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O Dirigismo no “Estado Neoclássico” e a Beneficência no “Estado Smithiano”

Dirigism in the “Neoclassical State” and Beneficence in the “Smithian State”

RESUMO

Este artigo trata dos benefícios coletivos surgidos da operação de uma economia baseada no mercado, contrastando a explicação neoclássica tradicional com a abordagem de Adam Smith em A riqueza das nações. Seu objetivo é examinar, em ambos os pensamentos, os limites explicativos e o significado de porque um resultado social benéfico emergiu de uma economia baseada no mercado.

PALAVRAS-CHAVE:
Mercado; Adam Smith; teoria econômica neoclássica

ABSTRACT

This paper is concerned with collective benefits arisen from operation of a market-based economy, contrasting traditional Neoclassical explanation with Adam Smith approach in The Wealth of Nations. Its aim is to examine, in both thoughts, the explanatory limits and the meaning of why a beneficent social outcome emerged from a market-based economy.

KEYWORDS:
Market; Adam Smith; neoclassical economics

I. INTRODUÇÃO

A propósito de um quadro de René Magritte, composto basicamente do desenho de um cachimbo e dos dizeres: Isto não é um cachimbo, Michel Foucault escreve o seguinte: “O que produz a estranheza dessa figura não é a contradição entre a imagem e o texto. Por uma boa razão: não poderia haver contradição a não ser entre dois enunciados, ou no interior de um único enunciado. [...] E, entretanto, existe um hábito de linguagem: o que é este desenho? É um bezerro, é um quadrado, é uma flor? Velho hábito que não é desprovido de fundamento: pois toda função de um desenho tão esquemático, tão escolar quanto este, é a de se fazer reconhecer, de deixar aparecer sem equívoco nem hesitação aquilo que ele representa” (Foucault citado em Otte (1991OTTE, M. O Formal, o Social, e o Subjetivo. Trad. Wim Neeleman. SP: Editora UNESP, 1991., p. 46)).

Este artigo parte de uma percepção: a profusão de explanações, implícita ou explicitamente em-nome-da-ciência-econômica, acerca dos benefícios coletivos (ou malefícios) advindos de uma economia de mercado, à semelhança da função de um desenho, está se tornando um (velho) hábito de linguagem. Intensificada a partir dos anos 80 e acelerada pelo colapso do comunismo, essa tendência seguiu firme nos anos seguintes, impulsionada pelo engajamento das políticas neoliberais de desregulamentação e privatização. Somos freqüentemente argüidos por meio de proposições sintéticas tais como “a racionalidade econômica conduz à eficiência”, “o mercado é soberano” etc. Porém, se observarmos cuidadosamente, quando formuladores de políticas econômicas, formadores de opinião, políticos, especialistas ou leigos evocam argumentos similares aos aludidos acima, somos acometidos por uma sensação estranha de que o debate em si estaria encerrado, como se não houvesse nada mais a dizer. Não estamos afirmando que não há divergências quanto à ciência econômica, mas que tudo se passa como se houvesse uma concordância tácita entre quem fala e quem escuta de que a ciência econômica, em última instância, explica.

Não é nosso propósito investigar essa percepção, que, certamente, envolve aspectos ideológicos, culturais, visão de mundo etc. Estamos interessados nela por uma razão muito simples: não queremos correr o risco de perder a objetividade. Afinal de contas, dado o tema deste trabalho, a formulação de sua questão central deveria começar com uma interpelação básica: o que diz a ciência econômica sobre os benefícios de uma economia de mercado? Inequivocamente, essa é uma questão bastante pertinente à ciência econômica. Para Adam Smith, por exemplo, a emergência da sociedade comercial - o estágio social mais desenvolvido - foi uma revolução da maior importância para o bem-estar público, tendo no mercado sua forma de organização e fonte de vitalidade. Além disso, o mercado é a instituição social mais adequada para disciplinar a motivação básica do caráter humano: o autointeresse. Nesse sentido, a existência de uma economia de mercado como fenômeno histórico-cultural é parte integrante e inseparável da fundação da própria ciência econômica. Embora haja diferenças epistemológicas importantes, a existência da economia de mercado tem sido o fio condutor das investigações da ciência econômica até os dias de hoje.

Mas por que, então, falta objetividade no debate em torno das vantagens de uma economia de mercado? Podemos citar três razões para isso. Em primeiro lugar, o debate está comprometido com uma arbitrariedade na utilização de conceitos. Mesmo entre aqueles termos mais utilizados - racionalidade, competitividade, eficiência, papel do mercado, papel do estado etc. - persiste uma confusão sobre o que realmente está sendo dito. “Uma coisa não nos é acessível senão por suas propriedades. A famosa ‘coisa-em-si’ (Ding an sich, Kant) não podemos conhecer” (Otte, 1991OTTE, M. O Formal, o Social, e o Subjetivo. Trad. Wim Neeleman. SP: Editora UNESP, 1991., p. 49). Além disso, ao atribuirmos propriedades a uma coisa, devemos terminantemente separar o cachimbo de sua imagem. A distinção entre ciência econômica e economia real uma diferença fundamental entre conhecimento e vida. indica

Em seguida, relacionada com a primeira colocação, não há uma exposição clara sobre qual teoria ou pensamento econômico se está falando. Em vez disso, somos confrontados com nomes próprios acrescidos ou não de sufixos/prefixos. Se nos referimos anteriormente à crença de que a ciência econômica explica, somese a isso que essa explicação está vinculada a uma subjetividade. Ou seja, a expressão “em-nome-da-ciência-econômica” é para ser tomada ao pé da letra: fulano explica. Decerto, não há como evitar disputas intelectuais, políticas, ideológicas ou corporativistas. Mas há uma razão simples e lógica: a ciência econômica é um conjunto de conceitos, axiomas, teorias; e um conjunto não pode ser um de seus próprios elementos.

Finalmente, falta objetividade por não se reconhecer diferenças na natureza e função das explanações. Em grande parte, a análise que procedemos neste artigo está endereçada a essa questão. É bastante comum associar as prescrições das políticas neoliberais às posições defendidas por Adam Smith. Não é menos significativo que vários expoentes da teoria neoclássica afirmem que esta proviu precisão aos argumentos daquele autor. Objetivamos mostrar que esses argumentos decorrem do não-reconhecimento de tópicos epistemológicos mais profundos, vinculados às explanações.

Em nossa investigação a respeito da explanação do resultado social à luz da teoria neoclássica, tomamos o equilíbrio geral como o fenômeno central que ela objetiva explanar, pois uma alocação ótima de Pareto - o resultado socialmente desejado segundo a economia neoclássica - emergiria se um equilíbrio geral existisse.

Por outro lado, argumentamos que a explanação do resultado social beneficente, em A Riqueza das Nações, segue a seguinte proposição: há uma relação positiva entre a promoção do interesse social e o autodomínio das virtudes.

Desconsiderando por ora a importância da definição precisa de um conceito, podemos observar que em ambos os pensamentos o resultado social beneficente decorre de um “equilíbrio”. No caso da teoria neoclássica, trata-se de uma posição escolhida e tecnicamente precisa. Quanto a Adam Smith, estamos falando da confluência da ação virtuosa dos homens.

II. O PARADIGMA DO EQUILÍBRIO GERAL

II.1 Protocolos de leitura

Em linhas gerais, podemos enunciar as fundações da teoria neoclássica nos seguintes termos: a teoria da escolha racional identifica o agente com um conjunto de objetivos (relação de preferência) e presume que ele é capaz de comparar a satisfação desses vários objetivos (relação completa), existindo uma consistência interna no resultado de suas escolhas (relação transitiva); o equilíbrio geral é uma situação de mercado em que um vetor de preços iguala (dadas certas restrições importantes) os vetores completos dos consumos e produções finais de todos os mercados; e o individualismo metodológico é a visão da ciência na qual todo fenômeno social deve ser descrito a partir do indivíduo.

