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Saúde Respiratória e Mecanização da Colheita da Cana-de-Açúcar nos Municípios Paulistas: a importância do Protocolo Agroambiental* * Além das valiosas contribuições de pareceristas anônimos, os autores agradecem o auxílio da dra. Andrea Koga Vicente e do dr. Rafael Terra de Menezes na coleta e no tratamento de alguns dados.

Resumo:

A assinatura do Protocolo Agroambiental do estado de São Paulo em 2007, devido a uma série de motivações econômicas e sociais, desencadeou rápido processo de mecanização da colheita de cana-de-açúcar. O impacto direto da mecanização é a redução das queimadas, prática adotada na colheita manual e que causa sérios problemas respiratórios na população. Nesse contexto, o objetivo principal desse estudo foi verificar se a mecanização da colheita (no município e em seus vizinhos) efetivamente trouxe benefícios à saúde respiratória da população de localidades com produção de cana. Para isso, foram considerados dados da proporção de cana colhida de forma mecanizada nos municípios paulistas entre os anos de 2006 e 2011, bem como referentes às internações por problemas respiratórios no período, sendo a relação entre estas testada por estimações econométricas. Para garantir robustez aos resultados, foram utilizadas diversas estratégias empíricas e características municipais para controlar "fatores de confusão", como indicadores meteorológicos, geográficos e socioeconômicos. Foram encontrados resultados que sugerem uma relação negativa e significativa entre a mecanização e as internações por problemas respiratórios, evidenciando o impacto positivo da mecanização da colheita sobre a saúde respiratória da população, em especial nos idosos, que são mais suscetíveis a sofrer por tais patologias.

Palavras-chaves:
Queimada; Cana-de-Açúcar; Doenças respiratórias; Protocolo agroambiental; Dados em painel.

Abstract:

The signature of Protocolo Agroambiental in 2007 deeply affected the adoption of mechanical harvesting of sugarcane in São Paulo State, Brazil. Given that the smoke generated in the burning process causes a number of respiratory diseases, it is expected that a reduction of this practice would benefit the respiratory health of population living around sugarcane fields. The main goal of this paper was to estimate if the increase in mechanical harvesting is effectively improving the respiratory health of this population. In order to reach this objective, we made estimations using data of the area using mechanized harvesting in São Paulo State municipalities from 2006 to 2011, as well as data about the hospitalization related to respiratory problems in this period. Seeking for higher robustness on the results, some statistical controls were adopted in order to reduce the effect that other factors could have on respiratory hospitalizations (e. g. meteorological, geographical and socioeconomic variables). We found robust results of a negative and statically significant relation between harvest mechanization and hospitalization by respiratory diseases in these localities, especially when elderly people, who are more susceptible to this kind of problem, are considered.

Key-words:
Burning; Sugarcane; Respiratory disease; Protocolo Agroambiental; Panel data.

1. Introdução

A queima da cana-de-açúcar para a colheita é uma prática tradicionalmente utilizada no Brasil para aumentar a produtividade dos cortadores, reduzindo a incidência de lesões causadas pelas folhas cortantes das plantas e por ataques de cobras e de outros animais peçonhentos que habitam os canaviais (BRAUNBECK e MAGALHÃES, 2004BRAUNBECK, A. O.; MAGALHÃES, P. S. G. Colheita sustentável, com aproveitamento integral da cana. Visão Agrícola , v. 1, n. 1, 2004.). Contudo, as queimadas emitem materiais particulados que se precipitam na forma de fuligem, poluindo o ar e impactando sobre a saúde das pessoas, em especial sobre a incidência de várias doenças respiratórias (ARBEX et al., 2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.; RIBEIRO, 2008RIBEIRO, H. et al. Queimadas de cana-de-açúcar e efeitos à saúde humana: revisão da literatura. Revista de Saúde, Meio Ambiente e Sustentabilidade , 2013.). A principal alternativa é a mecanização (máquinas colheitadeiras).

Para lidar com o problema, o governo do estado de São Paulo aprovou, a partir dos anos 1990, várias legislações que buscavam induzir a mecanização. Em um primeiro momento, tanto usineiros como sindicatos de trabalhadores se opuseram, argumentando que geraria elevados custos (compra de colheitadeiras, por exemplo) e desemprego para os cortadores, uma mão de obra pouco qualificada e de difícil realocação na atual dinâmica do mercado de trabalho.

O novo ciclo de crescimento do setor sucroalcooleiro nos anos 2000 mudou esse cenário. O aumento da produção para atender a nova demanda por etanol advinda dos automóveis flex-fuel potencializou o problema das queimadas. Já no âmbito internacional, a expectativa de exportação a países demandantes de produtos com baixo impacto ambiental gerou incentivos para que os produtores elevassem a sustentabilidade socioambiental de seus processos. Dentre as dimensões consideradas por agências ambientais e sistemas voluntários de certificações, as emissões de gases poluentes em processos produtivos são pontos relevantes (PEROSA, 2012PEROSA, B. B. A emergência da governança socioambiental no mercado internacional de biocombustíveis . Tese de Doutorado, Escola de Economia de São Paulo (EESP-FGV), 2012.).

Nesse contexto, produtores e a Secretaria do Meio Ambiente do estado de São Paulo assinaram, em 2007, o Protocolo Agroambiental, acordo que, entre outras medidas, antecipou os prazos definidos em legislações anteriores para o término gradual da queima da cana no estado. Apesar de ser um acordo voluntário, ao longo dos anos, houve grande adesão dos atores do setor devido a fatores que vão desde reduções nos custos dos maquinários até financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para a compra destes.

