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Comprando qualidade: costume, gosto e reciprocidade nas feiras livres do Vale do Jequitinhonha1 1 A pesquisa que originou este artigo foi apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), aos quais os autores agradecem. Na época da pesquisa de campo M. S. CRUZ e A. M. ARAÚJO eram estudantes da UFMG e Bolsistas do CNPq.

Buying quality: customs, tastes, and reciprocity at the Jequitinhonha Valley open fairs.

Resumo

Este artigo analisa cinco feiras livres que abastecem uma parte substancial da população urbana do Alto Jequitinhonha na contramão do sistema agroalimentar dominante. Usando dados de fontes primárias e secundárias, são analisadas as relações estabelecidas entre consumidores e vendedores – os quais, em sua maioria, são agricultores – para interpretar as dimensões culturais e econômicas do abastecimento das pequenas cidades. O resultado da pesquisa indica que as feiras se relacionam com a identidade cultural alimentar, o abastecimento de grande parte da população urbana e movimenta parte expressiva da economia local dos municípios.

Palavras-chave:
agricultura familiar; abastecimento urbano; segurança alimentar; feiras livres; Vale do Jequitinhonha

Abstract

This article analyzes five open fairs that supply a substantial part of the urban population of Alto Jequitinhonha in opposition to the dominant agri-food system. Based on primary and secondary data, the relationships between consumers and sellers are analyzed - mostly family farms – to interpret the cultural and economic dimensions of supply in small towns. The results of this research indicate that the fairs are related to food cultural identity, to the supply of the urban population, and move an expressive part of the local economy of the municipalities.

Keywords:
family farm; urban supply; food security; open fair; Jequitinhonha Valley

Introdução

A partir dos anos 1960, aconteceram grandes mudanças na produção agrícola, nos sistemas de abastecimento e nos costumes alimentares da população brasileira. A urbanização acelerada provocou o crescimento da demanda por alimentos, e a opção pela “modernização agrícola” levou à produção em grande escala e concentrou a comercialização em redes de supermercados. O campo passou a produzir bens padronizados de preço baixo, oferta regular e acesso universal. Assim, a produção cresceu, a diversidade diminuiu e a dieta alimentar se tornou mais homogênea.

Essas mudanças, no entanto, não eliminaram hábitos alimentares enraizados em alguns territórios. Nestes, ao longo da história, a diversidade de biomas, costumes e técnicas materiais propiciou o surgimento de diferentes culinárias. Contraditoriamente, à medida que se expandiu a produção agroindustrial, o componente cultural da alimentação se fortaleceu para se manifestar na gastronomia sofisticada de chefes famosos, mas também na diversificada comida regional.

Sistemas territoriais de abastecimento de alimentos costumam ser considerados periféricos por conta da modéstia do vulto econômico e do alcance espacial. Não têm a expressão do agronegócio, de redes de supermercados e marcas nacionais; são invisíveis para as estatísticas econômicas e fazem trocas informais, envolvendo grupos específicos. No entanto, conectam alimentos com estilos de vida, estimulam relações próximas entre consumidores e produtores, e exibem a força de costumes vivos na sociedade, promovendo a comunhão do abastecimento com o território. Desse modo, relacionam alimento, ou segurança alimentar, com cultura material, identidade e gosto, ou seja, com soberania alimentar. Além disso, representam mercados de dimensões expressivas, quando computada a população do país abastecida com essa produção familiar.

Feiras livres da agricultura familiar de muitos pequenos municípios brasileiros são exemplos desse sistema de abastecimento regular, territorializado e soberano. As trocas movimentam alimentos produzidos na proximidade dos consumidores, sedimentam relações de confiança que influem nas características e na qualidade de produtos, certificados pela acreditação social. Feiras realimentam, semanalmente, a perenidade de negócios, solidificando os laços de identidade que conformam o território.

Este artigo investigou o abastecimento da população urbana de pequenos municípios do Alto Jequitinhonha que mantêm as feiras livres na contramão do sistema agroalimentar hegemônico. Para tanto, são descritas as relações entre consumidores e agricultores para compreender as várias dimensões de trocas culturais e econômicas que ocorrem nas feiras. Esses mercados são fundamentados em éticas específicas, que (re)conectam periodicamente produtores e consumidores por meio dos atributos dos produtos, das técnicas materiais e dos costumes, resultando na valorização do sentimento de pertencimento ao território e da agricultura familiar.

Metodologia

Para pesquisar o abastecimento dessas pequenas cidades, foi necessário, primeiro, revisar a literatura produzida sobre feiras livres, Vale do Jequitinhonha, consumo e hábitos alimentares. A literatura revelou os estudos de: Ângulo (2002)Ângulo, J. L. G. (2002). Mercado local, produção e desenvolvimento: estudo de caso da feira de Turmalina, Vale do Jequitinhonha, MG (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Lavras, Lavras., analisando a feira de Turmalina; Noronha (2003)Noronha, A. G. B. (2003). O tempo de ser, fazer e viver: modo de vida das populações rurais do alto Jequitinhonha, MG (Dissertação de mestrado). UFLA, Lavras., descrevendo o cotidiano das famílias feirantes; Ribeiro (2007)Ribeiro, E. M. (Ed.). (2007). Feiras do Jequitinhonha (244 p.). Fortaleza: BNB/ETENE. e Servilha (2008)Servilha, M. M. (2008). As relações de trocas materiais e simbólicas no mercado municipal de Araçuaí-MG (Dissertação de mestrado). UFV, Viçosa., estudando as feiras do Jequitinhonha. Outros estudos sobre consumidores e feiras livres – Garcia (1983)Garcia, M. F. (1983). Negócio e campesinato: uma estratégia de reprodução social. Boletim do Museu Nacional, (45), 1-9., Coêlho (2008)Coêlho, J. D. (2008). Feiras livres de Cascavel e Ocara: caracterização, análise da renda e das formas de governança dos feirantes (Dissertação de mestrado). Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. e Palmeira (2014)Palmeira, M. (2014). Feira e mudança econômica. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 11(1), 324-360. – sugeriram indagações sobre as relações entre consumidores e feirantes de pequenas cidades. Essa literatura, principalmente, deu base às questões formuladas neste artigo e contribuiu para definir os métodos e técnicas usados no estudo sobre feiras e abastecimento urbano.

Por sua vez, as cidades pesquisadas – Chapada do Norte, Itamarandiba, Minas Novas, Turmalina e Veredinha – foram escolhidas a partir de um critério prático: a existência de iniciativas consolidadas em apoio às feiras livres dirigidas por órgãos públicos, agências de desenvolvimento rural ou associações da sociedade civil. Nesses municípios do Alto Vale do Jequitinhonha (MG), as associações de feirantes e organizações públicas forneceram suporte em termos de mediação, planejamento, cessão de pessoal e colaboração na investigação.

A pesquisa de campo se iniciou com visita exploratória em cada feira, com propósito de classificar e contar os pontos de vendas, identificar horários de maior fluxo, definir um sistema de contagem dos consumidores e as condições práticas de entrevistá-los. Cada visita resultou em um croqui, que delimitou os espaços do mercado e orientou o dimensionamento da equipe necessária para entrevistas e contagem de frequentadores. A análise do espaço e da dinâmica da feira foi inspirada em Malinowsky & De la Fuente (1957))Malinowsky, B., & De la Fuente, J. (1957). La economia de un sistema de mercados en México. Acta Anthropologica, 1(2), 1-187..

A pesquisa, então, foi orientada para dois propósitos. Primeiro, dimensionar o número de frequentadores e consumidores nas feiras. Frequentadores foram contados pelos pesquisadores, que se colocavam nas entradas das feiras e distribuíam tarjetas de cores diferentes para homens e mulheres. A quantidade de tarjetas distribuídas – com a frase inócua “Valorize a feira livre da sua cidade”, que estimulava o descarte imediato e o desinteresse em recebê-la novamente – indicava quantas pessoas entravam na feira. Na contagem, que tinha a duração da feira, foi necessário que a Prefeitura Municipal usasse tapumes para reduzir o número de entradas do mercado. Mas como nem todos os frequentadores são consumidores, foi necessário levantamento minucioso adicional, mais trabalhoso, feito apenas em uma feira de porte médio (Turmalina) para computar aqueles que saíam da feira levando compras. O levantamento revelou que 80,48% dos frequentadores eram consumidores e serviu como base de cálculo para todos os municípios. Essa técnica foi adaptada de Ribeiro (2007)Ribeiro, E. M. (Ed.). (2007). Feiras do Jequitinhonha (244 p.). Fortaleza: BNB/ETENE..

O segundo propósito foi entrevistar consumidores. Conhecendo seu número, foi determinada amostra intencional mínima de 3% por feira, totalizando 230 entrevistas distribuídas proporcionalmente pelos cinco municípios. As entrevistas aconteciam ao longo da duração da feira, executadas em blocos, a cada hora, de modo a recolher informações de todos os tipos de consumidores, desde aqueles que madrugavam para aproveitar os melhores produtos até os compradores da “xepa” em fim de feira. No entanto, 80% das entrevistas foram executadas no período indicado por feirantes como sendo o pico de frequência. O questionário abordou perfil, renda, gastos e preferências do consumidor, além de relações com produtores e destino dos produtos comprados. A pauta das entrevistas foi baseada em Garcia (1983Garcia, M. F. (1983). Negócio e campesinato: uma estratégia de reprodução social. Boletim do Museu Nacional, (45), 1-9., 1992Garcia, M. F. (1992). O segundo sexo do comércio: camponesas e negócio no Nordeste do Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 7(19), 1-15.), Ângulo (2002)Ângulo, J. L. G. (2002). Mercado local, produção e desenvolvimento: estudo de caso da feira de Turmalina, Vale do Jequitinhonha, MG (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Lavras, Lavras., Ribeiro (2007)Ribeiro, E. M. (Ed.). (2007). Feiras do Jequitinhonha (244 p.). Fortaleza: BNB/ETENE., Servilha (2008)Servilha, M. M. (2008). As relações de trocas materiais e simbólicas no mercado municipal de Araçuaí-MG (Dissertação de mestrado). UFV, Viçosa. e Palmeira (2014)Palmeira, M. (2014). Feira e mudança econômica. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, 11(1), 324-360..

