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Sobre afetos e fardas: gestão militar e emocionalidade em abrigos para venezuelanos em Roraima, Brasil

On affection and uniforms: military management and emotionality in shelters for Venezuelans in Roraima, Brazil

Resumo

O presente artigo tem por objetivo discutir o impacto das emoções sobre a execução de políticas governamentais. No caso específico, o lugar das reações afetivas na conduta dos militares brasileiros que têm a missão de abrigar venezuelanos, migrantes e solicitantes de refúgio, em Boa Vista, Roraima. Com base em dados etnográficos coletados por meio de entrevistas e observação de campo, contrastamos a "acolhida oficial”, supostamente impessoal, e a "acolhida emocional” que é afetada pelo sofrimento do Outro. O duplo vínculo dos militares com a manutenção da ordem e com a assistência social revela a ambivalência da chamada Operação Acolhida enquanto política de securitização e missão humanitária. O artigo gira em torno das implicações de uma "descontinuidade emocional" para a continuidade da ação estatal, apresentando o militar enquanto uma pessoa ciborgue, transitória de emoção e disciplina, ao mesmo tempo pele e farda.

Palavras-chave:
emoções; estado; militares brasileiros; migrantes venezuelanos; Operação Acolhida; Boa Vista

Abstract

This article aims to discuss the impact of emotions on the execution of government policies. In the specific case, the place of affective reactions in the behavior of Brazilian military personnel whose mission is to shelter Venezuelan migrants and asylum seekers in Boa Vista, Roraima. Based on ethnographic data collected through interviews and field observation, we contrast the "official reception", supposedly impersonal, and the "emotional reception" which is affected by the suffering of the Other. The military's double bind with maintaining order and with social assistance reveals the ambivalence of the so-called Acolhida Operation as a policy of securitization and humanitarian mission. The article revolves around the implications of an "emotional discontinuity" for the continuity of state action, presenting the military as a cyborg person, transitory of emotion and discipline, at the same time skin and uniform.

Keywords:
emotions; state; Brazilian military; Venezuelan migrants; Acolhida Operation ; Boa Vista

Cena 1 - Interiorização antecipada

Com os olhos marejados, o Tenente Almeida apontou para a foto de uma família venezuelana no celular 1 1 Para garantir a privacidade dos/as interlocutores/as, empregamos nomes fictícios. . Ele conta que “me apaixonei e fiz de tudo para ajudar”. Essa era a família do Sr. Morales, o primeiro amigo que ele fez em Boa Vista - RR. Eles se conheceram no abrigo para refugiados/as e migrantes venezuelanos/as, onde o Tenente do Exército Brasileiro (EB) atuava como coordenador. A convivência nas atividades cotidianas do abrigo permitiu que o oficial conhecesse tanto a trajetória de vida do migrante quanto o sofrimento e os obstáculos enfrentados para manutenção e cuidados familiares à distância.

Quando chegou de São Paulo para servir por três meses na Operação Acolhida, o Tenente recebeu a missão de abrigar os/as venezuelanos/as e manter a ordem nas instalações improvisadas do centro de convenções Latife Salomão. Na ocasião estava definido que, por questões estruturais, aquele equipamento não poderia receber crianças ou casais, apenas homens e mulheres solteiros/as. Certo dia, porém, o Sr. Morales apareceu com a mulher e as duas filhas na frente do abrigo. Uma das meninas estava com febre e o braço engessado. Sensibilizado e contrariando as normas, o Tenente acolheu toda a família. Não sem provocar situações imprevistas. Outras famílias apareceram pedindo abrigo, fato que expôs a atitude do Tenente perante seus superiores.

Comunicando o ocorrido ao seu chefe imediato, deu-se uma nova tomada de decisão, desta vez de impacto mais amplo. O coronel mandou transferir a família de Morales e todas as outras famílias requerentes para um outro abrigo destinado a receber famílias. O número de vagas nos abrigos era restrito, logo qualquer decisão de remanejamento de pessoas implicaria uma propagação de novos ajustes e remanejamentos. Tudo começou porque o Tenente Almeida decidiu ajudar um venezuelano. Dentre as centenas de famílias separadas pelas regras de acolhimento, pode-se dizer que a família Morales teve uma trajetória privilegiada.

Não satisfeito em arrumar um teto temporário àquelas pessoas, Tenente Almeida mediou uma espécie de “interiorização antecipada”. Comprou passagem com recursos próprios e arrumou um trabalho para o Sr. Morales no interior de São Paulo. A viagem do pai de família foi antecipada tendo em vista não perder a oportunidade de emprego oferecida como caseiro em uma fazenda. Enquanto o amigo se estabelecia no novo trabalho, o oficial do EB articulava a viagem da família por meio do programa de reassentamento/interiorização patrocinado pelo Governo Federal. Elas partiram em setembro de 2018. O Tenente Almeida e o Sr. Morales trocavam mensagens diárias por meio das mídias sociais e já programavam o reencontro, ao término da missão.

Cena 2 - O PINO

As relações estabelecidas no interior dos abrigos, contudo, são limitadas pelo tempo máximo de permanência dos militares, que é de noventa dias. Segundo o Tenente Almeida: “Noventa dias é bom. Mais que noventa dias a pessoa vai se envolver muito com a missão. Às vezes a pessoa começa a se cansar e se não tiver área de escape começa a ficar revoltado”. O Capitão Querubim, por sua vez, enfatiza que esta é uma diretriz da instituição baseada em critérios acadêmicos: “Existem estudos que demonstram que o militar mais que esse período começa a adquirir stress pós-traumático devido à situação de impotência”. As falas do Tenente e do Capitão realçam a preocupação com o aspecto psicológico dos militares nesse tipo de “ação civil” e/ou “ajuda humanitária”.

As transformações psíquicas dos militares nos foram sintetizadas pela primeira vez pelo Tenente Coronel Beija-Flor, que apresentou a sigla PINO, descrevendo quatro estágios emocionais pelos quais os militares atravessam em contato com o sofrimento alheio:

  • Pena: é o sintoma do primeiro contato com as dificuldades do outro. Nesta fase, o militar se apieda das condições de vida da pessoa e tende a se envolver pessoalmente para atender as diferentes demandas, como o fez o Tenente Almeida no caso da família enviada para São Paulo;

  • Indiferença: nesse estágio, a repetição das situações de sofrimento alheio já não mais provoca a piedade, porém ainda não produz nenhuma reação negativa;

  • Nojo: aqui começam os problemas. A reação positiva inicial, transformada em indiferença, agora produz reações que demonstram um certo desgaste perante a repetição de situações que expõem as fraquezas e necessidades humanas. O Tenente Vasconcelos foi quem confidenciou: “não aguento mais ouvir os problemas deles”;

  • Ódio: antes que este aflore, ou seja, antes de “dar o PINO”, a pessoa deve ser mandada de volta para casa.

Objetivos e construção do argumento

O presente artigo tem por objetivo discutir o impacto das emoções sobre os encaminhamentos burocráticos da chamada Operação Acolhida. Assim ficou conhecida a Força Tarefa Logística Humanitária (FT Log Hum) acionada pelo Governo Federal do Brasil em 2018 como resposta ao crescente movimento de entradas de migrantes e solicitantes de refúgio venezuelanos pela fronteira norte do país. Trata-se de uma articulação interministerial encabeçada pela Casa Civil da Presidência da República que repassa verbas para o Ministério da Defesa coordenar a execução das ações de recepção aos migrantes (documentação, abrigamento, interiorização). Uma Operação lançada em caráter temporário, sem previsão de término e sem qualquer planejamento para desenvolver capacidades locais e serviços permanentes (Vasconcelos, 2020VASCONCELOS, Iana. Entre acolher e manter a ordem: notas etnográficas sobre a gestão das forças armadas brasileiras nos abrigos para venezuelanos/as solicitantes de refúgio em Boa Vista-RR. In: MACHADO, Igor Renó (org.). Etnografias do Refúgio no Brasil. São Carlos-SP: EduFSCar, 2020, p. 104-117.). Os dados, apresentados de forma etnográfica, são provenientes de pesquisa de campo intermitente realizada entre 2016 e 2020. Mais especificamente, foram realizadas sete visitas aos abrigos para venezuelanos e entrevistas em profundidade com sete militares responsáveis pelas instalações, durante os meses de setembro e outubro de 2018.

