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Mercado de trabalho e dança distributiva

Labour Market and distributive lop

RESUMO

Este artigo examina os efeitos da segmentação dos mercados de trabalho e bens sobre a dispersão de preços e salários relativos na economia brasileira. O argumento teórico baseia-se no comportamento das empresas nos setores oligopolista e competitivo da economia, por um lado, e no comportamento do trabalho organizado e não organizado, pelo outro. Sugerimos que as negociações entre firmas oligopolistas e trabalho organizado possam ser vistas como um jogo de soma positiva, enquanto um jogo de soma zero caracteriza a distribuição de renda na economia como um todo. Portanto, concluímos que houve uma redistribuição de renda em favor dos lucros e salários dos agentes que operam nos setores oligopolistas em detrimento dos outros agentes da economia.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; salários; sindicalismo

ABSTRACT

This paper examines the effects of the segmentation of the labour and goods markets over the dispersion of relative prices and wages in the Brazilian economy. The theoretical argument is based in the behaviour of firms in the oligopolist and competitive sectors of the economy, on one hand, and the behaviour of organized and non-organized labour, on the other. We suggest that the negotiations between oligopolist firms and organized labour can be seen as a positive-sum game; whereas a zero-sum game characterizes the distribution of income in the economy as a whole. Hence, we conclude that there has been a redistribution of income in favour of profits and wages of those agents operating in the oligopolist sectors in detriment of the other agents in the economy.

KEYWORDS:
Inflation; wages; unions

I. INTRODUÇÃO

A principal característica da economia brasileira nos últimos quinze anos tem sido o persistente crescimento da taxa de inflação. Da mesma forma, pelo menos desde 1987, o país tem vivido às portas de uma hiperinflação. Rápidas acelerações inflacionárias são acompanhadas de congelamentos de preços e de salários que, após alguns meses de efetividade, se convertem em novas acelerações inflacionárias etc. Nesse contexto, a relação entre estrutura do processo de negociações coletivas, conflito distributivo e efeitos distributivos do processo inflacionário ganham relevância. Neste artigo, analisamos estas inter-relações.

A aceleração da inflação tem efeitos perversos não apenas porque gera incertezas quanto ao futuro e paralisia decisória, mas também porque afeta a distribuição da renda a favor dos agentes com maior capacidade de fixar seus preços e contra aqueles que não conseguem defender-se da inflação através do reajuste de seus rendimentos nominais. Para entender melhor o processo de aceleração inflacionária e seus efeitos distributivos, é importante conhecer o modo como são fixados salários e preços nos diferentes segmentos dos mercados de trabalho e de bens.

Há, sem dúvida, alguns pontos de relativo consenso entre os analistas econômicos brasileiros sobre as causas do processo inflacionário. Primeiro, que a aceleração da inflação e a dificuldade para reduzir os patamares inflacionários estão associadas ao alto grau de indexação dos rendimentos, ao conflito distributivo entre diferentes agentes sociais, e ao efeito do déficit público, e a capacidade de financiá-lo, sobre a demanda agregada.1 1 Apesar de haver consenso quanto ao conjunto de causas, existe grande discordância quanto aos pesos a atribuir a cada um dos componentes. Segundo, que o combate à inflação não é um processo simples, nem depende apenas de medidas corretas do ponto de vista técnico; antes envolve considerável grau de coordenação entre os agentes só alcançável muitas vezes por meio de um acordo explícito entre eles.

O combate efetivo à inflação deve combinar, pois, medidas de caráter fiscal e monetário, assim como medidas que viabilizem a coordenação dos mecanismos de determinação dos salários e dos preços na economia. É exatamente este segundo conjunto de medidas que depende da estrutura do processo de negociações coletivas e da estruturada organização das entidades representativas de trabalhadores e de empresários.

No caso da economia brasileira, duas características são de grande importância: a primeira, é a extrema heterogeneidade tanto do mercado de bens quanto do mercado de trabalho. A segunda, é o elevado grau de centralização da organização sindical e a disparidade do poder de barganha dos diferentes grupos de trabalhadores. Estas duas características fazem com que tanto o mercado de bens, quanto o mercado de trabalho sejam divididos em segmentos, com dinâmicas diferentes no que se refere aos preços e aos salários e permite que o processo inflacionário gere enormes transferências de rendas na economia.

