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Federalismo e reforma fiscal

Federalism and fiscal reform

Resumo

No Brasil, existe um consenso geral de que medidas de ajuste fiscal são necessárias para obter estabilidade de preços. No entanto, isso aparece como um consenso vazio, porque se enuncia como proposições gerais com pouco conteúdo operacional. Este artigo pretende avançar um pouco mais apresentando questões fiscais e reformas relacionadas à teoria do federalismo fiscal. Argumenta-se que a maioria dos problemas fiscais macroeconômicos decorre de uma divisão pouco clara de funções entre os governos federal e estadual e local. Resistências políticas à mudança são relatadas e um esquema de federalismo fiscal combinado com compartilhamento de receitas é proposto como forma de superar os obstáculos à reforma, uma vez que associa a diversidade da demanda local com a redistribuição regional da renda.

Palavras-chave:
Federalismo fiscal; ajuste fiscal; relações intergovernamentais; taxação

Abstract

In Brazil there is a general consensus that fiscal adjustment measures are required to obtain price stability. Nevertheless, this appears as an empty consensus because it is stated as general propositions with little operational content. This article intends to go a little further presenting fiscal issues and reforms related to the theory of fiscal federalism. It is argued that most of macroeconomic fiscal problems arises from an unclear division of duties between federal and state and local governments. Political resistances to change are reported and a scheme of fiscal federalism combined with revenue sharing is proposed as a way to overcome the obstacles to reform since it associates local demand diversity with regional income redistribution.

Keywords:
Fiscal federalism; fiscal adjustment; intergovernmental relations; taxation

1. INTRODUÇÃO

A ideia de que é necessário um ajuste fiscal para se obter estabilidade na economia brasileira se tornou uma unanimidade nacional. Sob certos aspectos virou um novo modismo, bem ao gosto da alma brasileira. As mais variadas personalidades da vida pública em nosso país, de diferentes matizes ideológicos, defendem hoje a necessidade prioritária de um vigoroso ajuste fiscal.

Como toda unanimidade, como todo modismo, o verdadeiro sentido desse ajuste acaba sendo perdido. O consenso em torno do rótulo não necessariamente corresponde a um acordo em torno do conteúdo. Cada participante entende o ajuste fiscal a seu modo, e, dado que todos defendem um ajuste, arma-se uma comédia (ou tragédia) onde se supõe um apoio que dificilmente existe.

Neste artigo pretende-se mostrar que os problemas fiscais do Estado Nacional estão intimamente ligados às deficiências do federalismo no Brasil, e que, portanto, sem uma clara definição legal (e sem implementação) das responsabilidades dos entes federativos pouco se pode esperar de qualquer projeto de reforma ou ajuste fiscal.

2. O FEDERALISMO NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA

A Constituição brasileira estabelece logo no seu artigo 1º que o Brasil é uma república federativa. Já o artigo 18 determina a autonomia entre União, estados e municípios, e os artigos subsequentes (até o artigo 43) desse Título III (Da Organização do Estado) indicam a competência e encargos das esferas político-administrativas. O Título VI (Da Tributação e do Orçamento), especificamente seu capítulo I (Do Sistema Tributário Nacional), discrimina as receitas próprias e de transferências da União, estados e municípios.

Como não poderia ser diferente, sob o risco de quase inexorável caos, a discriminação de receitas é realizada de forma clara e específica. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza é da alçada da União, sobre a propriedade de veículos automotores é dos estados e assim por diante. São também explicitados os mecanismos de repartição das receitas tributárias. Sem negar a possibilidade de algum conflito ou controvérsia, o Sistema Tributário da Constituição de 1988 (como em outras Constituições) é autoexplicativo e não deixa margens para dúvidas maiores quanto a o quê compete a quem.

Essa clareza não é encontrada no que se refere à distribuição de encargos e competência. Com exceção das tarefas que por sua natureza devem ser exercidas pela União, como relações internacionais, defesa nacional, emissão de moeda, transporte interestadual e similares, existe muita competência conjunta e concorrente. Por exemplo, serviços médicos, serviços de educação, proteção ao meio ambiente e ao patrimônio histórico, assistência social, programas para infância e juventude são áreas as quais todas as esferas (União, estados e municípios) são, pela Constituição, encarregadas de prover. O sistema não é bem definido e acaba tornando-se um sistema híbrido, em que nem se tem um Estado unitário nem uma república federativa.