A Operação Acolhida foi organizada em três frentes de ação: ordenamento de fronteira (identificação e documentação dos/as venezuelanos/as), abrigamento (abrigo, alimentação, atenção básica em saúde) e interiorização (transporte para outras cidades e regiões do país). Aqui neste artigo nos tocam os temas do acolhimento e da interiorização, pois oportunizam a observação, primeiro, da convivência cotidiana entre o agente público e o cidadão migrante, e consequentemente, da construção de preferências no tocante à prestação dos serviços estatais. Enfim, como os afetos repercutem nas políticas de atenção ao migrante?

Como sugerem Ciméa Bevilaqua e Piero Leirner, o estudo da lógica institucional é insuficiente para entender o Exército e outros setores do estado brasileiro (Bevilaqua, Leirner, 2000BEVILAQUA, Ciméa; LEIRNER, Piero. Notas sobre a análise antropológica de setores do Estado brasileiro. Revista de Antropologia, v. 43, n. 2, p. 105-140, 2000., p.125). Aqui nos interessa a agência do sujeito “emocional" que é afetado na relação com o Outro, a despeito de sua posição na estrutura burocrática-estatal. Afetos e emoções serão entendidos aqui como partes de um mesmo complexo de afecções, sentimentos e sensações capazes de transformar a percepção que uma pessoa tem de si e do mundo ao seu redor. Nos termos do filósofo holandês Bento de Spinoza, os afetos são “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (Spinoza apud Santos, Ribeiro, 2020SANTOS, Valdeci Ribeiro dos; RIBEIRO, Wallace. Spinoza, uma filosofia da imanência dos afetos. Kínesis, v. XII, n. 33, p. 198-212, 2020. DOI: https://doi.org/10.36311/1984-8900.2020.v12n33.p198-212
https://doi.org/10.36311/1984-8900.2020....
, p. 202). Não estamos aqui para julgar as pessoas por seus atos de "pena" e tampouco aqueles denominados como “ódio”. Procuramos apenas compreender em que medida essas afecções e o sistema simbólico que gira em torno delas impactam as relações entre militares brasileiros e civis venezuelanos, co-criadas no dia-a-dia dos abrigos. As relações emocionais transbordam os limites de uma suposta impessoalidade da ação institucional, por mais disciplinar e hierarquizada que seja a instituição, como é o caso do Exército.

Na próxima sessão oferecemos um panorama da gestão militar dos abrigos em Boa Vista para, na sequência, retomar a discussão sobre o lugar das reações emocionais nas políticas de atenção aos migrantes e refugiados. Problematizamos o reivindicado caráter de “missão humanitária” da Operação Acolhida, salientando a sua ambivalência enquanto política de securitização e política de assistência social. Por fim, refletimos sobre as implicações de um duplo comprometimento dos agentes públicos envolvidos: i) com o controle e a manutenção da ordem nos espaços de abrigo; ii) com as relações interpessoais estabelecidas por meio do convívio prolongado com o “público-alvo” daquela ação institucional, apresentando o militar enquanto uma pessoa ciborgue, transitória de emoção e disciplina, um compósito de pele e farda.

Acolhida oficial

Uma das primeiras tarefas da FT Log Hum - Operação Acolhida foi a retirada de venezuelanos/as que ergueram ocupações espontâneas em praças e ao redor da rodoviária de Boa Vista - RR. Uma vez realizada a “higienização” dos espaços públicos, coube ao Exército Brasileiro promover a limpeza e reorganização de ginásios e outras estruturas de grande porte espalhadas pela cidade. Os equipamentos foram transformados em abrigos, conforme a orientação dos agentes do ACNUR, e administrados em parceria com organizações do terceiro setor, seguindo uma tendência global no campo da governança migratória2 2 O termo governança implica a participação de múltiplos grupos de interesse, além do próprio Estado, na condução das políticas públicas. No caso da Op. Acolhida, além do EB, estavam presentes as Igrejas de diferentes denominações, os organismos do sistema ONU, agências de cooperação internacional de países ricos, ONGs de atuação global, etc. .

Os militares, quando indagados pela população local sobre supostos benefícios oferecidos aos venezuelanos (abrigo, comida e remédios), faziam questão de esclarecer um ponto um tanto quanto delicado da ação de acolhimento. Não se tratava, para o militar brasileiro, de prover bem-estar aos venezuelanos senão garantir, primeiramente, o bem-estar da população brasileira de Roraima. Faziam isso retirando os venezuelanos dos espaços públicos como praças, ruas, calçadas, canteiros de avenidas, terrenos baldios e prédios abandonados; e alojando toda essa população de rua em locais fechados, com hora para sair e voltar.

Na capital roraimense foram geridos pelo EB, entre os anos de 2018 a 2021, dezenove equipamentos no âmbito da Operação Acolhida: treze abrigos; um posto de triagem ao lado da Polícia Federal; um posto de informações; guarda volumes; um ponto de doação; um hospital de campanha; e uma “área de pernoite” localizada próxima à rodoviária3 3 A “área de pernoite” foi uma solução encontrada pelos militares para retirar os/as venezuelanos/as que, sem lugar para dormir, persistiam em acampar de forma improvisada nas proximidades da rodoviária. Na “área de pernoite” eram oferecidas barracas e colchonetes, além de jantar e café da manhã. As barracas deveriam ser devolvidas logo cedo, antes do desjejum. E o migrante passava o dia nas ruas. . Nem todos os equipamentos estiveram ativos simultaneamente. A abertura e fechamento das instalações respondia a uma complexa dinâmica política, envolvendo órgãos municipais, estaduais e federais, que não é alvo do presente manuscrito.

Em outubro de 2020, de acordo com o monitoramento realizado pela OIM, havia estimativa de 1847 migrantes venezuelanos/as desabrigados/as em Boa Vista. Destes, 1015 viviam em grandes ocupações espontâneas, 407 na rodoviária, 373 em micro-ocupações espontâneas e 52 nas ruas. Vale notar que o número de venezuelanos vivendo em ocupações espontâneas não reflete necessariamente uma falta de vagas nos abrigos oficiais. A sensação de aprisionamento dos abrigos, bem como o preconceito a eles associado na cidade, contribuiu para que muitas pessoas preferissem as ocupações espontâneas ou mesmo pagar aluguel de pequenos apartamentos divididos com uma dezena de paisanos4 4 Expressão comumente utilizada pelos/as venezuelanos/as para se referir aos compatriotas. .

Os abrigos ou refúgios, nas palavras de nossos/as amigos/as venezuelanos/as, eram preferidos por aquelas pessoas que buscavam auxílio do programa de interiorizações. Um bom exemplo disso é a história do senhor Rodrigues. Qual não foi a surpresa quando descobrimos que um de nossos interlocutores mais antigos, chegado no Brasil em 2016, deixara a casa alugada onde vivia com o filho e a nora para ficar num abrigo e entrar na fila para viajar ao Mato Grosso - o que de fato ele conseguiu meses depois do nosso último encontro em 2019.

