RESUMO
Resenhas dos livros “Karl Marx: o apanhador de sinais” e “Marx: nas pistas da desmistificação filosófica do capitalismo”.
PALAVRAS-CHAVE:
Marx; marxismo; resenha
ABSTRACT
Book reviews for “Karl Marx: o apanhador de sinais” and “Marx: nas pistas da desmistificação filosófica do capitalismo”.
KEYWORDS:
Marx, marxism; book review
O lançamento recente de dois pequenos livros sobre Marx - Karl Marx: o apanhador de sinais, Horácio Gonzales, Brasiliense, e Marx: nas pistas da desmistificação filosófica do capitalismo, Hans Flickinger, L & PM Editores-, textos como que temporões à enxurrada de artigos, debates e ensaios que afluíram no Brasil e no mundo quando do centenário da morte do conhecido pensador alemão, que se comemorou em 1983, merecem alguns breves comentários. Tratam, cada qual a sua maneira, da vida e da obra deste estranho e incômodo homem que considerava tão importante quanto a necessidade da especulação filosófica, uma ação política transformadora que deve necessariamente acompanhá-la.
A própria existência de Marx foi pautada pela simultaneidade desse duplo· movimento que se alimenta mutuamente: sua prática política sempre esteve referida às suas formulações teóricas, e estas, por sua vez, recorrentemente se co-determinavam a partir de sua práxis intervencionista, visando modificar a realidade imediata que então vivia. Por exemplo, na Ideologia alemã (1846-7), escrita juntamente com a inseparável Engels, procurava Marx sedimentar uma crítica feroz contra os filósofos alemães mais proeminentes de seu tempo, principalmente Bruno Bauer, Stirner (teórico do anarquismo alemão então em formação) e Feuerbach, na qual tentava demonstrar o idealismo embutido na visão dos “jovens hegelianos” (crítica esta que já estava presente na Sagrada família (1844), e que é retomada com maior vigor). A miséria da filosofia (1847) é uma tentativa de pôr a nu o “reformismo” de Proudhon, que sustentava a viabilidade de melhorar “os efeitos deletérios do capitalismo, sem lutar contra a sua base econômica na propriedade privada baseada no trabalho assalariado” (Flickinger), mas é também, ao mesmo tempo, um texto de cunho publicista em que Marx está buscando, naquele momento da política europeia, sensibilizar politicamente as diversas parcelas do movimento operário europeu quanto à validade teórica e eficácia prática de suas ideias. É neste contexto de contendas político ideológicas que emerge também o Manifesto do partido comunista (1848), que precede historicamente a chamada Primavera dos povos (o ano de 1848 caracterizou-se por momentos revolucionários que praticamente varreram toda a Europa), e que, juntamente com aqueles dois outros textos constituem-se na tríade de obras marxianas que Flickinger avalia serem de “orientação político concreta”.
Marx, este incorrigível “apanhador de sinais”, de acordo com a caracterização correta de Horácio Gonzales, recupera e erige uma “filosofia da práxis” - entender a realidade para transformá-la, ou, ainda, esclarecer indagando, para transgredir - que tem seu precedente histórico, e isto foi escassamente observado pelos analistas da obra marxiana, na tradição política da cidade grega ao tempo de Sócrates. De fato; o próprio Sócrates pode ser considerado como o fundador do agir político referenciado à “teorização especulativa”, tendo em vista que o mesmo foi pródigo em incitar o socratismo em diálogos permanentes e questionadores de valores estabelecidos e, ao mesmo tempo, colocar-se politicamente em atitude de confronto aos poderes constituídos de sua época quando de suas intervenções na ágora grega. A ida à cicuta é decorrência lógica de uma sociedade que estava em processo irreversível de decadência, cujo povo não soube tolerar as denúncias públicas de um ativista político, cuja preocupação era a de apontar as excrescências de seu modelo político-social.
