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Marxista e pós-keynesiana1 1 Discurso de Agradecimento à homenagem feita pela Associação Keynesiana Brasileira com a sessão Moeda, Valor e Produção: uma homenagem a Maria de Lourdes Rollemberg Mollo, no VIII Encontro Nacional da AKB, em agosto de 2015.

Foi com enorme satisfação e me sentindo muito honrada que recebi o comunicado desta homenagem. A AKB foi criada a partir da consolidação do pensamento pós-keynesiano no Brasil e do estreitamento de relações de pesquisa que foram da maior importância na minha carreira, numa época de grande dominação do pensamento ortodoxo neoliberal.

Sou grata aos que, ainda antes da fundação da AKB, na UFRJ, permitiram que a discussão heterodoxa se desenvolvesse. Primeiro ela se deu nos encontros do CETE - Centro de Estudos de Teoria Econômica, sob o patrocínio de Ricardo Tolipan, e depois de Fernando Cardim Carvalho, desta vez nos Seminários Internacionais de Economia Pós-Keynesiana, também na UFRJ. Esses encontros proporcionaram várias oportunidades de discussão entre não ortodoxos em geral e pós-Keynesianos brasileiros e estrangeiros em particular. Esses eventos, além de permitirem respirar todos os que pensavam diferente da ortodoxia econômica, foram fundamentais no amadurecimento e divulgação das ideias heterodoxas no Brasil e para a própria fundação da AKB.

Tenho, em particular, uma dívida de gratidão com os fundadores da AKB, quando me nomearem patrona, aceitando meu lado marxista ao lado do pós-keynesiano, o que nem sempre acontece, mesmo entre heterodoxos do pensamento econômico.

Algumas das contribuições de Marx e Keynes explicam de forma mais fácil o interesse em trabalhar com as suas ideias. A crítica à lei de Say e, com ela, aos clássicos ortodoxos num sentido amplo e aos neoclássicos, em particular; a percepção de que não sendo o mercado auto-regulável, instabilidade e crises são passíveis de ocorrer; as conseqüências previsíveis de desemprego e insuficiência de demanda, embora com explicações sempre distintas, uma sendo fruto da incerteza que permeia as decisões econômicas, em particular a de investimento, a outra sendo fruto da própria lógica ou das leis de movimento do capitalismo.

A maior interface entre os dois autores se encontra na percepção (por razões diferentes) da importância da moeda no capitalismo, justamente minha área de pesquisa. Garantia contra a incerteza, para Keynes, poder social., para Marx, nos dois casos a moeda pode ser entesourada, o que abre a possibilidade formal de crise. O crédito estimula a produção e o aumento da capacidade produtiva e isso faz tombar a ideia de neutralidade da moeda a qualquer tempo, permitindo que impulsões monetárias não levem necessariamente à inflação, mas, ao contrário, possam ser portadoras de solução, a médio prazo, para a mesma, porque a oferta pode responder ao aumento de demanda.

A importância da moeda no capitalismo, para os dois autores, dá, tanto a Marx quanto a Keynes, uma apreensão mais realista do funcionamento do sistema monetário e financeiro. A percepção de Keynes sobre a esfera financeira e internacional é, nesse sentido, mais atual do que a de Marx. O papel do crédito e do sistema financeiro é, assim, mais detalhado. Ele percebia, por isso, de forma mais clara, a importância do fornecimento do finance, viabilizando a decisão de investir sem poupança prévia, e do funding, consolidando a decisão de investimento. Ao mesmo tempo, ambos os autores observaram os riscos contidos nesse desenvolvimento da finança, Keynes com a generalização da especulação, Marx com a ideia de capital fictício.

Outras interfaces são mais complexas e difíceis de serem percebidas e analisadas. Apesar de Keynes ser um crítico do socialismo e dos regimes totalitários comunistas, e de ser um defensor do capitalismo, há nas suas ideias algumas compatibilidades importantes que me permitiram transitar, não sem alguns e, por vezes, muitos problemas, entre ele e Marx.

Por um lado, Keynes foi um defensor de políticas que buscavam aproximar a economia do pleno emprego, embora percebendo ser esse um estágio pouco provável. Para buscá-lo, dava ao Estado um papel, seja com política monetária, reduzindo a taxa de juros e estimulando o investimento e o crescimento multiplicado da renda e do emprego, seja com política fiscal., investindo ele mesmo para garantir mais otimismo e confiança do empresariado.