Por fim, as informações qualitativas foram organizadas, e os dados quantitativos, sistematizados, usando estatística descritiva e obedecendo a um plano tabular que seguiu a ordem das perguntas do questionário. Inicialmente, foram reunidas as informações por município, que deram base para relatórios analíticos que realçavam especificidades. Em seguida, as informações foram integradas e analisadas em uma única matriz para os cinco municípios. Na redação do artigo, os dados foram analisados a partir de informações qualitativas e quantitativas, sempre combinadas com anotações de campo para dar suporte à interpretação do conteúdo. Aqui também a literatura sobre abastecimento urbano forneceu elementos comparativos para os resultados, indicando mudanças de posturas e procedimentos.

Abastecimento urbano

A importância das cidades cresceu à medida que a industrialização se expandiu no Brasil. Grandes migrações dos anos 1930/1970 concentraram nas metrópoles uma população composta por imigrantes recentes que não produziam seus próprios alimentos (Martine, 1994Martine, G. (1994). Estado, economia e mobilidade geográfica: retrospectiva e perspectivas para o fim do século. Revista Brasileira de Estudos de População, 11(1), 41-60.). Em consequência, o abastecimento urbano ganhou importância, e o sistema agroalimentar foi reorganizado para atender à demanda crescente, ocasionando o desmonte do antigo “complexo rural” e a emergência do “complexo agroindustrial”. O complexo rural, fundamentado no autoconsumo e na venda ocasional de excedentes, era constituído por unidades rurais autárquicas que abasteciam a população no espaço restrito da vizinhança. A partir dos anos 1950/1960, o complexo agroindustrial integrou cadeias capitalizadas de produção e processamento, multiplicou a escala e a abrangência espacial da distribuição de alimentos, subordinando a agricultura à indústria. Isso implicou mudanças nas unidades rurais, nas técnicas de produção e na distribuição. A reestruturação do sistema agroalimentar, ao mesmo tempo, abasteceu a população urbana, simplificou a pauta alimentar, concentrou a produção e centralizou o capital (Carmo, 1996Carmo, M. S. (1996). (Re)estruturação do sistema agroalimentar do Brasil. São Paulo: Instituto de Economia Agrícola. 255 p.; consultar também Delgado, 1985Delgado, G. C. (1985). Capital financeiro na agricultura no Brasil: 1965-1985 (240 p.). São Paulo: Ícone; Campinas: UNICAMP.; Kageyama, 1990Kageyama, A. (1990). O novo padrão agrícola brasileiro: do complexo rural aos complexos agroindustriais. In G. C. Delgado & C. M. Villa Verde (Eds.), Agricultura e políticas públicas (Série Ipea, pp. 113-223). Brasília: IPEA.; McMichael, 2005McMichael, P. (2005). Global development and the corporate food regime. In F. Buttel & P. McMichael (Eds.), New directions in the sociology of global development (pp. 265-299). Amsterdam: Elsevier., 2009McMichael, P. (2009). A food regime genealogy. The Journal of Peasant Studies, 36(1), 139-169.).

A expressão que resume essa transformação no campo é “revolução verde”. É o sinônimo da “modernização” da agricultura brasileira na segunda metade do século XX, que capitalizou produtores, acentuou desigualdades rurais e excluiu a agricultura familiar da política agrícola (Szmrecsányi & Ramos, 2002Szmrecsányi, T., & Ramos, P. (2002). O papel das políticas governamentais na modernização da agricultura brasileira. In T. Szmrecsányi & W. Suzigan (Eds.), História econômica do Brasil contemporâneo (2. ed., pp. 227-249). São Paulo: Hucitec; ABPHE; Edusp; Imprensa Oficial do Estado.; Grisa & Schneider, 2014Grisa, C., & Schneider, S. (2014). Três gerações de políticas públicas para a agricultura familiar e formas de interação entre sociedade e estado no Brasil. Revista de Economia e Sociologia Rural, 52(Supl. 1), 125-146.). A abertura comercial dos fins do século XX aprofundou a especialização da produção agroalimentar, estabelecendo novos padrões físicos, sanitários e comerciais, que, conforme Wilkinson (2008)Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS. e Boucher (2012)Boucher, F. (2012). De la AIR a los SIAL: reflexiones, retos y desafios en América Latina. In F. Boucher, A. E. Ortega & M. R. P. Leglise (Eds.), Sistemas agroalimentarios localizados en América Latina. Ciudad Del Mexico: Porrua., influíram nas redes de abastecimento e nos hábitos de alimentação.

Os mercados para a produção diversificada da agricultura familiar se estreitaram com a integração do sistema agroalimentar à indústria. Wilkinson (2008)Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS. notou que restaram poucos canais de comercialização para esses agricultores, como venda direta, compra pública, feira livre, mercados agroecológicos, étnicos e artesanais para a agroindústria rural. O autor também enfatizou que o acesso a esses canais é, contraditoriamente, uma potencialidade: apresenta vantagens competitivas, estimula a criação das redes solidárias e potencializa dinâmicas econômicas territoriais. Nesse quadro de limitações e potencialidades, as relações sociais (re)valorizaram e (re)conectaram agricultores e consumidores, construindo novas experiências e abordagens sobre mercados alimentares, produção e consumo (Brunori, 2007Brunori, G. (2007). Local food and alternative food networks: a communication perspective. Anthropology of Foods, 2.; Fonte, 2008Fonte, M. (2008). Knowledge, food and place: a way of producing, a way of knowing. Sociologia Ruralis, 48(3), 200-222.).

É costume sedimentado no Brasil o consumo de alimentos produzidos com recursos locais. Autores como Gilberto Freyre (2007)Freyre, G. (2007). Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil (280 p.). São Paulo: Global. e Josué de Castro (1946)Castro, J. (1946). Geografia da fome. Rio de Janeiro: O Cruzeiro. observaram que a cultura alimentar do país guarda relação forte com a “ecologia”, termo usado por Freyre para definir as condições locais de produção. Vem daí a solidez dos sistemas locais de produção e abastecimento, fundamentados em produtos relacionados à cultura e ao território e que se organizam para reagir ao sistema agroalimentar dominante (Maluf, 2004Maluf, R. S. (2004). Mercados agroalimentares e agricultura familiar no Brasil. Ensaios FEE, 25(1), 299-322.; Wilkinson, 2008Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS.; Pecqueur, 2009Pecqueur, B. (2009). A guinada territorial da economia global. Política e Sociedade: Revista de Sociologia Política, 8(14), 79-105.; Boucher, 2012Boucher, F. (2012). De la AIR a los SIAL: reflexiones, retos y desafios en América Latina. In F. Boucher, A. E. Ortega & M. R. P. Leglise (Eds.), Sistemas agroalimentarios localizados en América Latina. Ciudad Del Mexico: Porrua.). Assim, foram revalorizados ou construídos novos mercados alimentares.

Goodman (2002)Goodman, D. (2002). Rethinking food production-consumption: integrative perspectives. Sociologia Ruralis, 42(4), 271-277. indica que a qualidade ganhou relevância com a influência de consumidores que refletem sobre suas preferências alimentares e, desse modo, induzem novas formas de produção e consumo de alimentos. Essa tendência se tornou mais afirmativa com a crítica ambiental, social e econômica à revolução verde, que questionou as estruturas de poder que orientam o sistema agroalimentar e privilegiou alimentos considerados saudáveis e artesanais. Então, prosperaram arranjos institucionais, mercados e políticas públicas que incentivaram a articulação entre produção e consumo para reinventar padrões, escalas e qualidades na abordagem do abastecimento, valorizando circuitos de comercialização de abrangência territorial em novos mercados que seriam socialmente construídos, embasados no enraizamento social. Esses temas foram explorados por autores como Goodman (2002)Goodman, D. (2002). Rethinking food production-consumption: integrative perspectives. Sociologia Ruralis, 42(4), 271-277., Maluf (2004)Maluf, R. S. (2004). Mercados agroalimentares e agricultura familiar no Brasil. Ensaios FEE, 25(1), 299-322., Wilkinson (2008)Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS. e Cassol & Schneider (2015)Cassol, A., & Schneider, S. (2015). Produção e consumo de alimentos: novas redes e atores. Lua Nova, 2015(95), 143-180..