Mas os sinais que Marx estava atentamente preocupado em apanhar são de outra natureza. São os sinais que fariam antever a eclosão de processos revolucionários e, neste contexto, saudava toda nova crise econômica como o prenúncio da revolução, o que dava azo renovado ao seu desejo de colapso da capitalismo. Para quem acreditava, e mesmo para os que hoje acreditam, que o movimento da história é fruto de contradições básicas que brotam das entranhas de cada formação econômica específica, nada mais exato do que imaginar que o capitalismo é um modo de produção que fatalmente criará, de dentro de si mesmo, as condições materiais, políticas e culturais para a sua superação. A análise dialética indicava para Marx que aos distintos modos de produção (escravista, asiático, feudal etc.) apareceriam outros formados a partir da negação de elementos constitutivos da situação pretérita e cuja forma de manifestação presente já colocava novos indícios concretos de um devir irreprimível. Assim, o conflito básico que move o capital - sendo este uma “contradição em processo” que perfaz uma “autonomia auto valorativa” e que leva a que continuamente negue sua própria base de valorização (o trabalho) - é o conflito que espelha a interação de opostos contraditórios que se excluem e se complementam mutuamente, no qual está expresso, de um lado, o caráter social da produção de valores de uso e, do outro, a apropriação privada, através da troca, da mais-valia (lucro) gerada na esfera da produção. Esta contradição imanente da sociedade capitalista, repito, modela a lógica e a gênese histórica do capital e dissemina para todas as esferas da vida social uma oniabrangência que não se resume só à produção material de mercadorias.
Com Marx, o conhecimento humano acabou por avançar a passos largos, tendo em vista o ineditismo de algumas formulações e o aperfeiçoamento de outras. Vem à tona sua teorização da exploração capitalista e os conceitos de alienação e fetichismo. Em seu afã de provocar a iluminação das consciências revolucionárias, tece sua visão de classes sociais, dominação política e ideologia. Reinventa termos, propõe novas definições, apropria-se, sempre a partir de uma perspectiva crítica, das teorias pregressas: de Feuerbach, Hegel e do Iluminismo plasma sua visão filosófica do capitalismo e da natureza; de Saint-Simon, Fourier e Proudhon procura uma crítica política coerente do socialismo utópico e propõe o socialismo científico; de Adam Smith e Ricardo constrói seu demolidor ataque à economia vulgar e desmonta uma por uma todas as engrenagens que fazem manter viva a máquina capitalista. Como faz Bottomore, é plena de sentido a indagação de “onde encontrar um estudo do capitalismo moderno comparável a O capital de Marx?”.
Mas há Marx, ou a obra marxiana, e os marxismos. Marxismos estes que, na maioria das vezes, acabaram por obscurecer ou mutilar o pensamento de seu autor. É digno de nota ressaltar que se equivocam os que acham que o corpo teórico de Marx é fechado e que se aplica mecanicamente para qualquer país capitalista e em qualquer época de seu desenvolvimento histórico. Não só o mundo em que vivemos põe e repõe novas contradições a serem resolvidas em uma nova realidade, distinta daquela de meados do século XIX em que Marx vivia, como também não se pode mais acreditar piamente que só caberá à classe operária o papel de sujeito histórico revolucionário e portador de uma missão redentora que resgatará a tão sonhada utopia socialista. Utopia que é sempre necessária, pois se ficarmos unicamente no desgastado slogan de que a política é a arte do possível certamente nada mudará. O impossível sempre esteve presente em todo movimento político progressista e continuará nos corações e mentes de todas as forças propulsoras das mudanças que o mundo contemporâneo coloca em cena. A ação política de hoje requer o movimento feminista e estudantil, as minorias étnicas, a luta pela eco democracia e contra a ideologia industrialista e consumista, etc. Enfim uma luta política que não se esgota no mero aprendizado de verdades acabadas e demodés, mas que a partir delas mesmas, criticamente, incorpore o novo, o diferente, o inusitado e o potencialmente transformador, abrindo espaço para que se alargue nossa percepção do real sem cair no ecletismo e no dogmatismo mistificadores e truncadores das práxis renovadoras. Afinal, não foi o próprio Marx quem chamava a atenção para a necessidade de se descobrir a ideia no próprio real, que por sua vez está em permanente movimento e mudança?
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JEL Classification: B14, Y30
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Set 2024 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 1986