A partir de então, a mecanização vem substituindo as queimadas nos canaviais paulistas, o que tende a afetar positivamente a qualidade do ar nos municípios com produção e, assim, a incidência de doenças respiratórias. Embora esse efeito seja um dos aspectos declarados como motivadores do Protocolo Agroambiental, poucos estudos avaliaram se o objetivo foi atingido. Tradicionalmente, os trabalhos avaliam a relação entre a produção de cana e a saúde (ARBEX, 2001ARBEX, M. Avaliação dos efeitos do material particulado proveniente da queima da plantação de cana-de-açúcar sobre a morbidade respiratória na população de Araraquara-SP . Tese de Doutorado, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 2001.; CANÇADO et al., 2006CANÇADO, J. E. D. et al. The impact of sugar cane-burning emissions on the respiratory system of children and the elderly. Environmental Health Perspectives , v. 114, n. 5, p. 725-729, 2006.; RIBEIRO, 2008RIBEIRO, H. Queimadas de cana-de-açúcar no Brasil: efeitos à saúde respiratória. Revista Saúde Pública , v. 42, p. 370-376, 2008.; RIBEIRO et al., 2013RIBEIRO, H. et al. Queimadas de cana-de-açúcar e efeitos à saúde humana: revisão da literatura. Revista de Saúde, Meio Ambiente e Sustentabilidade , 2013.; entre outros) e poucos analisam, diretamente, a provável relação entre a mecanização e a saúde. Ademais, apesar dos efeitos spillovers da produção e, assim, das queimadas em um local sobre outros (externalidades ambientais e sobre a saúde) serem apontados pela literatura, também são poucos os estudos que os testaram empiricamente em municípios próximos (CHAGAS et al., 2014CHAGAS, A. L. S., ALMEIDA, A. N.; AZZONI, C. R. Sugar cane burning and human health: a spatial difference-in-difference analysis. Anais do 36ºEncontro da SBE, Natal, 2014.; PARAÍSO, 2014PARAÍSO, M. Avaliação do impacto à saúde causado pela queima prévia de palha de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2014.).

O presente estudo pretendeu contribuir para o preenchimento dessas lacunas na literatura empírica. Considerando a recente expansão da produção e da mecanização e empregando dados ainda pouco explorados disponibilizados pelo projeto Canasat do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o objetivo foi averiguar se os graus de mecanização da colheita em um município e no entorno (microrregiões e municípios limítrofes) afetam a morbidade por doenças respiratórias, calculada com dados do Ministério da Saúde. Para isso, foram realizadas estimações em painel com dados de municípios paulistas referentes ao período de 2006 a 2011.

Para garantir robustez na interpretação das relações obtidas como efeitos causais, foram controlados vários atributos (socioeconômicos, meteorológicos, de oferta de serviços de saúde, entre outros), observados, não observados fixos no tempo e, por estratégias de identificação fundamentadas pelas literaturas de saúde e sobre o setor, não observados variantes no tempo e de forma distinta nos municípios. Assim, procurou-se lidar com "fatores de confusão", efeitos heterogêneos e viés de autosseleção apontados como limitantes à atribuição de causalidade em análises desse tipo (ARBEX et al., 2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.; PARAÍSO, 2014PARAÍSO, M. Avaliação do impacto à saúde causado pela queima prévia de palha de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2014.; NICOLELLA e BELLUZZO, 2015NICOLELLA, A. C.; BELLUZZO, W. The effect of reducing the pre-harvest burning of sugar cane on respiratory health in Brazil. Environment and Development Economics , v. 20, 2015.).

Vale apontar que foram encontrados apenas dois trabalhos que relacionaram indicadores de saúde respiratória à mecanização da colheita. O primeiro é Paraíso (2014PARAÍSO, M. Avaliação do impacto à saúde causado pela queima prévia de palha de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2014.), que, na verdade, usou uma medida inversa à mecanização, o percentual de queima municipal (proporção da área com queima na área total do município). Por regressões espaciais bayesianas com informações dos municípios paulistas em 2010 (meses com colheita) e o controle de "fatores de confusão", os resultados não refutaram a hipótese de que a mecanização melhora a saúde em um município.

O segundo trabalho é o de Nicolella e Belluzzo (2015NICOLELLA, A. C.; BELLUZZO, W. The effect of reducing the pre-harvest burning of sugar cane on respiratory health in Brazil. Environment and Development Economics , v. 20, 2015.), no qual foram usados dados dos municípios paulistas para dois anos, um anterior à legislação estadual referente à redução das queimadas (2000) e um posterior (2007IPCC. Climate change: the physical science basis, contribution of working group I to the fourth assessment report of the intergovernmental panel on climate change. New York: Cambridge University Press, 2007.). Por meio de estimações em painel e de estratégias de identificação para tentar lidar com heterogeneidades e endogeneidades não observadas (efeitos fixos), foram obtidas evidências de que as variações das áreas mecanizadas nos dois anos, medidas implicitamente pelo provável efeito da mudança institucional, melhoraram a saúde respiratória.

Além de adotar algumas estratégias empíricas distintas dos trabalhos citados, o presente estudo diferenciou-se destes por utilizar especificamente medidas dos graus de mecanizações municipais e dos seus entornos variantes no tempo e nos municípios (variabilidade horizontal e longitudinal), o que é importante para a atribuição de causalidade às relações estimadas.

Por último, deve-se ressalvar que, ao averiguar efeitos da mecanização, implicitamente, o estudo também verificou a importância de acordos como o Protocolo Agroambiental. Ou seja, de instrumentos que conciliem incentivos públicos e privados e, assim, induzam inovações que reduzam externalidades de atividades econômicas sobre o meio ambiente e a saúde pública.

O estudo divide-se em quatro seções, além dessa introdução e das considerações finais. Na primeira, é feita uma revisão da literatura sobre impactos da produção de cana, destacando os efeitos sobre a saúde. Na segunda, o Protocolo Agroambiental, seus condicionantes e suas consequências são debatidos. As discussões dessas seções embasam algumas opções adotadas nas estratégias empíricas, discutidas na terceira seção. Na quarta, os resultados são analisados.

