste-se de múltiplas facetas, que incluem a comercialização de seres humanos para fins de exploração sexual, trabalhos forçados e determinadas práticas tradicionais que visam o enriquecimento rápido e ilícito. Esta realidade agudiza-se pelos constantes fluxos migratórios, aliados ao recrutamento e exploração de pessoas mais vulneráveis, sobretudo crianças, mulheres e portadores de albinismo.

Esta comunicação pretende contribuir para um melhor entendimento e compreensão do fenómeno do tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano em Moçambique, apresentando especificamente os principais factores que contribuem para sua ocorrência. Para responder ao objectivo proposto foi realizada uma pesquisa documental e bibliográfica, tendo como base três projetos investigativos que versam sobre a temática. Pesquisas estas encomendadas pela Comissão Episcopal para Migrantes, Refugiados e Deslocados - CEMIRDE1 1 Uma das Comissões do Departamento Social da Conferência Episcopal de Moçambique - CEM que, sem fins lucrativos trabalha em favor das pessoas em mobilidade (migrantes, refugiados e deslocados) e dos mais vulneráveis (sobretudo as vítimas do tráfico de seres humanos) priorizando a promoção da vida e da dignidade da pessoa humana. , nas regiões sul, norte e centro, de Moçambique nos anos 2016 (Mariano, Braga, Moreira, 2016MARIANO, Esmeralda; BRAGA, Carla; MOREIRA, Andrea. Estudo sobre o tráfico de órgãos e partes do corpo humano na região sul de Moçambique. Maputo: CEMIRDE/CAFOD, 2016.), 2018 (Moreira, Mariano, 2018MOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo sobre o Tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano nas Províncias de Niassa, Nampula e Cabo Delgado. CEMIRDE, 2018.) e 2020/2021 (Moreira, Mariano, 2020/2021MOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo sobre o Tráfico de Pessoas, Órgãos e Partes do Corpo Humano no Centro de Moçambique nas Províncias de Zambézia, Tete, Sofala e Manica. CEMIRDE, 2020-2021a.), envolvendo cerca de trezentos e cinquenta e sete (357) informantes-chave, dentre os quais: representantes de instituições governamentais e da sociedade civil, líderes religiosos, líderes comunitários, professores, profissionais da biomedicina e da medicina tradicional, membros das comunidades e jovens estudantes do ensino secundário maiores de 18 anos.

Foram selecionadas para pesquisa instituições governamentais e não governamentais que atuam na prevenção e combate ao tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano em Moçambique. Para uma coleta segura das informações, foi utilizado um guião de entrevistas e uma declaração de consentimento informado de modo a assegurar as questões éticas e profissionais. Cada instituição ficou responsável por indicar uma pessoa ou mais para ser entrevistada e que pudesse partilhar os seus conhecimentos e experiência sobre a temática. Nas escolas, foram criados grupos focais de até 6 alunos para participarem das entrevistas. A escolha dos informantes para a pesquisa deu preferência a pessoas com experiência sobre a temática, seja atuando diretamente com a questão ou contribuindo com informações sobre as percepções populares, sociais e culturais, nas comunidades.

Justificativa e Metodologia

Moçambique tem uma população muito jovem e um crescimento demográfico acelerado, mas com baixos níveis de escolarização ou de formação profissional. Cerca de 80% da população pratica agricultura de subsistência, dependente das variações climáticas. A descoberta, nas últimas décadas, de minérios no país tem gerado um forte crescimento econômico. Entretanto, os benefícios desse crescimento têm alcançado uma pequena secção da população, aprofundando assim as desigualdades socioeconómicas. De fato, conforme o Banco Mundial, “Moçambique tem cerca de 15 milhões de pessoas a viver em pobreza extrema (com menos de 1,90 dólares por dia), o que corresponde a quase 60% da população do país” (Moreira, Mariano, 2018MOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo sobre o Tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano nas Províncias de Niassa, Nampula e Cabo Delgado. CEMIRDE, 2018., p. 19). Além disso, um conjunto de outros fatores, como a instabilidade política e militar, a precariedade das infraestruturas, a flutuação de preços dos mercados para produtos minerais, o desemprego e, inclusive, eventos climáticos adversos, como os ciclones Idai e Kenneth (2019), e mais recentemente o surto de Covid-19, tem gerado uma situação sociopolítica instável e um crescimento económico não linear.