Os abrigos contavam com a participação ativa de membros das Forças Armadas brasileiras, apenas uma unidade era gerida exclusivamente por uma fraternidade religiosa (embora uma equipe de militares marcasse presença no local). Aqueles que contavam com os serviços dos militares procuravam seguir as diretrizes do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) e foram chamados de “abrigos”. O outro, sob responsabilidade da entidade “Fraternidade Sem Fronteiras”5 5 Instituição sem fins lucrativos que atua em várias partes do mundo com populações em situação de pobreza. Chegou em Roraima em outubro de 2017 e, com a colaboração de voluntários, doadores e as FA, gerencia um centro de acolhimento onde as famílias recebem alimentação, orientação para serviços de saúde e educação, têm aula de português e dividem responsabilidades nos cuidados com o ambiente. Para mais informações consultar: https://www.fraternidadesemfronteiras.org.br/ , era tratado por “centro de acolhimento”, o que sugere um distanciamento entre os dois modelos de acolhida. Aqui nos interessam apenas os abrigos “militarizados” que dão lugar às mútuas afetações entre militares brasileiros e civis venezuelanos. Dentre os treze abrigos “militarizados”, apenas dois eram geridos exclusivamente pelas Forças Armadas; os demais eram geridos em parceria com entidades não governamentais religiosas e laicas - cooperação mediada pelo ACNUR.

Cada abrigo era composto por uma equipe de cerca de oito militares. Essa equipe era dividida em dois subgrupos que pudemos identificar: (i) aqueles que vieram de fora, composto por dois oficiais e dois graduados que ficavam permanentemente nos abrigos e (ii) militares “locais”, ou seja, pessoas que já serviam no estado de Roraima, composto por um cabo e dois soldados. Aos de fora estavam destinadas as funções ligadas à coordenação, exercida por sargentos e oficiais (tenentes, capitães, majores e tenentes-coronéis). O Tenente Almeida, que veio do interior de São Paulo, foi coordenador de abrigo. Os “roraimenses”, por sua vez, soldados em sua maioria, ficaram responsáveis por executar funções de controle da identificação de saída e entrada nos abrigos, bem como tarefas operacionais, tais como distribuição de comida e armazenagem dos pertences dos/as abrigados/as.

A equipe de militares que coordenava o abrigo tinha à disposição ambientes climatizados, reservados. Esses espaços comportavam sala de trabalho, dormitório e banheiro. Naquelas edificações que não possuíam uma sala de administração, foram instalados contêineres situados à entrada dos abrigos. Não era permitida a entrada de migrantes no escritório sem prévia autorização. A execução dos trabalhos diários de administração ficava a cargo dos militares em cooperação com a "agência implementadora" (alguma ONG selecionada pelo ACNUR), enquanto o pessoal do ACNUR transitava entre os abrigos, coletando informações e realizando ações esporádicas.

Os diferentes abrigos eram classificados em segmentos: abrigos para homens solteiros; abrigos para famílias com crianças; abrigos para casais sem filhos, mulheres e público LGBT+; e abrigo para indígenas. Os espaços reservados ao dormitório se distinguem conforme a categoria de abrigados/as. No abrigo para solteiros, foram organizadas centenas de barracas de camping individuais, enfileiradas e algumas dezenas de beliches localizadas próximas às paredes. Nos abrigos para famílias, foram montadas barracas maiores (6 pessoas) que abrigavam em média duas famílias. Em todos os casos, não havia investimento na privacidade dos/as abrigados/as. Não existiam banheiros privativos para os/as abrigados/as; em geral, apenas dois banheiros coletivos para uso de centenas de pessoas.

O fornecimento de comida era de responsabilidade das Forças Armadas. As marmitas eram preparadas no rancho do 7º Batalhão de Infantaria de Selva (também sede do Comando de Fronteira Roraima), 10° Grupo de Artilharia de Campanha de Selva- GAC e na Base Aérea de Boa Vista (7a ALA) e levadas diariamente até os abrigos. A exceção dessa regra era o abrigo destinado aos/às indígenas, no qual foi construída estrutura para elaboração de alimentos com fogões à lenha para cada família e espaço para fogueiras. À guisa de comparação, no “centro de acolhimento” da Fraternidade Sem Fronteiras a comida fornecida pelo Governo Federal (distribuída pelo Exército) era preparada pelos/as próprios/as abrigados/as. Nem todos os abrigos possuíam áreas destinadas a refeitório; nesses casos as pessoas faziam as refeições em suas próprias barracas.

O dia-a-dia dos abrigos era regulado. O desjejum era oferecido às 7:00. Aqueles que tinham trabalho iam às ruas, os demais deveriam ficar dentro das instalações. Equipes de trabalhadores/as voluntários/as faziam visitas periódicas: assistência de saúde bucal, aulas de português, atividades para crianças, apresentações artísticas, entre outros. Ao meio-dia, almoço. O jantar era servido pontualmente às 18:00. A entrada era permitida até às 22:00 (salvo situações comprovadas de trabalho em que o prazo poderia ser estendido até às 24:00).

Todos os abrigos eram cercados por muros e alguns controlados por câmeras. Alguns possuíam cerca elétrica e concertina. A portaria ficava sob a vigilância de dois soldados 24 horas por dia. A entrada e saída das pessoas era controlada por uma espécie de carteira de identificação que deveria ser apresentada obrigatoriamente por todo migrante hospedado no local. Durante a entrada, bolsas e mochilas eram revistadas. Materiais perfurantes e cortantes, tais como ferramentas de jardinagem e construção, eram apreendidos temporariamente e devolvidos no dia seguinte para que os abrigados pudessem trabalhar.

A segurança era realizada pela Polícia do Exército (P.E.) que promovia rondas constantes entre todos os equipamentos6 6 Em 2018 foram editados sucessivos decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que conferiam à Polícia do Exército o poder de policiamento ostensivo em Boa Vista-RR. Decretos presidenciais nº 9.483 de 29/08/2018; nº 9.501 de 12/09/2018; e nº 9.543 de 29/10/2018. . Pudemos testemunhar, em 2018, que a P.E. promovia uma certa higienização dos arredores dos abrigos, atendendo demanda das vizinhanças. Os abrigados eram “orientados” a não manter aglomerações nas imediações dos abrigos e a P.E. passava de tempo em tempo, mandando o pessoal circular ou entrar, além de fazer revistas aleatórias. Existia uma certa desproporção no uso da força policial especial do Exército, armada como se estivesse preparada para uma escaramuça. O controle militar dos arredores dos abrigos era reforçado pela cooperação com a “Força Nacional” e o Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Estado de Roraima - BOPE/PMRR.

De acordo com Cel. Kanaan et al. (2018KANAAN, Cel.; Maj. TÁSSIO; 2º Ten. SIDMAR. As ações do exército brasileiro na ajuda humanitária aos imigrantes venezuelanos. In: BAENINGER, Rosana; JAROCHINSKI SILVA, João (org.). Migrações Venezuelana. Campinas: Nepo/Unicamp, 2018, p. 68-71., p. 71) os abrigos espalhados pela cidade deveriam ser capazes de fornecer “alimentação, acomodações, instalações sanitárias, assistência médica, lavanderia, coleta de lixo e uma área de convivência”. Nos sete abrigos visitados durante a pesquisa de campo, porém, percebeu-se a superlotação e pouco espaço para sociabilidade. Existiam, sim, aqueles momentos aos quais o Major Sabiá, em entrevista, chamou de “desestressores sociais”, tais como eventos musicais, jogos esportivos e reuniões religiosas. Alguns abrigos eram equipados com televisão e cadeiras, mas outros nem isso ofereciam.

Os venezuelanos, por sua vez, temiam a truculência dos agentes de controle nas ruas, incomodavam-se com as câmeras de vigilância e as restrições de vestuário (no calor de Boa Vista, homens não podiam andar sem camisa e mulheres não podiam usar roupas curtas) e se ressentiam da proibição de permanecer nas portas dos abrigos, situações que lhes remetiam à ideia de una prisión. As únicas formas de reunião permitidas dentro dos abrigos eram as reuniões religiosas e as apresentações “culturais”. Ou seja, os/as abrigados/as podiam se reunir em torno de alguma liderança religiosa (padres, pastores) ou para assistir algum artista voluntário previamente autorizado pela administração. Mas não podiam se reunir livremente em conversas descontraídas.