3. A PRÁTICA FEDERALISTA NO BRASIL

Como a responsabilidade sobre a provisão de bens e serviços públicos não é clara, alegadamente é uma responsabilidade “conjunta”, surgem os mais variados conflitos sobre quem deve prover e financiar esses bens e serviços.

Essa disputa, absolutamente, não é desprezível, já que a maioria dos gastos estaduais e municipais se localiza nestas áreas “conjuntas”: educação e cultura, saúde e saneamento e assistência social. E essas são áreas que, devido à gravidade dos problemas sociais no Brasil, exigem grandes recursos. Evidentemente os recursos públicos são insuficientes para enfrentar tal situação.

A “solução” encontrada é “jogar a bola” para a frente. O prefeito reclama e pede “verbas” para o governador. O governo estadual, por sua vez, cujos recursos são também insuficientes, reclama e pede “verbas” para o presidente da República. Este, que também não pode atender a todos, joga a culpa para o sistema financeiro internacional, FMI, dívida pública, Congresso Nacional, Constituição, partidos políticos etc.

Esse processo de empurrar responsabilidades gera, ainda, dois graves efeitos perniciosos. Primeiro, essa briga por “verbas” de esferas superiores cria uma relação de subordinação incompatível com um efetivo federalismo fiscal. A distribuição de “verbas” frequentemente se transforma em troca de apoios políticos, perdendo sua racionalidade econômica e social, e, perigosamente, tornando-se fonte de fisiologismo e eventualmente de corrupção.

O segundo efeito é que muitas dessas “verbas” são na realidade empréstimos que, na boa prática financeira, deveriam ser pagos. O mutuário deveria apresentar condições financeiras suficientes para honrar seus compromissos. Essa capacidade de pagamento pode ser derivada ou dos retornos financeiros do projeto financiado ou das receitas tributárias futuras.

Essas alternativas são inviáveis na maioria dos casos. Os projetos são essencialmente sociais e sem retorno financeiro, e é fraca a capacidade tributária de estados e municípios. Não se deve esperar que uma creche, ou pré-escola, ou centros de saúde, ou mesmo uma ponte ou obras viárias ou estradas gerem retornos financeiros apropriáveis, em volume suficiente, para pagar os empréstimos. É também quase certo de que não haverá, em anos vindouros, acréscimos substanciais de receitas públicas capazes de suportar os encargos desses financiamentos. O resultado desse processo é um crescente endividamento junto aos órgãos financiadores, o que passa a exigir constantes negociações para rolagem de dívidas, que se sabem, em sua maioria, incobráveis.

Esse processo de endividamento, além de mais uma vez atingir (e enfraquecer) a autonomia de estados e municípios, gera graves problemas para o sistema financeiro nacional e, em especial, para os intermediários financeiros oficiais, que são os que fazem os empréstimos considerados pelos mutuários como “verbas” fiscais.

Além de não tornar bem definidos os encargos e a competência de cada esfera administrativa, a Constituição e a prática político-institucional no Brasil não estabelecem claramente as características do relacionamento entre União, estados e municípios. Tomemos para comparação dois exemplos de países federalistas: Estados Unidos e Alemanha.

Nos Estados Unidos, governos estaduais e municipais são considerados pela União praticamente como setor privado. Há grande autonomia, e cada unidade federada é totalmente responsável por seus atos, inclusive pelas consequências financeiras destes. A recente crise financeira da cidade de Nova York é esclarecedora. Nova York teve que se arranjar por conta própria. Não houve um manifesto dos prefeitos das capitais, como é comum no Brasil (inclusive onde há uma associação que os congrega), mesmo porque Nova York não é capital, reivindicando “liberação de verbas” (empréstimos) federais. A crise é de Nova York e não dos Estados Unidos. O presidente não se sente responsável por esse problema, nem é pressionado para solucioná-lo.1 1 Alguma pressão de fato existe, mas não na intensidade e exigência próprias do Brasil. Seus deveres e responsabilidades são outros. Há uma clara delegação de poder e cobrança de responsabilidade.