Ainda que Moçambique tenha passado por grande crescimento econômico, chegando inclusive a uma média anual de cerca de 8% entre 2004 e 2015, o país continua a ser um dos mais pobres do mundo. A implementação de políticas neoliberais com a acentuada redução do papel do Estado implicou uma redução dos investimentos em serviços públicos, afectando os grupos mais vulneráveis. Com base nesse contexto marcado por uma extrema vulnerabilidade estrutural (económica, social e institucional), os indivíduos estão mais expostos a serem vítimas do tráfico, e os seus corpos sujeitos à violência de várias formas. As desigualdades sociais, a pobreza, o desemprego, a dificuldade de acesso a serviços sociais, a fragilidade das instituições (corrupção), a porosidade das fronteiras, o elevado índice de analfabetismo e o desconhecimento dos contornos do fenómeno (existência de poucas pesquisas e fraca disseminação das existentes) são o pano de fundo para ocorrência do tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano.

A elaboração desta comunicação baseou-se no método qualitativo, tendo observado duas fases: análise e sistematização de dados, que podem ser encontrados nos três Projectos de pesquisas encomendadas pela Comissão Episcopal para Migrantes, Refugiados e Deslocados - CEMIRDE, sobre o Tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano, nas regiões sul, norte e centro, de Moçambique, nos anos 2016, 2018,2020 e 2021.

O método de pesquisa qualitativa é recomendado para explorar, descrever e explicar o impacto de certas ideologias e práticas, quer ao nível individual e familiar, como ao nível institucional. Nas pesquisas mencionadas anteriormente o método foi aplicado para conseguir obter uma melhor compreensão e aprofundamento de conhecimentos sobre o fenómeno, levando em consideração a natureza da problemática do Tráfico de Pessoas, órgãos e partes do corpo humano em Moçambique.

O que é Tráfico de Pessoas?

O tráfico humano é “uma forma de poder em que se utiliza a vulnerabilidade das pessoas para as explorar e controlar, em troca de pagamentos e outros benefícios, como oferta de emprego, obtendo deste modo o consentimento das vítimas. Estas são colocadas numa situação em que perdem por completo os seus direitos, ficando sob a dependência dos traficantes (Monteiro, Osório, 2009MONTEIRO, Ana Cristina; OSÓRIO, Conceição. Tráfico de Mulheres e crianças. Maputo: WLSA Moçambique, 2009.). Sendo por natureza um negócio complexo, secreto, perigoso, de difícil acesso e enfrentamento, são poucas as vítimas deste crime que têm coragem de testemunhar contra os traficantes por receio de retaliação, de recriminação e por falta de confiança na acção da justiça” (Mariano, Moreira, 2021MOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo Comparativo sobre o Tráfico de Pessoas, Órgãos e Partes do Corpo Humano em Moçambique. 2021b., p. 12).

Para que uma situação de Tráfico de pessoas seja reconhecida como tal, devem estar presentes três elementos essenciais: acção, meios e fim. Por Tráfico de pessoas, portanto, entende-se, segundo o Artigo 3.º do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional relativo à Prevenção, à Repressão e à Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças,

o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou de situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tem autoridade sobre outra, para fins de exploração. A exploração deverá incluir, pelo menos, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, a escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a extração de órgãos.

O Protocolo esclarece também que em se tratando de crianças (pessoas com idade inferior a dezoito anos) não há necessidade de existir nenhum dos elementos referidos como meios para se configurar como tráfico.

No que diz respeito ao tráfico de órgãos, um estudo conduzido pela Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH, 2009FELLOWS, Simon. Tráfico de partes de corpo em Moçambique e na África do Sul. Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, 2009.) aponta a falta de um conceito de tráfico de partes do corpo reconhecida a nível internacional. Apesar da ausência de um conceito internacional, levando em conta que o “Tráfico é o acto de movimentar e comercializar algo ilegal” a LDH considera como tráfico de partes do corpo humano “o transporte ou o movimento de uma parte do corpo, quer através de uma fronteira ou dentro de um país para venda ou transação comercial” (LDH, 2009FELLOWS, Simon. Tráfico de partes de corpo em Moçambique e na África do Sul. Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, 2009., p. 10).