Dentro dos abrigos foi possível observar uma certa hierarquia envolvendo também os/as venezuelanos/as. Existiam “delegados/as” ou “colaboradores/as” entre as pessoas abrigadas. Eles e elas tinham a atribuição de mediar as relações entre abrigados/as e gestores/as, bem como zelar pelo cumprimento das regras e organizar tarefas de limpeza e filas para distribuição de comida, por exemplo. Essas pessoas eram, de certa forma, empoderadas pela condição de realizar essas mediações. Distribuíam desigualmente os alimentos e doações conforme conveniências pessoais. E não foram poucas as queixas de venezuelanos/as sobre o exercício autoritário da função de liderança. Até mesmo a permanência no abrigo poderia ser colocada em risco, caso a pessoa se desentendesse com um/a desses/as “delegados/as”.

Cabe esclarecer que essa diferenciação operacionalizada entre abrigados não deve ser confundida, de maneira nenhuma, com a hierarquia militar. As FA são imbuídas de uma estrutura hierárquica rígida que pauta as relações de comando-obediência internas. As relações com o mundo civil acontecem fora dessa hierarquia e os colaboradores civis são, usualmente, tratados com desconfiança (Castro, 2004CASTRO, Celso. O espírito militar: um antropólogo na caserna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004.; Leirner, 1997LEIRNER, Piero Camargo. Meia Volta Volver: um estudo antropológico sobre a hierarquia militar. Rio de Janeiro: FGV, 1997.). O termo “delegado” remete ao modelo de acolhimento do ACNUR, implantado mundialmente. De acordo com o Tenente Almeida: "esse termo delegado foi tentado ser implementado pelo pessoal da ONU, mas não foi para frente. Chegaram aqui e chamaram algumas lideranças e fizeram uma reunião. Depois não apareceram mais". O tenente dizia preferir o termo “colaboradores”, aos quais oferecia incentivos e benefícios tais como alimentação extra e kits de higiene em troca dos serviços. Sejam “colaboradores/as” ou “delegados/as”, ocupavam lugar privilegiado na organização interna dos abrigos. O Sr. Morales, quando recebeu a mulher e os filhos no abrigo de homens solteiros, gozava desse tipo de confiança no equipamento coordenado pelo Tenente, seu amigo.

Acolhida emocional

Fassin (2014FASSIN, Didier. Compaixão e Repressão: A Economia Moral das Políticas de Imigração na França. Ponto Urbe [Online], v. 15, 2014. DOI : https://doi.org/10.4000/pontourbe.2467
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), em seus estudos sobre as políticas migratórias na França, havia detectado um duplo comprometimento dos agentes públicos entre “a compaixão e a repressão”. Quando o centro de refugiados Sangatte, no porto de Calais, tornou-se local de estadia prolongada para milhares de solicitantes de refúgio saídos do Kosovo, Curdistão e Afeganistão, veio à tona um dilema ético entre receber o Outro como “refugiado” ou como "imigrante clandestino”. Agentes públicos se debatiam entre a decisão de conceder direitos civis ou negar o simples direito de ficar. Uma decisão que não culminava fácil, uma vez que os caminhos percorridos por uns e por outros tendiam a ser os mesmos. Refugiado e imigrante clandestino, naquele contexto, era a mesma pessoa. A diferença passava, então, a ser atribuída pelo escrutínio da burocracia. Na ocasião, à medida que as políticas repressivas se intensificavam e os números de refúgios concedidos reduziam, as demandas por perícias médicas e laudos comprobatórios de doenças crônicas aumentavam. A compaixão pela doença se apresentou como elemento de diferenciação e consequente abertura para o reconhecimento legal da condição de refugiado (Fassin, 2014FASSIN, Didier. Compaixão e Repressão: A Economia Moral das Políticas de Imigração na França. Ponto Urbe [Online], v. 15, 2014. DOI : https://doi.org/10.4000/pontourbe.2467
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, p. 10).

No caso dos abrigos geridos pelos militares brasileiros, essa “compaixão” produtora de distinções entre os/as abrigados/as pode ser observada no envolvimento emocional dos agentes públicos. A promoção de direitos era dependente, em boa medida, das percepções do militar que era afetado e de que forma era afetado pelas vulnerabilidades do solicitante de refúgio. Aquela história triste que o/a venezuelano/a contou poderia despertar a “pena” do/a militar recém-chegado/a, assim como poderia “enojar” aquele/a que já ouviu centenas de histórias semelhantes (Cena 2).

Seguindo a linha de argumento inspirada por Spinoza, podemos pensar as emoções enquanto reações do corpo que é afetado na relação com outros corpos no mundo; bem como as construções simbólicas em torno dessa afetação. A emoção, assim como a magia, produz efeitos sobre os corpos. Talvez um efeito comparável àquele da “eficácia simbólica" (Lévi-Strauss, 2012LÉVI-STRAUSS, Claude. A eficácia simbólica. In: LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naif, 2012 [1949], p. 265-292. [1949]). De acordo com Ceres Víctora e Cláudia Coelho, o debate sobre emoções na antropologia "concentra em si duas tensões: a fronteira (ou a articulação?) entre o corpo e a emoção e a articulação (ou a fronteira?) entre a emoção e a razão” (Víctora, Coelho, 2019VÍCTORA, Ceres; COELHO, Maria Cláudia. A antropologia das emoções: conceitos e perspectivas teóricas em revisão. Horizontes Antropológicos , v. 25, n. 54, p. 7-21, 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832019000200001
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832019...
, p. 9).

Gostaríamos de trazer, para ajudar na reflexão, a imagem do ciborgue: criatura metade organismo e metade máquina, caracterizada por sua incompletude, transitoriedade e ambivalências (Haraway 1991HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs, and Women: the reinvention of nature. London & New York: Routledge, 1991.). A alegoria da ciborgue é comumente empregada também para pensar a pessoa enquanto “divíduo", ao mesmo tempo feminino e masculino, emoção e razão. As diferentes partes da criatura operam conectadas, mas não há um sistema totalizante. O que está em jogo é o tipo de conexão que pode ser concebida em meio às diferenças. A relação com a máquina (razão) modifica as qualidades do organismo (afetos), mas não o define completamente; e vice-versa. Essa condição “híbrida” é replicada aqui como artifício teórico para compreender o duplo comprometimento da pessoa militar com seu lugar dentro de uma estrutura hierárquica e, por outro lado, com a amizade criada na convivência do abrigo. As variações emocionais dos militares brasileiros colocam em evidência a condição compósita de corpo emocional e corpo disciplinado, afeto e farda.

Os corpos, no militarismo, são forjados em um ambiente de hierarquia e disciplina. Esse corpo disciplinado, por sua vez, é constitutivo de um certo ethos militar. A performance corporal opera como um marcador de diferença da pessoa militar em relação à pessoa civil. De acordo com Telma Camargo Silva, dialogando com Celso Castro, o corpo militar expressa a "existência de atributos morais e físicos que distinguem e tornam reconhecíveis os militares mesmo quando não estão usando farda” (Silva, 1998SILVA, Telma Camargo da. Soldado é Superior ao Tempo: Da Ordem Militar à Experiência do Corpo como Locus de Resistência. Horizontes Antropológicos , v. 4, n. 9, p. 119-143, 1998. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71831998000200008
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71831998...
, p. 124). Um militar pode ser reconhecido nas ruas pelo corte de cabelo, pela forma de andar e descansar em pé, pelo autocontrole gestual em público e pela valorização da masculinidade e virilidade do corpo. Esse corpo disciplinado (racional), contudo, se concilia com sua contraparte emocional (afetiva) diante da pressão psicológica nos abrigos.