II. A FORMAÇÃO DE SALÁRIOS E PREÇOS

De modo geral, há pelo menos uma característica comum a todos os segmentos dos mercados de trabalho e bens: o fato de que as empresas fixam os preços dos bens que produzem tomando em conta os salários acordados previamente com os sindicatos. Nesse sentido, as empresas têm a última palavra na determinação da relação preços/salários. Mesmo com elevado grau de indexação dos salários, o fato de as empresas terem um menor prazo de reajuste dos preços faz com que a inflação seja, afinal, o resultado da decisão de fixação dos preços por parte das firmas. Esta assimetria na capacidade de remarcação de salários e preços deve ser levada em conta nas análises dos processos inflacionários e distributivos.

As diferenças entre o comportamento dos agentes nos segmentos dos mercados de trabalho e bens devem-se à capacidade diferenciada das empresas de arbitrar preços, sem incorrer em perdas de fatias de mercado, e dos sindicatos de conquistarem os aumentos salariais desejados sem que isto leve a um grau de conflito muito alto com as firmas e ao aumento do desemprego.

Na economia brasileira existe uma relação direta entre a capacidade de as firmas arbitrarem seus preços sem riscos de perda de mercado e a capacidade de os sindicatos conseguirem os reajustes salariais desejados. É que, dado o elevado nível de proteção à concorrência externa, quanto mais forte a posição da empresa no mercado em que atua, isto é, quanto menor o número de concorrentes e maior o seu grau de monopólio, maior a sua capacidade de repassar para os preços os aumentos dos salários. Em consequência, se a empresa é forte em seu mercado, tenderá a atender mais facilmente às demandas salariais dos seus trabalhadores para evitar os efeitos deletérios dos conflitos trabalhistas. Já as empresas que operam em setores mais concorrenciais, competitivos, tenderão a ser mais duras em suas negociações com os trabalhadores, pois terão mais dificuldade de repassar aos preços dos produtos os reajustes de salários concedidos.

Da mesma forma, os sindicatos mais fortes se concentram nos setores mais oligopolizados, tanto por razões econômicas quanto político-institucionais. É nas grandes empresas industriais mais modernas que se concentra uma grande parte dos trabalhadores mais qualificados, onde a estrutura do processo produtivo facilita a organização e onde os sindicatos conseguem os melhores ganhos salariais.

Por estas razões, para se compreender a forma das transferências de rendas entre os diferentes grupos de trabalhadores e empresários, é necessário entender como são segmentados os mercados de trabalho e de produtos.

O mercado de bens pode ser dividido em três segmentos. Um segmento competitivo, isto é, composto por setores onde é grande o número de firmas produzindo as mesmas mercadorias e gerando os mesmos tipos de serviços. Neste segmento o grau de concorrência é elevado e as firmas incorrem em sérios riscos de perder fatias de mercado se aumentarem seus preços acima da média praticada pelos competidores. O segundo segmento é composto pelos trabalhadores por conta própria, isto é, pequenos produtores independentes, entre eles algumas categorias de profissionais liberais (advogados independentes, por exemplo), toda sorte de biscateiros etc. Este setor tem um comportamento muito semelhante ao competitivo, com a diferença de que não emprega trabalhadores. Estes, em geral, confundem-se com a própria empresa. Finalmente, existe o segmento oligopolizado composto por setores em que há poucas e grandes firmas, e nos quais é alto o poder de fixação de preços sem riscos de perda de mercado.

No Brasil, as empresas que operam no segmento competitivo normalmente estão voltadas para o mercado interno, o que faz com que suas margens de lucro dependam essencialmente do nível de atividade que, por sua vez, depende do total de demanda efetiva interna. Quanto maior o nível de atividade, maior a demanda por seus produtos e maior a possibilidade de elevar preços sem risco de perda de mercado. Um “sopro de demanda”, devido por exemplo à desaceleração na queda do poder de compra dos salários, pode tirar uma empresa deste segmento do vermelho.

As empresas do segmento mais competitivo geralmente são menos tolerantes, mais duras, que as do setor oligopolizado no processo de negociação salarial com os sindicatos.

Além do setor oligopolizado, outro subsetor que, em geral, é relativamente mais tolerante, operando, portanto, com o segmento oligopolizado, é o setor exportador de manufaturados. Este subsetor tem suas margens de lucros protegidas pela política cambial, cujo objetivo tem sido manter constante a taxa de câmbio real. Assim, qualquer que seja o salário nominal pago por estas empresas, dado que a política cambial mantém relativamente estável a relação câmbio/salário, suas margens de lucro ficam automaticamente protegidas.