Consumidores que mantiveram laços sólidos com seus costumes alimentares fortaleceram mercados específicos, locais ou próximos; já produtores agregaram valor ao seu capital ecológico para criar produtos artesanais com base nos recursos naturais do território. Alguns autores destacam que esses mercados são socialmente construídos por uma rede de atores, governados por normas formais e informais e podem ser caracterizados como “imersos” (Cassol & Schneider, 2015Cassol, A., & Schneider, S. (2015). Produção e consumo de alimentos: novas redes e atores. Lua Nova, 2015(95), 143-180.) ou “aninhados” (Ploeg, 2016Ploeg, J. D. (2016). Mercados aninhados recém-criados: uma introdução teórica. In F. M. Marques, M. Conterato & S. Schneider (Eds.), Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Porto Alegre: Editora UFRGS.). São mercados ocupados por produtos novos ou renovados, às vezes com apoio institucional, de grupos, parcerias e redes de comercialização. É assim que ganha força a comercialização da produção das hortas domésticas e das agroindústrias rurais ao redefinir as feiras livres, os mercados institucionais e circuitos locais, multiplicando os sistemas de distribuição e espaços de venda e distribuição. A pressão por especialização e ganhos de escala também estimulou estratégias de diversificação e de pequena escala que dinamizaram a produção da agricultura familiar (Wilkinson, 2008Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS.; Boucher, 2012Boucher, F. (2012). De la AIR a los SIAL: reflexiones, retos y desafios en América Latina. In F. Boucher, A. E. Ortega & M. R. P. Leglise (Eds.), Sistemas agroalimentarios localizados en América Latina. Ciudad Del Mexico: Porrua.; Cassol & Schneider, 2015Cassol, A., & Schneider, S. (2015). Produção e consumo de alimentos: novas redes e atores. Lua Nova, 2015(95), 143-180.; Ploeg, 2016Ploeg, J. D. (2016). Mercados aninhados recém-criados: uma introdução teórica. In F. M. Marques, M. Conterato & S. Schneider (Eds.), Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Porto Alegre: Editora UFRGS.).

Mas a inserção da agricultura familiar em mercados agroalimentares específicos também se baseou na ampliação da oferta de produtos de elevada qualidade. Qualidade aqui deve ser compreendida como atributo do alimento que não é destinado apenas a suprir necessidades humanas básicas, mas também a contemplar aspectos sociais, culturais, religiosos, políticos e econômicos, conectando o alimento com a história da sociedade que abastece. Essa relação entre sociedade e alimento é a manifestação da “soberania alimentar”, conceito que define o direito da população de decidir sobre seus costumes alimentares e explica os estilos próprios de alimentação que relacionam a comida com os fundamentos imateriais do território. Na composição da comida, entram produtos agrícolas e relações simbólicas. Já a dieta é orientada por padrão de gosto que não é exclusivo da pessoa, mas construído pela sociedade (Mintz, 2001Mintz, S. W. (2001). Comida e antropologia: uma breve revisão. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 16(47).; Carneiro, 2003Carneiro, H. (2003). Comida e sociedade: uma história de alimentação (4. ed., 185 p.). Rio de Janeiro: Campus.; Sonnino & Marsden, 2006Sonnino, R., & Marsden, T. (2006). Beyond the divide: rethinking relationships between alternative and conventional food networks in Europe. Journal of Economic Geography, 6(2), 181-199.; Dutra, 2007Dutra, R. C. A. (2007). Família e redes sociais: um estudo sobre práticas alimentares no meio urbano (Tese de doutorado). UFRJ, Rio de Janeiro.; Cruz & Schneider, 2010Cruz, F. T., & Schneider, S. (2010). Qualidade dos alimentos, escalas de produção e valorização de produtos tradicionais. Revista Brasileira de Agroecologia, 5(2), 22-38.).

Produtos com características locais precisam evidentemente de canais também próximos de distribuição. Assim, compreende-se a atualidade da reflexão sobre circuitos curtos de comercialização – termo usado para definir espaços de transações locais, sistemas de trocas na proximidade em que compradores adquirem diretamente do produtor bens produzidos na localidade e comercializados nas suas imediações geográficas (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, 2014Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL. (2014). Fomento de circuitos cortos como alternativa para la promoción de la agricultura familiar (Boletín CEPAL-FAO-IICA, pp. 1-14).). O conceito permite repensar a organização dos mercados por reunir segurança e soberania alimentar: abastecimento, logística, sustentabilidade, renda, cultura material e costumes locais (Chonchol, 2005Chonchol, J. (2005). A soberania alimentar. Estudos Avançados, 19(55), 33-48.). A oferta local, originada das dinâmicas comerciais, sociais e culturais do território, recebe o valor agregado pela biodiversidade do lugar e conecta campo e cidade, abrindo oportunidade para estabilizar a renda de produtores e o abastecimento dos consumidores. Os circuitos curtos, de acordo com autores como Sabourin (2011)Sabourin, E. (2011). Teoria da reciprocidade e sócio-antropologia do desenvolvimento. Sociologias, 13(27), 24-51., Niederle (2013)Niederle, P. A. (2013). Construção social de mercados e novos regimes de responsabilização no sistema agroalimentar. Agriculturas, 10(2), 4-7., Gazolla & Schneider (2017)Gazolla, M., & Schneider, S. (2017). Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas. In S. Schneider & M. Gazolla (Eds.), Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas (pp. 9-27). Porto Alegre: Ed. UFRGS., sustentam-se pela relação de proximidade, sedimentada ao longo da história e baseada, sobretudo, nas relações de confiança.

Cadeias curtas de abastecimento são, por isso, instrumentos importantes para repensar a organização dos mercados, a localização dos sistemas alimentares e a qualidade dos alimentos, geralmente atestada pelos consumidores. A valorização cultural da produção alimentar de um território se apoia nesses circuitos de vendas que agricultores familiares mantêm abertos, renovando os antigos ou, às vezes, criando novos formatos de produção e consumo de alimentos originados do campo. Sempre, porém, são fundamentados em produção de pequena escala, adaptada ao gosto do lugar e com elevado valor agregado pela cultura material do território, que sedimenta os canais de abrangência territorial. E como o acesso a esses mercados pode ser trabalhoso, são fundamentais arranjos institucionais e iniciativas locais, ao lado de políticas públicas, para dinamizar o escoamento da produção e solidificar os mercados (Maluf, 2004Maluf, R. S. (2004). Mercados agroalimentares e agricultura familiar no Brasil. Ensaios FEE, 25(1), 299-322.; Chonchol, 2005Chonchol, J. (2005). A soberania alimentar. Estudos Avançados, 19(55), 33-48.; Wilkinson, 2008Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS.; Schmitt, 2011Schmitt, C. J. (2011). Encurtando o caminho entre a produção e o consumo de alimentos. Agriculturas, 8(3), 4-8.).

A discussão sobre construção social de mercados agroalimentares, feita por autores como Maluf (2004)Maluf, R. S. (2004). Mercados agroalimentares e agricultura familiar no Brasil. Ensaios FEE, 25(1), 299-322., Wilkinson (2008)Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS., Schmitt (2011)Schmitt, C. J. (2011). Encurtando o caminho entre a produção e o consumo de alimentos. Agriculturas, 8(3), 4-8., Niederle (2013)Niederle, P. A. (2013). Construção social de mercados e novos regimes de responsabilização no sistema agroalimentar. Agriculturas, 10(2), 4-7., Cassol & Schneider (2015)Cassol, A., & Schneider, S. (2015). Produção e consumo de alimentos: novas redes e atores. Lua Nova, 2015(95), 143-180. e Ploeg (2016)Ploeg, J. D. (2016). Mercados aninhados recém-criados: uma introdução teórica. In F. M. Marques, M. Conterato & S. Schneider (Eds.), Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Porto Alegre: Editora UFRGS., tem contribuído para avançar na compreensão das relações entre abastecimento urbano e agricultura familiar. Diante das dificuldades para escapar de mercados dominados pelo sistema agroalimentar hegemônico, da necessidade de consolidar mercados que assegurem a autonomia de agricultores, e considerando a preferência de consumidores por alimentos locais, refletir sobre a organização desses mercados torna-se precondição para ampliá-los.

Cadeias curtas de produção e abastecimento de alimentos operam a partir de normas peculiares – conhecimento, respeito, reciprocidade – que adquirem importâncias variadas em territórios diversos, sustentando contrapontos aos mercados globalizados nos quais imperam grandes redes de produtos agroindustrializados que predominam no varejo (Renting et al., 2003Renting, H., Marsden, T., & Banks, J. (2003). Understanding alternative food networks: exploring the role of short food supply chains in rural development. Environment & Planning, 35, 393-411.; Belletti & Marescotti, 2020Belletti, G., & Marescotti, A. (2020). Short food supply chains for promoting local food on local markets. United Nations Industrial Development Organization.). Construindo mercados, apoiando costumes e assegurando alimento e renda, os circuitos curtos podem, por essa via, contribuir muito para o desenvolvimento rural, como enfatiza Ploeg (2016)Ploeg, J. D. (2016). Mercados aninhados recém-criados: uma introdução teórica. In F. M. Marques, M. Conterato & S. Schneider (Eds.), Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Porto Alegre: Editora UFRGS..

É assim que, partindo da reflexão sobre mercados, pode ser compreendida a posição singular das feiras do Vale do Jequitinhonha. A hegemonia do agronegócio e os padrões de exigência de mercados globais reduzem as possibilidades de entrada da agricultura familiar nos mercados. Mas agricultores e consumidores fiéis aos costumes alimentares e aos canais de proximidade garantem esse mercado que abastece uns e absorve a produção de outros. Nesses espaços, principalmente nos mercados municipais das pequenas cidades, acontece grande parte da comercialização dos agricultores familiares do Alto Jequitinhonha.

