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Identificando a discriminação racial pelo diferencial de desempenho dos estudantes do Ensino Médio* 1 Para o cálculo foi utilizado o pacote “oaxaca” do software Stata 15 (JANN, 2008).

Identifying racial discrimination by the performance differential of High School students

RESUMO

O Brasil é marcado pela elevada desigualdade social, onde condições iniciais têm impacto determinante na trajetória dos indivíduos. Nesse contexto, os indivíduos negros encontram-se em dupla desvantagem, por seu menor nível de renda e a baixa expectativa quanto ao desenvolvimento de suas potencialidades. Este artigo empregou o método de Oaxaca-Blinder (1973BLINDER, A. S. Wage discimination: reduced form and structural estimates. Journal of Human Resources, v. 8, n. 4, p. 436-455, 1973.) para decompor a diferença de desempenho entre alunos brancos e negros no SAEB 2017, identificando a parte que não pode ser atribuída às suas características. Os resultados mostraram que esse componente representa cerca de 43% dessa diferença, e que existe menor resposta dos alunos negros às melhorias nas condições educacionais.

PALAVRAS-CHAVE:
Discriminação racial; desigualdade educacional; decomposição de Oaxaca-Blinder

ABSTRACT

Brazil is characterized by high inequality where initial conditions have a decisive impact on the trajectory of individuals. In this context, black people are doubly disadvantaged by their lower income levels and low expectations for development of their potential. This article used the method of Oaxaca-Blinder (1973BLINDER, A. S. Wage discimination: reduced form and structural estimates. Journal of Human Resources, v. 8, n. 4, p. 436-455, 1973.) to decompose the performance difference between white and black students in SAEB 2017, identifying the part that can not be attributed to its characteristics. The results showed that this component represents about 43% of this difference, and that there is less response from black students to improvements in educational conditions.

KEYWORDS:
Racial discrimination; educational inequality; Oaxaca-Blinder decomposition

1. INTRODUÇÃO

O Brasil é um país com longo histórico de elevada desigualdade social, e um dos principais fatores estruturais por trás da persistência desse fenômeno é o grande diferencial de acúmulo de capital humano entre os indivíduos. Isso decorre em parte da baixa escolaridade média da população adulta, não obstante os elevados prêmios salariais pagos por níveis adicionais de educação. Soma-se a isso um sistema educacional que, apesar dos avanços significativos das últimas décadas como, por exemplo, o Fundef, encontra-se bastante aquém de seus pares internacionais. Mais do que isso, é extremamente heterogêneo na qualidade da educação prestada.

Esse diagnóstico remontar a décadas, e todas as ações tomadas até o presente não foram suficientes para superá-lo. Barros e Lam (1993BARROS, R.; LAM, D. Income Inequality, Inequality in Education, and Children’s Schooling Attainment in Brazil. Textos para Discussão, nº 294, IPEA, 1993.) já destacavam como aspectos indesejáveis da educação no Brasil no início da década de 1990: o baixo nível educacional médio da população; a distribuição desigual da educação; a alta correlação entre as realizações educacionais das crianças e as de seus pais e avós, indicando a ausência de igualdade de oportunidades; e a presença de grandes disparidades regionais nas realizações educacionais das crianças.

Uma consequência desse arranjo é que as condições iniciais, desfavoráveis em média e altamente desiguais, têm impacto determinante na trajetória de acumulação de capital humano por parte dos indivíduos, perpetuando assim essa distribuição de renda degenerada ao longo do tempo. Em outros termos, segundo Anazawa et al. (2016ANAZAWA, Leandro; GUEDES, Marcelo Sanchez; KOMATSU, Bruno Kawaoka; MENEZES FILHO, Naercio Aquino. (2016) A Loteria da Vida: examinando a relação entre a educação da mãe e a escolaridade do jovem com dados longitudinais do Brasil. Insper - Centro de Políticas Públicas, Policy Paper, nº 22, 2016.), o background familiar (renda e educação dos pais) exerce forte influência sobre os resultados dos filhos. Nesse contexto, a questão racial constitui uma faceta lancinante dessa desigualdade, visto que por razões históricas indivíduos pretos e pardos, maioria da população, estão sobrerrepresentados nas camadas mais baixas da pirâmide de distribuição de renda.

Essa disfuncionalidade social, em que o sucesso (ou fracasso) de alguém é determinado por sua ascendência hereditária, justifica a adoção de políticas públicas que visem rebalancear as chances em favor dos menos favorecidos na loteria da vida enviesada das dotações iniciais. Nesse sentido, a política educacional, enquanto principal instrumento de indução ao acúmulo de conhecimento, tem um papel central para romper com esse ciclo vicioso e elevar a mobilidade social, ao proporcionar uma maior equivalência de condições àqueles em situação mais desfavorável.

Cabe ressaltar aqui que o entendimento mais recente da literatura sobre capital humano avança para além do mero acúmulo de conhecimento formal, reforçando a importância do desenvolvimento de habilidades não cognitivas para o sucesso educacional e profissional. A exemplo disso, características como a abertura ao novo, conscienciosidade e extroversão, entre outras, relacionam-se diretamente com menores taxas de abandono escolar, desemprego, envolvimento em crimes e gravidez na adolescência (Heckman et al., 2010HECKMAN, J. J. et al. The rate of return to the High Scope Perry Preschool Program. Journal of Public Economics, v. 94, n. 1-2, p. 114-128, 2010.).