2. Possíveis efeitos da produção canavieira: a questão da saúde respiratória

A produção canavieira foi importante para a ocupação econômica do Brasil nos séculos XVI e XVII (FURTADO, 1987FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil . Nacional, 22. ed., São Paulo, 1987.). Nos anos 1970, recebeu outro destaque devido à estratégia do governo para lidar com a crise energética advinda do primeiro choque do petróleo. Frente a seu encarecimento, foi adotado em 1975 o Programa Nacional do Álcool (Proálcool), que estimulou a substituição de derivados de petróleo, como a gasolina pelo etanol produzido com cana. O Proálcool mudou o setor, que deixou de ser voltado à indústria alimentícia (açúcar) e passou a produzir combustível. Para isso, desenvolveu tecnologias que o tornaram referência mundial.

No final dos anos 1980, o setor passou por uma crise de governança e de confiabilidade devido ao desabastecimento do mercado nacional de etanol em função do esgotamento do financiamento público e do aumento do preço mundial do açúcar, que incentivou a produção deste em detrimento do combustível. Somaram-se a esta crise problemas fiscais do País e uma onda liberalizante que desregulamentou os complexos agroindustriais. No início da década de 1990, o governo extinguiu a alíquota diferenciada do imposto sobre produtos industrializados dos veículos automotores movidos a etanol e deixou de controlar as exportações e os preços, medidas que resultaram no término simbólico do Proálcool (CARVALHO e CARRIJO, 2007CARVALHO, S. P.; CARRIJO, E. L. O. A produção de álcool: do Proálcool ao contexto atual. Anais do XLVCongresso da Sober, Londrina, 2007.).

O setor apresentou, então, uma fase de estagnação, só revertida nos anos 2000. Em grande parte destes, a produção sucroalcooleira cresceu significativamente em função da convergência de alguns fatores: aumento do preço internacional do petróleo; maior preocupação ambiental em relação ao aquecimento global e à necessidade de serem utilizados biocombustíveis e fontes energéticas mais limpos; e desenvolvimento dos automóveis flex-fuel (GURGEL, 2011GURGEL, A. C. Impactos da política americana de estímulo aos biocombustíveis sobre a produção agropecuária e o uso da terra. Revista de Economia e Sociologia Rural , v. 49, 2011.).

Em um cenário de expansão da produção e de expectativas favoráveis a uma abertura do mercado internacional, ganharam novamente destaque tradicionais debates sobre possíveis efeitos socioeconômicos e ambientais da cultura canavieira. O primeiro aspecto a considerar é o impacto sobre a paisagem agrícola e sobre as áreas urbanas que cercam as plantações. Do ponto de vista social, a cultura sempre foi criticada pelas condições degradantes a que são submetidos os cortadores de cana nos alojamentos e nos transportes (GRAZIANO DA SILVA, 1997GRAZIANO DA SILVA, J. De Bóias-Frias a Empregados Rurais − as greves dos canavieiros paulistas de Guariba e de Leme. EDUFAL, Alagoas, 1997.).

Carvalho e Carrijo (2007CARVALHO, S. P.; CARRIJO, E. L. O. A produção de álcool: do Proálcool ao contexto atual. Anais do XLVCongresso da Sober, Londrina, 2007.) ressaltaram, ainda, os problemas nas relações trabalhistas; o elevado esforço físico na colheita; a baixa qualificação da mão de obra e a sazonalidade do emprego, que acarreta flutuações das rendas familiares, necessidade de migração durante o ano, condições precárias de habitação e dificuldades para as crianças frequentarem escolas. Além disso, Priuli et al. (2014) mostraram evidências de forte estresse e de problemas psicológicos enfrentados pelos cortadores devido às condições precárias do trabalho na lavoura canavieira.

A estas críticas, somam-se os problemas gerados nas áreas urbanas pelo grande fluxo de trabalhadores temporários migrantes de outras regiões. Dificuldades no sistema de saúde e problemas de segurança nas denominadas "cidades canavieiras" seriam justificados pelo fluxo migratório concentrado nos meses de safra. Argumenta-se que tal situação dificulta a provisão adequada de serviços de utilidade pública e contribui para que estas cidades tendam a possuir baixos indicadores relativos referentes à qualidade de vida (CHIARAVALLOTI et al., 2014CHIARAVALLOTI, R. M. et al. Efeitos da expansão da cana-de-açúcar no Sudeste do Mato Grosso do Sul e possíveis caminhos para uma agenda. Sustentabilidade em Debate , v. 5, n. 1, p. 117-135, 2014.).

Outra preocupação é que a expansão canavieira ocorra em áreas de outras culturas, o que poderia pressionar preços de terras e de alimentos (CHAGAS et al., 2008CHAGAS, A. L. S., TONETO JÚNIOR, R.; AZZONI, C. R. Teremos que trocar energia por comida? Análise do impacto da expansão da produção de cana-de-açúcar sobre o preço da terra e dos alimentos. Anais do XLVICongresso da Sober , Rio Branco, 2008.). A expansão pode se dar, ainda, em áreas de conservação (florestas e matas nativas, por exemplo), o que ocorreu no início da produção de cana no Brasil, principalmente sobre a Mata Atlântica, contribuindo para que esta possua hoje apenas pequena parcela da cobertura original. Assim, seriam necessárias legislações efetivas em relação às reservas legais e ao uso do solo. Nesse sentido, foi aprovado em 2009 o Decreto-Lei n. 6.961, que definiu o Zoneamento Agroecológico da Cana-de-Açúcar (ZAE-CANA). Apesar de normatizar as áreas propícias ao cultivo, o ZAE-CANA não possui força legal para penalizar seu descumprimento (MANZATTO et al., 2009MANZATTO, C. V. et al. Zoneamento Agroecológico da Cana-de-Açúcar: expandir a produção, preservar a vida, garantir o futuro . Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, set. 2009.; PEROSA, 2012PEROSA, B. B. A emergência da governança socioambiental no mercado internacional de biocombustíveis . Tese de Doutorado, Escola de Economia de São Paulo (EESP-FGV), 2012.).