Marx não via o pleno emprego como viável no capitalismo, porque o desemprego é inerente à sua lógica de acumulação de capital. O objetivo de lucro, que move o capitalismo, estimulado pela concorrência entre capitalistas, leva ao aumento permanente do progresso técnico. Este, contudo, não busca folgar o trabalhador, mas aumentar a sua produtividade e, por isso, o progresso tecnológico é intensivo em capital., produzindo desemprego. Apreendia, além disso, de forma radicalmente crítica o capitalismo, em vista da exploração que está por trás da geração de lucros, objetivo do sistema. Mas Marx sabia, por um lado, que se o emprego implicava a exploração por trás do lucro gerado, por outro entendia ser essencial a venda da força de trabalho para inserir socialmente ou garantir a existência do trabalhador, ou dos não proprietários de meios de produção. Garantir empregos é, pois, forma de melhorar a situação do trabalhador na relação capital-trabalho.

Por outro lado, percebia também que as condições materiais necessárias à construção de uma sociedade melhor teriam que surgir dentro do próprio capitalismo e pela mão dos trabalhadores, o que requereria não apenas que garantissem a sua existência, se empregando, mas que garantissem empregos e tanto melhores quanto possível, para poderem se organizar e preparar a nova sociedade. É isso que também pode unir pós-keynesianos e marxistas da discussão da pertinência e da eficácia das políticas econômicas e nas proposições de políticas que garantam o aumento do emprego e, consequentemente, dos salários, como algo fundamental para melhorar a situação do trabalhador na relação capital-trabalho. Daí minha defesa do desenvolvimentismo hoje no Brasil.

Keynes buscava a “justiça social” e a “liberdade individual” como no texto “Sou eu um liberal?”2 2 Keynes, J. M. (1931). “ Am I a Liberal?, Essays in Persuasion, London: Macmillan. e em “Liberalismo e Trabalho”3 3 Keynes, J. M. (1931). “Liberalism and Labour”, Essays in Persuasion, London: Macmillan. , além da “Teoria Geral”4 4 Keynes, J. M. (1970). Teoria Geral do Emprego do Juro e do Dinheiro. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura S.A. . A grande crítica feita por ele ao socialismo e ao comunismo centrava-se na falta de liberdade de expressão e de ação relacionadas ao totalitarismo existente no chamado socialismo real. A sociedade desejada e antevista por Marx, porém, ao contrário do que as experiências reais mostraram, era uma proposta estritamente democrática. Isso se percebe, em primeiro lugar, quando, ao criticar o capitalismo, em particular no seu caráter monetário, justifica sua crítica dizendo que, dado esse caráter, “o ponto de partida não é o indivíduo social livre”5 5 Marx, K. (1980). Manuscrits de 1857-1858 (“Grundrisse”), Paris: Editions Sociales, p. 135. , mostrando por aí a necessidade desta liberdade social para a construção de uma sociedade melhor.

Em segundo lugar, como lembra Carlos Nelson Coutinho6 6 Coutinho, C. N. (2011). De Rousseau a Gramsci, São Paulo: Boitempo Editorial.. , a proposta de transformação da sociedade de Marx implica transformar radicalmente a sociedade, de forma que o interesse universal ou a vontade geral de Rousseau predomine sobre a vontade de todos. Esta última, que é adquirida pelo voto, é mera soma de interesses particulares. Construir o interesse universal requer mais, requer interesses comuns e, então, uma sociedade mais igual., ou seja, sem classes. Só assim os interesses particulares podem se confundir com o interesse geral. Só assim se transforma a sociedade em uma outra, onde, segundo Marx, “o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos”7 7 Marx, K E Engels, F. (1998). O Manifesto Comunista, São Paulo: Paz e Terra, p. 45 .

Obrigada.

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    Discurso de Agradecimento à homenagem feita pela Associação Keynesiana Brasileira com a sessão Moeda, Valor e Produção: uma homenagem a Maria de Lourdes Rollemberg Mollo, no VIII Encontro Nacional da AKB, em agosto de 2015.
  • 2
    Keynes, J. M. (1931). “ Am I a Liberal?, Essays in Persuasion, London: Macmillan.
  • 3
    Keynes, J. M. (1931). “Liberalism and Labour”, Essays in Persuasion, London: Macmillan.
  • 4
    Keynes, J. M. (1970). Teoria Geral do Emprego do Juro e do Dinheiro. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura S.A.
  • 5
    Marx, K. (1980). Manuscrits de 1857-1858 (“Grundrisse”), Paris: Editions Sociales, p. 135.
  • 6
    Coutinho, C. N. (2011). De Rousseau a Gramsci, São Paulo: Boitempo Editorial..
  • 7
    Marx, K E Engels, F. (1998). O Manifesto Comunista, São Paulo: Paz e Terra, p. 45

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017
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