A teoria da ação racional é bastante controvertida, tanto na ciência econômica quanto em outros campos da ciência social. Num comentário sobre esta contenda, Frank Hahn escreveu que: “Os economistas provavelmente cometeram um erro ao adotar a nomenclatura de ‘racional’, quando tudo que ela significa são cálculos corretos e uma personalidade ordenada. O termo incita filósofos e outros a aplicarem a teoria inteira com demasiada significância” (Hahn, 1979, p. 12). Embora possa parecer sensato e despretensioso, o comentário de Hahn está longe de representar os motivos dos defensores ou dos críticos da racionalidade neoclássica. Por um lado, economistas e outros cientistas sociais têm utilizado a teoria racional para analisar temas não econômicos, tais como discriminação, fertilidade, crimes, casamentos, educação etc., dando origem ao termo ironicamente denominado “‘imperialismo econômico’” (Swedberg, 1990SWEDBERG, R. Economics and Sociology: Redefining Their Boundaries:Conversations with Economists and Sociologists. Princeton: Princeton University Press , 1990., p. 325). Ao comentar a afirmação de Hahn, o filósofo Martin Hollis enfatiza que “o termo ‘racional’ ocorre essencialmente em axiomas a priori cuja veracidade é crucial para a utilização descritiva, explanatória e prescritiva da teoria” (Hollis, em Hahn (1979HAHN, F., HOLLIS, M.(eds.). Philosophy and Economic Theory. NY: Oxford University Press, 1979., p. 12)).

O desenvolvimento da teoria do equilíbrio geral deu-se a partir da escola marginalista, no fim do século 19. Léon Walras foi seu representante mais expressivo e o primeiro economista a postular uma teoria completa sobre o equilíbrio geral. Embora suas soluções sejam consideradas insatisfatórias, os principais objetivos da teoria do equilíbrio geral, ainda nos dias de hoje, foram estabelecidos por ele. A abordagem do equilíbrio geral pressupõe a economia como um sistema fechado e interdependente. Como um sistema fechado, significa que não há trocas com seu ambiente externo; e por ser interdependente, todos os mercados estão inter-relacionados. Quando avaliamos os efeitos de uma perturbação no ambiente econômico, os níveis de equilíbrio do conjunto inteiro das variáveis na economia necessitam ser recompilados.

A otimalidade que Walras postulou para o equilíbrio competitivo estava associada à maximização individual da utilidade. Foi o economista e sociólogo Vilfredo Pareto que proviu um conceito genuinamente social. Ele sugeriu a seguinte definição: uma alocação de recursos na economia é ótima (ou eficiente) se não existir nenhuma outra alocação factível capaz de melhorar a situação de alguma pessoa sem piorar a de outra. Além disso, mostrou que um equilíbrio competitivo produziria uma alocação ótima de recursos. Este conceito foi modelado de maneira rigorosa por economistas posteriores a Pareto: nos dias de hoje, é o núcleo do que vem a ser um resultado social ótimo, do ponto de vista da teoria neoclássica.

Foram necessários 80 anos, desde a publicação de Walras, para que a existência do equilíbrio competitivo fosse rigorosamente provada. Foi somente em 1954 - no trabalho clássico Existence of an Equilibrium for a Competitive Economy de Arrow e Debreu - que duas das questões mais antigas e mais importantes da economia neoclássica foram demonstradas: a viabilidade e a eficiência da economia de mercado, sob as premissas neoclássicas do agente racional e de outras asserções importantes. Resumidamente, as seguintes premissas são suficientes para a existência do equilíbrio geral (Arrow, 1983, p. 119):

  1. as preferências dos consumidores são racionais, contínuas, não saciadas localmente e convexas;

  2. o conjunto de produção de todas as firmas é convexo, fechado e de “livredescarte”, e as firmas são maximizadoras de lucro;

  3. não existem externalidades e bens públicos;

  4. a economia é irredutível.

Sobre essas condições, Arrow fez o seguinte comentário:

“É talvez interessante observar que asserções ‘atomísticas’ em relação aos consumidores e firmas não são suficientes para se estabelecer a existência do equilíbrio; as ‘asserções globais’ (3) e (4) são também necessárias” (Arrow, 1983ARROW, K. J. Collected Papers of Kenneth J. Arrow - General equilibrium. Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1983., p. 119).

Individualismo metodológico

Ainda que o individualismo metodológico (doravante referido como IM) seja amplamente aceito e utilizado, discussões epistemológicas da teoria neoclássica quase sempre passam ao largo das questões que envolvem essa doutrina explanatória. Conquanto tenha mantido o termo cunhado por Schumpeter, a base teórica do IM na ciência atual é incomparavelmente mais abrangente do que o conceito schumpeteriano.1 1 Schumpeter foi o primeiro a cunhar este termo. Para ele, o axioma do IM tinha somente um valor práticoinstrumental, destituído de qualquer caráter ético, político ou factual, enfim sem nenhum valor cognitivo. Ver Silva (1994, p. 138). Numa perspectiva mais ampla, Rajjeve Bhargava propõe a seguinte tese:

“É freqüentemente postulado que o individualismo metodológico [...] é verdadeiro, mas trivial, e que o debate entre individualistas e não individualistas é fútil. Por defender que o individualismo metodológico não é nem trivial nem uma verdade óbvia, o presente estudo desafia essa asserção e busca ressuscitar um debate já desgastado” (Bhargava, 1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 1).

Segundo o autor, uma das razões para o consenso e o silêncio em torno do IM deve-se à literatura caótica formada em torno deste tema. As formulações existentes são confusas e obscuras, sendo mais uma miscelânea de doutrinas interconectadas do que propriamente uma tese coerente. Muitos estão a favor ou se opõem à doutrina sem distinguir suas diferentes formas. Freqüentemente, a mesma pessoa expõe diferentes versões em diferentes épocas ou até, de maneira confusa, versões contrastantes ao mesmo tempo. Com o intuito de trazer alguma ordem na discussão do IM, Bhargava inicia seu trabalho com uma exposição clara das diferentes ramificações dentro do IM, identificando suas razões e variantes mais importantes.

“Isto não é uma empreitada arrogante, pois existe ampla concordância no meio acadêmico de que o individualismo metodológico nunca foi enunciado com clareza suficiente que permita sua própria avaliação. O capítulo 1 busca remediar esta deficiência” (Bhargava, 1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 14) [o grifo é nosso].

Das considerações citadas, assumimos que o fundamento explanatório da teoria neoclássica deve ser apreendido no IM que está postulado em sua estrutura e, ao procedermos a esta discussão, seguimos a catalogação proposta por Bhargava acerca das versões existentes mais plausíveis do IM. Além disso, adotamos, como premissa de trabalho utilizar o modelo Arrow-Debreu de equilíbrio geral, como referência principal na exposição e na busca dos objetivos a que nos propomos.

II.2 O individualismo metodológico e o modelo Arrow-Debreu

A doutrina do individualismo metodológico é vista atualmente como tendo três componentes distintos.2 2 Arrow e Buchanan parecem sugerir posições divergentes a esse respeito. Para Arrow (1994), o IM é apenas uma tese explanatória, onde categorias sociais são sempre necessárias; Buchanan postula que tudo deve e pode ser explanado em termos individuais [Buchanan em Eatwell (1987, v. 1, p. 585)]. O individualismo explanatório (IE) afirma que todo fenômeno social deve ser explanado nos termos dos indivíduos e de suas propriedades. O individualismo ontológico (IO) pressupõe que somente os indivíduos e suas propriedades existem, de onde todas as entidades e propriedades sociais podem ser reduzidamente identificadas. De acordo com o individualismo semântico (IS), o significado das palavras relacionadas a entidades sociais ou frases que contenham predicados sociais pode ser reduzido ao significado dos vocábulos que remetem a entidades individuais ou frases contendo somente predicados individuais.

Bhargava apresenta cinco versões para o IE, que se diferenciam pela natureza e função da explanação. Três dessas versões são classificadas como pertencendo ao modelo dedutivo-nomológico (D-N). Formalmente, o enunciado do que é para ser explanado, o explanandum, é deduzido de um conjunto de, pelo menos, duas premissas, os explanans. Uma consiste nas condições iniciais e a outra, em uma lei. As duas outras versões, denominadas de intencionistas, não são nem dedutivas nem nomológicas.

Da catalogação proposta por Bhargava (1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., pp. 22-52) sobre as variantes existentes mais plausíveis do IE, claramente a micro-redução corresponde àquela postulada no modelo Arrow-Debreu. Ela é dedutiva, nomológica (modelo D-N), onde o comportamento de um todo estruturado é reduzidamente explanado nos termos das leis que governam as partes do todo. A explanação da microrredução

“envolve o postulado de que todas as leis sociais e teorias devem ser reduzidas a leis e teorias sobre os indivíduos com a ajuda de proposições de identidade. Aqui o social deve ser proclamado como sendo nada mais do que uma coleção de indivíduos, mais precisamente, idêntico aos indivíduos e suas inter-relações” (Bhargava, 1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 26).

As proposições de identidade implicam explanações conhecidas como fundamentais, ou seja, aquelas que não requerem explanações adicionais. “Não perguntamos por que a água é identificada com H 2O. Por outro lado, se apenas uma correlação existisse entre uma amostra de água e uma estrutura molecular H 2O, seria legítimo buscar explanações adicionais” (Bhargava, 1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 69).