No mercado de trabalho, isto é, entre os assalariados, podem-se distinguir basicamente dois segmentos. O segmento dos trabalhadores com carteira de trabalho assinada e, portanto, sujeitos à legislação trabalhista, com direitos sociais previstos em lei, e o segmento dos trabalhadores sem carteira assinada cuja relação trabalhista resulta de um acordo privado e pessoal entre empregador e empregado. Entre os trabalhadores com carteira assinada, há os sindicalizados e os não-sindicalizados, e entre os primeiros há os que são filiados a sindicatos fortes ou a sindicatos fracos e há os filiados a sindicatos associados às centrais sindicais ou a sindicatos independentes. O poder de barganha dos trabalhadores depende do grau de organização do sindicato (e/ou central) a que estão filiados. Os trabalhadores sem carteira em geral têm reduzido poder de barganha junto a seus empregadores.

Dois aspectos adicionais devem ser destacados sobre o funcionamento do mercado de trabalho. Em primeiro lugar o fato de os sindicatos mais fortes terem crescido justamente nos setores oligopolizados do mercado de bens. Isto se explicaria, pelo menos em parte, pelo maior poder de barganha dos sindicatos em setores em que as empresas impõem menos restrições nos processos de negociação coletiva.

Em segundo lugar, a diferença entre as negociações envolvendo sindicatos filiados à CUT ou à CGT. Em geral as negociações com a CUT são mais duras, pois suas aspirações e demandas vão além de reajustes salariais e avançam na direção de áreas que afetam o controle do processo de produção e o próprio poder de barganha dos sindicatos. Já as negociações com a CGT e com sindicatos independentes são mais simples e pontuais, referindo-se em grande parte exclusivamente à questão salarial.

Podemos, portanto, estabelecer uma inter-relação entre os segmentos dos mercados de trabalho e de bens. Uma grande parte dos trabalhadores do segmento oligopolizado é sindicalizada e os sindicatos mais fortes e organizados estão também associados àquele segmento do mercado de bens. Apenas uma parte dos que trabalham para empresas do segmento competitivo são sindicalizados e os sindicatos são menos organizados. O quadro seguinte ilustra estas inter-relações.

É exatamente esta inter-relação entre os dois mercados que propicia os deslocamentos de renda ao longo do processo inflacionário, penalizando os segmentos mais fracos e desorganizados e favorecendo os mais fortes e organizados.


Inter-relação entre os mercados de bens e trabalho

III. A “FILOSOFIA DO REPASSE”

A inter-relação entre os mercados de trabalho e de bens descrita anteriormente permite entender os comentários frequentes entre alguns observadores da cena sindical brasileira. Segundo eles, existe uma relativa tranquilidade nas relações entre capital e trabalho no âmbito do setor privado da economia, principalmente no âmbito da FIESP, nos últimos anos; nas relações no âmbito do Estado, ao contrário, os sindicatos têm demonstrado grande poder de mobilização e os conflitos têm sido persistentes e até mesmo violentos. Para os mesmos observadores, o fenômeno indica o amadurecimento das relações entre empresários e trabalhadores do setor privado da economia que, se deixados livres para negociar, poderiam facilmente chegar a acordos sem exacerbação do conflito trabalhista. Este problema estaria intensificado hoje nas relações entre trabalhadores e o Estado.

Análise mais cuidadosa de dados empíricos sobre a evolução dos preços relativos e a distribuição dos salários no país, entretanto, permite interpretação totalmente diferente dessa relativa tranquilidade.

Em primeiro lugar, esses acordos têm sido celebrados principalmente entre empresas do segmento oligopolizado e/ou exportador da economia e sindicatos fortes e organizados. Em contexto de elevado poder de repasse dos reajustes de salários nominais aos preços, principalmente em conjuntura na qual o nível de atividade está elevado, em que o controle de preços é frouxo e há grande incerteza entre os agentes em torno da política econômica a ser adotada, a tranquilidade das relações entre capital e trabalho surge como resultado lógico - mas especialmente perverso.

Existe entre os empresários do setor oligopolizado e/ou exportador o que se poderia chamar de “filosofia do repasse”: desde que seja possível repassar aos preços os aumentos de salários, as empresas resistem pouco às demandas dos sindicatos. Com isto, evitam problemas com sua força de trabalho, reduzem o nível de conflito e as negociações salariais tornam-se efetivamente “tranquilas”. Dada a crise financeira do Estado e de suas empresas, essa “filosofia” não pode ser aplicada ao setor e tampouco atinge o segmento competitivo da economia.