Tráfico de órgãos e partes do corpo humano em Moçambique

O tráfico de pessoas é um fenómeno universalmente difundido. No entanto, em algumas áreas do contexto africano, tem sido reportado que a extracção de órgãos humanos não tem finalidades cirúrgicas, mas se destina a prática de “rituais de feitiçaria ou magia. Há relatos de roubo de genitais na África Central e Ocidental e de modo particular em Moçambique. Acredita-se que os órgãos genitais masculinos roubados são vendidos aos médicos tradicionais para uso em cerimónias (Lombard, 2013LOMBARD, Louisa. Missing Pieces. Africa’s genitak-stealing crime wave hits the countryside. Pacific Standard, 2013.). Segundo a UNESCO (2006)UNESCO. Tráfico de Pessoas em Moçambique: Causas Principais e Recomendações. Policy Paper, n. 14.1(P). Paris, 2006., a África do Sul é um mercado importante onde se acredita que os órgãos sexuais, coração, olhos e cérebro são usados na medicina tradicional para curar doenças decorrentes do VIH/SIDA, impotência sexual e infertilidade, e ainda, aumentar o poder e riqueza do indivíduo.

Simon Fellows, autor de um estudo conduzido pela LDH Moçambique (2009FELLOWS, Simon. Tráfico de partes de corpo em Moçambique e na África do Sul. Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, 2009.), afirma que na base do tráfico de órgãos e partes do corpo humano está uma forte crença que algumas partes do corpo humano magicamente tratadas podem resolver problemas sociais, e tornar os medicamentos tradicionais mais fortes e eficazes. Os medicamentos são chamados muti e são substâncias fabricadas por especialistas com o objetivo de purificar, “fortalecer ou proteger as pessoas de forças malignas, ou podem servir os propósitos negativos da feitiçaria, trazendo má sorte, doença e morte a outros, ou ainda, enriquecimento ilícito, e poder ao feiticeiro (Ashforth, 2008)” (Mariano, Moreira, 2021MOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo Comparativo sobre o Tráfico de Pessoas, Órgãos e Partes do Corpo Humano em Moçambique. 2021b., p. 14). Conforme o relatório da LDH, as substâncias muti,

podem entrar no corpo através da boca, dos pulmões, da pele, das relações sexuais e do ânus, assim, qualquer pessoa que coma, beba, respire ou ponha o seu corpo em contacto com outras pessoas ou substâncias, precisa de ter cuidado. Também se diz que o muti funciona a longas distâncias sem necessidade de qualquer contacto directo entre o feiticeiro e a vítima e que pode até funcionar através de um sonho. (LDH, 2009FELLOWS, Simon. Tráfico de partes de corpo em Moçambique e na África do Sul. Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, 2009., p. 40)

Outra crença está relacionada ao poder atribuído às pessoas com albinismo, particularmente no Centro e Norte do país. Acredita-se que partes dos corpos dessas pessoas possuam poderes mágicos. Conforme um dos relatórios

“Cabelo é dinheiro, unha é dinheiro, ossos é dinheiro, sangue é dinheiro”, expunha o pai de uma criança com albinismo, mencionando que o seu filho tem por hábito recolher o seu cabelo do chão do barbeiro depois do corte. Uma mãe de uma criança com albinismo contou um episódio em que o seu filho voltou para casa a chorar porque um senhor na rua lhe disse que o iria vender. São narrativas que ilustram a exclusão social que as pessoas com albinismo enfren tam todos os dias, sendo que os abusos e maus-tratos nem sempre são físicos. Em contextos de pobreza, a precariedade da situação dos direitos humanos das pessoas com albinismo está igualmente relacionada com o envolvimento dos próprios familiares das vítimas nos crimes. (Mariano, Moreira, 2021bMOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo Comparativo sobre o Tráfico de Pessoas, Órgãos e Partes do Corpo Humano em Moçambique. 2021b., p. 23)