Como já mencionado, a busca por fontes energéticas mais limpas foi um dos fatores que incentivou a expansão da produção de cana e, a partir desta, de etanol nos anos 2000, pois este emite menos poluentes que outros combustíveis. Apesar disso, a produção também pode gerar impactos ambientais negativos associados ao uso indevido do solo e dos recursos hídricos; à disposição final inadequada dos resíduos e à queima para a colheita, que produz material particulado precipitado na forma de fuligens que contaminam ar, solos e recursos hídricos, prejudicando as atividades econômicas e a saúde da população (SANTO e ALMEIDA, 2007SANTO, Z. N. E.; ALMEIDA, L. T. Etanol: impactos socioeconômicos de uma commodity em ascensão. Anais do VIIEncontro da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, 2007.).

A queima para a colheita é uma prática historicamente usada nos canaviais para elevar a produtividade dos trabalhadores, diminuindo lesões pelas folhas cortantes das plantas e ataques de animais peçonhentos. Porém, resulta nas externalidades negativas comentadas, sendo que um dos principais impactos se dá sobre a saúde respiratória. Arbex et al. (2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.), ao revisarem trabalhos sobre as consequências da combustão de biomassas em ambientes abertos, apontaram efeitos diretos, como o aumento da morbidade e da mortalidade respiratórias; e indiretos, como o bloqueio de raios UVA e UVB. Na literatura internacional, focada na queima florestal ou na atividade madeireira, as evidências sinalizaram que a fumaça das queimadas aumenta casos de doenças respiratórias, como asma, bronquite crônica e infecção aguda. Em comum, os estudos revisados mostraram aumento das internações em função de queimadas de grandes proporções.

Ademais, sinalizaram impactos distintos de acordo com faixas etárias, sendo maiores em crianças e em idosos, que possuem sistemas respiratórios mais frágeis. Nos primeiros, em função do menor volume pulmonar e do desenvolvimento parcial do sistema imunológico; nos idosos, pela debilitação natural dos sistemas respiratório e imunológico. Deve-se ressalvar que são distintas as formas pelas quais as queimadas impactam sobre as faixas etárias: nas crianças, causam algumas doenças respiratórias, como asma e bronquite; nos idosos, a tendência é ocorrer agravamentos de enfisemas e de outras enfermidades respiratórias crônicas (ARBEX, 2001ARBEX, M. Avaliação dos efeitos do material particulado proveniente da queima da plantação de cana-de-açúcar sobre a morbidade respiratória na população de Araraquara-SP . Tese de Doutorado, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 2001.).

Segundo Arbex et al. (2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.), grande parte das consequências para a combustão de outras biomassas em ambientes externos são aplicáveis às queimadas nos canaviais, sendo quatro as tendências principais (e complementares): piora na qualidade do ar no período das queimadas; extensão territorial e duração do processo potencializam o problema; população de risco afetada é significativa no contingente populacional e impactos da queima sobre a população elevam sensivelmente a demanda por serviços de saúde (internações hospitalares). Tais argumentos são reforçados por evidências de vários estudos, como: Arbex (2001)ARBEX, M. Avaliação dos efeitos do material particulado proveniente da queima da plantação de cana-de-açúcar sobre a morbidade respiratória na população de Araraquara-SP . Tese de Doutorado, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, 2001., Cançado (2003CANÇADO, J. E. D. A poluição atmosférica e sua relação com a saúde humana na região canavieira de Piracicaba - SP . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2003.), Cançado et al. (2006)CANÇADO, J. E. D. et al. The impact of sugar cane-burning emissions on the respiratory system of children and the elderly. Environmental Health Perspectives , v. 114, n. 5, p. 725-729, 2006., Lopes e Ribeiro (2006LOPES, F. S.; RIBEIRO, H. Mapeamento de internações hospitalares por problemas respiratórios e possíveis associações à exposição humana aos produtos da queima da palha de cana-de-açúcar no estado de São Paulo. Revista Brasileira de Epidemiologia , v. 9, 2006.), Ribeiro (2008)RIBEIRO, H. Queimadas de cana-de-açúcar no Brasil: efeitos à saúde respiratória. Revista Saúde Pública , v. 42, p. 370-376, 2008., Ribeiro et al. (2013)RIBEIRO, H. et al. Queimadas de cana-de-açúcar e efeitos à saúde humana: revisão da literatura. Revista de Saúde, Meio Ambiente e Sustentabilidade , 2013. e Chagas et al. (2014CHAGAS, A. L. S., ALMEIDA, A. N.; AZZONI, C. R. Sugar cane burning and human health: a spatial difference-in-difference analysis. Anais do 36ºEncontro da SBE, Natal, 2014.).

Cançado et al. (2006CANÇADO, J. E. D. et al. The impact of sugar cane-burning emissions on the respiratory system of children and the elderly. Environmental Health Perspectives , v. 114, n. 5, p. 725-729, 2006.) ressaltaram que, em municípios nos quais a produção canavieira predomina, tende a existir elevada acidez na água das chuvas em decorrência das emissões de aerossol e outros gases nas queimadas. O mesmo aerossol impacta diretamente sobre a saúde respiratória das pessoas, pois pode penetrar nos pulmões por meio do material particulado, que impede o funcionamento regular do sistema respiratório. Porém, a forma que o material atinge os indivíduos é condicionada a elementos ambientais e relativos a seus próprios organismos.