Este “acordo não-consciente” entre as empresas do segmento oligopolizado da economia e seus sindicatos mais ativos tem efeitos devastadores sobre o processo inflacionário e a distribuição de salários. O repasse dos aumentos nominais de salários aos preços por parte das empresas significa que o custo real da mão-de-obra não cresce e suas margens de lucro são mantidas. Quanto aos trabalhadores, os que pertencem aos sindicatos mais organizados têm melhores condições de defender seus salários reais devido à leniência das empresas desse segmento.

No segmento competitivo, por outro lado, como a concorrência é maior, as empresas terão um comportamento menos leniente, pois é menor seu poder de repassar aos preços os reajustes obtidos pelos trabalhadores. Em consequência, não só os preços nesses setores crescem menos que os dos setores mais oligopolizados e/ou monopolistas, mas também os salários tendem a crescer menos que a taxa de inflação. Neste contexto, ganham (ou deixam de perder) os trabalhadores do segmento oligopolizado e dos sindicatos mais ativos e organizados - pois a inflação média tenderá a ser menor que a taxa de crescimento dos preços destes setores - e perdem os trabalhadores do segmento competitivo do mercado de bens, pela razão inversa.

É importante notar que o processo não pode ser quebrado por uma empresa individualmente. Se uma empresa do setor oligopolizado decide de forma isolada endurecer no processo de negociações, enfrentará sérios conflitos com seus sindicatos e verá o salário real de seus trabalhadores se reduzir em relação à média do setor. Aumento do conflito dentro da empresa, queda de produtividade e, possivelmente (ao contrário do que se poderia esperar), piora de sua posição concorrencial em relação a seus competidores seriam o resultado final.

Se a interpretação é correta, a origem da tranquilidade nas relações entre capital e trabalho em certas áreas da economia deve-se a esse “acordo não-consciente” entre empresas e sindicatos. Essa seria também a origem das mudanças de preços e salários relativos que ilustraremos na seção a seguir.

IV. ACELERAÇÃO INFLACIONÁRIA E DISPERSÃO DE PREÇOS E SALÁRIOS

A aceleração da inflação nos últimos dez anos pode ser vista como resultado da tentativa dos diferentes grupos sociais de proteger o poder de compra de suas rendas. A capacidade desses grupos, entre eles trabalhadores e empresas dos diferentes segmentos dos mercados de trabalho e de bens, varia significativamente. Na figura 1, apresentamos a evolução da taxa de inflação no Brasil, entre 1978 e 1988. Nela destacam-se cinco pontos de inflexão na trajetória da inflação nos últimos dez anos, a saber:

  • o primeiro semestre de 1979, depois de uma tentativa do governo de aumentar o preço doméstico da energia;

  • o segundo semestre de 1983, depois da maxidesvalorização do cruzeiro;

  • o segundo semestre de 1985, um ano depois de a economia começar a recuperar-se da mais profunda recessão de sua história, com aumento do ativismo sindical e as empresas começando a se preparar para um congelamento de preços;

  • o primeiro semestre de 1987, após oito meses de congelamento de preços;

  • o primeiro semestre de 1988, depois de seis meses de congelamento.

Figura 1
Taxa mensal de inflação

Durante esses dez anos, a distribuição funcional da renda, a distribuição da massa de salários em especial, mudou dramaticamente. Essas mudanças resultaram da combinação de diferentes políticas econômicas, da heterogeneidade da força de trabalho e do mercado de bens. Na figura 2 pode-se acompanhar a trajetória da produtividade do trabalho (medida pela relação entre emprego e produto), do salário real (medido pela relação entre o salário nominal médio e o índice de preços ao consumidor) e o custo real do trabalho (medido pela razão entre o salário nominal e o índice de preços por atacado).2 2 Enquanto o salário real mede o poder de compra dos salários, que é o que interessa ao trabalhador, o custo real do trabalho é uma medida (inversa) da margem de lucros das empresas.

Figura 2
Indústria, São Paulo

Na figura 3, tem-se a trajetória da razão entre o custo do trabalho e a produtividade do trabalho (que mede a participação dos salários no produto) e da relação entre o salário real e a produtividade do trabalho.3 3 A trajetória da relação entre o custo real do trabalho e a produtividade (isto é, da participação dos salários no valor do produto gerado) mede o quanto das variações na produtividade está sendo repassado aos salários. Já a relação entre o salário real e a produtividade é uma medida do crescimento do poder de compra do salário em termos de todos os bens que compõem a cesta de consumo do trabalhador relativamente à sua produtividade. Todos esses dados se referem às empresas da FIESP.