Mesmo as burocracias mais vigilantes podem se tornar “emocionais” no contato diário com migrantes e populações em condição de vulnerabilidade. A pesquisa de Mark Graham (2003GRAHAM, Mark. Emotional bureaucracies: emotions, civil servants and immigrants in the Swedish welfare state. Ethos, v. 30, n. 3, p. 199-226, 2003. DOI: https://doi.org/10.1525/eth.2002.30.3.199
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) aponta para os dilemas enfrentados por servidores civis que lidavam diretamente com população migrante na Suécia. Os afetos e instabilidades emocionais dos agentes do estado de bem-estar social sueco, em suas relações com as vidas precárias de migrantes e refugiados, contrastavam com certos ideais de “continuidade emocional” que ocupam lugar entre os mais altos valores da administração pública no país escandinavo (Graham, 2003GRAHAM, Mark. Emotional bureaucracies: emotions, civil servants and immigrants in the Swedish welfare state. Ethos, v. 30, n. 3, p. 199-226, 2003. DOI: https://doi.org/10.1525/eth.2002.30.3.199
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, p. 200). As "descontinuidades emocionais" dos servidores públicos geraram uma crise no modelo burocrático-ideal, sugerindo que os afetos impactavam o resultado alcançado pelas políticas governamentais, mesmo num estado fortemente organizado para tratar seus "clientes" baixo princípios racionais de isonomia e formalismo (Graham, 2003GRAHAM, Mark. Emotional bureaucracies: emotions, civil servants and immigrants in the Swedish welfare state. Ethos, v. 30, n. 3, p. 199-226, 2003. DOI: https://doi.org/10.1525/eth.2002.30.3.199
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, p. 201).

Assim como as emoções acionadas na relação com o sofrimento alheio afetaram os servidores civis suecos, também os militares brasileiros se disseram afetados pela exposição cotidiana aos dramas trazidos pelos/as venezuelanos/as. Desnecessário listar aqui as agruras sofridas pelos migrantes na busca pela sobrevivência antes, durante e depois da acolhida oficial. Como resume Fassin (2014FASSIN, Didier. Compaixão e Repressão: A Economia Moral das Políticas de Imigração na França. Ponto Urbe [Online], v. 15, 2014. DOI : https://doi.org/10.4000/pontourbe.2467
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), num primeiro momento, ao migrante-refugiado só lhe interessa a zoe, a vida nua, garantir a sobrevivência sem se preocupar com uma cidadania plena. Muitas pessoas, de fato, chegavam sem nada: sem dinheiro, sem trabalho, sem comida, sem família, sem partido, trazendo somente a própria fome (Vasconcelos, Santos, 2020VASCONCELOS, Iana; SANTOS, Sandro Martins de Almeida. A migração da fome: comida e deslocamento venezuelano na fronteira Brasil/Venezuela. In: OLIVEIRA, Márcia; DIAS, Maria das Graças (orgs.). Interfaces da Mobilidade Humana na Fronteira Amazônica, v. 2, Boa Vista: Editora da UFRR, p. 53-78, 2020.).

Nossa abordagem procura dar centralidade ao ponto de vista dos militares sobre a construção e o desgaste das relações afetivas conforme o apuro da pressão psicológica atribuída ao trabalho dito “impotente” perante a vulnerabilidade alheia. Em comparação com as operações realizadas no Haiti, militares mais experientes observaram que na gestão dos abrigos em Boa Vista eles estabeleceram maior convívio interpessoal com o que seria o “público alvo” da missão. No Haiti, o foco era a defesa, a proteção de funcionários das agências internacionais - havia pouco espaço para interação com os haitianos. Em Boa Vista ficaram em contato direto com civis estrangeiros em condições de extrema vulnerabilidade.

O militar, em seus termos, é acometido inicialmente pela “pena”. Não há, no mundo cristão, uma fronteira muito bem definida entre as noções de “pena”, “piedade”, “misericórdia” ou “compaixão”. A “pena” é comumente atribuída como sentimento de valor menor, uma sensação de superioridade em relação ao outro e vitimização excessiva desse outro. A “pena” estaria associada a uma certa incapacidade de perceber uma saída ou oferecer solução para os problemas percebidos. Contudo, tendo em vista o exemplo do Tenente Almeida, podemos dizer que a “pena” dos militares equivale à “compaixão”, uma afecção traduzida em ações e no reconhecimento de uma humanidade comum na pessoa do Sr. Morales.

A acolhida do outro, para a filosofia ocidental, ganha expressão na compaixão e reconhecimento da alteridade enquanto parte de uma mesma humanidade (Manzi, 2011MANZI, Joachim. Emmanuel Lévinas: Rosto e epifania do outro. In: MONTANDON, Alain (org.). O livro da hospitalidade: acolhida do estrangeiro na história e nas culturas. São Paulo: Editora Senac, 2011, p. 1159-1169.). A relação do Tenente Almeida e o Sr. Morales permite visualizar uma postura de sensibilidade despertada no primeiro pela condição precária do segundo. Ambos se situam em uma relação assimétrica, no caso entre quem dá e quem recebe acolhimento; de um lado o cidadão nacional a serviço das Forças Armadas, e de outro o cidadão migrante, em sua condição transitória. As desigualdades estatutárias, contudo, não impediram que o militar fosse afetado pela humanidade do venezuelano.

O migrante acolhido (reconhecido como humano) pelo oficial das FA teve algumas vantagens, entre elas: permissão de entrar com a família no abrigo para homens solteiros; conseguir rapidamente vaga em outro abrigo destinado a famílias; e, por fim, antecipar o embarque da mulher e dos filhos no avião da FAB. O aspecto afetivo falou tão alto nessa história que o Tentente Almeida pagou do próprio bolso uma passagem aérea de Boa Vista para Campinas. Não queremos aqui questionar o estatuto da família beneficiada pelo Ten. Almeida, estamos certos de que os Morales preenchiam os critérios de elegibilidade exigidos pelas instituições. Trata-se de chamar atenção para a existência de uma motivação que acelera procedimentos e confere eficácia na resolução de problemas quando há um envolvimento emocional.

Para Bevilaqua e Leirner (2000BEVILAQUA, Ciméa; LEIRNER, Piero. Notas sobre a análise antropológica de setores do Estado brasileiro. Revista de Antropologia, v. 43, n. 2, p. 105-140, 2000., p. 125), o que está na base de qualquer arranjo institucional é "a constituição dos mecanismos de troca”. Os autores destacam que as pesquisas etnográficas são capazes de revelar as diferentes maneiras como "as instituições hierarquizam, individualizam ou pessoalizam relações que, formalmente (ou ao menos em princípio), deveriam ocorrer de outra forma" (Bevilaqua, Leirner, 2000BEVILAQUA, Ciméa; LEIRNER, Piero. Notas sobre a análise antropológica de setores do Estado brasileiro. Revista de Antropologia, v. 43, n. 2, p. 105-140, 2000., p. 125). Para o caso da Operação Acolhida, podemos falar de uma “economia política dos afetos”, interna a cada abrigo, na qual as trocas afetivas entre militares e abrigados davam ocasião para a transgressão de alguns regulamentos das instalações, como “não levar comida para fora do abrigo”, “não entrar após o horário limite”, “não comercializar produtos”, dentre outras regras que são flexibilizadas conforme a relação de pessoalidade entre o agente do Estado e o cidadão.

Max Graham argumenta que sentimentos e emoções são componentes de todas as práticas sociais, incluindo a burocracia estatal. E que "são os tons de sentimento que permitem que determinadas práticas sejam sentidas como 'certas', sem refletir sobre o porquê disso, permitindo assim que a prática continue sem interrupção” (Graham, 2003GRAHAM, Mark. Emotional bureaucracies: emotions, civil servants and immigrants in the Swedish welfare state. Ethos, v. 30, n. 3, p. 199-226, 2003. DOI: https://doi.org/10.1525/eth.2002.30.3.199
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, p. 222). Seguindo essa proposição, podemos dizer que o tratamento “certo”, dispensado para cada migrante em particular, é dependente da variação ou descontinuidade dos sentimentos daquele agente público que atua na linha de frente do acolhimento. Em sua filosofia dos afetos, Spinoza nos falava de uma certa “flutuação do ânimo”: a alternância e convivência entre diferentes modalidades de afetos conforme as afecções do momento (Silva, 2008SILVA, Valéria Loturco da. Flutuação do ânimo em Espinosa: uma leitura deleuzeana. Cadernos Espinosanos, v. 18, n. 11-38, 2008. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2008.89330
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).