Essas características, em grande parte aprendidas nas fases iniciais do desenvolvimento intelectual, guardam relação direta com os estímulos recebidos por parte da família, constituindo, portanto, parte do mecanismo de transmissão da desigualdade. Mais uma vez a questão racial se impõe, em função dos potenciais efeitos adversos da discriminação sobre o desenvolvimento dessas habilidades não cognitivas (Seaton, 2010SEATON, E. K. The influence of cognitive development and perceived racial discrimination on the psychological well-being of African American youth. Journal of Youth and Adolescence, v. 39, n. 6, p. 694-703, 2010.). Dessa forma, indivíduos de cor preta em famílias com baixo nível socioeconômico encontram-se em dupla desvantagem na aquisição de habilidades não cognitivas, tanto por tenderem a contar com menos estímulos, como por enfrentarem o ceticismo velado quanto ao seu potencial de desenvolvimento.

É importante destacar que o racismo pode tomar formas bastante sutis, não se restringindo ao comportamento discriminatório, mas também as relações estruturais, ideologias políticas e práticas institucionais que são frequentemente vistas como componentes normativos da sociedade e um aspecto crítico da vida cotidiana (Spencer, 2006Spencer, M. B. Phenomenology and ecological systems theory: Development of diverse groups. In W. Damon & R. Lerner (Eds.), Handbook of child psychology, vol. 1: Theoretical models of human development (6th ed., pp. 829-893). New York: Wiley. 2006.). Esse aspecto é frequentemente desconsiderado na elaboração das políticas educacionais, o que permeia o próprio ambiente escolar.

Guimarães e Pinto (2016GUIMARÃES, A. C.; PINTO, J. M. Discriminação racial na escola: Vivências de jovens negros. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 3, n. 3, p. 512-524, 2016.) apontam que a discriminação racial no ambiente escolar ocorre de forma sutil, passando pelo material didático adotado, práticas pedagógicas, até às relações entre professores, alunos e colegas de turma. Os autores destacam que “as práticas discriminatórias, na escola, perpassam o campo pedagógico, muitas vezes nas entrelinhas das relações; no entanto, estas práticas estão carregadas de uma construção ideológica que diferencia os indivíduos conforme sua origem étnica” (p. 7).

Como efeito dessas práticas, observa-se uma diferença não desprezível, não apenas no desempenho acadêmico dos jovens pretos, mas principalmente na maior incidência de fracasso escolar nesse grupo, que se traduz em maiores taxas de evasão, abandono e reprovação. Esse fenômeno guarda estreita relação com o menor grau de escolaridade observado na população negra no Brasil, quando comparada à população branca.

Para poder trazer luz a esse debate, faz-se necessário conhecer o tamanho do problema, o que é possível a partir de uma medida de discriminação no contexto educacional. Assim, essa pesquisa tem como objetivo mapear os efeitos da discriminação racial sobre o desempenho escolar dos alunos do Ensino Médio no Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), entre os estados brasileiros. Para isto, utiliza-se a metodologia de Oaxaca-Blinder (1973BLINDER, A. S. Wage discimination: reduced form and structural estimates. Journal of Human Resources, v. 8, n. 4, p. 436-455, 1973.) para decompor o desempenho entre os alunos que se declaram branco vis-à-vis aos não brancos (pretos e pardos). A partir da decomposição espera-se quantificar o hiato entre alunos brancos e não brancos por estados brasileiros para aferir o quanto dessa diferença pode ser atribuída às características observadas dos alunos e o quanto pode ser derivado de discriminação racial.

Para alcançar esse objetivo, optou-se por estruturar o artigo em cinco seções. O referencial teórico é o tema da segunda seção. Em seguida, são apresentadas a estratégia empírica, a fonte e a descrição dos dados. A análise e discussão dos resultados são realizadas na quarta seção. E, por fim, são apresentadas as conclusões sobre a desigualdade racial no Ensino Médio brasileiro.

2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Abordagens Teórica à Estratificação Educacional e às Relações Raciais no Brasil

Dentre as abordagens teóricas da estratificação educacional utiliza-se a hipótese meritocrática, teoria da industrialização, segundo a qual os processos de modernização social - maior desenvolvimento econômico e institucional, maior urbanização das sociedades e transição demográfica - são fatores que levam à diminuição do efeito das origens sociais sobre o alcance educacional do indivíduo. Esse processo ampliaria as oportunidades de educação para toda a sociedade, levando à superação das limitações impostas pelas características adscritas e à valorização das características adquiridas pelo indivíduo. Assim, os indivíduos, independentemente da origem socioeconômica, cor da pele ou sexo, teriam mais chances de alcançar melhores posições do que sua geração anterior (Treiman, 1970TREIMAN, D. J. Industrialization and Social Stratification. In: E. O. Laumann, Social Stratification: Research and Theory for the 1970s. Indianapolis, Bobbs-Merrill, p. 207-234. 1970.; Hauser e Featherman, 1976HAUSER, Robert M.; FEATHERMAN, David L. Equality of schooling: Trends and prospects. Sociology of education, p. 99-120, 1976.).