Em termos do modelo Arrow-Debreu, o explanandum é o equilíbrio geral e os explanans - lei e condições iniciais - são, respectivamente, as condições “atomísticas” e as condições “globais”. Assim, uma condição necessária ao êxito da explanação do equilíbrio geral é que a ação racional do agente seja uma lei da ação humana.

Hempel, um dos expoentes do modelo D-N, escreveu extensivamente sobre o papel das leis nas explanações. Segundo o autor, as leis não apenas confirmam, mas também estabelecem o status explanatório de um conjunto de fatos. Sem o conhecimento de leis, podemos conectar fatos, mas essa conexão seria destituída de qualquer valor explanatório: “no sentido ordinário, explanar não significa explanar por meio de leis. [...] Na ciência, explanar alguma coisa significa justificá-la com o auxílio de leis” (Hempel citado em (Bhargava, 1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 102)).

Mas por que as leis haveriam de ser necessárias? Numa breve reflexão, lembremos que estamos falando de um modelo dedutivo. Um argumento dedutivo é válido quando suas premissas, se verdadeiras, fornecem provas definitivas para sua conclusão. Em segundo lugar, somente as leis satisfazem às condições contrafactuais e subjuntivas. Se um evento A não tiver ocorrido, estamos seguros de que um evento B também não deveria ter ocorrido. Na condição subjuntiva, se C for acontecer, então D deveria ocorrer. Assim, as leis tornam as condições iniciais explanatoriamente relevantes.3 3 Sejam A as condições atomísticas, G as condições globais e EG o equilíbrio geral. Utilizando-nos da linguagem da lógica dedutiva, temos que: A • G  EG. Se A é verdadeiro, G é verdadeiro, então EG é verdadeiro. Quando A é uma lei, A é sempre verdadeiro. Assim: se G é verdadeiro, EG é verdadeiro. Se EG é falso, então G é falso.

II.3 Limites explanatórios

A teoria neoclássica se depara com um sério dilema “em relação à interpretação apropriada do seu conceito de agente individual” (Walsh, 1996WALSH, V. Rationality Allocation, and Reproduction. NY: Oxford University Press , 1996., p. 12). Por um lado, fortes considerações impelem a teoria neoclássica a interpretar o agente individual como uma pessoa. “A pessoa individual, aclamada como independente, racional e livre para escolher e agir, tem sido certamente o protagonista do valor neoclássico de vida” (Walsh, 1996, p. 13). Mas, quando transportado para os modelos formais, há fortes razões para não se aderir a essa interpretação, pois as exigências do que vem a ser um agente são bastante parcimoniosas quando comparadas à complexidade do ser humano.

Em nossa análise sobre os limites explanatórios do modelo Arrow-Debreu, assumimos as pressuposições que se seguem. Quanto ao dilema agentes individuais versus pessoas individuais, vamos adotar uma hipótese mais relaxada, e há uma boa razão para isso: na microrredução, quando impomos a exigência de que entidades sociais devem ser reduzidas a entidades individuais, estamos falando do indivíduo típico (geral) e não do indivíduo real (particular). A propósito das demais hipóteses e teorias do modelo, sintetizadas pelas condições “atomísticas” e “globais”, vamos assumi-las como dadas, excetuando-se a exigência de que a ação racional do agente seja uma lei da ação humana.

A existência de leis da ação humana

Há inumeráveis evidências sobre falhas da escolha racional quando testada empiricamente. Mas o quanto essas observações experimentais podem colocar em dúvida a ação do agente racional vai depender de como ela é interpretada. Se é assumido que ela possui conteúdo empírico, então, na interpretação descritiva, tais desvios, se observados, representariam uma evidência contra a teoria. Por outro lado, vários teóricos4 4 Heap (1992, pp. 47-9). não estão preocupados com essas falhas, destacando-se três linhas de argumentação. Numa linha, a escolha racional é normativa. Então, claramente, observações de escolhas reais não podem constituir um desafio direto: o objeto de uma teoria normativa é dizer como as pessoas devem escolher. Em outra, argumenta-se que a escolha racional tem um significado apenas como bloco de construção para teorias que fazem previsão do comportamento das pessoas na forma agregada. Em tais teorias, a hipótese da perfeita racionalidade individual tem o status similar àquela da inexistência do atrito na mecânica. Um argumento final de defesa, comum entre os economistas, é negar a relevância das observações experimentais porque elas não foram coletadas a partir de escolhas reais.

Considerando que questões normativas não estão no foco deste artigo e que a ação racional falha em testes empíricos, vamos discutir a última linha de argumentação. Nessa perspectiva, alguns expoentes do IM postulam a existência de leis da ação humana não como uma lei empírica, mas onde as condições nomológicas sejam teóricas. Essa é a posição adotada por Churchland, que diz ter provido uma verdadeira lei (L) da ação humana.5 5 Lei L: L(X) (F) (A) (se [1] X quer F, e [2] X acredita que A é uma maneira de obter F sob as circunstâncias, e [3] não existe ação que X acredite ser uma maneira para ele obter F, sob as circunstâncias, que X julgue ser tão preferível para ele, ou mais preferível para ele do que A, e [4] X não tem outro querer, sob as circunstâncias, que exceda seu querer, F, e [5] X tem um conhecimento prático de A, e [6] X é capaz de A, Então [7] X toma a ação A.) Rosenberg (1980, p. 78) Segundo esse autor, a lei L é teórica porque não é falsificável, independentemente da estrutura inteira dos princípios das quais ela é parte integral. Além disso, a estrutura conceitual na qual ela está embutida possui todas as características relevantes, estruturais e lógicas das teorias científicas. É nomológica, e não simplesmente um princípio analítico apriorístico, por causa do papel explanatório que ela desempenha em nosso julgamento sobre fatos (Rosenberg, 1980ROSENBERG, A. “Obstacles to the Nomological Connection of Reasons and Actions”, Philosophy of Social Science, 10, 1980, p. 79-91., p. 80).

Para Rosenberg, a centralidade que L pode ter em nosso plano conceitual é um reflexo do fato de que os significados de seus termos chaves, “quer”, “acredita”, “julga”, “prefere”, “conhece”, “é capaz”, etc., “são dados por apelar aos papéis causais que nós acreditamos que os itens denotados por estes termos desempenham.” (Rosenberg, 1980ROSENBERG, A. “Obstacles to the Nomological Connection of Reasons and Actions”, Philosophy of Social Science, 10, 1980, p. 79-91., p. 81) Embora seja uma generalização sem exceção, L falha em ser uma lei porque “não somente substancia a citação das razões como as causas das ações, mas também constitui o único critério disponível para identificar essas causas e efeitos” (Rosenberg, 1980ROSENBERG, A. “Obstacles to the Nomological Connection of Reasons and Actions”, Philosophy of Social Science, 10, 1980, p. 79-91., p. 83). Essa definição-avaliação circular implica que não temos em L uma caracterização geral independente para seus termos e “a ausência dessas caracterizações isola L de generalizações que podem de forma causal explaná-la e das generalizações e proposições singulares que ela pode de maneira causal explanar” (Rosenberg, 1980ROSENBERG, A. “Obstacles to the Nomological Connection of Reasons and Actions”, Philosophy of Social Science, 10, 1980, p. 79-91., p. 85). De forma mais ampla, Rosenberg argumenta que não “existem relações causais nas quais figuram desejos, crenças e ações, em virtude de eles serem desejos, crenças e ações” (Rosenberg, 1980ROSENBERG, A. “Obstacles to the Nomological Connection of Reasons and Actions”, Philosophy of Social Science, 10, 1980, p. 79-91., p. 90). A não ser, é claro, que abandonemos a condição de que tais relações são generalizações, sem exceção.

Tomando os argumentos de Rosenberg6 6 Bhargava (1992, pp. 95-6) utilizou dois outros pensadores para corroborar a inexistência de leis teóricas nomológicas da ação humana: Van Fraassen (1980) e Cartwright (1983). sobre a inexistência de leis teóricas nomológicas da ação humana, torna-se claro que não podemos atribuir à teoria da escolha racional o status nomológico. Da mesma forma que a lei L, a teoria da escolha racional falha em prover uma caracterização independente para os termos como preferência, racionalidade, utilidade etc. Uma vez que a teoria da escolha racional não é uma lei da ação humana, não podemos mais afirmar que o argumento dedutivo (a explanação do equilíbrio geral) é válido quando prevalecem as condições antecedentes (ausência de falhas de mercado).7 7 A • G  EG: quando A não é uma lei, A pode ser verdadeiro ou falso. Então: Se G é verdadeiro, não podemos concluir que EG é verdadeiro. Se EG é falso, não podemos concluir que G é falso.