No Brasil existem muitos exemplos em que a União não quer delegar poder, mas quer exigir responsabilidade (com controle e regulamentação federal), enquanto estados e municípios querem poder (não aceitam controle nem regulamentação) mas não querem assumir a responsabilidade correspondente.

Na Alemanha Federal (e agora unida) o processo é diferente. A União quase não tem poder executivo para fins internos. Sua ação se limita ao poder legislativo e normativo e na organização de programas que serão executados pelos estados. O fórum similar ao Senado brasileiro ou americano é uma organização de governadores (ou de seus secretários de economia) que discute a viabilidade orçamentária e financeira dos programas e leis federais que eles terão que executar. Há, portanto, algo de um setor público compartilhado entre os estados e a União.

No Brasil temos um federalismo híbrido, que na prática se mostra atrofiado ao conceder muito poder à União. Esse poder, que em muitos aspectos é efetivo, em muitos outros é ilusório, já que o presidente ou o Executivo Federal não têm condições políticas nem financeiras para exercitá-lo.

4. DUAS LINHAS DE MUDANÇA

O Brasil está ainda longe de um autêntico federalismo. As deficiências de nosso sistema geram extraordinários problemas administrativos e financeiros para o setor público nacional. O enfrentamento dessa questão e medidas de profundidade para superar os problemas são inadiáveis. O que desenvolveremos a seguir são passos iniciais para um debate nacional que possa encontrar o caminho de um verdadeiro federalismo brasileiro.

Partimos do pressuposto que o regime federativo é o mais apropriado para o Brasil. Além da tradição nacional, e do tamanho (territorial e populacional) do País, a diversidade de situações, problemas, desafios e potencialidades é de tal ordem que praticamente requer sistemas descentralizados, com razoável autonomia financeira e administrativa, ou seja, regime federativo.

A primeira sugestão é efetivamente aderir ao princípio básico do federalismo fiscal, que indica que os encargos e responsabilidades devem ser distribuídos de acordo com a abrangência geográfica dos benefícios. Essa regra, em termos muito tímidos, aparece em nossa Constituição, mas não é aplicada plenamente com todas as suas consequências. Por exemplo, as áreas sociais e assistenciais deveriam ser na sua esmagadora maioria da responsabilidade de estados e até, preferencialmente, de municípios. Pré-escolas, creches, centros de saúde e em muitos casos escolas de 1º. e 2º. graus são serviços dos municípios, e absolutamente não deveriam ser da alçada de órgãos federais (LBA, CIACs, entre outras deformações do federalismo à la brasileira). Uma análise mais detalhada e pormenorizada dos gastos federais e estaduais indicaria um grande número de atividades indevidas e conflitantes com o princípio básico do federalismo.

A segunda sugestão é referente à questão do relacionamento entre as esferas administrativas, especialmente entre União e estados. O atual jogo entre forças centralizadoras e controladoras emanadas do poder central e os reclamos de autonomia e verbas por parte de estados e municípios não podem perdurar por mais tempo. Os dois paradigmas apresentados, o americano e o alemão, trazem elementos muito úteis e não excludentes que podem ser combinados para se adequarem à realidade político-institucional brasileira. Não resta dúvida de que muito da autonomia com responsabilidade, característica do sistema americano, deve ser implementado, mas os princípios de um setor público compartilhado são muito atraentes, pois muitas medidas de política econômica federal têm grande repercussão sobre as finanças estaduais.

É necessário, assim, repensar o federalismo brasileiro em duas direções: primeiro, em termos dos bens e serviços que seriam fornecidos pelas diversas esferas administrativas, ou seja, em termos das responsabilidades que seriam assumidas pela União, estados e municípios, e, segundo, em termos do relacionamento que deve existir entre as esferas administrativas, especialmente entre a União e os estados.