Feiras do Jequitinhonha

O povoamento colonizador do Jequitinhonha mineiro está associado à descoberta dos diamantes nas cabeceiras do rio, que levou à criação do Distrito Diamantino, explorado pela Coroa Portuguesa desde o século XVIII. A mineração orientou o povoamento, marcou a história da região e deixou como legado o esgotamento das minas. A crise da mineração no século XIX tornou a agricultura a principal ocupação da população que se dirigiu para áreas férteis próximas da água, as “grotas”, já que as terras altas ou “chapadas”, usadas em comum para coleta de frutos silvestres e cria de gado, não eram próprias para cultivos tradicionais (Graziano & Graziano Neto, 1983).

Situado a nordeste de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha é composto por 59 municípios distribuídos entre os territórios do Alto, Médio e Baixo Jequitinhonha. Essa delimitação, criada pelo extinto Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais (PRONAT), é adotada pelas organizações de desenvolvimento rural e usada neste artigo. O Alto Jequitinhonha é a porção do vale associada à exploração colonial do diamante, paisagem de grotas, chapadas e campos cobertos por cerrados e transição para Mata Atlântica e Caatinga. É composto por 20 municípios com proximidade geográfica e similaridades culturais, sociais e econômicas (Fundação João Pinheiro, 2017bFundação João Pinheiro – FJP. (2017b). Plano de desenvolvimento do Vale Jequitinhonha. Recuperado em 12 de março de 2020, de http://www.bibliotecadigital.mg.gov.br
http://www.bibliotecadigital.mg.gov.br...
).

A partir dos anos 1970, a monocultura de eucaliptos redefiniu a paisagem agrária do território: grandes empresas se apropriaram das chapadas de uso comum de agricultores, os quais então se concentraram nas grotas para recriar seus modos de vida e vínculos materiais e simbólicos com a terra. A agricultura familiar é majoritária no rural do Alto Jequitinhonha, representando 70,85% dos estabelecimentos e ocupando 77,51% da população rural (Caldas, 2018Caldas, A. L. T. (2018). O Vale do Jequitinhonha em números: análise quantitativa da MRH de Capelinha a partir de quatro bancos de dados (Trabalho de conclusão de curso). ICA/UFMG.).

A expressiva presença de agricultores familiares, que se organizam em associações, sindicatos e comunidades, conforma a identidade e o sentimento de pertencimento a esse território, onde a maioria dos centros urbanos tem menos de 50 mil habitantes. Formam redes de pequenas cidades que mantêm vínculos culturais e de abastecimento muito fortes com seu entorno rural, cimentados por parentesco e costumes. Nesses municípios, cuja economia é baseada em comércio, serviços e agropecuária, a feira livre responde por parte considerável do abastecimento urbano, sendo espaço de trocas sociais, culturais e econômicas (Ribeiro, 2007Ribeiro, E. M. (Ed.). (2007). Feiras do Jequitinhonha (244 p.). Fortaleza: BNB/ETENE.; Fundação João Pinheiro, 2017bFundação João Pinheiro – FJP. (2017b). Plano de desenvolvimento do Vale Jequitinhonha. Recuperado em 12 de março de 2020, de http://www.bibliotecadigital.mg.gov.br
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).

Os municípios analisados neste artigo ficavam, em média, a 20 km um do outro, e, de acordo com o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2010). Censo demográfico [cidades] 2010. Recuperado em 15 de março de 2020, de https://www.ibge.gov.br
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, a população desses municípios totalizava 101.762 habitantes, dos quais 55,97% eram população urbana, e 44,03%, rural, percentual elevado quando comparado às médias de população rural de Minas Gerais (14,71%) e do Brasil (15,64%), segundo o mesmo Censo Demográfico.

Mas as singularidades não são apenas demográficas; elas abrangem também abastecimento alimentar. No território, a “revolução verde” expropriou agricultores familiares. No entanto, a base tradicional do sistema de produção de alimentos permaneceu usando técnicas costumeiras, seguindo as normas do gosto do lugar e do aprendizado criado e transmitido entre gerações. Os produtos da agricultura são trocados nas comunidades rurais e nas famílias, são vendidos de porta em porta nas cidades e, sobretudo, são comercializados nas feiras livres (Galizoni et al., 2019Galizoni, F. M., Silva, E. P. F, Moreira, T. M. B., Caldas, A. L. T., Maltez, M. A. P. F. (2019). Mantimento, alimento, sustento. In E. M. Ribeiro (Ed.), Do engenho à mesa (pp. 69-80). Belo Horizonte: Editora UFMG.).

As feiras do Jequitinhonha acontecem em prédios públicos, zelados pela administração municipal, e vendem alimentos ao natural ou processados em um dia fixo da semana. Recebem apoios maiores e menores das prefeituras: desde cuidados básicos de conservação, limpeza, oferta de bancas e energia elétrica, até programas consolidados, como transporte gratuito para feirantes, compras de excedentes e fundos rotativos solidários. A feira, no entanto, é um fenômeno autogovernado, isto é, os feirantes decidem em comum sobre a distribuição da produção no espaço, determinam produtos, quantidades e preços que são ofertados nas feiras e, principalmente, consideram aquele seu lugar de trabalho. É um equipamento comunitário construído coletivamente e regulado pelos usuários. Assim, cada feira municipal tem normas próprias, que podem ser mudadas por agricultores-feirantes em negociação com prefeituras, e se apoia em organizações como sindicatos de trabalhadores rurais, associações rurais e serviços de extensão, que formam a rede aliada de suporte.

Na paisagem da cidade, a feira fica na área central, próxima ao aglomerado de comércio. Raramente é grande a distância do centro ao bairro. Isso facilita o acesso de consumidores de qualquer bairro ou renda, que podem chegar ao mercado em poucos minutos. A feira livre democratiza o acesso ao alimento, porque vende a preços baixos – resultado da concorrência entre vendedores, da negociação em cada compra e da “xepa” – e porque o acesso é facilitado pela centralidade espacial na cidade. Ao facilitar ou reduzir obstáculos ao acesso tanto ao alimento culturalizado (produtos agroindustrializados e da coleta, principalmente) quanto ao alimento fresco da horta e do pomar, a feira influi na qualidade da nutrição dessas cidades. Elimina também o fenômeno dos “desertos alimentares”, que, conforme Maluf & Zimmermann (2020)Maluf, R. S., & Zimmermann, S. A. (2020). Antigos e novos hábitos na alimentação de famílias agrícolas de Chapecó e região. Estudos Sociedade e Agricultura, 28(1), 48-77. http://dx.doi.org/10.36920/esa-v28n1-3
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, é acentuado nas cidades grandes, onde a concentração espacial da oferta de alimentos de qualidade dificulta o abastecimento para as populações de baixa renda. Feira, portanto, não é apenas um ponto de compra e venda; é um recurso público para prover abastecimento com qualidade.

Os produtos vendidos nas feiras obedecem a padrões rigorosos. A qualidade é definida na negociação semanal entre feirantes e consumidores, funcionando como filtro que estabelece diferenciais de procedência, gosto e técnica de produção. O “ponto” de produtos como rapadura, farinha de mandioca e requeijão é adaptado à percepção de qualidade atribuída pelos clientes ao produto. É uma criação conjunta, definida entre consumidores e agricultores-feirantes, que não se baseia apenas no produto, mas, sobretudo, nas interações entre os sujeitos que participam da feira.

Comprando qualidade

Quem consome a produção vendida nas feiras livres da agricultura familiar do Alto Jequitinhonha dispõe de muitos lugares para adquirir alimentos, como o supermercado, principal equipamento de abastecimento no país (Carmo, 1996Carmo, M. S. (1996). (Re)estruturação do sistema agroalimentar do Brasil. São Paulo: Instituto de Economia Agrícola. 255 p.; Wilkinson, 2008Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS.). E, conforme Noronha (2003)Noronha, A. G. B. (2003). O tempo de ser, fazer e viver: modo de vida das populações rurais do alto Jequitinhonha, MG (Dissertação de mestrado). UFLA, Lavras., Ribeiro (2007)Ribeiro, E. M. (Ed.). (2007). Feiras do Jequitinhonha (244 p.). Fortaleza: BNB/ETENE. e Galizoni et al. (2019)Galizoni, F. M., Silva, E. P. F, Moreira, T. M. B., Caldas, A. L. T., Maltez, M. A. P. F. (2019). Mantimento, alimento, sustento. In E. M. Ribeiro (Ed.), Do engenho à mesa (pp. 69-80). Belo Horizonte: Editora UFMG., nas pequenas cidades do Jequitinhonha, alimentos são distribuídos em redes de parentesco que integram campo e cidade, já que quase todas as famílias urbanas têm raízes sólidas no campo, e o costume assegura a partilha cerimonial de frutos da coleta (pequi, mangaba, jerivá), de “miunças” (plantas alimentícias “não convencionais”, como serralha, gondó, maxixe) e produtos do “terreiro” (os quase dons que a natureza provê a quem vive no campo, como mandioca, abóbora, batata-doce). Tem ainda a oferta de porta em porta de verduras, frutas, leite e derivados, negócio regular e semanal de agricultores que produzem na periferia das cidades. E tem a feira livre, na qual as pessoas vão comprar.