Razões ontológicas

Bhargava propôs duas versões distintas para o IO, em que cada uma tem justificativas e razões internas próprias. As razões ontológicas buscam substanciar por que a doutrina é individualista, ou seja, por que as explanações individualistas são apropriadas para os fatos sociais. As razões epistêmicas estabelecem as credenciais explanatórias da doutrina. Por ser uma atividade epistêmica, a explanação deve ser distinguida de outros atos por uma intenção característica de aprimorar nossa compreensão com respeito a alguma coisa que, noutras palavras, envolve um interesse cognitivo (Bhargava, 1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 37).

Dadas as condições “atomísticas” e “globais”, a economia Arrow-Debreu é um sistema fechado, sem trocas com seu ambiente externo; mesmo entre os próprios agentes, toda interação é mediada exclusivamente pelo mercado: não há a menor consideração a contextos particulares. Estamos falando, então, não apenas de um indivíduo racional ou de um comportamento típico, porém, e mais importante ainda, de um indivíduo abstrato. Como observou Walsh (1996WALSH, V. Rationality Allocation, and Reproduction. NY: Oxford University Press , 1996., p. 134), quando lemos os postulados do modelo Arrow-Debreu, podemos ver claramente que uma alocação racional dos recursos pode ser qualquer alocação consistente que tenha sido aprovada por alguém, quer seja um santo quer seja alguém como Gengis Kahn.

Tratando-se das ciências naturais, físicas ou exatas, até que poderíamos conduzir nossas investigações independentemente de contextos particulares, excetuando-se, é claro, aqueles pressupostos pela prática científica. Mas, nas ciências sociais, isso significaria desvincular o contexto e interesse individual do fenômeno social geral que queremos explanar, quando o último só pode influenciar ou ser influenciado pelo primeiro. Esta idéia de que existe uma liberdade total na formulação de conceitos, sujeita somente à condição da consistência ou da existência da lógica, não deixa de ser surpreendente e até mesmo paradoxal, como se o geral não existisse independentemente como algo real; que sua existência não fosse ontológica, mas lógica.

O defeito explanatório do modelo Arrow-Debreu não reside somente no fato de a escolha racional falhar em ser uma lei da ação humana. Por fechar as portas às motivações cognitivas, sua única saída continua sendo a componente explanatória. Mas, como mostramos, ela é bastante problemática. A concepção da explanação científica independente dos indivíduos, de seus interesses e contextos, foi intensamente influenciada pelo Positivismo, que teve significativa ascendência sobre a metodologia científica até os anos 50. Entretanto, essa noção tem, hoje em dia, muito poucos adeptos representativos na comunidade científica.8 8 Ver Bhargava (1992, p. 112), Walsh (1996, p. 176), Hausman, (1999, p. 209). “A esperança por um método formal, capaz de ser isolado de nossos julgamentos sobre a natureza do mundo, parece ter sido frustada. [...] A razão plena para acreditar que o método científico não devesse ter pressuposições éticas (ou metafísicas) era que ele fosse suposto ser um método formal, a despeito de considerações ao contrário” (Putnan em Walsh (1996WALSH, V. Rationality Allocation, and Reproduction. NY: Oxford University Press , 1996., p. 5)).

III. O PARADIGMA DO AUTODOMÍNIO DAS VIRTUDES

III.1 Protocolos de leitura

Mais reconhecido como o fundador da ciência econômica, Adam Smith tem sido tradicionalmente identificado como o precursor da liberdade irrestrita dos mercados e da ação individual egoísta, produzindo, nesse contexto, resultados coletivos beneficentes. Nessa tradição, as políticas neoliberais das duas últimas décadas parecem coincidir e comprovar as recomendações que Smith teria feito em sua Economia Política. Entretanto, o enorme crescimento da pesquisa sobre Smith a partir da 1970 - que coincide com a publicação completa de sua obra - tem continuamente trazido diferentes, se não múltiplas, interpretações.

Um tema recorrente nas discussões refere-se à relação entre a filosofia moral e a ciência econômica em Smith. Conhecido como ‘o problema de Adam Smith’, questiona-se se há consistência entre a Teoria dos Sentimentos Morais e A Riqueza das Nações. “É consenso nos dias de hoje que o problema de Adam Smith é um falso problema, baseado numa falsa exegese e que não há contradição, por exemplo, entre a análise do auto-interesse nos dois livros” (Brown, 1997BROWN, V. “Mere inventions of the imagination: a survey of recent literature on Adam Smith.” Economic and Philosophy, 13 (1997), 281-312., p. 297).

Um aspecto mais amplo da relação entre a filosofia moral em Smith e sua análise econômica está relacionado ao julgamento de Smith acerca da sociedade comercial de sua época. Na visão tradicional, as partes não econômicas dos trabalhos de Smith são largamente irrelevantes ao seu pensamento econômico, ou estão além dos interesses dos economistas. Entretanto, o enorme crescimento das interpretações interdisciplinares “rejeita essa visão, postulando que A Riqueza das Nações deve ser compreendida no contexto de outros trabalhos de Smith” (Brown, 1997BROWN, V. “Mere inventions of the imagination: a survey of recent literature on Adam Smith.” Economic and Philosophy, 13 (1997), 281-312., p. 298). Embora não se possa falar em consenso, Brown (1997BROWN, V. “Mere inventions of the imagination: a survey of recent literature on Adam Smith.” Economic and Philosophy, 13 (1997), 281-312., pp. 298-300) identifica, de maneira abrangente, quatro posições que buscam correlacionar a filosofia moral de Smith com sua análise econômica.

“Primeiramente, argumenta-se que Smith escreveu fundamentalmente como um ‘economista liberal’ advogando o capitalismo liberal” (Brown, 1997BROWN, V. “Mere inventions of the imagination: a survey of recent literature on Adam Smith.” Economic and Philosophy, 13 (1997), 281-312., p. 298). De acordo com essa interpretação, moral e política são subjugadas pela economia, pois é ela que, em última instância, determina os objetivos e limites da ordem social. “Em segundo lugar, Smith é visto como um ‘economista moral’ que propôs uma visão ética da sociedade comercial, na qual uma ordem de mercado competitivo incorpora ou facilita certos valores normativos” (Brown, 1997BROWN, V. “Mere inventions of the imagination: a survey of recent literature on Adam Smith.” Economic and Philosophy, 13 (1997), 281-312., p. 298). Noutros termos, os mecanismos de mercado canalizam adequadamente o auto-interesse dos indivíduos, promovendo o comportamento prudente deles. “A terceira abordagem envolve a visão de Smith como ‘filósofo moral que se tornou economista político’, com uma visão positiva da agenda política em melhorar não apenas a eficiência de uma ordem de mercado, mas, mais importantemente, as fundações morais da sociedade comercial” (Brown, 1997BROWN, V. “Mere inventions of the imagination: a survey of recent literature on Adam Smith.” Economic and Philosophy, 13 (1997), 281-312., p. 299). Por último, uma abordagem um tanto destoante das demais, que busca ressaltar “as ambivalências e contradições dos trabalhos de Smith, dando mais atenção às passagens que incluem denúncias da corrupção da moral na sociedade comercial” (Brown, 1997BROWN, V. “Mere inventions of the imagination: a survey of recent literature on Adam Smith.” Economic and Philosophy, 13 (1997), 281-312., p. 300).

Uma pesquisa sobre comentadores de Smith, a exemplo daquela que foi sumariada acima, sugere que a busca por algum consenso sobre a leitura de sua obra está se tornando crescentemente problemática. Há inúmeras interpretações, e continuamente vão surgindo outras, sob diferentes contextos. Cremos que nossa discussão está bastante próxima da “terceira abordagem” mencionada acima. Aliás, dois dos trabalhos citados por Brown (1997BROWN, V. “Mere inventions of the imagination: a survey of recent literature on Adam Smith.” Economic and Philosophy, 13 (1997), 281-312.) - Knud Haakonssen (1981HAAKONSSEN, K. The Science of a Legislator - The Natural Jurisprudence of David Hume & Adam Smith. New York: Cambridge University Press, 1981.) e J. Muller (1993MULLER, JERRY Z. Adam Smith in His Time and Ours: Designing the Decent Society. Princeton: Princeton University Press, 1993.) - influenciaram em muito nosso entendimento sobre o pensamento de Adam Smith.