Essas questões estão intimamente ligadas à questão dos recursos disponíveis e das fontes de financiamento. Apesar de existirem aspectos que são relativamente independentes, a definição dos encargos, em grande parte, condiciona a repartição dos recursos entre as esferas administrativas. Por essas razões iremos nos concentrar nos aspectos ligados à provisão de bens e serviços, na suposição de que os argumentos forneçam elementos para a desejada repartição de recursos.

5. PROVISÃO DE BENS E SERVIÇOS

O princípio básico do federalismo fiscal consiste em atribuir responsabilidade pela provisão de bens e serviços de acordo com a abrangência geográfica dos benefícios recebidos pela população. Esse princípio tem justificativas evidentes. De início, como esses bens são financiados com recursos dos contribuintes, nada mais justo que estes sejam os beneficiários.

Nesses termos, um bem ou serviço que beneficie, quase exclusivamente, o estado do Pará, não deve ser financiado2 2 A questão da redistribuição regional de renda será tratada na seção seguinte. nem fornecido pelo estado de São Paulo. E vice-versa; um bem que seja do interesse quase exclusivo do estado de São Paulo deve ficar sob a responsabilidade deste estado e não de outro; e, mais importante, não deve ficar sob controle da União.

Uma grande vantagem do princípio básico do federalismo fiscal diz respeito ao processo político, que substitui o mercado na função de revelar as preferências dos consumidores de bens públicos. Como é amplamente analisado na literatura de finanças públicas, existem certos bens e serviços que por sua natureza não podem ser ofertados por agentes privados. A origem desse fracasso de mercado é o fato de que os consumidores não podem ser excluídos dos benefícios gerados por esses bens e serviços. Esses bens, uma vez produzidos, se tornam disponíveis para todos, independentemente de pagamento. Sendo assim, não existirão pagamentos voluntários, e, como consequência, o sistema de preços não revelará as preferências dos consumidores, o que é indispensável para saber o que e quanto produzir.

O processo político que determina o orçamento de gastos e receitas públicas é o mecanismo que substitui o mercado nessas funções. Não é difícil verificar, havendo inclusive provas matemáticas, que a eficiência desse processo político fiscal, no que diz respeito à sua capacidade de efetivamente revelar as preferências da comunidade, é tanto maior quanto maior for a possibilidade de aderir aos princípios do federalismo fiscal e da descentralização dos gastos públicos, ou seja, quanto mais visível e próxima for a relação contribuinte/benefício.

Uma vantagem adicional é referente à fiscalização e controle das despesas públicas. Aqui também não é necessária muita argumentação para demonstrar que um sistema fiscal organizado de acordo com os princípios do federalismo fiscal, e, portanto, com funções descentralizadas, oferece melhores condições para o exercício, por parte da comunidade, dessas funções de controle e cobrança de resultados.

6. A QUESTÃO DA DISTRIBUIÇÃO DE RENDA

É oportuno, nesta altura, indagar por que, com todas essas vantagens, um sistema bem mais descentralizado não foi ainda implantado no Brasil. Não é o momento de pesquisar as raízes históricas do centralismo nacional. Mas podemos, com bastante segurança, apontar a péssima distribuição regional de renda como um dos fatores cruciais que dificultam o desejado processo de maior descentralização do setor público nacional.

As alegações, ainda que muitas vezes justificadas, da necessidade de interferência da esfera administrativa superior para superar as desigualdades no ritmo de crescimento de numerosas regiões, municípios ou mesmo estados, tiveram como consequência a criação desse federalismo híbrido que caracteriza nosso país.3 3 Deve-se entender como problema de distribuição de renda a não-existência de renda, ou seja, regiões desertas a serem colonizadas. Nesses casos surgem, inclusive, questões de defesa e soberania nacionais que são, evidentemente, da responsabilidade da União, mesmo em autênticos regimes federativos.

O argumento a favor da necessidade de distribuição inter-regional de renda é bastante forte, pois decorre de uma situação que, todos concordam, deveria ser alterada. E mais: por causa das grandes desigualdades existentes no Brasil, é substancial o volume de recursos que essa tarefa redistributiva requer. Ocorre, entretanto, que essa necessidade acaba gerando mecanismos e práticas que acarretam uma centralização fiscal incompatível com um autêntico regime federativo. O problema da redistribuição inter-regional de renda é habilmente usado como argumento para desculpar muitas injustificadas intervenções centralizadoras.