Dentre as teorias da reprodução têm-se: a teoria da correspondência e a da violência simbólica. Para a primeira, a escola serve como mecanismo de perpetuação das relações sociais da vida econômica, ao facilitar a integração de jovens ao mercado de trabalho (Bowles e Gintis, 1976BOWLES, S.; GINTIS, H. Schooling in Capitalist America. New York, 1976.). Para a segunda, o sistema educacional assegura a posição de grupos dominantes, resultando num tipo de instituição que mais conserva relações de desigualdades do que propicia inovações. Dessa forma, o sistema privilegia os estudantes com mais capital cultural e elimina progressivamente aqueles que não possuem o mesmo capital (Bourdieu e Passeron, 1977BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. Reproduction in Education, Society. 1977.).

As teorias da industrialização e da reprodução veem as organizações educacionais com papéis opostos na sociedade moderna. Já para a abordagem da escolha racional, a persistência da desigualdade no alcance educacional se deve aos efeitos primários e secundários. Os primários criam diferenciais de classe no alcance inicial e, então, na “habilidade demonstrada” na escola. Os secundários operam por meio das decisões feitas pelos estudantes e seus pais nos momentos de transição no ciclo escolar. Assim, o estudante e sua família têm sempre a possibilidade de escolher baseando-se em uma análise de custo-benefício de cada opção (Boudon, 1974BOUDON, R. Education, Opportunity and Social Inequality. New York, Willey, 1974.; Goldthorpe, 1996GOLDTHORPE, John H. Class analysis and the reorientation of class theory: the case of persisting differentials in educational attainment. British journal of Sociology, p. 481-505, 1996.).

Baseada na teoria da escolha racional, surgiu a hipótese da “desigualdade sustentada ao ponto máximo” (DSM) proposta por Raftery e Hout (1993; apud Ribeiro, 2009RIBEIRO, C. A. C. Desigualdade de oportunidades educacionais no Brasil: raça, classe e gênero. Desigualdade de oportunidades no Brasil, p. 42, 2009.), a qual visa explicar por que a desigualdade de oportunidades educacionais não diminuiu em muitos países apesar da expansão educacional e de diversas reformas que visavam a igualdade de acesso às instituições de ensino. Segundo a DSM, qualquer expansão do sistema educacional não dirigida às classes mais baixas, na realidade dá oportunidades a filhos de todos os grupos sociais. Os filhos de famílias de grupos menos privilegiados só se beneficiarão dessa expansão quando praticamente todos os filhos dos grupos privilegiados já não tiverem demandas para aquele nível educacional.

2.2 Literatura Empírica

A despeito das mudanças estruturais observadas no Brasil nas últimas três décadas, com a quase universalização da oferta do ensino na Educação Básica, a escola continua sendo um produto social desigualmente distribuído. A população preta e parda está exposta a desvantagens sistemáticas em várias dimensões socioeconômicas que têm influenciado em indicadores educacionais inferiores aos da população branca. As desigualdades educacionais observadas são das mais diversas, desde o ingresso aos diferentes tipos e níveis de ensino, a permanência no sistema escolar até o desempenho acadêmico alcançado.

Ao longo dos anos, diversos argumentos foram apresentados em relação à existência ou não do preconceito racial. Alguns estudos das décadas de 1940 a 1960 sugeriam que não existiria preconceito racial, mas apenas a discriminação em relação à cor da pele, de forma que a desigualdade racial seria consequência das desvantagens socioeconômicas e não da discriminação racial (Pierson, 1945; apud Ribeiro, 2009RIBEIRO, C. A. C. Desigualdade de oportunidades educacionais no Brasil: raça, classe e gênero. Desigualdade de oportunidades no Brasil, p. 42, 2009.). Para Cardoso e Ianni (1960, apud Ribeiro, 2009RIBEIRO, C. A. C. Desigualdade de oportunidades educacionais no Brasil: raça, classe e gênero. Desigualdade de oportunidades no Brasil, p. 42, 2009.), a modernização criou uma sociedade de classes no Brasil e qualquer tipo de estratificação pela cor da pele seria reminiscência da escravidão. A cor da pele seria substituída gradualmente pela classe como principal fator do sistema de estratificação.

Em nível internacional, Spady (1967SPADY, W. G. Educational Mobility and Access: Growth and Paradoxes. The American Journal of Sociology, v. 73, n. 3, p. 273-286, 1967.) estudou a mobilidade educacional em termos de probabilidade de completar transições educacionais nos EUA. Dentre os resultados obtidos, destaca-se que o alcance educacional de brancos supera o de não brancos em todos os grupos de status. Embora a educação tenha enfraquecido a influência da origem social, ela também pode aumentar essa influência, uma vez que crianças oriundas de famílias com status mais alto apresentam vantagens competitivas especiais, derivadas do seu processo de socialização.

O modelo de seletividade diferencial proposto por Mare (1980MARE, R. D. Social Background and School Continuation Decisions. Journal of the American Statistical Association, v. 75, p. 295-305, 1980., 1981MARE, R. D. Change and Stability in Educational Stratification. American Sociological Review, v. 46, n. 1, p. 72-87, 1981.) mostrou que as origens sociais influenciam de forma diferenciada em cada uma das transições escolares, direcionando-se ao enfraquecimento do efeito das origens ao longo dessas transições. Nesse sentido, a correlação entre origem socioeconômica e variáveis intervenientes que determinam o sucesso educacional é menor quanto mais alta for a transição.