Os consumidores dispõem de muitos equipamentos “modernos” e “tradicionais” para conseguir alimentos. A força e o relevo da feira livre no abastecimento não estão apenas na logística e na regularidade, mas também se assenta no entrelaçamento de um conjunto de fatores objetivos e subjetivos que, reunidos, explicam sua proeminência e, ao mesmo tempo, iluminam a relação peculiar que a população do território estabelece com seus alimentos (Ribeiro, 2019Ribeiro, E. M. (Ed.). (2019). Do engenho à mesa:cultura material e indústria rural na agricultura familiar do Jequitinhonha mineiro (324 p.). Belo Horizonte: Editora UFMG.). A feira livre é a adaptação ao lugar de alguns dos pressupostos fundamentais da comercialização agrícola. A oferta é regulada pela escala da localidade, a qualidade do produto passa pela certificação do costume, o preço é submetido à concorrência e ao filtro da negociação, a apresentação do produto é modificada ao sabor da influência do consumidor, e a diversidade reflete a sazonalidade da produção. Por fim, os produtos que se adaptam a esses pressupostos recebem a reputação de excelentes, o que lhes assegura venda e preço. Assim, pode ser resumida sua associação a cadeias curtas de abastecimentos, conforme as definiram Renting et al. (2003)Renting, H., Marsden, T., & Banks, J. (2003). Understanding alternative food networks: exploring the role of short food supply chains in rural development. Environment & Planning, 35, 393-411., Gazolla & Schneider (2017)Gazolla, M., & Schneider, S. (2017). Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas. In S. Schneider & M. Gazolla (Eds.), Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas (pp. 9-27). Porto Alegre: Ed. UFRGS. e Belletti e Marescotti (2020)Belletti, G., & Marescotti, A. (2020). Short food supply chains for promoting local food on local markets. United Nations Industrial Development Organization.. Para o produtor, a feira se torna fonte perene de receita, em que se vende à vista e se provê do dinheiro que precisa. E, para o comprador, a feira é um comércio subordinado à sua influência, feito sob medida para responder às suas demandas por produto, qualidade e confiança, em que grande parte de suas necessidades de alimentos se manifestam, são negociadas e, por fim, satisfeitas.

No Alto Jequitinhonha, a feira conta com alguma proteção em virtude da localização. Primeiro porque a distância das grandes centrais de abastecimento aumenta os custos de transporte e, portanto, os preços de alimentos perecíveis. Segundo porque as cidades são pouco populosas, apresentando riscos para quem pretende ganhar comprando grande quantidade de alimentos perecíveis a longa distância. Terceiro porque os circuitos territoriais de gosto – que estabelecem padrões de qualidade para alimentos do agroextrativismo e da agroindústria doméstica – ao mesmo tempo afirmam a soberania alimentar, limitam ganhos na comercialização desses produtos e transformam as feiras em mercados territoriais quase exclusivos para produtores das proximidades (Ribeiro, 2019Ribeiro, E. M. (Ed.). (2019). Do engenho à mesa:cultura material e indústria rural na agricultura familiar do Jequitinhonha mineiro (324 p.). Belo Horizonte: Editora UFMG.). É evidente que há muito a ser estudado sobre a coexistência de mercados, mas, neste caso, certamente se aplica a afirmação de Ploeg (2016)Ploeg, J. D. (2016). Mercados aninhados recém-criados: uma introdução teórica. In F. M. Marques, M. Conterato & S. Schneider (Eds.), Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Porto Alegre: Editora UFRGS.: a diversidade de mercados decorre de lacunas das cadeias globais de alimentos. Assim, a produção de alimentos perecíveis, vinda de hortas e do agroextrativismo, junto com a produção da indústria doméstica, adquire posição vantajosa nas feiras, aproveitando deseconomias de escala, economias de escopo, diferenciais de preços e barreiras impostas pelas distâncias. Não por acaso, bancas diversificadas reunindo agroindústria doméstica com frutas, legumes e verduras representam dois terços dos pontos de vendas das feiras.

Mas as vantagens da produção local oscilam no decorrer do ano, junto com a oferta. Originária da agricultura familiar, restrita aos circuitos municipais de trocas e vinculada ao agroecossistema local, a feira livre expõe em uma estação o cardápio que a natureza provê. No tempo das chuvas, geralmente de novembro a abril, é maior a oferta de produtos da pecuária e do agroextrativismo; então, vem a safra da lavoura, e aparecem feijões, frutas e os primeiros produtos beneficiados; depois de junho, chegam produtos das hortas domésticas e da agroindústria, em um crescendo que acompanha a estação seca até o auge, de agosto a novembro. No decorrer do ano agrícola, variam produtos, ofertas e cores das feiras. Mas os agricultores-feirantes permanecem sendo os mesmos: com exceção daqueles muito especializados em fumo, doces ou horticultura, por exemplo, a grande maioria produz, como dizem, de “um tudo”, pautas de produção diversificadas que incluem coleta, criação, processamento agroalimentar e lavoura de mantimentos.

A flutuação de oferta é regulada pela natureza. Mas, além de prevista, a oscilação de oferta é bem-vinda para o comprador, que gosta de pautar seu consumo pelas safras e regula o cardápio pela oferta da estação. Assedia os feirantes, ansioso pela chegada dos produtos da época: o pequi, a rapadura nova, o “maxixe-fofo” ou “maxixe-badaró”. A dieta acompanha a variação que ocorre nas estações e no consumo de alimentos no rural, mudando entre “seca-e-s’água”, como dizem, e levando à procura do alimento de safra até o limite da saturação. O costume é a base da dieta variada e também ecologizada – termo preferido por Freyre (2007)Freyre, G. (2007). Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil (280 p.). São Paulo: Global. –, adaptada às ofertas do meio. Consumidores do Alto Jequitinhonha vão à feira para encontrar, no vendedor conhecido, o produto do tempo no preceito do costume. Interagem e trocam informações, e, na negociação, consumidores e feirantes-produtores vão definindo como o produto deve ser oferecido; é algo raro em outros canais de vendas.

Compra na feira é cerimônia cheia de rituais: o comprador vê o produto, mas também cheira, belisca e prova. Vendedor de produtos como queijo, farinha de milho e doces já deixa separada a dose de experimentação, à espera do consumidor. A prova pelo gosto, cheiro e consistência dá elementos para apreciar a técnica, permite avaliar a qualidade, a safra, a apresentação e, por fim, o preço. Para o consumidor, a prova vale mais que a Vigilância Sanitária, porque a apreciação resume sanidade, qualidade, técnica e preço em uma troca rápida de palavras, série ritual de perguntas e respostas que resulta na decisão do consumidor e na avaliação que será memorizada pelo vendedor-produtor2 2 A qualidade tem sido estudada por pesquisadores de produtos artesanais e cadeias curtas de abastecimento. Viana et al. (2019) observaram que, por maior que seja a importância do aspecto sanitário, a qualidade valorizada nos mercados informais deriva de gosto, cultura e tradição. .

Essa avaliação é referência do gosto que, ao longo do tempo, determina mudanças e melhorias no produto. Senhor Dau, da comunidade do Fanha, Minas Novas, há anos leva para o mercado requeijões com casquinhas requeimadas, porque algumas compradoras consideram aquela a prova definitiva do produto artesanal, que efetivamente foi cozido na manteiga. Senhor João Domingos, de Ribeirão Soares, em Turmalina, durante anos ouviu reclamações de clientes sobre o tamanho das abóboras, que eram desperdiçadas por serem grandes demais; daí ele desenvolveu uma semente que produz a abóbora na dimensão exata para ser servida como “molho” em duas refeições de uma família de quatro pessoas e, então, tornou-se referência em vendas.

A negociação contínua da qualidade marca as relações entre consumidor e vendedor: são conversas repetidas, alongadas no tempo, e terminam estabelecendo padrões para os produtos vendidos na feira. É a qualidade definida nessa negociação entre feirantes e consumidores que cria filtros como procedência, textura e técnica de produção, que se transformam em diferenciais. Essa percepção de qualidade nas redes de comercialização da proximidade é claramente contraposta à cadeia agroindustrial de alimentos, conforme destacado por Sonnino & Marsden (2006)Sonnino, R., & Marsden, T. (2006). Beyond the divide: rethinking relationships between alternative and conventional food networks in Europe. Journal of Economic Geography, 6(2), 181-199. e Viana et al. (2019)Viana, C. E., Triches, R. M., & Cruz, F. T. (2019). Que qualidades para quais mercados? O caso do queijo colonial da microrregião de Capanema, Paraná. NERA, 22(49).. A “qualidade” aqui observada condiz com a ideia de lugar de origem e está ligada à agricultura familiar. As características de produtos como rapadura, farinha de mandioca e requeijão foram – e são – submetidas à percepção de qualidade dos consumidores, de modo que o produto final é criação conjunta de consumidores e agricultores, não se baseando apenas em preços, mas, sobretudo, nas interações que a feira estimula entre os participantes da cadeia produtiva. Direito de prova, palpite, crítica e justificativa são trocas extraeconômicas que diferenciam da compra no supermercado. A feira tem vantagens na negociação de qualidade e preço, e tem a organização concorrencial que empodera o comprador.

A maioria dos consumidores compra de vários feirantes, usando qualidade e preço para justificar o procedimento. Mas um percentual importante deles tem fidelidade a um mesmo vendedor, apoiado em relações de confiança e reciprocidade construídas na interação e no costume – conforme apontado por Sabourin (2011)Sabourin, E. (2011). Teoria da reciprocidade e sócio-antropologia do desenvolvimento. Sociologias, 13(27), 24-51. –, que podem ser somadas a parentesco e amizade. A fidelidade não elimina rituais de prova e crítica, além de dar certos direitos, como algum fiado, eventuais agrados e, sempre, o direito à reserva, que leva o feirante a guardar o produto costumeiro até a hora que o cliente chega à banca. Mas a principal vantagem é ter o produto no padrão de qualidade costumeiro.