Enfim, além da finalidade lucrativa, que caracteriza o Tráfico Humano em nível internacional, o Tráfico de órgãos e partes do corpo de seres humanos em Moçambique é motivado também por crenças populares2 2 Conforme o relatório LDH, “como parte deste projecto de pesquisa, foi perguntado a metade dos participantes no workshop, se eles próprios acreditavam que as partes do corpo podem tornar a medicina tradicional mais eficaz. Em Moçambique só 6% disseram acreditar enquanto que na África do Sul esta percentagem foi de 24%. À outra metade do grupo perguntou-se se as pessoas em geral acreditavam que as partes do corpo tornavam o muti mais eficaz. Mais de 70% dos participantes respondeu que as pessoas acreditam que as partes do corpo melhoram a medicina tradicional. Embora esta seja uma questão muito generalizada, indica que a crença continua forte na população em geral” (LDH, 2009, p. 40-41). , o que torna ainda mais difícil o enfrentamento. De acordo com um estudo da Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH, 2016Liga Moçambicana dos Direitos Humanos. Tráfico de Órgãos e Partes do Corpo Humano. Um Crime Organizado aos Olhos do Estado. 2010 - 2014. . Maputo, 2016.), a região Centro de Moçambique é a que mais regista casos de tráfico no país, sendo que quase 70% dos casos de extração de órgãos ocorrem na região de Tete, Zambézia, Manica e Sofala.

Causas e consequências do Tráfico de pessoas

As três pesquisas encomendadas pela CEMIRDE, mencionadas anteriormente, apontam como principais causas do tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano: a pobreza extrema associada às desigualdade socias; práticas tradicionais (crença na cura de certas doenças com recurso a órgãos e/ou partes do corpo humano ou uso dos mesmos para atração da sorte); o medo de represálias em denunciar o fenômeno; a fragilidades nas Instituições Estatais; os conflitos bélicos e a instabilidade político-militar; os deslocamentos forçados provocados pelos eventos naturais (secas, cheias, furacões etc.); o desemprego aliado com a demanda por mão-de-obra barata; e, sobretudo, o desprezo pela vida e pela dignidade de cada ser humano. Cabe lembrar a esse propósito que o Artigo 40 da Constituição da República de Moçambique reconhece que “todo o cidadão tem direito à vida e à integridade física e moral, e não pode ser sujeito à tortura ou tratamentos cruéis ou desumanos”.

Merece um destaque a questão migratória. Moçambique tem sido um ponto de trânsito de migrantes que se dirigem para a África do Sul. É, ao mesmo tempo, o destino de pessoas atraídas pelo crescimento econômico do país. Na maioria dos casos as pessoas migrantes são oriundas do continente africano - especialmente etíopes e somalis - mas, nos últimos anos, tem aumentado também o número de asiáticos - sobretudo paquistaneses e bengalis. Os deslocamentos são, geralmente, irregulares e, portanto, sujeitos a todo tipo de violência (mortes, desaparecimentos, violência sexual). É evidente como esse contexto acaba favorecendo as práticas dos grupos criminosos envolvidos em Tráfico de pessoas, de órgãos e partes do corpo humano.

Finalmente, cabe citar também a questão das desigualdades de gênero e dos casamentos forçados. Segundo o relatório de 2020/2021 (Mariano, Moreira, 2021bMOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo Comparativo sobre o Tráfico de Pessoas, Órgãos e Partes do Corpo Humano em Moçambique. 2021b., p. 33), “o casamento forçado pode ser entendido como uma forma de tráfico de seres humanos se contiver uma vertente de exploração da vítima. A exploração pode ser sexual (violação conjugal, prostituição forçada e pornografia) ou económica (trabalho doméstico e mendicidade forçada) e o casamento forçado pode ser o objectivo final do tráfico (venda de uma vítima como esposa)”. Há numerosos relatos de moças que desapareceram depois do casamento. Recentemente, a Assembleia da República de Moçambique adotou uma Lei que proíbe o assim chamado “casamento prematuro”, mas há numerosas dificuldades em sua concretização. Durante a actividade de campo, as pessoas partilharam experiências de desaparecimento de pessoas nas comunidades, profanação de túmulos para retirada de ossadas humanas (sobretudo de pessoas portadoras de albinismo). Nestes termos, os médicos tradicionais (curandeiros) têm sido apontados como sendo os instigadores destas práticas. Por outro lado, as desigualdades sociais têm criado revolta nas comunidades e geralmente o sucesso de uns versus insucesso de outros encontra explicações nas práticas de feitiçarias, ou seja, a extrema riqueza contraposta com a extrema pobreza só encontra explicações fundamentadas por práticas de feiticeiras.