Evidentemente não é correto, nem seria politicamente factível, dar prioridade máxima ao princípio do federalismo e sacrificar as tarefas redistributivas. O que é inaceitável é o centralismo exagerado, travestido de nobres funções redistributivas e utilizado para manter poder nas mãos da União.

Para se caminhar em direção oposta é necessário encontrar mecanismos ou fórmulas que concomitantemente:

  • preservem a função de redistribuição regional de renda do setor público brasileiro;

  • favoreçam a descentralização político-administrativa e a implementação de um verdadeiro federalismo fiscal; e

  • tenham apelo político suficiente para suplantar as alegadas “vantagens” do centralismo.

Essa não é uma tarefa fácil, nem é esperado que se possa realizar a curto prazo. O importante é iniciar o processo de mudança, ou melhor, acelerar esse processo, já que diversas medidas já foram tomadas durante a década de 80 e consolidadas na Constituição de 1988, especialmente, mas não exclusivamente, na área tributária.

A principal lacuna observada nessa reversão de tendência encontra-se na definição de responsabilidade pelo suprimento de bens e serviços, ou seja, dos encargos de cada esfera administrativa. Essa definição deveria observar os princípios do federalismo fiscal, dividindo as responsabilidades de acordo com a abrangência geográfica dos benefícios.

Para que essa repartição seja financeiramente viável e socialmente justa é necessário que os recursos sejam distribuídos de acordo com critérios que incorporem, além dessa repartição de encargos, as demandas de melhor distribuição de renda inter-regional. É com esse total que as unidades político-administrativas (União, estados e municípios) deverão atender às demandas por bens e serviços.

Esses argumentos implicam a conjugação do princípio do federalismo fiscal, no lado dos encargos, com esquemas de revenue sharing no lado das receitas. Isso significa duas tarefas semi-independentes. A primeira é a definição das responsabilidades pela provisão de bens e serviços por esfera administrativa de acordo com a abrangência geográfica dos benefícios. A segunda é o acerto político sobre os critérios de redistribuição de recursos entre as diversas unidades administrativas.

Em adição, é extremamente conveniente que essa repartição de receitas seja transparente e automática. É fundamental, por exemplo, que o contribuinte de São Paulo saiba que parte dos impostos que ele paga será aplicada no seu estado e no seu município, e pelos respectivos poderes estadual e/ou municipais. E parte será transferida para regiões mais carentes para ser aplicada pelos correspondentes poderes locais.

Esse conhecimento transparente é indispensável para que os contribuintes possam exercer urna adequada fiscalização e controle. De outra parte, para que os recursos não se “percam” nos labirintos burocráticos, é necessário que a sua transferência obedeça a regras simples e automáticas, minimizando assim as pressões sobre a eventual subordinação das esferas que recebem, ou melhor, que têm direito a essas transferências.

Em um sistema fiscal organizado de acordo com esses parâmetros, não tem mais sentido reclamar, junto às esferas superiores, insuficiência de recursos, e oferecer apoio para ser cooptado em troca de “verbas”. Nessa configuração o problema do relacionamento entre as diversas esferas administrativas, que é um problema grave nos dias atuais, tende a ser substancialmente reduzido. A briga ou a disputa vai dar-se em termos da fixação dos porcentuais de repartição de receitas (revenue sharing) e na definição dos encargos por esfera político-administrativa.

Estas duas questões - encargos e repartição de receitas, que são intimamente relacionadas, constituem o eixo central de qualquer proposta de reforma ou ajuste fiscal e tributário que tenha como objetivo prioritário o equilíbrio e a eficiência do setor público da República Federativa do Brasil.

7. A QUESTÃO DO FINANCIAMENTO MONETÁRIO

Uma característica essencial do setor público, que o distingue do setor privado, é o impacto monetário de seu financiamento. A possibilidade de emitir moeda concede ao governo um poder de financiamento, ao menos nominal, praticamente ilimitado. O uso desse poder além de determinados parâmetros acarreta graves desequilíbrios macroeconômicos que geram, entre outros efeitos, fortes pressões inflacionárias.