Figura 3
Indústria, São Paulo

Na figura 2, o primeiro ponto a notar é o contínuo crescimento da produtividade ao longo do período. O custo real do trabalho e o salário real crescem quase continuamente entre 1976 e princípios de 1983. Depois da maxidesvalorização do cruzeiro no início de 1983, e de dois anos de desemprego crescente, tanto o custo real do trabalho, quanto o salário real caem até meados de 1984, quando iniciam sua recuperação. Em 1987 eles voltam a cair, estabilizando-se em 1988.

A participação dos salários no produto mantém-se relativamente estável entre 1976 e 1978, com leve crescimento, e cai continuamente entre 1979 e agosto de 1985, por seis anos, implicando uma transferência de rendas dos trabalhadores para as empresas (ou para o exterior através do pagamento do serviço da dívida externa). Enquanto isso, a relação entre o poder de compra dos salários e a produtividade cresce quase continuamente até 1982, cai ao longo de 1983, volta a crescer até fins de 1986, cai de novo em 1987 e estabiliza-se em 1988.

É importante notar que tanto a margem de lucros (medida pelo inverso da participação dos salários), quanto a relação entre o salário real e a produtividade tendem ao crescimento entre 1976 e 1988. Isto significa que os empresários do setor industrial de São Paulo têm lucrado continuamente mais por unidade vendida desde 1976. Ao mesmo tempo, os trabalhadores da indústria de São Paulo têm obtido ganhos reais de salário acima do crescimento de sua produtividade. Finalmente, deve-se notar que o salário real desses trabalhadores cai apenas em duas circunstâncias ao longo desses treze anos: na forte recessão de 1982/1983 e durante o período de descongelamento de preços em 1987.

Se todos ganham na indústria de São Paulo, alguns devem perder em outros segmentos da economia. Esta seria uma evidência de que o “acordo não-consciente” entre empresários e sindicatos, nos segmentos oligopolizados da indústria (fortemente concentrado em São Paulo), de fato beneficia a ambos os grupos. A ideia é que existe um jogo de soma positiva entre empresários e trabalhadores da indústria de São Paulo, mas se o jogo entre os agentes da economia como um todo é de soma zero ( o que é uma aproximação da realidade devido ao aumento do produto per capita no período), há agentes perdedores (pelo menos em termos relativos) nos últimos dez a quinze anos.

Na tabela 1 pode-se observar a trajetória da relação entre os salários médios pagos nos vários gêneros industriais e outros setores (habitação, comércio, serviços) e o salário médio pago na indústria.4 4 Estes são dados para o Brasil e não apenas para São Paulo, calculados a partir da RAIS dos diversos anos. Nota-se um alto e crescente grau de dispersão dos salários. Os salários relativos dos trabalhadores nas indústrias de material elétrico, transporte, papel, química e têxteis estavam acima da média em 1980 e cresceram relativamente à média entre 1980 e 1986. Já os salários de trabalhadores das indústrias de móveis, materiais plásticos, vestuário e materiais editoriais estavam abaixo da média em 1980 e caíram em relação a esta média desde então. O mesmo vale para os salários pagos nos setores de serviços públicos, construção, comércio e serviços privados, embora a tendência seja muito mais acentuada.

Tabela 1
Salários relativos (Salário do setor relativamenteao salário médio da indústria)

A mesma conclusão de que tem ocorrido aumento da dispersão salarial no país pode ser obtida pela leitura das figuras 4 e 5. Na figura 4, observa-se o crescimento da relação entre o salário médio pago na indústria de São Paulo e o salário-mínimo; na figura 5, o aumento do coeficiente de variação dos salários pagos nos diferentes setores da indústria de São Paulo entre 1975 e 1986.

Figura 4
Salário médio (SP) relativamente ao salário-mínimo

Figura 5
Coeficiente de variação (Salários, SP)

Assim como houve crescimento da dispersão dos salários devido às discrepâncias entre o poder de barganha das diferentes categorias de trabalhadores, houve também crescimento da dispersão de preços relativos. Na tabela 2 tem-se a relação entre o preço médio dos componentes do índice de preços ao consumidor de São Paulo e o Índice de Preços por Atacado - produtos industriais - da Fundação Getúlio Vargas. Há preços de bens como o dos alimentos e dos serviços de saúde que caíram 40% relativamente ao preço por atacado na indústria. O preço relativo dos transportes caiu mais de 60%. Esta é uma evidência de que houve grande diferença entre a trajetória dos preços nos últimos anos como resultado da capacidade diferenciada dos diferentes setores de se defenderem da aceleração inflacionária.