Segundo os interlocutores da pesquisa, são várias as implicações do Tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano na sociedade moçambicana, dentre as quais: desaparecimentos e mortes; pânico nas comunidades e insegurança generalizada; traumatização psicológica das vítimas e suas respetivas famílias; agitação no seio da comunidade, da população que passa a ter medo de realizar livremente as suas actividades; uma sociedade com tendência a ser violenta. Ademais, uma vítima que tenha sido, traficada (explorada), poderá, quando adulta e se tiver ficado com algum trauma, repetir este mal tendo como alvo outras pessoas. As vítimas deste crime macabro, que foram entrevistadas pela pesquisa, sentem-se desamparadas pela sociedade, são deixadas à margem depois do sucedido. Há uma notável falta de acompanhamento das vítimas por parte do estado que tem escassos recursos para efeito.

Considerações finais: enfrentando o tráfico

Esta comunicação de cunho exploratório não se apresenta como um debate acabado, devido à complexidade que a temática em si comporta, no entanto, aponta elementos que confirmam a existência do fenómeno, a dois níveis: o interno e o externo. Ao nível interno as pessoas são traficadas do campo para as cidades, com especial destaque para a capital do país, Maputo. Por outro lado, há vários registos de ocorrência de tráfico de pessoas e de órgãos e partes do corpo humano para fora de Moçambique, particularmente para a África do Sul e o Zimbabwe.

Estamos perante a um fenómeno impulsionado pelas desigualdades sociais. Grande parte da população em Moçambique vive em condições de extrema precariedade, facto que promove estratégias dramáticas de sobrevivência, e a exposição a uma variedade de risco. Neste contexto de falta de oportunidades e pouca esperança de realização individual, a pobreza vai empurrando os mais marginalizados e vulneráveis para as redes do tráfico. Mas, como vimos, há também outros factores de vulnerabilidade, como é o caso de determinadas crenças populares e a própria desigualdade de gênero.

No que diz respeito ao acesso e à disponibilidade dos serviços, embora o país já possua uma legislação abrangente sobre o Tráfico de pessoas e partes do corpo humano, o número de condenações é ainda muito reduzido, por vários motivos, incluindo a dificuldade na recolha de evidências ou provas. Os mandantes nunca são revelados e a impunidade incentiva a prática do tráfico (UNODC, 2018UNODC. Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas - 2018. Nova Iorque: Nações Unidas, 2018.).

Estamos perante a comodificação da própria vida, onde as pessoas são reduzidas à condição de mercadorias e objectos de lucro. A percepção generalizada é que o tráfico envolve nacionais e estrangeiros, representando uma cadeia complexa que faz com que seja muito difícil encontrar o “mandante”. O tráfico de órgãos e partes do corpo humano é também um fenómeno transnacional, em que os actores circulam em complexas redes como se dissolvessem as fronteiras nacionais. Mesmo as fronteiras mais seguras, de controlo rígido e cerrado, são rompidas devido a corrupção.

O contexto marcado pela pandemia da COVID-19 desestruturou as práticas e actividades de prevenção do fenómeno. Para além da pandemia, a situação de guerra no Norte do país, que tem causado deslocamentos populacionais forçados e de forma descontrolada, aumenta a vulnerabilidade ao tráfico de diferentes maneiras. Tem sido amplamente reportado que populações deslocadas à força têm sido alvo de traficantes.