Na configuração institucional típica das economias monetárias a emissão de moeda é monopólio do governo central (União nas federações), exercida por um banco central. Nesses termos, quem deve ser controlado por causa de seu potencial poder desequilibrador é a União e, especificamente, o Executivo Federal. As demais esferas governamentais, em tese, não são capazes de gerar esse tipo de efeito. É por causa desses fatos que, em macroeconomia, quando se fala em governo, em política monetária e fiscal, implicitamente se está referindo a governo central, e não a estados e municípios.4 4 Certamente; se um dia os Estados Unidos negociassem com o FMI um programa de ajuste, a conhecida meta de necessidade de financiamento do setor público seria referente à União e não a todo o setor público.

O artigo 21, VII, de nossa Constituição estabelece que compete à União emitir moeda, e o artigo 164, caput, que essa competência será “exercida exclusivamente pelo banco central”. Adicionalmente este mesmo artigo, em seu parágrafo 1º, proíbe “ao banco central conceder, direta ou indiretamente, empréstimos ao Tesouro Nacional e a qualquer órgão ou entidade que não seja instituição financeira”.

Esses artigos visam evitar o uso indiscriminado do poder de emissão concedido ao governo federal. Essa disciplina, entretanto, não é, nem poderia ser, uma camisa-de-força que impede o Banco Central de realizar política monetária. Por essa razão o parágrafo 2º do artigo 164 autoriza: “o banco central poderá comprar e vender títulos de emissão do Tesouro Nacional, com o objetivo de regular a oferta de moeda ou a taxa de juros”.

É por meio dessas operações que surge a monetização de eventuais déficits públicos federais. Esse risco desestabilizador que corresponde, vendo o lado positivo, à capacidade estabilizadora da política monetária é inerente a qualquer contexto político-institucional que permita o exercício de política monetária ativa. Esse, como vimos, é o caso do Brasil.5 5 É preciso ressaltar que existem importantes e influentes autores que concluem existir instabilidade e mesmo inoperância intrínseca da política monetária. Esses autores pregam o estabelecimento de regras fixas e conhecidas para a condução da política monetária.

Em circunstâncias normais, como afirmamos, a esfera administrativa que precisa ser controlada por causa de sua ação macroeconômica é o Executivo Federal.6 6 O Poder Legislativo entra no processo de forma indireta, na medida em que é ele que aprova o orçamento autorizando os gastos públicos. As demais esferas governamentais, estados, municípios e mesmo empresas estatais seriam similares às entidades privadas.

No Brasil, entretanto, devido ao nosso federalismo híbrido, o comportamento financeiro dos estados é um elemento ativo da política macroeconômica. O que em outros países é competência privativa da União, aqui é competência concorrente entre a União e os estados federados. Eles compartilham iniciativas e poderes de política macroeconômica. Isso se dá porque os estados conseguem exportar ou transferir seus déficits para a União.7 7 O mais poderoso canal de transferências é formado pelos bancos estaduais, mas não é o único. Assim, o disciplinamento do Executivo Federal não é uma condição suficiente para a eficácia da política macroeconômica, especialmente nos seus objetivos de estabilização.

Esses não são fatos recentes na história brasileira. Há algumas décadas estão presentes na configuração formal-institucional de nosso país. Durante o período do autoritarismo o já existente poder macroeconômico compartilhado era comandado pelo Executivo Federal, que, para todos os efeitos, nomeava (e destituía) governadores e secretários estaduais da área econômica. Ou seja, a linha de comando era centralmente estabelecida. Em verdade, o federalismo não existia. Não havia autonomia estadual. O Brasil era de fato um Estado unitário.

Com a redemocratização a situação se altera. Os estados recuperam maior autonomia à custa de uma redução de poder da União, que assim perde a capacidade anterior de articulação, que, é bom que se frise, era decorrente do autoritarismo. Se esse processo de federalização houvesse ocorrido de forma equilibrada, ou seja, se a maior autonomia em gastar viesse acompanhada de maior responsabilidade no seu financiamento, estaríamos caminhando para um verdadeiro e coordenado federalismo. Estados e municípios poderiam gastar limitados por sua capacidade de obter recursos, fossem eles tributários, fossem eles de endividamento. Neste último caso assumindo todos os encargos e riscos das operações.