Ainda com base no modelo de seletividade diferencial, Shavit e Blossfeld (1993SHAVIT, Y.; BLOSSFELD, H. P. Persistent Inequality: Comparative Study of Educational Attainment in Thirteen Countries. Boulder/San Francisco/Oxford, Westview Press. 1993) evidenciaram a redução do efeito das origens sociais sobre o alcance escolar ao longo das coortes analisadas. Apesar disso, concluíram que os maiores níveis educacionais permanecem razoavelmente exclusivos. Assim, os verdadeiros gargalos seriam criados na transição para o nível superior, privilegiando o acesso daqueles grupos socioeconomicamente avantajados.

A literatura brasileira na área da sociologia tem há bastante tempo verificado a importância da cor da pele na alocação dos indivíduos ao longo da escala social e na explicação das desigualdades educacionais. O acesso à escola, o ritmo da progressão escolar, o tipo de escola (pública ou privada), o turno frequentado e a duração da jornada escolar diferem entre grupos raciais, com pretos e pardos obtendo os piores índices educacionais (Rosemberg, 1990ROSEMBERG, F. Segregação espacial na escola paulista. Estudos Afro-Asiáticos, n.19, p. 97-107, 1990., 1991ROSEMBERG, F. Raça e educação inicial. Cadernos de Pesquisa, n. 77, p-25-34, 1991.; Silva, Hasenbalg, 1992SILVA, N. V.; HASENBALG, C. Família, cor e acesso à escola no Brasil. Rio de Janeiro: LNCC/CNPq, 1992 (Relatórios de Pesquisa e Desenvolvimento, 15/92).; Hasenbalg, Silva, 1990HASENBALG, C.; SILVA, N. V. Raça e oportunidades educacionais. Estudos Afro-Asiáticos, n.18, p.73-89, 1990.).

A partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1982 a 1988, Barcelos (1993) mostrou que os índices educacionais obtidos por pretos e pardos são sistematicamente inferiores aos dos demais grupos raciais. Para ele, esses índices revelam a incapacidade do país em assegurar igualdade de realização educacional a todos os grupos raciais e o fracasso do sistema educacional é sentido sobretudo no desempenho de pretos e pardos. Nesse sentido, a desigualdade racial na educação é resultado, entre outros fatores, da segregação espacial, em que se observa uma elevada concentração de não pretos em regiões mais desenvolvidas do país que dispõem de melhores oportunidades educacionais. Com base na sua análise, conclui que entrar na escola é relativamente fácil se comparado a dificuldade de sair dela com uma carreira de êxito.

Hasenbalg e Silva (1990HASENBALG, C.; SILVA, N. V. Raça e oportunidades educacionais. Estudos Afro-Asiáticos, n.18, p.73-89, 1990.) evidenciaram as desvantagens da população negra no acesso à educação no Brasil em relação à branca. Os não brancos entram tardiamente na escola, tem uma trajetória escolar mais lenta e acidentada, com desvantagens em todos os níveis de ensino, mesmo nos níveis de maior renda familiar. Dessa forma, as desigualdades de apropriação das oportunidades educacionais não podem ser explicadas nem por fatores regionais, nem pelas circunstâncias socioeconômicas das famílias.

Soares e Alves (2003SOARES, J. F.; ALVES, M. T. G. Desigualdades raciais no sistema brasileiro de educação básica. Educação e Pesquisa, v. 29, n. 1, p. 147-165, 2003.) analisaram as desigualdades do desempenho escolar entre alunos do Ensino Fundamental, discriminados por cor da pele por meio de regressão hierárquica e dados do SAEB 2001. Os resultados evidenciaram que há um grande hiato entre alunos brancos e alunos pretos e pardos no desempenho escolar e que os fatores produtores de eficácia do ensino favorecem, principalmente, o desempenho escolar dos estratos socialmente mais privilegiados, contribuindo para aumentar a diferença entre os grupos raciais. Dessa forma, sugerem que as condições escolares positivas potencializam os resultados dos alunos brancos, impulsionando bem mais esses que os alunos não brancos. Assim, melhorias das condições de ensino podem contribuir para elevar a média do desempenho escolar, porém com desigualdades entre estratos sociais. Ressaltam a importância da implementação de políticas públicas e escolares voltadas não apenas para a melhoria do desempenho escolar de uma forma geral, mas também para diminuir o impacto da origem socioeconômica e da cor da pele do aluno nesse desempenho.

Ribeiro (2009RIBEIRO, C. A. C. Desigualdade de oportunidades educacionais no Brasil: raça, classe e gênero. Desigualdade de oportunidades no Brasil, p. 42, 2009.) estudou a persistência da desigualdade de oportunidades educacionais (DOE) ao longo do século XX a fim de contribuir para o debate sobre a transmissão intergeracional de desigualdades socioeconômicas e raciais no Brasil. Segundo o autor, a desigualdade de classe é mais importante que a desigualdade de racial para explicar a DOE. A desigualdade racial é persistente ao longo do tempo, mesmo com a expansão educacional, ela esteve presente e não mudou, porém não é devida a discriminação.

Partindo do conceito de estratificação educacional que relaciona as origens sociais ao alcance educacional e usando dados das PNADs 2001, 2004 e 2007, Mont’Alvão (2011MONT’ALVAO, A. L. Estratificação educacional no Brasil do século XXI. Dados, Rio de Janeiro, v. 54, n. 2, p. 389-430, 2011.) testou as hipóteses relativas a essa estratificação dos estudantes brasileiros. Os resultados obtidos mostram que apesar do declínio das desigualdades educacionais entre brancos e pretos, ela ainda é enorme.