Na discussão que se segue, buscamos mostrar que o princípio do “autodomínio das virtudes” formulado na Teoria dos Sentimentos Morais é a chave para entender o resultado social beneficente almejado por Smith em A Riqueza das Nações.

O autodomínio das virtudes

Sobre o caráter do indivíduo, Smith considera dois aspectos distintos: o primeiro está relacionado com a sua própria felicidade - a virtude da prudência (afetos egoístas) - e orienta a grande maioria das ações dos homens. “Sem dúvida, todo homem está muito mais profundamente interessado no que diz respeito imediatamente a si, do que no que diz respeito a outro homem qualquer” (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., pp. 102-03). Evidentemente, as fortes motivações passionais em favor da auto-preservação e do auto-interesse não representavam nenhuma novidade. A inovação de Smith foi propor um mecanismo para explicar o que nos leva a ter consciência das regras gerais de moralidade - as quais, segundo o autor, emergem como conseqüências não intencionadas de inúmeras experimentações individuais de avaliação moral e quando são universalmente aceitas, tornam-se o padrão de conduta (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., pp. 139-94).

O princípio da simpatia mútua põe em movimento o mecanismo da aprovação social - uma motivação primária a todos os homens - pela interação de dois fatores psicológicos: nosso desejo egoísta pela aprovação e nossa capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros. Mas, como isso envolve a aprovação de espectadores reais, está fadado ao desacordo, porque estamos diferentemente relacionados ao nosso comportamento em comparação com nossos espectadores. Somos naturalmente parciais e, num certo sentido, mais bem informados. É precisamente esse desacordo que nos induz a procurar por um terceiro ponto de vista: aquele de um espectador imparcial. Para Smith, o julgamento que fazemos de nós próprios e dos outros não era mediado pelo espectador real, nem pelo amor a Deus, nem pelo temor ao Estado, nem por uma faculdade da natureza, mas sim pela identificação imaginável com um padrão de conduta - o padrão que utilizaríamos para julgar nossas ações como se fôssemos um espectador imparcial de nós próprios e daqueles afetados por nossas ações. Em última instância, isso significa que adquirimos consciência moral por meio de um processo de introspecção9 9 Examinar a idéia do espectador imparcial sob a luz do superego, instância soberana da personalidade descrita por Freud em sua teoria do aparelho psíquico, não é somente esclarecedor, mas também corrobora os argumentos de vários autores (Muller, 1993, p. 100) sobre o papel seminal, raramente apreciado, da Teoria dos Sentimentos Morais no desenvolvimento da sociologia e das ciências que tratam da psique humana. Smith nunca discutiu a origem do espectador imparcial, mas creio que o podemos depreender, facilmente, das inumeráveis vezes que ele mencionou e utilizou este conceito, que se tratava de uma “instância psíquica”, cujo papel, a exemplo do superego, é semelhante ao de um juiz ou censor relativamente às motivações egoístas (ver, p. e., as seguintes páginas em (Smith, 1999, pp. 25, 103, 143, 160, 164, 165, 328, 329). resultante do intercurso social.

O segundo aspecto do caráter do indivíduo está relacionado a como ele pode afetar a felicidade dos outros - virtudes da beneficência e da justiça. Somos benevolentes para com as pessoas que nos são mais íntimas, aquelas com quem estamos mais habituados a simpatizar, decrescendo a intensidade desse sentimento conforme diminuem os laços afetivos. Grande parte da população, que Smith denominou como o “homem do sistema”, está tão absorvida pelo seu próprio plano particular que, diferentemente do estadista, é incapaz de levar em consideração o sistema geral de que ela faz parte. Desta forma, a mais ampla benevolência pública que pode exercer algum efeito considerável é a dos estadistas (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., pp. 273-96). A justiça, que se refere fundamentalmente ao cumprimento da lei, é tratada como uma virtude à parte, no sentido de ter que ser cumprida mesmo que seja necessário o uso da força (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., pp. 97-114).

Embora do ponto de vista ideal a avaliação moral devesse proceder dos motivos e intenções, na prática, devido às influências da fortuna (acaso, sorte, destino), são as reais conseqüências que contam. Independentemente de sua origem, quando um objeto nos causa prazer, somos prontamente gratos. Inversamente, quando nos traz dor, nossa reação imediata é o ressentimento. Devido ao mundo julgar “pelo fato e não pela intenção tem sido a queixa de todos os tempos e o maior desestímulo à virtude” (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., p. 130). A conclusão acima é da maior importância, pois dá sustentação ao argumento de Smith a favor da moralidade como guia da ação externa num mundo sob o império da fortuna. Assim, quanto mais virtuosamente agimos, mais atenuamos a fortuna.

O perfeito conhecimento das regras gerais não é suficiente para que os homens ajam de acordo com elas. É preciso ter o autodomínio das virtudes (justiça, beneficência e prudência) para agir de forma determinada quando suas próprias paixões podem induzi-lo a violar todas as regras que ele mesmo conhece e aprova (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., pp. 327-30). Smith acreditava que a maioria dos homens agia conforme a virtude da prudência e, portanto, buscava o ‘mérito pelo louvor’. Entretanto, era nas camadas médias e inferiores da vida que poderíamos “esperar considerável grau de virtude, e, felizmente para a boa moral da sociedade, essa é a situação da maior parte dos homens” (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., p. 74). Mas isso não significava que a pobreza fosse em si virtuosa e, contrariamente, a riqueza. Todos os homens são movidos pelos seus próprios interesses. Porém, a influência da fortuna, que poderia manifestar-se por meio do tráfego de influências, de informações relevantes ou arranjos institucionais em benefício próprio, e não coletivo, evidentemente, estava ao alcance de uma minoria privilegiada.

Desta forma, quando da promoção do interesse social, torna-se imprescindível que o auto-interesse dos homens esteja sendo canalizado por meio de instituições sociais adequadas e que estas sejam, o máximo possível, imparciais a todos os homens, no sentido claro de que as ações auto-interessadas também devem ser pautadas pela busca do mérito (autodomínio da virtude da prudência). Concomitantemente, que a lei esteja sendo cumprida (autodomínio da virtude da justiça) e que o estadista esteja acomodando “seus interesses públicos aos hábitos e preconceitos estabelecidos do povo, e ainda, quanto possível, remediará as inconveniências que podem resultar da ausência destas regras” 10 10 Smith (1999, p. 292) (autodomínio da beneficência).

III.2 “A Riqueza das Nações” ou a investigação da sociedade comercial na época de Adam Smith

Da breve exposição que fizemos acima sobre o autodomínio das virtudes, podemos observar que sua relação positiva com a promoção do interesse social pressupõe, em primeiro lugar, uma “teoria sociopsicológica”. Ou seja, embora movidos por paixões egoístas, os homens buscam a aprovação social e são capazes de internalizar regras sociais. Em segundo lugar, uma “teoria da justiça”, na qual o cumprimento da lei traduz-se como o pilar da sociedade. Finalmente, “critérios morais”: é por meio dos estadistas que se pode obter a mais ampla benevolência pública, e a avaliação moral deve proceder dos motivos e intenções. Para facilitar a exposição, vamos chamar esses quatro componentes de “teoria moral”.

Ao longo da Teoria dos Sentimentos Morais, Smith deixa claro que as motivações e embates das paixões humanas somente poderiam ser avaliados num determinado contexto, em casos particulares.

“Quando um filósofo examina por que se aprova a humanidade e se condena a crueldade, nem sempre forma para si de modo claro e distinto o conceito de uma ação particular, seja de crueldade, seja de humanidade, mas habitualmente se contenta com a idéia vaga e indeterminada que as designações gerais destas qualidades sugerem. No entanto, é só nesses casos particulares que a conveniência ou inconveniência, mérito ou demérito das ações são óbvios e discerníveis” (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., p. 230).

Se, por um lado, dispomos de uma “teoria moral”, por outro, precisamos ter o conhecimento histórico do contexto em que estamos interessados: para Smith, a discussão analítica está integrada a um processo histórico particular. Conforme observou Haakonssen (1981HAAKONSSEN, K. The Science of a Legislator - The Natural Jurisprudence of David Hume & Adam Smith. New York: Cambridge University Press, 1981., p. 62), a visão de Smith sobre os homens, moralmente falando, nunca é uma esquematização: eles estão sempre vivendo em uma sociedade e, desta forma, num contexto de aspirações, valores e ideais. É dessa perspectiva que tomamos A Riqueza das Nações como uma discussão particularizada da teoria moral. Entretanto, não está no escopo deste artigo examinar em que medida procede, historicamente falando, a investigação da sociedade comercial feita por Smith. Como mencionamos anteriormente, nosso objetivo é correlacionar o princípio do autodomínio das virtudes com a explanação do resultado social em A Riqueza das Nações.