Tabela 2
Preços relativos (Componentes do IPC relativamente ao IPA indústria) 1977 = 100

O único ano em que houve inversão das tendências nos movimentos de salários e preços relativos foi 1986. Essa inversão de tendências está associada aos efeitos do congelamento de preços implementado pelo Plano Cruzado, situação na qual as margens de lucros e os salários no segmento oligopolizado, cujos preços são mais facilmente controláveis, perderam em relação ao resto da economia.5 5 Para uma análise detalhada deste efeito, ver J. M. Camargo e C. A. Ramos, 1988. Depois do Plano Cruzado, os outros dois programas de estabilização (Planos Bresser e Verão), também baseados em controle de preços, desorganizaram ainda mais as relações econômicas, acirraram o conflito distributivo e geraram ainda maior dispersão salarial e dos preços relativos.

V. CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS PARA O FUTURO

Os resultados apresentados anteriormente parecem evidenciar que as segmentações dos mercados de bens e de trabalho tiveram forte influência sobre o processo inflacionário e a dança distributiva dos últimos anos. De um lado, o fato de que alguns setores são capazes de fixar seus preços sem risco de perda de mercado - e por isso podem conceder aumentos reais de salários - facilita a aceleração da taxa de inflação.6 6 Obviamente, há outros fatores a explicar a aceleração da inflação, dentre os quais os aumentos de preços defensivos, devidos à expectativa de novos congelamentos, o aumento do custo alternativo de manter estoques, devido ao crescimento da taxa de juros etc. Por outro, a concentração do poder sindical nos setores mais oligopolizados e modernos da economia tende a gerar maior dispersão de salários e de preços relativos. Ambos os efeitos têm caráter extremamente perverso, tanto do ponto de vista da estabilidade econômica, quanto da distribuição de salários na economia.

Ocorreu um vigoroso processo de centralização e de aumento de representatividade, tanto das organizações dos trabalhadores quanto das dos empresários na economia brasileira ao longo dos anos 80 (E. Amadeo e J. M. Camargo, 1989cAMADEO, E. e CAMARGO, J. M. (1989c) “New Unionism and the Relation between Capital, Labour and the State in Brazil.” Texto para Discussão n. 233, Departamento de Economia, PUC/RJ. e 1990AMADEO, E. e CAMARGO, J. M. (1990) “Relações entre Capital e Trabalho no Brasil: Percepção e Atuação dos Atores Sociais.” Texto para Discussão, Departamento de Economia, PUC/RJ.). Da mesma forma como ocorreu em outros países do mundo, nos quais o processo se deu no passado, esses desenvolvimentos têm sido impulsionados pela necessidade de os trabalhadores se organizarem para conseguir maiores salários e melhores condições de trabalho. Na medida em que eles conseguem se organizar e mobilizar suas bases com esses objetivos, os empresários se veem diante da necessidade de melhorar seu grau de organização para enfrentar as demandas dos trabalhadores no processo de negociações coletivas.

Vários são os sintomas de que esse processo atingiu um estágio bastante avançado no Brasil. O aparecimento de duas fortes centrais sindicais (CUT e CGT), o aumento do conflito entre capital e trabalho, o crescimento eleitoral do Partido dos Trabalhadores são alguns dos mais marcantes, do lado dos trabalhadores. Por outro lado, o aumento de representatividade da Confederação Nacional da Indústria, o desenvolvimento de centros de treinamento e de informações para orientar os empresários no processo de negociações coletivas, o maior envolvimento dessa Confederação, assim como da Federação Brasileira de Bancos e das Federações estaduais de empresários nas negociações, são os principais sintomas do lado empresarial.

Um aspecto importante nesse contexto é a íntima associação entre a CUT e o Partido dos Trabalhadores. Seguindo a tradição da socialdemocracia europeia, estas duas instituições têm atuado em conjunto, a primeira no fórum sindical e a segunda no fórum político-parlamentar, no sentido de aumentar o poder de pressão dos trabalhadores organizados para a obtenção de ganhos em nível de negociações diretas entre capital e trabalho e em nível mais agregado, através do Parlamento e, mais recentemente, do Poder Executivo em algumas cidades importantes do país.

Todo o processo aponta para um aumento do grau de centralização das negociações coletivas e da politização do movimento representativo dos trabalhadores. A CUT tem desenvolvido departamentos em bases ocupacionais que, em alguns casos, como o dos bancários, já promovem suas negociações em nível nacional. Da mesma forma, a CNI está desenvolvendo um importante sistema de coordenação do lado patronal, a partir da formação de grupos de trabalho para gerar informações, coordenar e auxiliar os empresários individuais nas negociações coletivas.