Políticas públicas como o REUNI e o sistema de cotas e bônus implantados por várias universidades podem contribuir para o declínio dessas desigualdades. Segundo Daflon, Feres Júnior e Campos (2013DAFLON, V. T.; FERES JUNIOR, J.; CAMPOS, L. A. Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico. Caderno de Pesquisa, v. 43, n. 148, p. 302-327, 2013.), às ações afirmativas raciais em vigor nas universidades públicas brasileiras até 2012 combinam o caráter racial e social, o que se faz necessário para mitigar a sub-representação de não brancos nas classes média e alta, bem como valorizar o papel do preto; ou seja, é uma política pública redistributiva e identitária.

As desigualdades educacionais geradas pelo sexo e cor da pele entre coortes de adultos ao longo do século XX é investigada por Materleto e Miranda (2016) a partir dos dados das PNADs de 1977 a 1999. Enquanto a desigualdade educacional devido ao sexo se reverteu em favor das mulheres em detrimento dos homens, a proveniente da cor da pele permaneceu durante todo o século passado a favor dos homens, mostrando a persistência desse tipo de desigualdade.

Para analisar quais fatores contribuem para as desigualdades raciais no desempenho escolar dos alunos do 9º ano, Mont’Alvão e Neubert (2016MONT’ALVÃO, A. L.; NEUBERT, L. F.. Desigualdades raciais e desempenho acadêmico no Brasil, em in: 40º Encontro Anual da Anpocs, 2016, Minas Gerais. Anais. Disponível em: Disponível em: https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/40-encontro-anual-da-anpocs/st-10/st28-3 . Acesso em 12 de maio de 2020.
https://anpocs.com/index.php/encontros/p...
) utilizam os usando dados da Prova Brasil de 2013 e a decomposição de Blinder-Oaxaca (1973OAXACA, R. L. Male-Female Wage Differentials in Urban Labor Markets. International Economic Review, v. 14, n. 3, p. 693-709, 1973.). Os resultados mostraram que se os estudantes não brancos tivessem os mesmos recursos dos brancos, a diferença de desempenho diminuiria em quase 50%, enquanto se houvesse uma equalização dos retornos educacionais para os recursos, a redução das desigualdades seria de aproximadamente 40%. As dimensões que mais contribuem para essas diferenças são o nível socioeconômico das escolas e as características socioeconômicas da família.

Assim, o presente trabalho se insere na literatura ao investigar pela primeira vez as nuances da discriminação racial no ambiente escolar no fim do ciclo escolar por meio dos dados do SAEB 2017. Ademais, buscou-se desagregar análise em nível estadual, de modo a identificar a distribuição espacial heterogênea do fenômeno sobre o território brasileiro.

3. METODOLOGIA

3.1 Base de Dados

Para a realização desta pesquisa, utilizou-se os microdados do SAEB de 2017, disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), para o desempenho dos alunos na 3ª série do Ensino Médio. O SAEB tem como público-alvo dessa modalidade as escolas públicas ou privadas que tenham pelo menos 10 estudantes matriculados nessa etapa (Brasil, 2012BRASIL. Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Microdados Prova Brasil 2011: manual do usuário. Brasília- DF: INEP, 2012.). Além dos dados de proficiência, foram utilizadas informações dos questionários socioeconômico dos estudantes, dos professores e da escola.

Como variável de resultado, visando medir o desempenho escolar, foi calculada a média aritmética das proficiências dos alunos em matemática e língua portuguesa, medidas na escala SAEB (média igual 350 pontos e desvio-padrão de 50 pontos). As covariadas foram selecionadas de modo a captar as principais características dos alunos e de sua família, assim como dos professores e da escola onde estudam.

Como indicador de cor da pele, considerou-se a junção de indivíduos pardos e pretos como sendo não brancos, em contraposição aos indivíduos brancos. Dessa forma, foram desconsiderados da pesquisa estudantes indígenas, amarelos ou de outras etnias (aproximadamente 3,3% da amostra), em função de suas especificidades. Cabe ressaltar que a pergunta referente a identificação raça possui elevada taxa de não resposta (31,4% no SAEB 2019), portanto uma limitação dos resultados é o fato de a amostra possivelmente não refletir a real proporção de estudantes brancos e negros. Apesar disso, espera-se que, ao controlar as características dos alunos, esse problema seja suavizado.

Para aferir o status socioeconômico, construiu-se um indicador por meio de análise fatorial, a partir de informações sobre a escolaridade dos pais, riqueza familiar e acesso a bens educacionais. Essa estratégia seguiu a metodologia empregada no PISA e adaptada para o contexto brasileiro por Soares e Alves (2003SOARES, J. F.; ALVES, M. T. G. Desigualdades raciais no sistema brasileiro de educação básica. Educação e Pesquisa, v. 29, n. 1, p. 147-165, 2003.). O resumo das variáveis utilizadas encontra-se descrito no Quadro 1.

Quadro 1:
Descrição das variáveis

3.2 Estratégia Econométrica

Para compreender as diferenças de desempenho escolar entre alunos não brancos (pretos e pardos) e brancos utilizou-se a decomposição proposta por Oaxaca-Blinder (1973BLINDER, A. S. Wage discimination: reduced form and structural estimates. Journal of Human Resources, v. 8, n. 4, p. 436-455, 1973.), da forma trazida por Jann (2008). Os autores propõem que esse diferencial pode ser explicado, em parte, pela diferença de características entre eles (gap de dotações), mas também por fatores não observados, o que pode ser atribuível a presença de discriminação racial.