A sociedade comercial como uma revolução da maior importância para o bem-estar público

Ao proceder a uma análise das fundações histórica e institucional da sociedade comercial em A Riqueza das Nações, esquematizada por quatro estágios sociais - o estágio dos caçadores, dos pastores, da agricultura e da sociedade comercial -, Smith retoma um tema chave de sua filosofia moral: a importância das instituições na moral e na ordem social. Entretanto, ele não pretendeu, em sua análise dos estágios sociais, propor uma teoria exaustiva da história, mas que ela fosse tomada como um método para esclarecer o relacionamento entre as formas de propriedade, família, governo, defesa coletiva e produção econômica. Sua conclusão foi uma das demonstrações mais claras e contundentes sobre o princípio de que uma ordem social beneficente emergiria como conseqüência não intencionada das ações individuais.

Smith considerava que a sociedade comercial tinha proporcionado, tanto moral quanto materialmente falando, grandes vantagens sobre os estágios anteriores; e, se a sociedade comercial não era perfeita, e até passível de corrupção e injustiça, os outros estágios da história eram piores. Incluídos em seus benefícios estavam: uma maior liberdade e autonomia nas relações sociais, o fortalecimento de um poder central, o florescimento das cidades, a divisão plena do trabalho, a prosperidade do comércio e das manufaturas, tendo no mercado sua forma de organização e fonte de vitalidade, tornando viável a melhoria contínua nas condições de vida dos trabalhadores e na riqueza geral da nação (estado de progresso).

Entretanto, podemos observar que a dinâmica da “teoria de crescimento econômico”, formulada nos Livros I e II de A Riqueza das Nações, depende não apenas das leis da natureza, mas é principalmente impulsionada pela natureza humana: dado o capital e o estado tecnológico, a espiral de crescimento (estado de progresso) vai depender, entre outras coisas, da especialização na profissão, da parcimônia, da consideração com o longo prazo e da preferência pelo trabalho produtivo. Como todas as boas teorias, Smith supunha que sua teoria de crescimento econômico seria universal, mas as motivações sociopsicológicas dos homens são tratadas em sua “teoria moral” que, da mesma forma que sua “teoria econômica”, é também universal. À semelhança do espectador imparcial na Teoria dos Sentimentos Morais, em A Riqueza das Nações foi considerado um mecanismo institucional - a competição por meio do mercado - que agiria para prover a disciplina do nosso auto-interesse. Por meio das relações mediadas pelo mercado, os homens empenhamse em ser merecedores do reconhecimento dos outros, estabelecendo-se, assim, julgamentos deles próprios por meio do olhar imparcial do mercado. Naturalmente, isso nos leva a prestar atenção nos outros e a desejar merecer sua aprovação. Quando há concorrentes no mercado, que “constituem uma espécie de luta, cujas operações mudam continuamente e dificilmente jamais podem ser conduzidas com sucesso, sem exercer uma vigilância e uma atenção incessantes” (Smith, 1985, v. 2, p. 196). Por induzir a livre movimentação do capital e trabalho de atividades menos rentáveis para aquelas mais rentáveis, a competição de mercado restaura os preços a seus “níveis naturais”, apesar das distorções momentâneas: como o preço natural é o mais baixo para um dado estado de desenvolvimento econômico, é a melhor situação do ponto de vista do resultado social.

Crítica à sociedade comercial

Em grande parte, A Riqueza das Nações é uma denúncia das tentativas de pessoas ou grupos na promoção de seus interesses à custa do bem público e da situação miserável de grande parte da população. Estas duras críticas parecem contradizer a visão de que a sociedade comercial teria proporcionado amplos avanços para o bem comum. Mas não são em nada contraditórias, pois Smith não estava apenas interessado no resultado social beneficente da sociedade comercial quando comparado aos dos estágios anteriores, mas, principalmente, em aprimorá-lo.

No Livro IV, Smith discutiu longamente os fundamentos do “sistema comercial ou mercantil”, de onde originou sua crítica contundente à irracionalidade econômica de suas legislações. O que ele apontava e execrava como conseqüência dessa política de crescimento econômico via restrição da importação e estímulo à exportação era a formação de monopólios patrocinados pela ação governamental. Ao promover o interesse de uma minoria, o monopólio prejudica o interesse de todas as demais categorias da população do próprio país e das pessoas de outras nações, pois os subsídios e privilégios inerentes a essa prática reduzem investimentos em outras áreas, restringindo o crescimento como um todo. Os monopolistas são um exemplo claro do auto-interesse lesivo ao bem comum.

Entre os aspectos negativos da sociedade comercial para a grande maioria da população, Smith notadamente explicitou a péssima distribuição de renda e a degradação sociocultural. A má distribuição de renda estaria relacionada aos baixos salários, insuficientes à própria subsistência; sobre o segundo aspecto, Smith deu especial relevo à alienação decorrente da especialização do trabalho e à marginalização dos homens comuns nas cidades, que em sua maioria procediam do campo.

O Estado, o mercado e o resultado social na sociedade comercial

Porque Adam Smith argumentou tão persuasivamente contra a intervenção governamental direta na economia, sua consciência da importância crucial do Estado é freqüentemente negligenciada (Muller, 1993MULLER, JERRY Z. Adam Smith in His Time and Ours: Designing the Decent Society. Princeton: Princeton University Press, 1993., p. 140). O último livro, de um total de cinco, de A Riqueza das Nações, é totalmente dedicado às funções do Estado e às fontes para seu custeio. Mas, ao longo de toda a obra, Smith deixa claro que o Estado é a instituição mais importante, e que “a razão e a felicidade da humanidade [...] só podem florescer onde o governo civil tem condições de protegêlas” (Smith, 1985SMITH, A. A Riqueza das Nações. Vol. 1-2, trad. Luiz João Baraúna. SP: Abril S.A. Cultural, 1985., v. 2, p. 229).

Em primeiro lugar, as atribuições do Estado em prover segurança, justiça e infraestrutura é uma pré-condição essencial ao funcionamento adequado da economia de mercado e, consequentemente, da viabilidade do estado de progresso. Na Espanha e Portugal, observou Smith, “o trabalho não é livre nem seguro, e os governos civil e eclesiástico [...] são tais que por si só seriam suficientes para perpetuar sua condição atual de pobreza, mesmo que suas leis comerciais fossem tão sábias quanto é absurda e insensata a maior parte delas” (Smith, 1985SMITH, A. A Riqueza das Nações. Vol. 1-2, trad. Luiz João Baraúna. SP: Abril S.A. Cultural, 1985., v. 2, p. 37). Diferentemente, na Grã-Bretanha, o país mais rico da Europa, “o trabalho é perfeitamente seguro; e embora esteja longe de ser totalmente livre, é tão livre ou tão mais livre do que em qualquer outro país da Europa” (Smith, 1985SMITH, A. A Riqueza das Nações. Vol. 1-2, trad. Luiz João Baraúna. SP: Abril S.A. Cultural, 1985., v. 2, p. 36). Da mesma forma, é fundamental o papel do Estado na construção de obras destinadas a facilitar o comércio, como estradas, pontes, portos, serviço bancário e de seguros etc. Pois, em grande parte, são de “tal natureza, que o lucro jamais conseguiria compensar algum indivíduo ou grupo, e assim não seria de esperar que alguém ou grupo se habilitasse a criá-las e mantê-las” (Smith, 1985SMITH, A. A Riqueza das Nações. Vol. 1-2, trad. Luiz João Baraúna. SP: Abril S.A. Cultural, 1985., v. 2, p. 173).

Em segundo lugar, prover as pré-condições ao funcionamento adequado de uma economia de mercado não elimina suas falhas. Em suas duras críticas à sociedade comercial, Smith buscou persuadir os legisladores das enormes vantagens que o aperfeiçoamento de suas instituições traria ao bem comum. Ademais, o Estado tinha como responsabilidade tomar a dianteira para remediar essas falhas, em conformidade com sua visão moral de que a ampla benevolência pública que pode exercer algum efeito considerável é a dos estadistas.

Mesmo sendo uma minoria, os monopolistas eram suficientemente poderosos para comprometer a orientação de uma conduta social prudente tão necessária ao estado de progresso; e, se a maioria agia prudentemente e uma minoria era imprudente, isso se dava porque a última dispunha de arranjos ou circunstâncias institucionais que lhe favoreciam esse comportamento. Seria fundamental que os legisladores, em suas deliberações, “sempre se orientassem, não pela clamorosa importunidade de interesses facciosos mas por uma consideração global do bem geral, deveriam manter-se particularmente atentos para não criar novos monopólios deste gênero em ampliar os já existentes. Toda medida desse tipo cria até certo ponto, uma desordem real na estrutura do país, desordem que será depois difícil de remediar, sem gerar outra desordem” (Smith, 1985SMITH, A. A Riqueza das Nações. Vol. 1-2, trad. Luiz João Baraúna. SP: Abril S.A. Cultural, 1985., v. 1, p. 392).