Fatores climáticos, ambientais e socioeconômicos, entre outros, também afetam a saúde respiratória, potencializando os impactos das queimadas (ARBEX et al., 2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.). A precipitação pluviométrica e a umidade do ar, por exemplo, podem prolongar a dissipação dos materiais emitidos, mantendo-os por mais tempo no ar e, consequentemente, aumentando seus efeitos. Assim, o fato de as colheitas em São Paulo ocorrerem em período com menores volumes de chuvas e menores temperaturas tende a agravar as doenças respiratórias. Ademais, as condições climáticas influenciam diretamente o funcionamento do sistema respiratório (RIBEIRO, 2008RIBEIRO, H. Queimadas de cana-de-açúcar no Brasil: efeitos à saúde respiratória. Revista Saúde Pública , v. 42, p. 370-376, 2008.).

Portanto, para avaliar a causalidade das queimadas (ou da mecanização) na colheita da cana sobre a incidência de doenças respiratórias, deve-se considerar a complexa cadeia causal na qual estas interagem com atributos ambientais, climáticos, socioeconômicos e individuais.

Vale destacar, ainda, a questão geográfica da dispersão do material emitido na combustão. Mesmo que um local não possua plantações em seu território ou que a colheita seja totalmente mecanizada, sua população pode ser impactada pelas queimadas em áreas vizinhas. Segundo Ribeiro e Assunção (2002RIBEIRO, H.; ASSUNÇÃO, J. Efeitos das queimadas na saúde humana. Estudos Avançados , v. 16, 2002.), maior proximidade resulta em maior impacto. Assim, é interessante averiguar o efeito em distância na qual os materiais podem se dispersar. Chagas et al. (2014CHAGAS, A. L. S., ALMEIDA, A. N.; AZZONI, C. R. Sugar cane burning and human health: a spatial difference-in-difference analysis. Anais do 36ºEncontro da SBE, Natal, 2014.) e Paraíso (2014PARAÍSO, M. Avaliação do impacto à saúde causado pela queima prévia de palha de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2014.) constataram, empiricamente, efeitos sobre a saúde em municípios próximos.

Por último, deve-se ressaltar que, apesar de divergências sobre a magnitude dos efeitos, diversos trabalhos, com estratégias empíricas distintas, obtiveram evidências de uma relação positiva entre o volume produzido e, consequentemente, de queimadas e indicadores de saúde respiratória. Os principais resultados foram resumidos por Arbex et al. (2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.) e Ribeiro et al. (2013RIBEIRO, H. et al. Queimadas de cana-de-açúcar e efeitos à saúde humana: revisão da literatura. Revista de Saúde, Meio Ambiente e Sustentabilidade , 2013.). Estes sugerem que reduções das queimadas geram impactos benéficos à saúde. Paraíso (2014PARAÍSO, M. Avaliação do impacto à saúde causado pela queima prévia de palha de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2014.) e Nicolella e Belluzzo (2015NICOLELLA, A. C.; BELLUZZO, W. The effect of reducing the pre-harvest burning of sugar cane on respiratory health in Brazil. Environment and Development Economics , v. 20, 2015.), comentados na introdução, foram os dois únicos trabalhos encontrados que relacionaram, especificamente, medidas diretas ou indiretas de mecanização da colheita da cana à saúde respiratória, corroborando indícios implícitos nos demais trabalhos.

3. Protocolo Agroambiental: condicionantes e expansão da mecanização

Os impactos das queimadas sobre a saúde sempre figuraram nos questionamentos sobre a sustentabilidade do setor sucroalcooleiro. Antes mesmo de questões referentes a emissões de gases do efeito estufa ganharem maior importância, as consequências sobre a qualidade do ar já constavam nos debates referentes a malefícios da atividade ao bem-estar da população. Para lidar com o problema, a mecanização apresentou-se como a melhor alternativa. Porém, a rápida expansão desta nos municípios paulistas em anos recentes não teve como principal motivação seus impactos ambientais e sobre a saúde pública. Tal argumento foi aprofundado nessa seção.

Nas décadas de 1990 e 2000, foram promulgadas regulações que tentaram controlar as queimadas incentivando a mecanização. O Decreto Federal n. 2.661, de 1998, definiu a redução gradual das queimadas por meio do zoneamento de áreas proibidas (cercanias de perímetros metropolitanos, rodovias, ferrovias, aeroportos e próximas a reservas florestais). Importantes estados produtores também aprovaram legislações próprias buscando adiantar os prazos finais da prática. Em São Paulo, por exemplo, a Lei n. 10.547, de 2000, instituiu um mecanismo de controle, obrigando produtores a obterem, junto à Secretaria de Meio Ambiente, autorização para a queimada controlada; já a Lei n. 11.241, de 2002, reduziu prazos para o término da prática.

Tais legislações não foram efetivas. Algumas não foram cumpridas ou foram postergadas pelas ações de coalisões de usineiros e de sindicatos de trabalhadores rurais, sob o argumento do desemprego que a mecanização causaria. Apenas a partir de meados dos anos 2000, quando o setor passou a considerar a sua imagem ambiental e a ter expectativas de exportar a mercados demandantes de biocombustíveis sustentáveis, que as leis foram mais efetivas. Os principais mercados internacionais do etanol são os Estados Unidos da América e a União Europeia, que promulgaram regulações que consideraram a redução de emissões no ciclo de vida dos produtos e, assim, restringiram a entrada de biocombustíveis que não se adequam (PEROSA, 2012PEROSA, B. B. A emergência da governança socioambiental no mercado internacional de biocombustíveis . Tese de Doutorado, Escola de Economia de São Paulo (EESP-FGV), 2012.).