Esse método é bastante utilizado em estudos que visam estudar a discriminação de gênero ou cor da pele no mercado de trabalho, sendo em menor escala empregado no contexto educacional. Alguns estudos que utilizam essa metodologia para entender as diferenças entre estudantes de baixo e alto capital social e econômico e entre estudantes de áreas rurais e urbanas em vários países a partir dos dados do PISA (Ammermueller, 2007AMMERMUELLER, A. PISA: (2007) What makes the difference? Explaining the gap in test scores between Finland and Germany. Empirical Economics, v. 33, n. 2, p. 263-287.; Zhang, Lee, 2011ZHANG, L.; LEE, K. A. Decomposing achievement gaps among OECD countries. Asia Pacific Education Review, v. 12, n. 3, p. 463-474, 2011.; Burger, 2011BURGER, R. School effectiveness in Zambia: The origins of differences between rural and urban outcomes. Development Southern Africa, v. 28, n. 2, p. 157-176, 2011.; Ramos, Duque, Nieto, 2012RAMOS, R.; DUQUE, J. C.; NIETO, S. Decomposing the Rural-Urban Differential in Student Achievement in Colombia Using PISA Microdata. Discussion Paper #6515. Bonn: Institute for the Study of Labor, 2012.; Baird, 2012BAIRD, K. Class in the classroom: The relationship between school resources and math performance among low socioeconomic status students in 19 rich countries. Education Economics, v. 20, n. 5, p. 484-509, 2012.; Nieto, Ramos, 2013NIETO, S.; RAMOS, R. Decomposition of differences in PISA results in middle income countries. Education For All Global Monitoring Report 2013/4, Teaching and learning: Achieving quality for all. Paris: UNESCO, 2013.).

Especificamente sobre as diferenças raciais, Card e Rothstein (2007) e Montoya (2010) mostram que parte relevante do diferencial de hispânicos e negros com relação aos brancos nos EUA se deve a discriminação racial. Para o Brasil, Mont’Alvão e Neubert (2016MONT’ALVÃO, A. L.; NEUBERT, L. F.. Desigualdades raciais e desempenho acadêmico no Brasil, em in: 40º Encontro Anual da Anpocs, 2016, Minas Gerais. Anais. Disponível em: Disponível em: https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/40-encontro-anual-da-anpocs/st-10/st28-3 . Acesso em 12 de maio de 2020.
https://anpocs.com/index.php/encontros/p...
) empregam a decomposição de Oaxaca-Blinder aos dados de desempenho de estudantes do 9º ano na Prova Brasil de 2013. Os autores concluem que se estudantes não brancos tivessem os recursos dos brancos, a diferença de desempenho diminuiria em quase 50% e, se tivessem os mesmos retornos educacionais, a desigualdade diminuiria mais de 40%.

Para compreender essa metodologia, considere a presença de dois grupos de estudantes, Brancos (B) e Não Brancos (N), cujo diferencial de resultados esperados pode ser expresso em termos de um modelo linear, como:

R = E ( Y B ) - E ( Y P ) = E ( X P ) β B - E ( X N ) β N [1]

A Equação 1 pode ser reescrita considerando a existência de um vetor de coeficientes não discriminatórios, conforme indicado por Jann (2008), da seguinte forma:

R E ( X B ) - E ( X N ) β + E ( X B ) ( β B - β ) + E ( X N ) ( β - β N ) [2]

Os dois elementos dessa soma podem ser interpretados como (i) o efeito dotação, derivado da diferença entre as características observadas e (ii) a parte inexplicada, que pode ser atribuída, entre outros fatores, a discriminação racial1 1 Para o cálculo foi utilizado o pacote “oaxaca” do software Stata 15 (JANN, 2008). .

Em face à heterogeneidade do território brasileiro, e de suas redes de ensino, optou-se por realizar a estimação, além do nível nacional, em nível de estados. Isso permitirá mapear o nível de discriminação dentro de cada ente subnacional, fornecendo uma visão da distribuição espacial do fenômeno.

4. ANÁLISE DOS RESULTADOS

A Tabela 1 traz as estatísticas descritivas das características dos alunos, utilizadas no cálculo da decomposição. Nota-se que, em média, os alunos Não Brancos são semelhantes aos alunos Brancos em termos das variáveis analisadas. Contudo, diferente dos alunos Brancos, os alunos que se autodeclararam pretos ou pardos parecem estar mais atrasados com relação ao seu ano, uma vez que o número médio de anos de atraso mostrou-se cerca 78% maior que o de seus pares.

Tabela 1:
Características dos alunos Brancos e Não Brancos

Alves e Soares (2003SOARES, J. F.; ALVES, M. T. G. Desigualdades raciais no sistema brasileiro de educação básica. Educação e Pesquisa, v. 29, n. 1, p. 147-165, 2003.) ressaltam que essa diferença nas taxas de matrículas, progressão e evasão entre brancos e não brancos são traços marcantes do sistema educacional brasileiro, tendo repercussões diretas nas trajetórias educacionais tomadas por esses grupos, levando a percursos mais irregulares para os indivíduos não brancos, cujas consequências são evidenciadas ao longo do ciclo de vida.

Além disso, ficou evidente a desvantagem dos estudantes pretos no que se refere à sua condição socioeconômica, reflexo da distribuição desigual de renda no Brasil. Segundo o estudo “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, os pretos representam 75% do primeiro decil de renda, enquanto os indivíduos brancos representam cerca de 70% do decil superior da distribuição de renda (IBGE, 2019INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.).