Em nível político, as demandas da central sindical são ativamente defendidas no Parlamento pelo Partido dos Trabalhadores, o que se tornou mais explícito a partir das discussões dos direitos trabalhistas ao longo da elaboração da Constituição em 1987 / 1988.

Existem, obviamente, caminhos alternativos trilhados por outras instituições. Entre os mais importantes, um forte e representativo movimento de sindicatos independentes, em princípio desvinculados das centrais sindicais, que se organizam quase que exclusivamente com o objetivo de obter ganhos nas negociações coletivas. No outro extremo, correntes no interior da CUT adotam uma linha revolucionária, não negocial, cuja aspiração é a completa reformulação do sistema capitalista no país.

Mostramos também (E. Amadeo e J. M. Camargo, 1989aAMADEO, E. e CAMARGO, J. M. (1989a) “Política Salarial e Negociações: Perspectivas para o Futuro.” Texto para Discussão n. 217, Departamento de Economia, PUC/RJ.) que essa evolução tem sido um dos fatores que reforçam a tendência inflacionária na economia brasileira e o caráter eminentemente perverso desse fenômeno. Como os sindicatos mais ativos e organizados atuam, em geral, nos setores mais oligopolizados e/ou exportadores e as empresas destes setores têm grande poder de repasse dos reajustes de salários aos preços dos produtos, devido ou à pequena concorrência ou à política de manutenção da relação salário/câmbio, desenvolveu-se nesses segmentos do mercado a “filosofia do repasse”: desde que os aumentos de salários possam ser repassados aos preços, o conflito deve ser evitado. Nestas condições, a inflação transfere renda dos segmentos menos organizados (e mais pobres) dos mercados de trabalho e de produto para os segmentos mais organizados e relativamente mais ricos), aumentando a dispersão salarial e contribuindo para a piora da distribuição da renda no país.

Assim, as transformações ocorridas levaram o país a uma situação extremamente difícil e socialmente injusta na qual, para evitar o conflito, gera-se mais inflação e mais concentração de salários. Diante desse quadro, cabe-nos perguntar: que perspectivas existem para o futuro das relações entre capital e trabalho no Brasil e como evitar os efeitos perversos que estão dominando esta relação no presente?

Existem, pelo menos, duas opções claras: criar incentivos para reverter a tendência à centralização da organização sindical e do processo de negociações coletivas; aceitar a tendência dos últimos dez anos como um fato inexorável e criar instituições que evitem os efeitos não desejados desse processo. Cada opção tem vantagens e desvantagens, defensores e detratores.

A grande vantagem do primeiro caminho é que, uma vez obtida a descentralização, o mercado passaria a ser o principal mecanismo coordenador da atividade econômica, principalmente no que se refere à relação entre capital e trabalho. É o caso de países como os Estados Unidos e o Canadá, onde as negociações coletivas são realizadas em nível de empresa. Neste sistema, dificilmente uma negociação tem importância suficiente para afetar outros trabalhadores que não os diretamente envolvidos, gerando problemas de caráter macroeconômico.

Uma desvantagem importante desta estrutura é que ela tende a gerar uma distribuição de salários relativamente mais desigual, devido à disparidade de poder de barganha entre os diferentes sindicatos e à impossibilidade de coordenação do processo de formação dos salários em nível macroeconômico.

O problema é criar incentivos suficientemente fortes que induzam (ou forcem) as organizações de trabalhadores, hoje já bastante avançadas em seu processo de centralização, a trilhar esse caminho, pois ele significa uma drástica redução de seu poder político dentro da sociedade.

A segunda opção é reforçar o processo de centralização, em direção às estruturas neocorporativistas europeias, criando foros adequados de negociação em nível estadual e nacional, por categoria profissional. Neste contexto, pode-se pensar na adoção de um contrato coletivo de trabalho negociado em nível nacional, estipulando condições mínimas, em substituição à atual sistemática de reajustes de salários.7 7 Uma proposta de política de rendas com base na centralização das negociações coletivas encontra-se em Amadeo e Camargo (1989a). Os níveis máximos de reajustes, por outro lado, seriam definidos também em nível nacional, por meio de negociações por categorias profissionais. Finalmente, em nível mais desagregado, estadual, municipal ou até mesmo por empresa, seriam negociados os reajustes efetivos de cada grupo. Um esquema deste tipo deve vir acompanhado do aumento da competitividade e maior organização das entidades representativas de empresários e trabalhadores.