Nesse contexto, ocorreram várias iniciativas público-privadas que visaram à eliminação mais rápida das queimadas, dentre as quais o Protocolo Agroambiental assinado em 2007 pela União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e a Secretaria de Meio Ambiente do estado de São Paulo. Por meio deste, foi antecipada, de 2021 para 2014, a obrigação de mecanização em áreas com declividades menores que 12% e, de 2031 para 2017, nas áreas com declividades maiores. Ao contrário das leis vigentes, baseadas em instrumentos tradicionais de comando-e-controle, o Protocolo é um acordo de intenções sem punição legal para o descumprimento. O incentivo dado pelo governo foi a concessão do Selo Agroambiental a produtores que cumprem as metas. Assim, conforme é defendido para políticas ambientais modernas (LUSTOSA et al., 2010LUSTOSA, M. C. J., CÁNEPA, E. M.; YOUNG, C. E. F. Política Ambiental. In: MAY, P. H. (Org.). Economia do Meio Ambiente: teoria e prática. 2. ed. Campus, 2010.), foram associados instrumentos de comunicação (certificação) e de comando-e-controle.

Obviamente, incentivos econômicos à mecanização foram tão ou mais importantes. Salvi et al. (2010SALVI, J. V. et al. Análise do desempenho operacional e econômico da colheita mecanizada em um sistema de produção de cana-de-açúcar. Anais do 48ºCongresso da Sober Campo Grande., 2010.) mostraram que o retorno do investimento em colheitadeiras não é demorado (3,17 anos), não sendo, portanto, uma forte restrição à mecanização. Além disso, não podem ser negligenciados incentivos governamentais, também motivados pela expectativa de expansão das exportações (MORAES et al., 2013MORAES, M. S., PRIULI, R. M. A.; CHIARAVALLOTI, R. M. A saúde e o jovem migrante. Cadernos Saúde Coletiva , v. 3, n. 21, 2013.), como linhas de financiamento subsidiado do BNDES.

Outro incentivo econômico foi o custo crescente da mão de obra, devido ao aumento do salário mínimo, ao desenvolvimento econômico e à absorção de parte dos trabalhadores por outros setores, em especial a construção civil. Ademais, aumentou a fiscalização do Ministério Público em relação a alojamentos e a transportes. Shikida et al. (2011SHIKIDA, P. F. A., AZEVEDO, P. F.; VIAN, C. E. F. Desafios da agroindústria canavieira no Brasil pós-desregulamentação: uma análise das capacidades tecnológicas. Revista de Economia e Sociologia Rural , v. 49, p. 599-628, 2011.) destacaram, ainda, o processo de capacitação tecnológica induzido pela desregulamentação ocorrida nos anos 1990.

É plausível afirmar que a soma desses fatores estimulou, no estado de São Paulo, o setor privado a reduzir as queimadas, o que é ilustrado nas Figuras 1 e 2. De 2006 a 2011, ocorreu rápida expansão da produção e da mecanização nos canaviais paulistas. O crescimento da área colhida foi de aproximadamente 45% e o da área com colheita mecanizada foi de 182%. Ademais, houve aumento significativo dos municípios produtores com graus de mecanização mais elevados (área com colheita mecanizada representando mais de 65% da área total colhida).

Figura 1
São Paulo: áreas colhidas totais e com mecanização - 2006 a 2011

Figura 2
São Paulo: evolução da mecanização (% área mecanizada na área colhida) - 2006 e 2011

A principal motivação declarada pelo governo estadual para o Protocolo foi a redução de poluentes. Se for verdade, prevaleceram externalidades positivas ambientais e sobre a saúde em detrimento às negativas sociais, como a queda de empregos. Fredo et al. (2012FREDO, C. E. et al. Cana-de-açúcar efeito da mecanização nos empregos. Agroanalysis , São Paulo, 4 abr. 2012.) observaram que, entre 2007 e 2011, ocorreu redução dos postos de trabalho nos canaviais paulistas, sendo difícil mensurar quantas pessoas foram requalificadas, realocadas ou ficaram desempregadas e onde se concentraram, o que é importante, pois parte da mão de obra é composta por migrantes de outras regiões (MORAES et al., 2013MORAES, M. S., PRIULI, R. M. A.; CHIARAVALLOTI, R. M. A saúde e o jovem migrante. Cadernos Saúde Coletiva , v. 3, n. 21, 2013.). No Centro­-Sul, Baccarin et al. (2011BACCARIN, J. G., GEBARA, J. J.; BORGES JÚNIOR, J. C. Expansão canavieira e ocupação formal em empresas sucroalcooleiras do Centro-Sul do Brasil, entre 2007 e 2009. Revista de Economia e Sociologia Rural , v. 49, n. 2, 2011.) mostraram impactos da mecanização em termos de redução de postos de trabalhos menos qualificados.

Se, pelo lado público, questões ambientais e de saúde podem ter motivado a definição do Protocolo Agroambiental, embora não seja possível descartar incentivos econômicos; pelo lado privado, é difícil associar motivações ambientais e de saúde à decisão de adesão de produtores. Se estas predominassem, a mecanização poderia ter expandido em anos anteriores, nos quais já havia, inclusive, marco regulatório. Como já mencionado, os atores do setor eram, na verdade, resistentes ao fim da colheita manual e adotaram a mecanização quando incentivos econômicos a tornaram interessante, em especial as potenciais exportações e os financiamentos do BNDES.