O agricultor-feirante produz e vende o que consome. É um vendedor peculiar que, sem deixar de cuidar do comércio, cuida ao mesmo tempo da qualidade do seu alimento. São muitos os preceitos para criar um produto sadio: a escolha da terra, a seleção de semente e muda, os tratos culturais orientados pelo conhecimento minucioso dos recursos e das técnicas. Assim é feito o produto “limpo”, sem adubo químico, venenos ou conservantes que a maioria dos feirantes leva às feiras. Frutas, legumes e verduras, principalmente, os produtos mais vendidos nas feiras durante a estação das secas, são colhidos na véspera da venda; frescos e limpos, merecem confiança porque o consumidor sabe que aquele alimento frequenta também a mesa do produtor.

No entanto, os alimentos passam ainda por outro crivo: o gosto. A peculiaridade do gosto se manifesta na escolha de técnicas e insumos usados no processamento, principalmente os derivados de mandioca, milho e cana-de-açúcar: as farinhas, a “goma” ou polvilho, o “fubá de munho”, além de rapadura, melado, açúcar mascavo e açúcar da terra (Ribeiro, 2019Ribeiro, E. M. (Ed.). (2019). Do engenho à mesa:cultura material e indústria rural na agricultura familiar do Jequitinhonha mineiro (324 p.). Belo Horizonte: Editora UFMG.). Com esses ingredientes, fazem iguarias do cotidiano e das festas, por exemplo, a “mistura” do feijão e da carne, os caldos, o “engrossado” com as farinhas, o chá de amendoim, o pé de moleque, as quitandas como bolo “cabo de machado”, bolo “pau a pique”, e a variedade de doces e sequilhos. O gosto inclui produtos do agroextrativismo, como cagaita, panã e murici, e as plantas não convencionais que participam da dieta, como ora-pro-nóbis, gondó e serralha.

Minas Novas é a matriz da cultura alimentar que se espraia pelos municípios de Chapada do Norte, Turmalina e Veredinha, que foram distritos ou povoados da antiga vila de São Pedro do Fanado das Minas Novas. Nesses municípios, acontecem as festas do Rosário, que reúnem campo e cidade em memoráveis celebrações do costume, e nelas os alimentos ocupam espaço destacado. Itamarandiba difere um pouco porque, situado na transição de Cerrado e Mata Atlântica, tem relações fortes com a “mata”. No entanto, se manifesta diferença na religiosidade, prima por exibir produção e consumo diversificados de alimentos por conta da extraordinária biodiversidade proporcionada pelo encontro de biomas e pelos variados agroecossistemas do município, que incluem campo, grota, vereda, montanha, floresta e várzea.

Em todos os municípios, a feira é o principal endereço para encontrar alimentos do gosto. Os ingredientes da pauta alimentar, própria do território e bastante peculiar, são elaborados a partir do conhecimento que agricultores têm sobre produção, coleta e costume alimentar. Como apontou Ribeiro (2019)Ribeiro, E. M. (Ed.). (2019). Do engenho à mesa:cultura material e indústria rural na agricultura familiar do Jequitinhonha mineiro (324 p.). Belo Horizonte: Editora UFMG., esse conhecimento se resume em um termo que feirantes e consumidores usam para definir o produto que entra no padrão territorial de qualidade e gosto: o “capricho”. O produto é “caprichado” e o produtor é “caprichoso” quando se destacam pelo controle da qualidade da produção, incluindo seleção, limpeza, apresentação, embalagem e, sobretudo, sabor. Aqui, é importante lembrar que, quando os produtos caprichados vão passar pelo crivo dos consumidores, já passaram antes pelos critérios da família que consome e produz.

Qualquer feirante-produtor, que é também o primeiro consumidor do que produz, define com exatidão o padrão de qualidade que deve ter o produto levado à feira. Valdemar Alves da Rocha, da comunidade de Gameleira, em Veredinha, feirante desde o começo dos anos 1980, dizia que a rapadura caprichada depende da terra, da muda, da estação da moagem, da técnica de cozimento e, finalmente, do “ponto”, a terminação da produção, quando se encontram técnica material e gosto. Definiu assim:

Rapadura tem que ser doce, que não tenha salgado nenhum. [...] Rapadura boa tem que ser dura; rapadura mole não presta. Rapadura mole já vem da terra, que não é apropriada p’ra fazer rapadura; falam: “não dá ponto”. O erro vem da terra: se vier uma cana da terra que dá salgado, que pegou muito adubo - não é adubo químico só: adubo do curral ou do quintal - a cana não chega no doce. [...] A cor que eu prefiro é branca. Não demais, porque tem um branco, às vezes, que é fora do limite. Mas se for uma rapadura muito escura já vê o defeito da terra. Rapadura escura não fica firme, fica uma rapadura mole. [...] A rapadura caprichada vai ser branca, doce, dura e seca. (Rocha, 2019Rocha, V. A. (2019). Rapadura. In E. M. Ribeiro (Ed.), Do engenho à mesa (pp. 135-145). Belo Horizonte, Editora UFMG., p. 141).

A feira celebra o encontro entre o “capricho” do produtor e o “gosto” do consumidor, que é, por extensão, o mesmo do território. O jogo rápido de palavras trocadas no ritual da compra é a interação que renova o costume e a cultura. A identidade alimentar entre consumidor e produtor transforma a feira: mais que um equipamento público de abastecimento, é o espaço por excelência de manifestação do gosto.

No entanto, o gosto varia muito entre municípios. Mesmo na abrangência restrita do território do Alto Jequitinhonha, as preferências são diferentes de um para outro município. O “ponto” da rapadura considerada de qualidade em Veredinha poderá ser diferente daquele adotado em Chapada do Norte, por exemplo. Além disso, a hierarquia de preferência dos produtos agroindustrializados é também diferente entre municípios. Enquanto o consumidor de Turmalina prefere farinha de milho nas refeições cotidianas, aquele de Itamarandiba escolhe farinha de mandioca. As feiras exibem essa diversidade. A pauta produtiva e as quantidades levadas às feiras são diferentes em um ou outro município. Vem daí também a dificuldade para o agricultor-feirante aumentar a escala de produção, pois o agrado de um “ponto” se restringe a um ou poucos municípios, de modo que o produtor “ganha” na feira em que domina “seu” padrão de gosto e “perde” em todos os outros mercados3 3 A interpretação dos “circuitos de gosto” foi originalmente desenvolvida em Ribeiro (2019). .

Consumidores definem os produtos essenciais, que são aqueles que, para eles, justificam a ida à feira. Por exemplo, em Chapada do Norte: açúcar mascavo, melado, rapadura, queijo, amendoim e feijão-andu; em Itamarandiba: rapadura, queijo, requeijão, panã, pequi, doces caseiros e “goma” ou polvilho de mandioca; em Minas Novas: doces, principalmente pé de moleque e cocada, farinha de milho, queijo cozido, rapadura, feijão-andu e leite fresco; em Turmalina: farinha de milho, mangaba, feijão-andu, carne suína, toucinho e linguiça caseira; em Veredinha: feijão-andu, feijão-de-corda, rapadura e quitandas (bolo, pão e biscoito). No entanto, nem sempre o consumidor encontra na feira esses produtos de gosto. Nesse caso, dois terços deles afirmam que desistem de consumir e não os substituem por produtos de supermercados, sacolões e mercearias, produtos industrializados que consideram de pior qualidade. Vão consumir farinha de mandioca “lavada”, isso é, sem goma? Comprar rapadura salgada, mole ou “cerenta”? Levar farinha de milho descorada ou sem “beijuzinho”?

Entre os produtos “caprichados”, elegem os melhores, os “excelentes”. Cada feira urbana tem seus produtos de excelência feitos por produtores caprichosos, que têm o respeito de todos os feirantes e são referência de qualidade. Esses ganham, além de prestígio, vantagens materiais: os preços são mais elevados, e os produtos se vendem bem cedo nas feiras. A reputação de qualidade pode se apegar ao produtor ou à produtora, à comunidade ou a uma técnica particular. Para chegar à excelência, os produtos dependem de muitos fatores, como procedência, porque cada solo dá um produto diferente; técnica, porque cada processo gera um produto; sanidade, porque um bom produto não pode levar veneno; experiência, porque se consome uma vida para aprender a arte de “dar o ponto”; insumo, porque muda, semente, lenha e água influem no processo produtivo. Por exemplo, a farinha de milho de Lia do Gentio, em Turmalina, é bem torrada, fina, amarelo-firme, sempre acompanhada pelos “beijuzinhos” crocantes misturados na farinha peneirada, sucesso nas feiras de Minas Novas. Além dela, há o pé de moleque de dona Cida, de Minas Novas; o doce de feijão-fava de dona Odília, em Turmalina; a própria rapadura de Valdemar, em Veredinha; a farinha de milho de Graciana, em Chapada do Norte; a farinha de mandioca da comunidade de Santa Joana, em Itamarandiba, ou de Santo Antônio de Baixo, em Minas Novas; os doces de Dona Côca, em Minas Novas; o requeijão de Dona Ilma, em Turmalina. Preço, aqui, do ponto de vista do consumidor, é até secundário.