Seria fundamental a criação de incentivos para aumentar a disciplina dos agentes individuais, dos dois lados do espectro. Fundos de greve e de lock out; esquemas de financiamento de seguro-desemprego através dos sindicatos e de fundos de auxílio às empresas através das organizações empresariais, com regras de uso explícitas e rígidas; reforço das organizações de base em nível da empresa para evitar a burocratização dos movimentos etc. são instrumentos importantes para proteger trabalhadores e empresários dos efeitos dos conflitos, com penalidades suficientemente fortes para desincentivar uma atitude de free rider entre os participantes do jogo econômico.

Da mesma forma, a adoção de mecanismos de mediação e arbitragem, com instâncias obrigatórias de negociação antes de deflagrar os conflitos e levar as disputas para a Justiça do Trabalho é de grande importância.

As principais vantagens de uma organização com essas características são, em primeiro lugar, a possibilidade de utilizar as negociações em nível nacional como um mecanismo de coordenação do processo de formação de preços e salários, um papel que entre 1964 e 1974 foi desempenhado pela política salarial.

Em segundo lugar, evitar que nas negociações entre empresas oligopolistas e seus sindicatos funcione a “filosofia do repasse”. As negociações entre as centrais sindicais e de empresários em nível nacional têm o efeito de ampliar sua representatividade para além dos trabalhadores mais fortes e organizados e das grandes empresas oligopolistas, com o consequente aumento da sua responsabilidade social.

Finalmente, intensificar a disciplina do processo de negociações coletivas, aumentando a probabilidade de sucesso de políticas de estabilização com base em acordos negociados em nível agregado, reduzindo (embora não eliminando) os custos dos processos de ajuste macroeconômico.

O esquema tem ainda a vantagem de reforçar uma tendência forte e persistente ao longo dos últimos dez anos.

Desvantagens comumente apontadas a tal evolução: aumento do poder político das entidades representativas dos trabalhadores e dos empresários; perda de poder do mercado como mecanismo de coordenação e maior politização das relações entre capital e trabalho. A importância de se incentivar um comportamento cooperativo nestas organizações é bastante clara.

Finalmente, merece destaque a necessidade de reformas institucionais profundas nas relações entre capital, trabalho e governo no país. Sem elas, dificilmente se estabilizará a economia evitando grave e prolongada recessão e piora acentuada na distribuição da renda.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • AMADEO, E. e CAMARGO, J. M. (1989d) “A Structuralist Analysis of Inflation and Stabilization.” Texto para Discussão n. 212, Departamento de Economia, PUC/RJ.
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  • WINDMULLER, J. P. e GLADSTONE, A. (1986) Employers and Industrial Relations. Oxford, Clarendon Press.
  • 1
    Apesar de haver consenso quanto ao conjunto de causas, existe grande discordância quanto aos pesos a atribuir a cada um dos componentes.
  • 2
    Enquanto o salário real mede o poder de compra dos salários, que é o que interessa ao trabalhador, o custo real do trabalho é uma medida (inversa) da margem de lucros das empresas.
  • 3
    A trajetória da relação entre o custo real do trabalho e a produtividade (isto é, da participação dos salários no valor do produto gerado) mede o quanto das variações na produtividade está sendo repassado aos salários. Já a relação entre o salário real e a produtividade é uma medida do crescimento do poder de compra do salário em termos de todos os bens que compõem a cesta de consumo do trabalhador relativamente à sua produtividade.
  • 4
    Estes são dados para o Brasil e não apenas para São Paulo, calculados a partir da RAIS dos diversos anos.
  • 5
    Para uma análise detalhada deste efeito, ver J. M. Camargo e C. A. Ramos, 1988CAMARGO, J. M. e RAMOS, C. A. (1988) A Revolução Indesejada: Conflito Distributivo e Mercado de Trabalho. Rio de Janeiro, Ed. Campus..
  • 6
    Obviamente, há outros fatores a explicar a aceleração da inflação, dentre os quais os aumentos de preços defensivos, devidos à expectativa de novos congelamentos, o aumento do custo alternativo de manter estoques, devido ao crescimento da taxa de juros etc.
  • 7
    Uma proposta de política de rendas com base na centralização das negociações coletivas encontra-se em Amadeo e Camargo (1989aAMADEO, E. e CAMARGO, J. M. (1989a) “Política Salarial e Negociações: Perspectivas para o Futuro.” Texto para Discussão n. 217, Departamento de Economia, PUC/RJ.).
  • 8
    JEL Classification: J31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1991
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