Mesmo defensores da colheita manual, pelos empregos gerados, não têm argumentos para justificar a manutenção de cortadores em práticas degradantes e insalubres (SCOPINHO et al., 1999SCOPINHO, R. A. et al. New technologies and workers' health: mechanization of sugar cane harvesting. Cadernos de Saúde Pública , 1999.). Assim, a mecanização é um processo irreversível que foi acelerado em São Paulo pelo Protocolo. Vale ressaltar que não foram encontradas evidências na literatura de que a decisão de um produtor de mecanizar considerou questões ambientais e de saúde. Na verdade, pela discussão dessa seção, é plausível supor que incentivos econômicos tenham sido os principais motivadores. Esse fato é relevante para os exercícios empíricos do presente estudo, pois reduz a possibilidade de relações endógenas entre a decisão pela mecanização e a saúde das pessoas.

4. Estratégicas empíricas

Para avaliar se a mecanização da colheita da cana impacta sobre a incidência de doenças do aparelho respiratório, foram feitas estimações econométricas para um painel de municípios paulistas com dados de 2006 a 2011, período definido devido à disponibilidade de informações e por abranger anos anterior e posteriores ao do início do Protocolo Agroambiental (2006). Ao contrário de outros trabalhos que avaliaram a relação entre produção e saúde5 5 Ver, por exemplo, Arbex (2001), Cançado et al . (2006), Ribeiro (2008) e Chagas et al . (2014). Já relações entre mecanização e saúde foram avaliadas por Paraíso (2014) e Nicolella e Belluzzo (2015), que já foram comentados. , o intuito principal desse estudo foi investigar a relação entre a mecanização da colheita e a incidência de doenças respiratórias. Assim, foram considerados apenas os municípios com produção em todos os anos (painel balanceado). Os municípios analisados reduziram do total de 645 do estado para 452.

Optou-se pelo uso do método de efeitos fixos (estimador Within e erros robustos) por ser possível lidar com potencial viés associado à correlação entre variáveis omitidas fixas no tempo e regressores e, assim, controlar efeitos fixos. Para testar a melhor adequação dessa abordagem em comparação a de efeitos aleatórios, foi realizado o teste de Hausman (GREENE, 1997GREENE, W. H. Econometric Analysis . 3. ed. New Jersey: Prentice Hall, 1997.). Os modelos estimados basearam-se nas equações (1) a (4). A partir desse momento, as estimações referentes a cada equação são chamadas de, respectivamente, especificações I , II , III e IV .

sendo: Sit a variável dependente do município i no ano t (t = 2006, ..., 2011); β0 a constante; Mit , MM it e MVit as variáveis de interesse; β1, β4 e β5 os coeficientes associados a estas; Cit e Zit os vetores de covariadas (variáveis de controle); β2 e β3 os vetores de coeficientes associados a estas; ?#61621;i os efeitos fixos; Tt uma variável de tendência e εit o termo errático.

A variável dependente Sit é o coeficiente de morbidade hospitalar devido a doenças do aparelho respiratório6 6 A definição dessas doenças segue o capítulo 10 da Classificação Internacional de Doenças (CID). , medido pelo número de internações por estas doenças por 100 habitantes do município i no ano t . Foram consideradas especificamente tais doenças por serem apontadas pela literatura como as mais sensíveis a variações das queimadas. Ademais, estas elevam a demanda por serviços de saúde, o que justifica o uso das internações. Os dados são oriundos do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) do Ministério da Saúde e disponibilizados por meio de seu Departamento de Informática (Datasus). É comum que uma pessoa resida em um município, mas seja internada em outro. Como as condições de saúde desta são afetadas por atributos do município em que reside, os dados sobre internações foram coletados por locais de residência.

Utilizou-se o coeficiente para 100 habitantes com o objetivo de sugerir a probabilidade de um residente do município i no ano t ser internado por enfermidades respiratórias. Conforme ressalta Funasa (2002)FUNASA. Textos de Epidemiologia para vigilância ambiental em saúde . Fundação Nacional de Saúde, Ministério da Saúde, 2002., uma limitação a essa interpretação é a impossibilidade de identificar se um mesmo indivíduo foi internado mais de uma vez. As populações municipais em cada um dos anos são disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).

O termo Mit representa a mecanização , principal variável de interesse desse estudo, que corresponde ao grau de mecanização no município i no ano t , medido pela razão entre as áreas com colheita mecanizada e total com produção de cana7 7 Índice que pode ser criticado por sinalizar a área na qual há produção de cana sem queima para a colheita e não o volume queimado. Na ausência de outros dados, ele pode ser defendido como uma boa proxy , pois é plausível supor que, pelo menos na média, o volume produzido correlaciona-se positivamente à área destinada à produção. . Os dados para o cálculo são oriundos do projeto Canasat do Inpe. Se significativos, os coeficientes denotam que, nos municípios com produção, cada ponto percentual a mais da proporção da área com mecanização na área total destinada à cultura aumenta (ou diminui), na média, a morbidade por doenças respiratórias.

Como já mencionado, os materiais emitidos na queima deslocam-se na atmosfera pelas correntes aéreas. Assim, queimadas em um município podem afetar a saúde de residentes em outros municípios, em especial nos mais próximos. Para captar tal efeito, foram consideradas duas variáveis. A primeira, representada em (3) por MMit , é a mecanização microrregião , que é o grau de mecanização em t no resto da microrregião definida pelo IBGE na qual o município i se localiza. Foi medida pela razão entre as áreas mecanizada e total com produção. Para cada município, foram mensuradas áreas microrregionais líquidas de suas próprias áreas, evitando-se, assim, colinearidade entre as mecanizações municipais e microrregionais. Os coeficientes, se significativos, representam aumentos médios (ou diminuições) da morbidade nos municípios com produção para cada um ponto percentual a mais no grau de mecanização microrregional.