Os preços de todos os produtos, aliás, flutuam muito nessas feiras. Variam entre cidades, ao longo das estações e no passar do dia. Cada cidade tem uma grandeza de oferta própria, determinada pela disponibilidade de água, boas terras, rodovias, transporte e pelo próprio tamanho do mercado. No decorrer das estações, varia a oferta entre “seca-e-s’água”, oscilando de acordo com o “cálculo” dos agricultores sobre as vendas potenciais, e, às vezes, uma feira é inundada por oferta muito acima da demanda, fazendo a escassez ou o excesso de produtos afetar fortemente os preços.

Mas, independentemente disso, os preços variam pelo menos quatro vezes em um mesmo dia de feira, principalmente de produtos perecíveis. Quando chega nas primeiras horas da manhã, o feirante designa à sua mercadoria o “preço que corre”, formado pela ponderação entre o preço máximo da semana anterior e o volume daquele produto ofertado no dia. Determinar esse preço faz parte do “cálculo” de cada feirante, de sua capacidade de conhecer seu mercado: instalado na banca, sonda vizinhos e, em poucos minutos, já opera no preço equalizado que vigora durante o pico de vendas, que começa às 6 horas da manhã e dura geralmente até as 9 horas. Passado o pico, começa a vigorar o segundo preço, criado nas barganhas após as vendas dos produtos “excelentes” e “caprichados”; quem vendeu tudo até já foi circular pela cidade para “ver as modas”; quem não vendeu se arrisca a voltar para casa com o produto. Em seguida, fim de feira, os produtos animam escambos, e parte daquilo que não foi vendido é trocado entre feirantes. Por fim, já na saída, feirantes costumam doar para instituições de caridade ou hospitais os produtos perecíveis que já não têm a melhor qualidade.

Os consumidores têm consciência dessa oscilação. A partir dela negociam com base na qualidade, no preço e no tempo, que joga contra o “preço que corre”. O regateio que acompanha as transações e cria o burburinho do mercado não se deve somente à apreciação do produto e ao gosto pela conversa. Vem do jogo cuidadoso que brota da flutuação de preços, da busca de novo ponto de equilíbrio na transação entre a qualidade reputada pelo produtor e o menor preço reivindicado pelo consumidor, no momento em que o vendedor ainda tem a seu favor o “preço que corre” e o comprador se favorece do tempo, que também corre, a seu favor.

Nem todos os produtos, porém, têm os preços negociáveis, como é o caso dos produtos da indústria doméstica e dos produtos de excelência. Os primeiros têm preços definidos para toda a safra; os segundos lideram os “preços que correm”, têm consumidores fiéis e são vendidos nos momentos que antecedem a queda de preços.

A feira do Alto Jequitinhonha é o movimento semanal em torno do alimento territorializado. Envolve qualidade, sazonalidade, preço, escala, gosto, história, notícias, dons e fuxicos. Faz notável movimento nos sábados das cidades: pessoas falam ao mesmo tempo, feirantes carregam produtos, consumidores levam compras e o comércio urbano festeja, alvoroçado desde as primeiras horas da manhã. Feira integra negócios e cultura, une quem produz e quem consome, expõe os valores do território nos atributos dos produtos: na espessura da “goma”, no “beijuzinho” torrado da farinha de milho, na consistência da rapadura, na limpeza de vegetais sem veneno, na “carne” do pequi, na oferta das “miunças” não convencionais. Nesses alimentos, como perceberam Mintz (2001)Mintz, S. W. (2001). Comida e antropologia: uma breve revisão. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 16(47)., Brunori (2007)Brunori, G. (2007). Local food and alternative food networks: a communication perspective. Anthropology of Foods, 2. e Malinowsky & De la Fuente (1957)Malinowsky, B., & De la Fuente, J. (1957). La economia de un sistema de mercados en México. Acta Anthropologica, 1(2), 1-187., as pessoas se reconhecem.

Abastecendo em quantidade

Por conta do tamanho da população dos municípios e pela informalidade dos negócios, em razão da modéstia do movimento comparado ao desempenho das empresas do sistema agroalimentar, a feira sequer costuma ser considerada atividade econômica. No entanto, avaliando abastecimento, geração de ocupação e renda na escala da economia do município e do Jequitinhonha, a feira ganha outra dimensão. Ocupa número relevante de produtores, abastece percentual significativo da população urbana, tem grande estabilidade e movimenta volume expressivo de dinheiro.

A Tabela 1 apresenta o número médio de feirantes e consumidores que movimentam as feiras, bem como os dados históricos que dimensionam a frequência em um intervalo longo de tempo. O número de feirantes correspondia aproximadamente a 10% do número de consumidores e compreendia 11,57% dos 6.964 estabelecimentos da agricultura familiar, computados pelo Censo Agropecuário nesses municípios em 2017. Compravam nas feiras 7,44% dos 101.762 habitantes dos cinco municípios, ou 13,31% dos 56.956 habitantes que compunham a população urbana contada em 2010 pelo Censo Demográfico. O afluxo às feiras, considerando o período 2002/2018, cresceu entre 18,50% e 50,32% nos três municípios que têm dados disponíveis sobre a frequência histórica de consumidores. O crescimento no longo prazo indica a expansão desses mercados territoriais em um cenário caracterizado, contraditoriamente, pela centralização da oferta de alimentos em marcas nacionais e redes integradas de abastecimento.

Tabela 1
- Número de feirantes e de consumidores e evolução do número de consumidores de feiras em municípios selecionados do Vale do Jequitinhonha, 2002/2018

Pelo menos dois terços dos consumidores iam à feira toda semana. Havia também aqueles que iam a cada 15 dias, uma vez por mês ou eventualmente. Mas a frequência média era estável e crescente ao longo do tempo, indicando que a feira mantinha posição firme entre os canais de abastecimento usados pela população dos municípios. Consumidores das feiras eram predominantemente mulheres: em Chapada do Norte e Veredinha eram 60% dos compradores; em Itamarandiba, 57%; em Turmalina, 55%; e em Minas Novas, 50%. Além disso, os feirantes afirmam que elas gastavam mais, eram rigorosas no controle de qualidade, aparência e procedência do produto, sempre queriam saber se foi produzido por quem estava vendendo, quando foi produzido e se havia margem para desconto no preço. Minuciosas e exigentes, gastavam muito tempo escolhendo o que compravam. Nas feiras do Jequitinhonha, havia protagonismo das mulheres na negociação dos produtos, o que é diverso do que foi observado por Garcia (1992)Garcia, M. F. (1992). O segundo sexo do comércio: camponesas e negócio no Nordeste do Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 7(19), 1-15. em estudos no Nordeste brasileiro, que percebeu na feira o espaço predominantemente masculino.

A renda média familiar da maioria dos consumidores de Minas Novas (48%), Chapada do Norte (45%) e Veredinha (40%) era de até 1 salário mínimo, que em 2018 valia R$ 954,00. Em Itamarandiba, 45% dos consumidores situavam sua renda entre 1 e 2 salários mínimos, e em Turmalina, 55% deles declaravam renda média familiar acima de 2 salários mínimos. Mais de 60% dos consumidores eram casados, metade tinha entre 41 e 65 anos e pelo menos um terço deles era aposentado. Em Turmalina e Veredinha, aposentados acorriam com mais frequência às feiras livres: 42,5% e 40%, respectivamente. Em seguida, vinham Chapada do Norte com 35% e Itamarandiba com 33%; em Minas Novas, representavam 28% dos consumidores. A participação expressiva de aposentados e mulheres comprando é condição importante para entender as feiras, porque, segundo os feirantes, eram compradores que valorizavam, mais que outros, o alimento “tradicional” – produto “limpo de veneno”, colhido ou beneficiado nas proximidades, seguindo os preceitos de técnicas costumeiras. Além disso, por causa dos programas sociais e previdenciários, mulheres e aposentados têm fluxos regulares de renda, que direcionam, principalmente, para alimentos. Isso os transformava em compradores estáveis, dotados de grande influência sobre o volume de vendas na feira.

Praticamente, todos os produtos comprados na feira eram destinados ao consumo da própria família. É o que acontecia em Itamarandiba, Turmalina e Veredinha. Em Chapada do Norte, todos os consumidores também compravam para o próprio consumo, no entanto, 10% dos compradores, além de consumirem, processavam para fazer doces ou conservas, e outros 10% destinavam à comercialização parte das compras. Em Minas Novas, 92% dos consumidores destinavam as compras ao próprio consumo da família e 8% destinavam alguns dos produtos ao consumo e beneficiamento.

A Tabela 2 combina o número de consumidores presentes nas feiras com o número de pessoas que consumiam nos domicílios alimentos adquiridos nas feiras e a população urbana total para estimar a população urbana abastecida pelas feiras. Nessas cidades, praticamente todos os moradores faziam as principais refeições em casa, o volume de gastos nas feiras era parte importante da despesa com alimentos e o número de alimentados determinava a dimensão da compra. Consumidores de Chapada do Norte adquiriam alimentos para suprir 3,95 pessoas; em Itamarandiba, as compras das feiras supriam 4,17 pessoas; em Minas Novas, 3,38 pessoas; em Turmalina, 4,02 pessoas; e em Veredinha, 3,98 pessoas. Considerando o total da população dos centros urbanos, é possível dimensionar a participação relativa da feira no abastecimento da população urbana, avaliando sua relevância em termos de segurança alimentar. Os dados indicam que 76,23% da população urbana de Itamarandiba consumia alimentos da feira; em Chapada do Norte, esse percentual era de 35,93%; em Minas Novas, correspondia a 33,84%; em Turmalina, a 43,10%; e em Veredinha, a 41,92%. Conforme os dados da Tabela 2, na média, 53,05% do total da população urbana dos municípios consumia alimentos produzidos nas vizinhanças. Esses dados confirmam a observação de Maluf (2004)Maluf, R. S. (2004). Mercados agroalimentares e agricultura familiar no Brasil. Ensaios FEE, 25(1), 299-322., que há quase duas décadas destacou a importância da alimentação produzida no território.