As relações entre militares e seu "público alvo” eram seletivas e instáveis ao longo do tempo. A repetição das histórias de sofrimento tinham a capacidade de induzir, nos militares, afetos de hostilidade em relação aos venezuelanos. Esse tipo de constrangimento também foi observado por Didier Fassin na França, "de fato, tais emoções podem também ter seus limites, como a repetição de narrativas patéticas que corrói as respostas afetivas dos funcionários públicos e até mesmo provoca uma desconfiança geral em relação à acumulação de infortúnios narradas pelos candidatos a asilo” (Fassin, 2014FASSIN, Didier. Compaixão e Repressão: A Economia Moral das Políticas de Imigração na França. Ponto Urbe [Online], v. 15, 2014. DOI : https://doi.org/10.4000/pontourbe.2467
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, p. 5).

No âmbito da Operação Acolhida, havia uma preocupação explícita da parte de oficiais mais experientes com a evolução gradual das fases do PINO (Cena 2). A “pena" inicial era convertida em "indiferença", posteriormente "nojo" e, por fim, sentimento de “ódio”. O ódio acomete aquela pessoa que percebe uma causa externa específica como a fonte de toda a sua tristeza (Silva, 2008SILVA, Valéria Loturco da. Flutuação do ânimo em Espinosa: uma leitura deleuzeana. Cadernos Espinosanos, v. 18, n. 11-38, 2008. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2008.89330
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) e caminha junto com o medo de uma ameaça imaginada que precisa ser atacada e destruída (Chauí, 2006CHAUÍ, Marilena. Espinosa: poder e liberdade. In: BORON, Atílio (org.). Filosofia Política Moderna. De Hobbes a Marx. Buenos Aires: CLACSO, 2006, p. 133-143. Disponível em Disponível em http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolmpt/06_chaui.pdf . Acesso em: 01.01.2001
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, p. 135).

Para evitar maiores desgastes emocionais e institucionais, os militares enviados a Roraima obedeciam a uma espécie de rodízio. A cada 90 dias a equipe dos abrigos era trocada. Sendo que deste total, a cada 40 dias ininterruptos, eles tinham 10 dias de folga para visitar a sua família no local de residência. Esses militares eram recrutados voluntariamente de diferentes partes do país. O rodízio era justificado pela experiência prévia das Forças Armadas brasileiras com a missão de paz no Haiti. Já naquela ocasião fora constatado que a extensão do período de serviço, na convivência com pessoas em situação de vulnerabilidade, implicaria uma certa desestabilização emocional do militar brasileiro.

Essas flutuações de ânimos também foram percebidas por colaboradores/as de agências internacionais que presenciaram as trocas de contingente:

Quando eles chegam, chegam todos animadinhos, têm pena das pessoas. Ai querem fazer tudo. Com vinte dias começam a ficar indiferentes, começam a xingar os venezuelanos e a reclamar de tudo que os migrantes fazem. Depois chega o período do nojo que eles não estão mais suportando e quando chega o ódio eles trocam o contingente que está no limite. O pessoal que trabalha diretamente com os migrantes não consegue passar mais do que três meses, só o pessoal do alto escalão que não trabalha direto com os migrantes. (Ex-estagiária do ACNUR no abrigo em Boa Vista)

Ao longo dos anos da pesquisa, surgiram algumas denúncias de casos de agressões contra homens abrigados, assédio sexual contra mulheres e outras violências perpetradas por militares no contexto dos abrigos. Não se pode, isto é claro, associar toda e qualquer violência necessariamente aos sentimentos de “indiferença”, “nojo" e “ódio”. Nenhum dos militares entrevistados confidenciou ter alcançado o último estágio. Porém, o reconhecimento por si só da possibilidade de alguém “dar o PINO" e agir com violência, já é um indicador suficiente da "descontinuidade emocional” a que estão submetidos os agentes públicos que lidam face a face com as precariedades do outro. Nessa economia política dos afetos, compreensão e compaixão acionadas no contato inicial facilitavam a boa sorte de uns, no entanto, a indiferença e o desprezo acentuavam a má sorte de outros tantos.

Mirando, agora, a posição dos/as venezuelanos/as sobre seus anfitriões, vimos que existe reciprocidade nas relações de amizade. A primeira impressão de homens e mulheres a respeito dos militares brasileiros é bastante positiva, tendo em vista a comparação que eles/elas fazem com a postura dos militares da Guarda Nacional de seu país. Não se pode olvidar o fato de que a Venezuela vive um processo de militarização há algumas décadas e a referência das forças armadas por parte dos/as venezuelanos/as é tão ruim que eles/elas ficam impressionados/as com o tratamento oferecido pelos militares brasileiros, que não costumam agredir física e verbalmente as pessoas dentro do abrigo. Pudemos notar que existe gratidão por parte dos venezuelanos em relação aos/às gestores/as dos abrigos. Mesmo reclamando da comida repetitiva e do tratamento truculento recebido ao lado de fora, os/as venezuelanos/as enfatizavam suas relações de gratidão com aqueles militares com quem conviveram diariamente.

A venezuelana, que coordenava o centro de acolhimento da Fraternidade Internacional (o único equipamento sem a presença de coordenadores militares), conta que chegou a chorar quando soube que teria que trabalhar ao lado de militares, uma vez que sua referência eram os militares venezuelanos. Para sua surpresa, a postura dos militares brasileiros/as nesta “ação civil” em nada se parecia com aquele imaginário que ela possuía com base na Guarda Nacional bolivariana. No lugar de uma postura interventora, diz ter ganhado colaboradores. Ela narrou algumas situações de um militar específico que jogava bola com as crianças, conversava com os adultos e, ao final de sua estadia, foi saudado com uma festa por parte de um grupo de abrigados. Ela resumiu assim a experiência: “aprendi muito com o Exército Brasileiro. Não digo o Exército em geral, mas são os seres humanos dentro do Exército”.

Soldados humanitários?

A Operação Acolhida era entendida pelos militares brasileiros como uma missão eminentemente “humanitária”, serviço inédito do ponto de vista do EB. Trata-se de atividade não convencional que não faz parte da doutrina, do esquema e da formação desses militares. Ela não se caracteriza nem como uma operação de manutenção da paz e nem como uma intervenção em catástrofes, situações já conhecidas pela experiência no Haiti (Pion-Berlin, 2012PION-BERLIN, David. Cumprimento de missões militares na América Latina. Varia História, v. 28, n. 48, p. 627-643, 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-87752012000200008.
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, p. 628-630).

A FT Log Hum pode ser categorizada enquanto uma “ação cívica”, ou seja, “missões de boa vontade que dão crédito às forças armadas junto à sociedade” (Pion-Berlin, 2012PION-BERLIN, David. Cumprimento de missões militares na América Latina. Varia História, v. 28, n. 48, p. 627-643, 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-87752012000200008.
https://doi.org/10.1590/S0104-8775201200...
, p. 638). Pion-Berlin argumenta que essas missões, de um lado, podem se desenvolver num curto prazo, ou, de outro, podem exigir o engajamento em projetos de desenvolvimento a longo prazo. Ações de curto prazo atendem a emergências tanto ambientais (terremotos, inundações etc.) quanto antropogênicas (miséria, guerras, perseguições políticas, etc.). Projetos de ação cívica a longo prazo incluem construções de infraestrutura como escolas, hospitais, estradas, pontes etc. As ações cívicas são voltadas para diferentes áreas como saúde (unidades médicas móveis), educação (formação técnica), construção de habitações, infraestrutura (estradas, pontes, etc.) e assistência ao desenvolvimento econômico (projetos agrícolas). De modo geral, são empreendimentos de baixo risco para os militares que recebem dividendos pela atuação fora de sua função convencional. Além disso, do ponto de vista do Comando central, as ações cívicas ou “ajuda humanitária” são úteis para justificar o aumento dos orçamentos militares. Também há algum custo a pagar nessas missões, como a redução do tempo dedicado ao treinamento de combate e à preparação da defesa (Pion-Berlin, 2012PION-BERLIN, David. Cumprimento de missões militares na América Latina. Varia História, v. 28, n. 48, p. 627-643, 2012. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-87752012000200008.
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).