Por outro lado, mesmo não intencionalmente, as ações dos homens podem produzir resultados negativos para a sociedade. A degradação sociocultural a que nos referimos anteriormente é um exemplo claro. Em sua crítica avassaladora sobre esse aspecto, Smith observou: “...a menos que o Governo tome algumas providências para impedir que tal aconteça...” (Smith, 1985SMITH, A. A Riqueza das Nações. Vol. 1-2, trad. Luiz João Baraúna. SP: Abril S.A. Cultural, 1985., v. 2, p. 214). Objetivamente, a quarta função do Estado - a educação da juventude e a instrução das pessoas de todas as idades - tem como atribuição atenuar ou corrigir essa falha (Smith, 1986__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., v. 2, pp. 218-40).

Desta forma, o mercado como sistema social mais adequado para canalizar as motivações auto-interessadas e o Estado no cumprimento da justiça e no exercício da benevolência pública estariam nos seus respectivos papéis de nos compelir a agir o máximo possível conforme as virtudes da prudência, da justiça e da benevolência. Noutros termos, o resultado social beneficente é essencialmente auto-regulado pelas forças do mercado e as instituições sociais; e nas eventuais, mas prováveis falhas de mercado, é dever do Estado adiantar-se nos ajustes e aprimoramentos institucionais que se façam necessários para atenuá-las e corrigi-las.

III.3 Limites explanatórios

Na medida em que uma explanação envolve um interesse cognitivo, observou Bhargava, ela não é alguma coisa que acontece ou é independente de nós. Essa dependência sobre a ação humana, consequentemente sobre crenças e interesses, traz elementos pragmáticos para dentro do conceito de explanação (Bhargava, 1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 111). Diferentemente do modelo D-N, que concebe uma grande importância ao aspecto formal da resposta, a visão pragmática busca apreender e especificar a natureza da questão. Em primeiro lugar, o objeto de explanação deve ser examinado como um ato cognitivo (demanda por informação) em relação a um contexto (demanda específica por informação). Em segundo lugar, como selecionamos um contexto, essa seleção está sujeita aos nossos interesses e às informações de que dispomos.

De uma outra forma: a seleção de um contexto para explanar uma questão implica não levar em conta todos os tipos de circunstâncias aplicáveis a ela (poder explanatório). Por estar limitada ao nosso interesse e à informação de que dispomos, implica, também, que não descrevamos o fenômeno a ser explanado de maneira completa (verdade). Devido a esse “princípio constitutivo”, Bhargava (1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 111) sugeriu que:

“as explanações, em parte, incluem considerações pragmáticas envolvendo algum trade-off entre verdade e poder explanatório, [...] no sentido de que elas possuem um critério interno, constitutivo, que torna a questão geral de verdade ou falsidade parcialmente irrelevante.”

A proposição acima não estabelece o que vem a ser uma boa explanação. Mas, claramente, indica que ela não se situa nos extremos. Se seu poder explanatório é medíocre, estaríamos falando de um caso trivial e sem relevância. Mas se ela tem a pretensão de ser infalível - e neste caso o “princípio constitutivo” é determinante - também não é uma boa explanação. Por exemplo, o modelo D-N discutido anteriormente.

O princípio de que há uma relação positiva entre a promoção do interesse social e o paradigma do autodomínio das virtudes não deve ser tomado, em hipótese alguma, como uma explanação teleológica. Ao contrário: Smith criticava esse tipo de explanação, fazendo uma distinção nítida entre perceber uma ordem objetivamente orientada no universo (causa final) e explanar a operação de suas várias partes (causa eficiente). Além disso, não há nada em sua teoria moral que indique a presença de uma lei nomológica da ação humana. Aliás, Smith fez duras críticas à construção de “sistemas morais” sob o espírito da filosofia natural (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., pp. 380-90).

Cremos que, da análise feita até aqui, pouco teríamos a acrescentar sobre os pontos de contato entre o papel explanatório do autodomínio das virtudes e a visão pragmática apresentada acima. Da mesma forma, a explanação smithiana não vem acompanhada de um prognóstico infalível. Em conformidade com o princípio filosófico das conseqüências não intencionadas, Smith negava que a razão humana pudesse moldar ou construir o contorno básico da vida (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., pp. 108-9). Ao integrar a investigação histórica das instituições com uma “teoria” das causas que moldam estas mesmas instituições, Smith abre a possibilidade de criticá-las e, consequentemente, de aprimorá-las.

IV. CONCLUSÃO

É relativamente comum justificar as vantagens de uma economia de mercado utilizando-se a metáfora da “mão invisível”. Costuma-se também atribuir esta proposição a Smith, que teria sido o primeiro a enunciá-la. É amplamente aceito interpretar a expressão “mão invisível”, proferida por Smith em A Riqueza das Nações, nos seguintes termos: as conseqüências não intencionadas, mas socialmente positivas do mercado, que, através da motivação do lucro e dos mecanismos de preço, canaliza as ações individuais auto-interessadas em benefícios coletivos.

Se tomássemos aquela proposição como um enunciado sintético, ou seja, aquele cuja verdade é independente do significado de seus termos, até poderíamos afirmar que a explanação do resultado social na abordagem smithiana e na abordagem neoclássica seguem o mesmo princípio. Mas isso seria, na melhor das hipóteses, uma tremenda simplificação. Em primeiro lugar, houve uma mudança importante na noção de competição dos clássicos para a economia neoclássica moderna. A ênfase clássica sobre a mobilidade plena de capital e trabalho deve ser suplementada por uma definição precisa de relações existentes entre os agentes. Ou seja: a idéia de que a influência de cada participante individual é negligenciável.

Quanto ao conceito de equilíbrio, enquanto na economia clássica ele pode ser pensado como “aquela configuração de valores em cuja direção todas as magnitudes econômicas estão continuamente tendendo corresponder”, a teoria neoclássica emprega um conceito particular. Nessa visão, o equilíbrio é uma posição escolhida (Walsh, 1996WALSH, V. Rationality Allocation, and Reproduction. NY: Oxford University Press , 1996., p. 161): uma alocação racional de recursos resultante das escolhas racionais de todos os agentes.

Smith via os monopólios como sendo necessariamente patrocinados pela ação governamental, favorecendo certos grupos à custa do bem público. No modelo teórico da economia moderna, o monopólio surge naturalmente sem a intervenção governamental, por causa da economia de escala. Da mesma forma, diferentemente da abordagem smithiana, o modelo Arrow-Debreu exclui a presença de bens públicos na economia.

Como observou Amartya Sen, na terminologia da teoria econômica moderna, simpatia é um caso de externalidade. “Se a existência da simpatia fosse permitida nestes modelos, alguns dos resultados-padrão seriam problemáticos” (Hahn & Hollis (1979HAHN, F., HOLLIS, M.(eds.). Philosophy and Economic Theory. NY: Oxford University Press, 1979., p. 96)).

A “influência da fortuna” é uma possível analogia com o conceito de simetria ou assimetria da informação, desde que fique claro que, para Smith, o efeito da fortuna tem uma implicação moral importantíssima.

Finalmente, é o auto-interesse dos indivíduos que coloca todo esse sistema em operação. Em Smith, esse conceito é central e permeia toda a sua obra. É a motivação básica da natureza humana, a partir da qual derivam e se moldam todas as outras. Na teoria neoclássica é uma premissa importante, mas ela é exageradamente parcimoniosa. Porém, isso não é em nada despropositado, e há fortes razões, pois, implicitamente, a economia neoclássica postula um indivíduo abstrato. No domínio da ação individual, todas as relações são mediadas exclusivamente pelo mercado, desconsiderando qualquer interação interpessoal. Além disso, suas crenças e desejos, entendidas como preferências racionais, não somente substanciam a causa de suas ações, mas também constituem o único critério disponível para identificar essas causas e efeitos.