Tabela 2
- Consumidores na feira, média e total de pessoas abastecidas por consumidor, população urbana e percentual de população urbana abastecida pelas feiras livres, por município, 2018

A Tabela 3 apresenta o gasto médio semanal dos consumidores nas feiras dos municípios. O gasto mínimo observado foi de R$ 6,00, e o máximo ultrapassava R$ 100,00. Na feira de Chapada do Norte, o gasto médio por consumidor era de R$ 55,25; em Minas Novas, de R$ 51,90; em Itamarandiba, de R$ 64,79; em Turmalina, de R$ 60,75; e na feira de Veredinha, de R$ 46,00. Consumidores de rendas mais elevadas que frequentavam as feiras de Itamarandiba e Turmalina gastavam mais e abasteciam percentuais maiores da população urbana, revelando que a “tradicionalidade” do consumo na feira não decrescia nas faixas de renda mais elevada. Na média, a despesa com as compras nas feiras alcançou R$ 55,72, ou aproximadamente R$ 222,88 por mês. Com base nesses dados, é possível estimar a participação percentual do alimento produzido nas proximidades no consumo total das famílias. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE, de 2017-2018, indica que a família urbana brasileira, em média, gastava R$ 450,37 com alimentação no domicílio. Assim, nesses cinco municípios, famílias urbanas faziam praticamente 50% de suas despesas com alimentação nas feiras livres, e a despesa mensal total atingia perto de R$ 2 milhões, a preços de 2018.

Tabela 3
- Gasto médio e total semanal nas feiras livres dos municípios pesquisados, 2018

Os dados do abastecimento de alimentos pelas feiras desses municípios estimulam dois comentários. O primeiro deles é que o abastecimento com produtos da proximidade é um fenômeno social e econômico relevante. O segundo é que os dados sugerem que o sistema agroalimentar fordista não é absolutamente hegemônico, conforme observaram agudamente autores de referência, como Wilkinson (2008)Wilkinson, J. (2008). Mercados, redes e valores: o novo mundo da agricultura familiar (216 p.). Porto Alegre: Ed. UFRGS. e Ploeg (2016)Ploeg, J. D. (2016). Mercados aninhados recém-criados: uma introdução teórica. In F. M. Marques, M. Conterato & S. Schneider (Eds.), Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Porto Alegre: Editora UFRGS.. Nesse sentido, as feiras livres coexistem com mercados globais e fordistas, mantendo relações de complementaridade; distinguem-se pelo alcance físico-espacial (Schneider, 2016Schneider, S. (2016). Mercados e agricultura familiar. In F. M. Marques, M. Conterato & S. Schneider (Eds.), Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural (Série Estudos Rurais). Porto Alegre: Editora UFRGS.) ou ocupam “lacunas ou falhas estruturais” das cadeias globais de produção e comercialização de alimentos (Ploeg, 2016Ploeg, J. D. (2016). Mercados aninhados recém-criados: uma introdução teórica. In F. M. Marques, M. Conterato & S. Schneider (Eds.), Construção de mercados e agricultura familiar: desafios para o desenvolvimento rural. Porto Alegre: Editora UFRGS., p.47). Isso ocorre, principalmente, nos pequenos municípios que baseiam o abastecimento em cadeias curtas, caracterizadas pela conexão próxima e direta entre agricultor e consumidor, conforme estudos de Brunori (2007)Brunori, G. (2007). Local food and alternative food networks: a communication perspective. Anthropology of Foods, 2. e Gazolla e Schneider (2017)Gazolla, M., & Schneider, S. (2017). Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas. In S. Schneider & M. Gazolla (Eds.), Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas (pp. 9-27). Porto Alegre: Ed. UFRGS..

Dados expandidos tornam mais notáveis esses comentários. Feiras ocupavam e geravam renda para 11,57% dos agricultores familiares dos municípios estudados. O dado projetado para os 59 municípios do Vale do Jequitinhonha correspondia em 2017 a 4.517 estabelecimentos da agricultura familiar e mais de 10 mil pessoas ocupadas parcialmente na produção de alimentos para pequenas cidades. Igualmente, as feiras absorviam 50% das despesas com alimentos consumidos em domicílio por 230.853 pessoas, que equivaliam a 53,05% da população que vivia em cidades do Jequitinhonha, de acordo com o Censo de 2010. Isso produzia um movimento médio de R$ 4.370.880,00 por cidade/ano, dado que, projetado para todos os municípios, correspondia a 36,48% do total do PIB da agropecuária do Vale do Jequitinhonha4 4 Dados sobre agricultura familiar foram extraídos do Censo Agropecuário 2017. Dados de população coletados no Censo Demográfico 2010. Dados do PIB do Jequitinhonha produzidos por Fundação João Pinheiro (2017a). .

Na região, as feiras têm, efetivamente, proporções importantes em termos de ocupação, abastecimento urbano e criação de valor. Nesse ponto, é importante considerar que a agricultura familiar nos municípios pesquisados ocupava apenas 28,73% da área agrícola e, desde os anos 1970, foi marginalizada em termos de programas de desenvolvimento rural, que privilegiaram monoculturas de eucalipto, café e criação de bovinos em grandes unidades de produção. Por outro lado, os dados indicam a dimensão expressiva da população abastecida, e a expansão em termos de consumidores mostra que existe no Jequitinhonha um sistema de abastecimento agroalimentar diferente daquele que habitualmente é descrito como hegemônico no Brasil. Os dados sugerem que devem existir no país sistemas muito diversificados de abastecimento urbano que, do mesmo modo que no Jequitinhonha, podem ser territorializados, resilientes e nada têm de conjunturais, dado o crescimento de frequentadores e a duração das feiras no longo prazo. Considerando os estudos sobre a concentração de cadeias de abastecimento alimentar, é necessário destacar a importância desse indicador de abastecimento culturalizado que contraria a hegemonia do modelo alimentar fordista. Sem negar a abrangência desse sistema, é preciso considerar que, em termos de abastecimento urbano, feiras livres têm alcance vigoroso.

Considerações finais

A feira é um negócio cotidiano, discreto e informal; é um acontecimento corriqueiro, pouco visível, mas que dá corpo a um grande evento próprio do município e assegura um mercado concorrencial marcado por conceitos de qualidade muito locais, que se manifestam em consensos de gosto, que se tornam regras que normatizam esse mercado. Comparada com as grandezas macroeconômicas do agronegócio, é, aparentemente, insignificante. Mas sua importância própria no abastecimento e na segurança alimentar torna a compreensão e a percepção muito mais complexa: os produtos que chegam à feira circulam nas comunidades rurais, entram nos mercados locais e informais para conformar um sistema territorializado de segurança alimentar que ocupa milhares de agricultores, processadoras e agroextrativistas, anima circuitos comerciais urbanos e oferece com regularidade alimentos para a população.

Essa combinação de comercialização de produtos locais e abastecimento alimentar urbano opera como um circuito curto e territorial, no qual a distribuição é em grande parte concorrencial e autogovernada, privilegiando a norma local e tornando desnecessária a presença de intermediários entre produtores e consumidores. A feira vem crescendo ao longo dos anos, e isso não se explica apenas por fatores relacionados à sociedade e à economia inclusivas, mas também às dinâmicas comerciais, sociais e culturais do território, que fecham o circuito virtuoso de diversificação da produção, autoabastecimento e circulação interna de valores. Gera renda e estabilidade para os produtores, valoriza a produção local e supera em renda tudo que foi construído em meio século de programas públicos orientados para eucalipto, boi gordo e barragem.

  • 1
    A pesquisa que originou este artigo foi apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), aos quais os autores agradecem. Na época da pesquisa de campo M. S. CRUZ e A. M. ARAÚJO eram estudantes da UFMG e Bolsistas do CNPq.
  • 2
    A qualidade tem sido estudada por pesquisadores de produtos artesanais e cadeias curtas de abastecimento. Viana et al. (2019)Viana, C. E., Triches, R. M., & Cruz, F. T. (2019). Que qualidades para quais mercados? O caso do queijo colonial da microrregião de Capanema, Paraná. NERA, 22(49). observaram que, por maior que seja a importância do aspecto sanitário, a qualidade valorizada nos mercados informais deriva de gosto, cultura e tradição.
  • 3
    A interpretação dos “circuitos de gosto” foi originalmente desenvolvida em Ribeiro (2019Ribeiro, E. M. (Ed.). (2019). Do engenho à mesa:cultura material e indústria rural na agricultura familiar do Jequitinhonha mineiro (324 p.). Belo Horizonte: Editora UFMG.).
  • 4
    Dados sobre agricultura familiar foram extraídos do Censo Agropecuário 2017. Dados de população coletados no Censo Demográfico 2010. Dados do PIB do Jequitinhonha produzidos por Fundação João Pinheiro (2017a).Fundação João Pinheiro – FJP. (2017a). IMRS: Índice Mineiro de Responsabilidade Social. Pesquisa por municípios do Alto Jequitinhonha - MG. Recuperado em 18 de maio de 2020, de http://imrs.fjp.mg.gov.br
    http://imrs.fjp.mg.gov.br...
  • JEL Classification: Q13; Q18.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2020
  • Aceito
    25 Jul 2021
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