A Igreja católica em Moçambique, por meio da Comissão Episcopal para migrantes, refugiados e deslocados, CEMIRDE, tem sido a voz profética, que por meio de ações de prevenção, pesquisas, denúncias e mais recentemente na assistência as vítimas tem dado seu contributo indispensável na defesa da vida e da dignidade humana, dando visibilidade a problemática dentro e fora de Moçambique.

Para nós, irmãs missionárias Scalabrinianas cuja missão é o serviço Evangélico e Missionário aos migrantes e refugiados mais pobres e ou em situação de vulnerabilidade, o tráfico de pessoas é um forte apelo, uma vez que este na maioria das vezes acontece em situação de migração irregular, sendo os principais vítimas crianças e mulheres. Juntos em defesa da Vida e da Dignidade Humana é o convite que nos desafia como resposta sempre mais atualizada ao carisma Scalabriniano, mas também nos alegra pelo trabalho profético até aqui realizado.

Referências bibliográficas

  • FELLOWS, Simon. Tráfico de partes de corpo em Moçambique e na África do Sul Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, 2009.
  • GOREDEMA, Charles. Getting Smart and Scaling Up: The Impact of Organized Crime on Governance in Developing Countries - A Case Study of Mozambique. 2013.
  • Liga Moçambicana dos Direitos Humanos. Tráfico de Órgãos e Partes do Corpo Humano Um Crime Organizado aos Olhos do Estado. 2010 - 2014. . Maputo, 2016.
  • LOMBARD, Louisa. Missing Pieces Africa’s genitak-stealing crime wave hits the countryside. Pacific Standard, 2013.
  • MARIANO, Esmeralda; BRAGA, Carla; MOREIRA, Andrea. Estudo sobre o tráfico de órgãos e partes do corpo humano na região sul de Moçambique Maputo: CEMIRDE/CAFOD, 2016.
  • MOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo sobre o Tráfico de pessoas, órgãos e partes do corpo humano nas Províncias de Niassa, Nampula e Cabo Delgado CEMIRDE, 2018.
  • MOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo sobre o Tráfico de Pessoas, Órgãos e Partes do Corpo Humano no Centro de Moçambique nas Províncias de Zambézia, Tete, Sofala e Manica CEMIRDE, 2020-2021a.
  • MOREIRA, Andrea; MARIANO, Esmeralda. Estudo Comparativo sobre o Tráfico de Pessoas, Órgãos e Partes do Corpo Humano em Moçambique 2021b.
  • MONTEIRO, Ana Cristina; OSÓRIO, Conceição. Tráfico de Mulheres e crianças Maputo: WLSA Moçambique, 2009.
  • SANTAC. Southern Africa Network against Trafficking and Abuse of Children. Trafficking in Body Parts in the Great Limpopo Trans-frontier Park 2013.
  • UNESCO. Tráfico de Pessoas em Moçambique: Causas Principais e Recomendações. Policy Paper, n. 14.1(P). Paris, 2006.
  • UNODC. Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas - 2018 Nova Iorque: Nações Unidas, 2018.
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    Uma das Comissões do Departamento Social da Conferência Episcopal de Moçambique - CEM que, sem fins lucrativos trabalha em favor das pessoas em mobilidade (migrantes, refugiados e deslocados) e dos mais vulneráveis (sobretudo as vítimas do tráfico de seres humanos) priorizando a promoção da vida e da dignidade da pessoa humana.
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    Conforme o relatório LDH, “como parte deste projecto de pesquisa, foi perguntado a metade dos participantes no workshop, se eles próprios acreditavam que as partes do corpo podem tornar a medicina tradicional mais eficaz. Em Moçambique só 6% disseram acreditar enquanto que na África do Sul esta percentagem foi de 24%. À outra metade do grupo perguntou-se se as pessoas em geral acreditavam que as partes do corpo tornavam o muti mais eficaz. Mais de 70% dos participantes respondeu que as pessoas acreditam que as partes do corpo melhoram a medicina tradicional. Embora esta seja uma questão muito generalizada, indica que a crença continua forte na população em geral” (LDH, 2009FELLOWS, Simon. Tráfico de partes de corpo em Moçambique e na África do Sul. Liga Moçambicana dos Direitos Humanos, 2009., p. 40-41).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Set 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2021
  • Aceito
    19 Ago 2021
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