O Brasil vem procurando, no século XXI, ocupar algum espaço no cenário da cooperação internacional (Pecequilo, 2008PECEQUILO, Cristina. A política externa do brasil no século XXI: os eixos combinados de cooperação horizontal e vertical. Revista Brasileira de Política Internacional, v. 5, n. 2, p. 136-153, 2008.). Conceito surgido no final da década de 1940, a cooperação internacional estimulada pelos Estados Unidos da América visava oferecer “ajuda humanitária" e promover a reconstrução dos países abalados pela Segunda Grande Guerra (Cardoso, Costa, 2014CARDOSO, Maria Lúcia de Macedo; COSTA, Delaine. O que a perspectiva antropológica tem a dizer sobre a avaliação de projetos sociais apoiados pela cooperação internacional?. Horizontes Antropológicos, v. 20, n. 41, p. 117-140, 2014., p. 123). Com o passar dos anos, surgiram novas frentes de atuação e “cooperações humanitárias” como, por exemplo, assistência social a países atingidos por desastres naturais, mobilização em torno de causas ambientais, agendas feministas, migrações, entre outros (ibidem,CARDOSO, Maria Lúcia de Macedo; COSTA, Delaine. O que a perspectiva antropológica tem a dizer sobre a avaliação de projetos sociais apoiados pela cooperação internacional?. Horizontes Antropológicos, v. 20, n. 41, p. 117-140, 2014. p. 123-124). A logística militar, desde o princípio, acompanhou o desenvolvimento desse campo de intervenções internacionais sutis. Ações tidas como humanitárias têm sido, nas últimas décadas, elementos de justificativa para o avanço de políticas de securitização (Hirst, 2017HIRST, Mônica. Conceitos e práticas da ação humanitária latino-americana no contexto da securitização global. Estudios Internacionales [en línea], v. 49, p. 143-178, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.5354/0719-3769.2017.47537
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).

Seguindo essa tendência global de "humanitarismo armado” (Hirst, 2017HIRST, Mônica. Conceitos e práticas da ação humanitária latino-americana no contexto da securitização global. Estudios Internacionales [en línea], v. 49, p. 143-178, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.5354/0719-3769.2017.47537
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; Müller, Steinze, 2018MÜLLER, Frank; STEINKE, Andrea. Criminalising Encounters: MINUSTAH as a laboratory for armed humanitarian pacification. Global Crime, v. 19, n. 3-4, p. 228-249, 2018. DOI: https://doi.org/10.1080/17440572.2018.1498336
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), os militares entrevistados foram unânimes em ressaltar o protagonismo do Exército Brasileiro, entre 2004 e 2017, na liderança da Missão das Nações Unidas para Estabilização no Haiti (MINUSTAH). Os brasileiros projetaram uma imagem de “melhores pacificadores” em função de uma percebida capacidade para diminuir tensões e conflitos. No entanto, essa imagem cordial atribuída a uma maior interação com os locais encobriu diversos mecanismos de violência que assinalaram os treze anos de participação brasileira na MINUSTAH (Müller, Steinke, 2018MÜLLER, Frank; STEINKE, Andrea. Criminalising Encounters: MINUSTAH as a laboratory for armed humanitarian pacification. Global Crime, v. 19, n. 3-4, p. 228-249, 2018. DOI: https://doi.org/10.1080/17440572.2018.1498336
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; Paula, 2020PAULA, Leornado Dias de. Solidariedade e violência: um estudo da participação de militares brasileiros na Missão das Nações Unidas para estabilização do Haiti. Dissertação de Mestrado em Relações Internacionais. São Paulo, UNESP/UNICAMP/PUC-SP, 2020.).

O Major Sabiá compartilhou conosco seu entendimento sobre a postura “cordial" do militar brasileiro:

Porque o brasileiro tem essa capacidade mais rara de tentar interagir, buscar entender o outro, devido à nossa mistura e à nossa origem miscigenada. Isso é um fator diferencial! Da mesma forma é a forma como acolhemos os outros. É a nossa natureza! Já falava o Sérgio Buarque “O homem cordial”. É da nossa essência! Por que fugiríamos disso aí? Independente de sermos homens de fardas, com direito cívico ao uso da violência, ou de ser profissionais liberais, pouco importa! A nossa essência é brasileira, essa tem que ser mantida.

Esse imaginário de um povo receptivo, erigido do encontro supostamente pacífico entre povos diferentes e inexoravelmente propenso a evitar o conflito, funciona como holofote que lança luzes para um palco improvisado e ofusca a visão dos bastidores. Assim como a “cordialidade” em Sérgio Buarque de Holanda ofusca a violência colonial (Jacino, 2017JACINO, Ramatis. Que morra o ‘homem cordial’ - crítica ao livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Sankofa Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, v. X, n. XIX, p. 33-63, 2017. ), as boas relações pessoais entre brasileiros e haitianos ou entre brasileiros e venezuelanos, ofuscam o aparato institucional militarizado e a política de securitização em andamento. A MINUSTAH, na avaliação de Frank Müller e Andrea Steinze (2018MÜLLER, Frank; STEINKE, Andrea. Criminalising Encounters: MINUSTAH as a laboratory for armed humanitarian pacification. Global Crime, v. 19, n. 3-4, p. 228-249, 2018. DOI: https://doi.org/10.1080/17440572.2018.1498336
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), teria sido um "laboratório de pacificação humanitária armada".

No contexto da Operação Acolhida, o uso da força ou, como colocou o Major Sabiá, "o direito cívico ao uso da violência", era pouco descrito e enfatizado. Existia um esforço em desassociar a imagem da Operação em relação às atribuições de segurança e manutenção da ordem. O ineditismo da missão deveria ser revelado pela atuação das FA exclusivamente na ajuda humanitária, obstante a outras experiências internacionais nas quais o EB teve sua atuação atrelada à imposição da paz. A negação do uso da força e/ou seu acionamento periférico eram recursos retóricos utilizados pelos militares para legitimar o caráter "eminentemente humanitário" da Operação Acolhida.

Um aspecto não contemplado pelos manuais de treinamento militar, contudo, foi o maior contato com a população civil venezuelana, denominada "público-alvo" da Operação. Organizações internacionais como OIM e ACNUR, mais experientes nesse metiê, orientavam seus colaboradores a não criar vínculos, nem pessoais, nem de trabalho, com migrantes e refugiados. Os militares não receberam a mesma instrução. A missão humanitária colocou militares brasileiros no convívio diário com as dificuldades enfrentadas por indivíduos e famílias do país vizinho, afetando as sensibilidades. Diz um ditado popular que “o soldado é superior ao tempo”. Esse tropo sugere que os militares estão acostumados a situações extremas como frio e fome, nas quais a “razão" deve controlar a “natureza" (Silva, 1998SILVA, Telma Camargo da. Soldado é Superior ao Tempo: Da Ordem Militar à Experiência do Corpo como Locus de Resistência. Horizontes Antropológicos , v. 4, n. 9, p. 119-143, 1998. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71831998000200008
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, p. 126). Contudo, não estavam preparados para lidar com a “natureza” das próprias emoções.

Uma experiência de três meses basta para ser desestabilizadora. Nas palavras do Capitão Querubim:

Tenho a certeza de que transformações em minha vida foram provocadas por essa experiência vivida e que vou aplicar para o resto de minha vida. De ver o outro de modo similar, ali vi que não adianta ser doutor ou pedreiro, não existe diferenças que sobrevivam a uma crise humanitária e isso me faz pensar sobre valores de toda a ordem.