Imaginemos, por um instante, que um estadista decidisse implantar uma política econômica que seguisse as prescrições da teoria neoclássica, com o objetivo de alcançar o resultado social ótimo. Como mostramos anteriormente, a explanação equilíbrio geral é bastante problemática, pois falha a pré-condição básica: a teoria da escolha racional não é uma lei da ação humana. Suponhamos, então, que ela seja uma generalização, em vez de uma lei. Como poderíamos prever o equilíbrio geral? Porque as generalizações não satisfazem, necessariamente, às condições contrafactuais e subjuntivas, o equilíbrio geral só poderá ser alcançado (e explanado) imaginando-se sucessivas tentativas. Se o equilíbrio geral tivesse sido alcançado, sua explanação requereria explanações adicionais, que poderiam, inclusive, contradizer premissas e hipóteses do modelo. Como o resultado social ótimo pressupõe a existência do equilíbrio geral, sua explanação ipso facto implicaria, como corolário, uma correção monumental das falhas de mercado. Consequentemente, é mais adequado dizer o seguinte: a mão invisível do mercado explana o resultado social ótimo, mas sob o auxílio da mão dirigista do Estado. Ou seja: para que o estadista lograsse o resultado social, seria inevitável o dirigismo do Estado, dada a necessidade da correção em larga escala das falhas de mercado.11 11 Uma possível analogia deste resultado com o Teorema da Impossibilidade, de Arrow, consiste em termos que admitir a condição “ditatorial” a fim de obtermos um mecanismo de decisão social.

Se o estadista optasse pela abordagem de Smith, deveria, primeiramente, ter o conhecimento histórico do contexto da nação que dirige, para apreender o comportamento da população em face das suas motivações, e levar em consideração que: 1) o resultado social beneficente é essencialmente auto-regulado por forças do mercado e instituições sociais; 2) nas eventuais, mas prováveis falhas de mercado, é dever do Estado adiantar-se nos ajustes e aprimoramentos institucionais que se fizerem necessários, para atenuá-las e corrigi-las. De outra forma, a mão invisível do mercado explana o resultado social beneficente, mas sob o auxílio da mão benevolente e justa do Estado. E, é claro, todos esses termos devem ser apreendidos segundo o que foi exposto por Smith.

Direta ou indiretamente, uma explanação implica uma visão de mundo e, consequentemente, métodos particulares em sua investigação. Por estar desvinculada de motivos subjetivos, a explanação neoclássica equipara-se a uma prova matemática, no sentido claro de não ser nem relativa nem variável com os indivíduos. Porém, uma vez demonstrada a existência do equilíbrio geral, o problema é o caminho de volta: como poderíamos coexistir com o homem abstrato?

Smith era um filósofo moral, numa época em que filosofia moral englobava o estudo do que conhecemos hoje como ciências humanas. Todas estas disciplinas concorrem na elucidação de seus princípios, na arquitetura de suas teorias, em sua visão da ciência, do mundo e, em última instância, em sua tentativa de entender o indivíduo. No conjunto, Smith se propôs a demonstrar que a moralidade é a causa maior da felicidade na vida de cada um de nós; ademais, ao agirmos moralmente, contribuímos para a felicidade do todo.

Adam Smith legou-nos uma obra fundamental e como disse Ítalo Calvino, “ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos”. Numa reflexão final, sugerimos um retorno urgente a Smith, porque suas idéias poderiam iluminar onde fracassa um saber que nos é contemporâneo: a maneira de pensar neoclássica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • VAN FRAASSEN, B.C. The Scientific Image. Oxford: Clarendon Press , 1980.
  • WALSH, V. Rationality Allocation, and Reproduction. NY: Oxford University Press , 1996.
  • 1
    Schumpeter foi o primeiro a cunhar este termo. Para ele, o axioma do IM tinha somente um valor práticoinstrumental, destituído de qualquer caráter ético, político ou factual, enfim sem nenhum valor cognitivo. Ver Silva (1994__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., p. 138).
  • 2
    Arrow e Buchanan parecem sugerir posições divergentes a esse respeito. Para Arrow (1994ARROW, K. J. Collected Papers of Kenneth J. Arrow - General equilibrium. Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University Press, 1983.), o IM é apenas uma tese explanatória, onde categorias sociais são sempre necessárias; Buchanan postula que tudo deve e pode ser explanado em termos individuais [Buchanan em Eatwell (1987EATWELL, J., M. MILGATE, M., NEWMAN, P. (eds.). The New Palgrave: A Dictionary of Economics. Vol. 1-4. London: The Macmillan Press Limited, 1987., v. 1, p. 585)].
  • 3
    Sejam A as condições atomísticas, G as condições globais e EG o equilíbrio geral. Utilizando-nos da linguagem da lógica dedutiva, temos que: A • G  EG. Se A é verdadeiro, G é verdadeiro, então EG é verdadeiro. Quando A é uma lei, A é sempre verdadeiro. Assim: se G é verdadeiro, EG é verdadeiro. Se EG é falso, então G é falso.
  • 4
    Heap (1992HEAP, S. H., HOLLIS M., LYONS, B., SUGDEN, R., WEALE. The Theory of Choice: A Critical Guide. New York: Oxford and Cambridge, Mass.: Blackwell, 1992., pp. 47-9).
  • 5
    Lei L: L(X) (F) (A) (se [1] X quer F, e [2] X acredita que A é uma maneira de obter F sob as circunstâncias, e [3] não existe ação que X acredite ser uma maneira para ele obter F, sob as circunstâncias, que X julgue ser tão preferível para ele, ou mais preferível para ele do que A, e [4] X não tem outro querer, sob as circunstâncias, que exceda seu querer, F, e [5] X tem um conhecimento prático de A, e [6] X é capaz de A, Então [7] X toma a ação A.) Rosenberg (1980ROSENBERG, A. “Obstacles to the Nomological Connection of Reasons and Actions”, Philosophy of Social Science, 10, 1980, p. 79-91., p. 78)
  • 6
    Bhargava (1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., pp. 95-6) utilizou dois outros pensadores para corroborar a inexistência de leis teóricas nomológicas da ação humana: Van Fraassen (1980VAN FRAASSEN, B.C. The Scientific Image. Oxford: Clarendon Press , 1980.) e Cartwright (1983CARTWRIGHT, N. How the Laws of Physics Lie. Oxford: Clarendon Press, 1983.).
  • 7
    A • G  EG: quando A não é uma lei, A pode ser verdadeiro ou falso. Então: Se G é verdadeiro, não podemos concluir que EG é verdadeiro. Se EG é falso, não podemos concluir que G é falso.
  • 8
    Ver Bhargava (1992BHARGAVA, R. Individualism in Social Science - Forms and Limits of a Methodology. New York: Oxford University Press, 1992., p. 112), Walsh (1996WALSH, V. Rationality Allocation, and Reproduction. NY: Oxford University Press , 1996., p. 176), Hausman, (1999HAUSMAN, D. M, MCPHERSON, M. S. Economic Analysis and Moral Philosophy. New York: Cambridge University Press , 1999., p. 209).
  • 9
    Examinar a idéia do espectador imparcial sob a luz do superego, instância soberana da personalidade descrita por Freud em sua teoria do aparelho psíquico, não é somente esclarecedor, mas também corrobora os argumentos de vários autores (Muller, 1993MULLER, JERRY Z. Adam Smith in His Time and Ours: Designing the Decent Society. Princeton: Princeton University Press, 1993., p. 100) sobre o papel seminal, raramente apreciado, da Teoria dos Sentimentos Morais no desenvolvimento da sociologia e das ciências que tratam da psique humana. Smith nunca discutiu a origem do espectador imparcial, mas creio que o podemos depreender, facilmente, das inumeráveis vezes que ele mencionou e utilizou este conceito, que se tratava de uma “instância psíquica”, cujo papel, a exemplo do superego, é semelhante ao de um juiz ou censor relativamente às motivações egoístas (ver, p. e., as seguintes páginas em (Smith, 1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., pp. 25, 103, 143, 160, 164, 165, 328, 329).
  • 10
    Smith (1999__________. Teoria dos Sentimentos Morais. Trad. Lya Luft. Livraria Martins Fontes Editora, SP, 1999., p. 292)
  • 11
    Uma possível analogia deste resultado com o Teorema da Impossibilidade, de Arrow, consiste em termos que admitir a condição “ditatorial” a fim de obtermos um mecanismo de decisão social.
  • JEL Classification: P10, B3.
  • **
    Agradeço a contribuição inestimável do orientador e prof. Marcos Fernandes Goncalves da Silva, aos professores Arthur Barrionuevo Filho e Fernando Celso Garcia de Freitas, a dois pareceristas anônimos cujas sugestões puderam aperfeiçoar este texto e ao CNPq pelo financiamento de minha bolsa de estudos, da qual este trabalho é fruto. A responsabilidade pelas ideias aqui tratadas é apenas do autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2003
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