Infelizmente esse processo equilibrado não ocorreu. Com discutíveis argumentos a favor da eficiência de decisões centralizadas a burocracia federal procurou e procura manter seu poder intacto. De outra parte é, do ponto de vista de estados e municípios, inclusive de empresas estatais, extremamente cômodo e atrativo poder gastar e mandar a conta para outros pagarem. Essa atitude é facilitada e até estimulada pela postura de pretenso controle e fiscalização ainda mantida pelas autoridades federais.

O resultado é o descontrole das políticas macroeconômicas. Nessa perspectiva, um ponto prioritário do ajuste fiscal deve ser o restabelecimento desse comando nas mãos do governo federal. Isso não significa dar mais recursos e/ou poder à União. Sem mudar as regras de relacionamento operacional entre União, estados e municípios, eventuais mudanças tributárias e aumentos de arrecadação seriam inócuos, pois os mesmos problemas surgiriam e em um grau maior, já que teríamos mais recursos em disputa.

8. UMA AGENDA PARA DISCUSSÃO

A solução da questão fiscal no Brasil é uma tarefa extremamente complexa. É um processo que envolve acordos políticos de difícil implementação. Mas existem questões gerais que podem e precisam ser explicitadas e previamente acordadas.

O que está na base dos problemas é a falta de uma definição rigorosa, clara e operacional do sentido de um verdadeiro federalismo fiscal. O federalismo brasileiro é um federalismo híbrido, que ora pende para a centralização típica de estados unitários, ora pende para a descentralização característica de repúblicas federativas. Essa falta de definição, pelas inseguranças que cria, pelas mudanças que acarreta e pela impossibilidade de programação de médio e longo prazos que geram tem ocasionado consideráveis prejuízos para a Nação.

A propósito, deve-se repensar a característica do imposto estadual de consumo (ICMS) de ser cobrado parcialmente de acordo com a origem e parcialmente de acordo com o destino. Esse critério híbrido é irmão do federalismo híbrido. Deve-se rediscutir essas características em um contexto federativo. Alíquotas uniformes, cobradas segundo o critério da origem, são próprias de regimes unitários. Em regimes federativos são mais apropriadas alíquotas diferenciadas e critério do destino. Estas, além de possibilitarem diferenciações regionais, estão mais de acordo com a autonomia estadual, fundamento do federalismo.

É possível que razões de ordem política, administrativa e econômico-financeira possam indicar vantagens para alguma homogeneidade tributária entre as diversas unidades, mas estas devem se subordinar ao princípio maior da autonomia federativa, e não vice-versa, como tem sido usual no Brasil.

Em relação ao problema financeiro temos uma questão de excesso e não de falta de federalismo. Mesmo em regimes federais ortodoxos, a responsabilidade pelo controle da oferta de moeda e das taxas de juros é do poder central. A moeda é um bem público de abrangência nacional.

Nesses termos a ação financeira de estados e municípios, seja pela emissão de títulos, seja pela operação de instituições financeiras, deve, à similaridade de entidades privadas, se subordinar à regulamentação das autoridades monetárias federais. Os intermediários financeiros de propriedade de governos estaduais deveriam ter as mesmas prerrogativas, direitos e obrigações que as entidades de direito privado. Não deveriam ter nem regalias nem proibições especiais.

Esta seria uma situação de autêntico federalismo. Não é, infelizmente, o que ocorre, nem principalmente o que ocorreu no Brasil. Houve uma espúria ligação entre agentes estaduais e as autoridades monetárias e financeiras federais, a tal ponto que se criaram mecanismos descentralizados de emissão de moeda (e quase-moeda) nas mãos de bancos estaduais. O resultado dessa longa inter-relação foi duplamente nefasto: reduziu e limitou a eficácia da política monetária (federal) e gerou exposição financeira e, portanto, dependência de unidades estaduais.

Isso é incompatível com uma república federativa. A mudança deve ser orientada na direção de um ordenamento financeiro permanente que fortaleça o poder central em suas funções monetárias e preserve a autonomia de estados e municípios no trato independente de suas finanças, assumindo prerrogativas e responsabilidades próprias de agentes autônomos.