Na avaliação de uma religiosa7 7 Gostaríamos de registrar uma nota de pesar pelo falecimento da brava Irmã Telma Lage, levada pela covid-19 em 24 de junho de 2021. Uma incansável defensora dos direitos e da vida de todos aqueles que bateram à sua porta. Estará sempre em nossas memórias. , os militares realizam o seu trabalho como “bons soldados” e cumprem as metas que lhes são estabelecidas. Mas sublinha o fato de que esta não deveria ser a sua missão, primeiramente por contrariar a lei de migração em vigor desde 20178 8 Lei Nº 13.445 de 24 de maio de 2017. , e consequentemente porque os militares não estavam preparados para oferecer os serviços que lhes foram atribuídos. Diferente dela, que atuava no acolhimento de migrantes em Boa Vista há mais de 10 anos, aqueles militares que serviam diretamente com a população civil venezuelana estavam sujeitos a perder a estabilidade emocional e transformar sua cordialidade em agressividade, em pouco tempo. Na oportunidade, ela se perguntava sobre uma condição paradoxal do ponto de vista das instituições e seus domínios:

São soldados treinados para defesa e se transformaram em pessoas que trabalham com questões humanitárias. Traz uma certa interrogação, né? Um soldado humanitário? Soldado é para defesa. Acaba sendo uma exigência muito grande para eles.

Considerações finais: sobre soldados humanizados

A entrada em campo com um olhar sobre o processo de militarização dos abrigos para venezuelanos em Boa Vista chamou a atenção para uma situação que não estava prevista: o processo de "humanização do soldado”. Tomemos o termo “soldado” de forma respeitosa como termo genérico para fazer referência aos militares de todas as patentes. No ato de acolher, o soldado se reconhece mais humano pelo próprio envolvimento com o sofrimento do outro. Ainda que o objetivo central da ação cívica coordenada pelo EB fosse a retirada dos/as venezuelanos/as dos espaços públicos, é inegável a aproximação entre os militares brasileiros e os/as civis venezuelanos/as abrigados/as, mulheres e homens, adultos e crianças.

As emoções afloram num contexto de mudança de prioridades. O soldado treinado para guerrear é o mesmo que foi enviado para acolher. Em sua racionalidade, a máquina de guerra não poderia ceder à compaixão pela humanidade do estrangeiro, mas no dia-a-dia do abrigo o "soldado humanitário” precisa se reconciliar com sua contraparte afetiva. Ao ser afetado pela humanidade do outro, o militar está reconhecendo um reflexo de si mesmo, da sua própria condição humana.

As emoções, da pena ao PINO, não se restringem a propiciar o acolhimento, mas oscilam até o limiar da agressão. Se, por um lado, a pena/compaixão suscita nos soldados a humanização do outro e de si; no extremo oposto, o ódio estabelece a negação desse outro e, por consequência lógica, também a negação da própria humanidade. Quando abate o ódio, o soldado humanizado apenas deseja retornar à sua condição de máquina de guerra, que rejeita o sofrimento humano e pode tratar o outro como inimigo.

A “descontinuidade emocional”, além de interferir nos rumos pessoais dos militares envolvidos (com suas famílias e amigos), repercute diretamente sobre setores do Estado e sobre a governança da questão migratória no Brasil. O corpo disciplinado, que também é um corpo emocional, ao ser afetado, concede à “pessoalização" da relação entre Estado e cidadão. Como vimos, a afeição de um oficial brasileiro pela vida de um civil venezuelano foi capaz de desencadear uma sequência de remanejamentos de abrigados em diferentes instalações na cidade, bem como permitiu agilizar os trâmites burocráticos para a interiorização.

A gestão militarizada do acolhimento de migrantes venezuelanos/as em Boa Vista aponta para sobreposição de ações baseadas em relações pessoais e diretrizes institucionais. Por um lado, a postura e princípios individuais, norteados por valores cristãos e de amizades, faz com que militares conduzam as ações de abrigamento influenciados pela “pena" e pela afeição construída com os/as abrigados/as. De outro, as diretrizes institucionais orientadas pela disciplina e hierarquia reproduzem atitudes de controle e disciplinamento. A necessidade de manutenção dos equipamentos (abrigos, postos de triagem e áreas de pernoite) contrasta com a rotatividade do contingente militar. Ao mesmo tempo em que conduz a uma precariedade permanente com a reprodução de estruturas temporárias, também produz mudança com a renovação das equipes militares a cada noventa dias que, embora se orientem por diretrizes institucionais comuns, possuem uma autonomia relativa que pode tanto fortalecer, quanto flexibilizar a gestão rígida e controladora.

A interiorização, uma política de reassentamento de migrantes, por sua vez, revela o caráter de emocionalidade envolvido na seleção dos indicados a fazer a viagem para outros estados do Brasil pelos meios governamentais. Como visto na cena 1, a política de interiorização foi parcialmente manejada conforme as relações pessoais estabelecidas dentro dos abrigos. Responsáveis por elaborar as listas de quem vai e para onde vai, os militares não escondiam o fato de darem preferência aos seus amigos para destinos próximos de suas próprias residências, indicando um desejo de prolongamento das relações para além do acolhimento institucional.

O contato com o ponto de vista dos militares nos permitiu aprender um pouco sobre suas ambivalências. O próprio lema do EB, “braço forte, mão amiga”, parece apontar para essa composição. Os soldados "humanizados" ora confirmavam suas responsabilidades convencionais com a defesa, ora manifestavam sua adesão particularizada, não convencional, ao compromisso com o acolhimento. De um lado, o controle sobre as populações atendidas, de outro, a mão solidária à família sofredora. Ora impunham a lei e a ordem, ora ofereciam afeto e amizade. Um dia se empenhavam em “limpar” as ruas de migrantes considerados "indesejáveis” por quem estava perto, no dia seguinte procuravam intervir no destino de alguns migrantes, tornando-os “desejáveis” aos olhos de quem estava longe.

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    » http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832019000200001
  • 1
    Para garantir a privacidade dos/as interlocutores/as, empregamos nomes fictícios.
  • 2
    O termo governança implica a participação de múltiplos grupos de interesse, além do próprio Estado, na condução das políticas públicas. No caso da Op. Acolhida, além do EB, estavam presentes as Igrejas de diferentes denominações, os organismos do sistema ONU, agências de cooperação internacional de países ricos, ONGs de atuação global, etc.
  • 3
    A “área de pernoite” foi uma solução encontrada pelos militares para retirar os/as venezuelanos/as que, sem lugar para dormir, persistiam em acampar de forma improvisada nas proximidades da rodoviária. Na “área de pernoite” eram oferecidas barracas e colchonetes, além de jantar e café da manhã. As barracas deveriam ser devolvidas logo cedo, antes do desjejum. E o migrante passava o dia nas ruas.
  • 4
    Expressão comumente utilizada pelos/as venezuelanos/as para se referir aos compatriotas.
  • 5
    Instituição sem fins lucrativos que atua em várias partes do mundo com populações em situação de pobreza. Chegou em Roraima em outubro de 2017 e, com a colaboração de voluntários, doadores e as FA, gerencia um centro de acolhimento onde as famílias recebem alimentação, orientação para serviços de saúde e educação, têm aula de português e dividem responsabilidades nos cuidados com o ambiente. Para mais informações consultar: https://www.fraternidadesemfronteiras.org.br/
  • 6
    Em 2018 foram editados sucessivos decretos de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que conferiam à Polícia do Exército o poder de policiamento ostensivo em Boa Vista-RR. Decretos presidenciais nº 9.483 de 29/08/2018; nº 9.501 de 12/09/2018; e nº 9.543 de 29/10/2018.
  • 7
    Gostaríamos de registrar uma nota de pesar pelo falecimento da brava Irmã Telma Lage, levada pela covid-19 em 24 de junho de 2021. Uma incansável defensora dos direitos e da vida de todos aqueles que bateram à sua porta. Estará sempre em nossas memórias.
  • 8
    Lei Nº 13.445 de 24 de maio de 2017.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    07 Abr 2022
  • Aceito
    02 Set 2022
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