Outra característica relevante é a expectativa dos professores quanto ao ingresso no Ensino Superior, observa-se que a média dos brancos supera a dos alunos pretos. Isso ilustra a baixa expectativa sobre o desempenho educacional dos jovens pretos, que colabora para a perpetuação da desigualdade racial, além da dos resultados educacionais. Guimarães e Pinto (2016GUIMARÃES, A. C.; PINTO, J. M. Discriminação racial na escola: Vivências de jovens negros. Revista Digital de Direito Administrativo, v. 3, n. 3, p. 512-524, 2016.) reforçam que entender como as questões raciais são percebidas pelos agentes escolares é de suma importância para que o racismo deixe de ser uma prática comum da escola. Neste sentido, o relacionamento professor-aluno é de fundamental importância para o processo educativo, pois pode influenciar o desempenho escolar dos estudantes de forma positiva ou negativa.

Os resultados da decomposição de Oaxaca-Blinder (1973BLINDER, A. S. Wage discimination: reduced form and structural estimates. Journal of Human Resources, v. 8, n. 4, p. 436-455, 1973.) para o Brasil encontram-se disponíveis na Tabela 2. Nota-se que, em média, a diferença de desempenho no exame do SAEB entre os alunos Pretos e Brancos é de 20,5 pontos na escala SAEB, ou cerca de 0,41 desvios padrão. Dessa diferença de desempenho, cerca de 43% não pode ser explicada pelas características observadas. Isso significa que dois estudantes com as mesmas características, mas de diferentes cores da pele, apresentam, em média, uma diferença de quase 9 pontos (0,17 desvios) no desempenho no SAEB, em desfavor do estudante preto, sugerindo uma possível discriminação racial nesse resultado.

Os resultados encontrados são ligeiramente superiores aos obtidos por Mont’Alvão e Neubert (2016MONT’ALVÃO, A. L.; NEUBERT, L. F.. Desigualdades raciais e desempenho acadêmico no Brasil, em in: 40º Encontro Anual da Anpocs, 2016, Minas Gerais. Anais. Disponível em: Disponível em: https://anpocs.com/index.php/encontros/papers/40-encontro-anual-da-anpocs/st-10/st28-3 . Acesso em 12 de maio de 2020.
https://anpocs.com/index.php/encontros/p...
), para alunos do 9º Ano do Ensino Fundamental em 2013, de quase 40%. Isso sugere que a desigualdade pode não apenas ser persistente ao longo ciclo escolar, como se intensifica ao final da Educação Básica. Isso parece contradizer a hipótese de seletividade diferencial, segundo a qual haveria um enfraquecimento do efeito das origens ao longo das transições escolares (Mare, 1980MARE, R. D. Social Background and School Continuation Decisions. Journal of the American Statistical Association, v. 75, p. 295-305, 1980., 1981MARE, R. D. Change and Stability in Educational Stratification. American Sociological Review, v. 46, n. 1, p. 72-87, 1981.).

Tabela 2:
Decomposição da diferença de desempenho entre Brancos e Não Brancos

Quanto aos fatores que mais contribuíram para essa diferença, observa-se pela Tabela 3 que o diferencial da condição socioeconômica e a expectativa dos professores quanto ao ingresso no nível superior foram responsáveis por, aproximadamente, 82% da variação explicada. Dessa forma, fica evidente que o diferencial socioeconômico entre os estudantes, e todas as contingências a ele inerentes, constituem o principal obstáculo à equidade de desempenho entre os estudantes.

Os resultados sugerem ainda que os coeficientes atrelados à qualificação dos professores e a própria expectativa deles quanto ao futuro dos jovens é responsável por grande parte do diferencial não explicado, os alunos pretos parecem ser menos sensíveis a variações nas características dos professores, quando comparados aos seus pares de cor branca. Uma implicação desse resultado é que, expor uma turma a um professor mais motivado, qualificado e experiente, tende a elevar o diferencial de notas entre alunos brancos e pretos, visto que os primeiros tendem a se beneficiar mais do que os últimos em termos de aprendizado. Soares e Alves (2003SOARES, J. F.; ALVES, M. T. G. Desigualdades raciais no sistema brasileiro de educação básica. Educação e Pesquisa, v. 29, n. 1, p. 147-165, 2003.) argumentam que isso pode se dar em função de efeitos cumulativos, até mesmo de ordem não cognitiva, que levam a um melhor aproveitamento por parte dos alunos brancos em detrimento dos pretos.

Tabela 3:
Contribuição das características que explicam a diferença entre Brancos e Não Brancos

Essas pequenas diferenças pessoais, segundo Soares e Alves (2003SOARES, J. F.; ALVES, M. T. G. Desigualdades raciais no sistema brasileiro de educação básica. Educação e Pesquisa, v. 29, n. 1, p. 147-165, 2003.), quando inseridas em contextos mais favoráveis (escolas com melhor infraestrutura, melhores professores, colegas com atraso escolar menor), iniciam uma espiral de melhoria dos resultados. Os alunos sem essas pequenas vantagens iniciais não conseguem usufruir o melhor ambiente.