Em síntese, os pontos a serem amplamente discutidos e que consideramos indispensáveis para uma efetiva reforma fiscal são:

  1. Redefinição dos encargos entre as esferas administrativas com a discussão do critério de origem ou destino no imposto estadual de valor agregado, atual ICMS.

  2. A questão do desenvolvimento regional e de transferências interestaduais para reduzir as disparidades será enfrentada de que forma? Fundos geridos pelo poder central? Transferências automáticas?

  3. A sistemática das transferências constitucionais para estados e municípios será mantida ou alterada? Além destas serão permitidas, proibidas ou extremamente controladas outras transferências de recursos da União para estados e municípios?

  4. Qual o espaço, papel e limites de atuação dos bancos estaduais? Qual o relacionamento dos bancos com seus governos estaduais? E com o Banco Central? Claramente esses bancos não poderão mais emitir (indiretamente) moeda como o fazem hoje.

  5. Qual o tratamento que deve ser dado aos títulos públicos estaduais? Haverá limites estritos para sua emissão? E o estoque atual, quem controla: Banco Central? Conselho Monetário? Os estados terão assento nesse colegiado? Qual o papel do Senado Federal na questão do endividamento de estados e municípios?

  6. Qual o relacionamento dos governos e bancos estaduais com os organismos oficiais de crédito, como o Banco do Brasil, BNDES, Caixa Econômica Federal, e com os bancos regionais?

  7. Os avais do Tesouro Nacional para endividamento interno e externo serão permitidos? O que fazer com os avais hoje existentes?

Essas e outras questões correlatas constituem o cerne de um real ajuste fiscal, que dê condições para a eficácia da política macroeconômica. Uma simples reforma tributária, por mais apropriada que venha a ser, corre o risco de ter o mesmo resultado das tentativas anteriores: um alívio momentâneo, quando possível, seguido de aumento de despesas e novo desequilíbrio.

Infelizmente, tem-se observado uma concentração nos aspectos tributários da reforma fiscal e grandes dificuldades para equacionar as questões ligadas à repartição de gastos e ao relacionamento entre as esferas administrativas do setor público. A proposta de acoplar uma melhor definição de encargos e responsabilidades com esquemas automáticos de repartição regional de renda pode constituir-se em um atrativo caminho para se obter aceitação geral de uma reforma fiscal que promova um efetivo ajuste do setor público.

O Brasil é um país de grandes disparidades de nível de renda e de modernidade, de grande variabilidade de interesses e de grande diversidade de recursos naturais e de potencialidades humanas, mas onde existe um profundo sentimento de unidade nacional alicerçado no respeito à diversidade regional. É exatamente essa realidade histórica, geográfica e cultural que é a base de um verdadeiro federalismo no Brasil, e que o justifica e impõe.

  • 1
    Alguma pressão de fato existe, mas não na intensidade e exigência próprias do Brasil.
  • 2
    A questão da redistribuição regional de renda será tratada na seção seguinte.
  • 3
    Deve-se entender como problema de distribuição de renda a não-existência de renda, ou seja, regiões desertas a serem colonizadas. Nesses casos surgem, inclusive, questões de defesa e soberania nacionais que são, evidentemente, da responsabilidade da União, mesmo em autênticos regimes federativos.
  • 4
    Certamente; se um dia os Estados Unidos negociassem com o FMI um programa de ajuste, a conhecida meta de necessidade de financiamento do setor público seria referente à União e não a todo o setor público.
  • 5
    É preciso ressaltar que existem importantes e influentes autores que concluem existir instabilidade e mesmo inoperância intrínseca da política monetária. Esses autores pregam o estabelecimento de regras fixas e conhecidas para a condução da política monetária.
  • 6
    O Poder Legislativo entra no processo de forma indireta, na medida em que é ele que aprova o orçamento autorizando os gastos públicos.
  • 7
    O mais poderoso canal de transferências é formado pelos bancos estaduais, mas não é o único.
  • 8
    JEL Classification: H20; H77; H71.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1994
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