Em função do seu tamanho e diversidade, optou-se por avançar na análise do diferencial de desempenho entre estudantes brancos e não brancos, trazendo a discussão no nível dos estados e do Distrito Federal, como se verifica na Tabela 4. Os resultados indicaram que o Estado do Rio de Janeiro é aquele com maior diferencial absoluto de desempenho, 23 pontos na escala SAEB (ou 0,46 desvio), ao passo que o estado do Acre foi aquele cujos resultados se mostraram menos desiguais (diferença de 7,8 pontos ou 0,16 desvio). Segundo Soares e Alves (2013) uma diferença superior a 20 pontos na escala de proficiência do SAEB equivale a aproximadamente um ano de escolaridade, o que denota um atraso ainda maior dos alunos pretos e pardos do Rio de Janeiro em relação aos alunos brancos.

Tabela 4:
Diferencial de desempenho entre alunos Brancos e Não Brancos, por Unidade da Federação, SAEB 2017

Quando se observa o tamanho da diferença não explicada, aquela que remete a discriminação racial, o Distrito Federal foi aquele que apresentou maior valor absoluto. Se um aluno não branco na capital federal respondesse a suas dotações da mesma forma que um aluno branco com as mesmas características, sua nota seria cerca de 12 pontos (ou 0,24 desvio) maior. Ou seja, em condições equivalentes, o fato de ser preto ou pardo reduz nesse montante a nota esperada dos alunos não brancos.

Uma vez que o diferencial não explicado remete ao efeito discriminatório, é ilustrativo observar a proporção da diferença de desempenho, explicada e não explicada, como disponível no Gráfico 1. Nota-se que a maior proporção da diferença de desempenho não explicada é no estado do Mato Grosso, onde mais de 40% da proficiência média no SAEB não pode ser explicada pelas características observadas dos alunos do ensino médio e, por isso, podem ser fruto de discriminação racial. Enquanto a menor diferença é aferida em Roraima, menos de 5%, ou seja, pelo menos 95% da diferença de desempenho decorre de características observadas dos alunos.

Gráfico 1:
Proporção da diferença de desempenho, explicada e não explicada

Para ilustrar a distribuição espacial do fenômeno da discriminação racial na educação entre os estados brasileiros, observe pela Figura 1 a decomposição do diferencial de nota entre brancos e não brancos por unidade da federação. Os estados da Região Norte são, em média, aqueles em que há menor diferença não explicada, ao passo que os da Região Sudeste são aqueles em que esse indicador foi maior.

Em decorrência das evidências empíricas apresentadas pode-se inferir que existe um forte componente racial na desigualdade educacional brasileira. Dessa forma, políticas públicas que visem promover igualdade de oportunidades por meio da educação devem considerar fatores étnicos no desenho das estratégias adotadas. Cabe ressaltar que estratégias focadas no desempenho médio podem apenas mascarar o problema, uma vez que existe um hiato não desprezível de absorção do conhecimento entre alunos de contextos diferentes.

Ademais, a persistência do problema ao longo do tempo mostra que melhorar as condições aprendizado dos jovens não brancos representa um desafio, que para ser superado deve ser abraçado por toda a equipe escolar e administrativa, sempre considerando as peculiaridades locais. A variação significativa observada da diferença de desempenho entre alunos brancos e não brancos entre os estados brasileiros, e em particular de seu componente discriminatório, reforça a importância de uma análise particularizada.

Figura 1:
Diferencial explicado e não explicado, entre alunos brancos e não brancos, por unidade da federação

CONCLUSÕES

As desigualdades educacionais observadas no Brasil guardam íntima relação sua disparidade na distribuição de renda, mas também possuem um marcante componente racial. A reversão desse quadro indesejável passa pela adoção de políticas públicas que permitam incluir e desenvolver as potencialidades dos estudantes pretos e pardos (não brancos). Nesse contexto o presente artigo se propôs a fornecer um panorama nacional da discriminação racial, que possa fundamentar a adoção de estratégias particulares pelos entes federados.

A estratégia adotada partiu do pressuposto de que as diferenças educacionais observadas entre brancos e não brancos de devem em parte a diferenças de suas características, mas também de um componente discriminatório que não é captado pelos dados. Assim, empregou-se a metodologia proposta por Oaxaca-Blinder (1973BLINDER, A. S. Wage discimination: reduced form and structural estimates. Journal of Human Resources, v. 8, n. 4, p. 436-455, 1973.) para separar esses dois componentes, a partir dos resultados do 3º ano do Ensino Médio no SAEB 2017.

O hiato educacional pela cor da pele no Brasil é, em grande medida, resultado da ausência de políticas educacionais que considerem a questão racial como fator relevante no diferencial de aprendizado entre os estudantes. Ao desconsiderar esse fenômeno social, o modelo de educação tradicional acaba por contribuir para a manutenção da desigualdade entre raças, reforçando aspectos institucionais que levam os estudantes não brancos a se apropriem de forma menos intensa dos recursos à sua disposição.

Os resultados desagregados por estado revelaram grande variação com respeito aos resultados nacionais, reforçando a importância de estratégias contextualizadas com a realidade local para a superação das desigualdades raciais na educação brasileira.

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    Para o cálculo foi utilizado o pacote “oaxaca” do software Stata 15 (JANN, 2008).
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    Os autores agradecem aos comentários e sugestões de Ana Sara Cortez Irffi, Pedro Veloso, Walacy Maciel e Virna Menezes. Erros e omissões são de responsabilidade dos autores.
  • JEL Classification: I24; I25; I28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2023

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2021
  • Aceito
    10 Mar 2022
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