Uma limitação dessa proxy decorre da possibilidade de municípios de uma microrregião serem limítrofes a outros que não pertençam à mesma. Assim, foi feito um georreferenciamento para identificar, para cada município, todos os seus vizinhos e calcular a variável mecanização vizinhos , indicada em (4) por MVit , que representa a mecanização nos municípios limítrofes (efetivamente os mais próximos). Se significativos, os coeficientes denotam aumentos médios (ou reduções) da morbidade respiratória nos municípios com cana para cada ponto percentual a mais de mecanização nos vizinhos. Nos mapas mostrados anteriormente (Figura 2), observa-se que todos os municípios com produção de cana apresentam pelo menos um vizinho que também tenha produção da cultura. Na coleta dos dados, tal fato foi igualmente constatado em relação às microrregiões.

Portanto, pelas mecanizações microrregional e dos vizinhos, pretende-se obter evidências de efeitos spillovers da mecanização, ou seja, de que o nível de queimadas em um local gera externalidades sobre a saúde em municípios próximos. Vale ressalvar que o objetivo é somente avaliar a existência de uma relação entre a mecanização do entorno e a saúde em um município. Avaliações mais acuradas dos efeitos dependem de dados inexistentes para todos municípios em todos os anos, como a posição da produção dentro destes e o sentido das correntes de ar.

Assim, é importante que trabalhos utilizem estratégias distintas para obter resultados que, ao serem comparados, permitam inferências mais robustas. Esta é uma lacuna existente na lacuna empírica sobre o tema, conforme foi ressaltado por Chagas et al. (2014CHAGAS, A. L. S., ALMEIDA, A. N.; AZZONI, C. R. Sugar cane burning and human health: a spatial difference-in-difference analysis. Anais do 36ºEncontro da SBE, Natal, 2014.). Há trabalhos que avaliaram efeitos da queimada sobre a saúde respiratória em municípios específicos ou em algumas regiões, mas não efeitos sobre municípios próximos. O trabalho supracitado e o de Paraíso (2014PARAÍSO, M. Avaliação do impacto à saúde causado pela queima prévia de palha de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2014.) foram os únicos encontrados que testaram efeitos da produção em municípios próximos, obtendo indícios favoráveis à relação. Nesse estudo, além de o foco ser a mecanização e não a produção, o efeito testado é o oposto ao de Chagas et al . (2014)CHAGAS, A. L. S., TONETO JÚNIOR, R.; AZZONI, C. R. Teremos que trocar energia por comida? Análise do impacto da expansão da produção de cana-de-açúcar sobre o preço da terra e dos alimentos. Anais do XLVICongresso da Sober , Rio Branco, 2008.: a situação média do entorno sobre a saúde nos municípios e não as situações municipais sobre a saúde do entorno8 8 Nicolella e Belluzzo (2015) apontaram a necessidade, em análises desse tipo, de lidar com dependência (autocorrelação) espacial. Porém, também ressaltaram que, sem variáveis dependentes espacialmente defasadas, a dependência não gera viés, mas afeta as variâncias (eficiência), sendo erros padrões robustos (clusters) uma opção adotada pelos autores e seguida no presente estudo. Para mais detalhes sobre tais aspectos econométricos, ver: Elhorst (2003). .

As covariadas Cit sinalizam as escalas da produção. Efeitos da mecanização podem ser heterogêneos em função destas. É possível que sejam maiores à medida que eleva a proporção da área destinada à cultura, o que pode resultar em maiores concentrações populacionais e dispersões dos focos de queimadas, fatores que afetam a incidência de doenças respiratórias. Por isso, foram controladas a área cana e a razão área cana . A primeira é a área municipal com produção (milhares de hectares); a segunda, o quanto ela representa da área municipal (%).

Na especificação III , também foram controladas a área cana microrregião e a razão área cana microrregião - respectivamente, a área microrregional com cana (milhares de hectares) e o quanto ela corresponde na área total (%), as duas áreas líquidas das respectivas municipais. Já na especificação IV , a área cana vizinhos (milhares de hectares) e razão área cana vizinhos (%) - respectivamente, a área com cana nos vizinhos e o quanto esta representa na área total.

Nas quatro especificações, foram controladas as covariadas Zit , descritas no Quadro 1. Estas foram escolhidas por serem apontadas pela literatura como determinantes das condições de saúde. Assim, buscaram garantir robustez aos resultados da relação mecanização-saúde, pois são "fatores de confusão" (meteorológicos, socioeconômicos, de oferta de serviços de saúde, entre outros) que, se omitidos, comprometem a atribuição de causalidade (ARBEX et al., 2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.).

Quadro 1
Descrições e fontes das covariadas (variáveis de controle) Zit

A precipitação pluviométrica buscou controlar a umidade relativa do ar, que se relaciona ao volume de chuva e, quando baixa, afeta diretamente a incidência de doenças respiratórias. Esse efeito é agravado se o baixo volume de chuva interagir com poluentes no ar, como os das queimadas, reduzindo a dissipação e elevando o período de exposição (SARTOR et al., 1995SARTOR, F. et al. Temperature, ambient ozone levels, and mortality during summer 1994, in Belgium. Environ. Res ., n. 70, 1995.).

Como as doenças respiratórias são, em grande parte, transmissíveis, quanto maior e mais concentrada a população, maior a proliferação delas (ARBEX et al., 2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.). Ademais, devido a economias de escala e de densidade e à capacidade de investimento, o tamanho e a concentração populacionais em um local afetam a quantidade e a eficácia de serviços públicos (CASE et al., 1993CASE, A. C., ROSEN, H. S.; HINES JUNIOR, J. R. Budget spillovers and fiscal policy interdependence: evidence from the states. Journal of Public Economics , n. 52, 1993.), como os de saúde. Tentou-se controlar esses efeitos com a densidade e a população .

Como já discutido, crianças e idosos têm sistema respiratório mais frágil, o que os tornam mais suscetíveis a doenças associadas a tal sistema, justificando os controles crianças e idosos . Estes, assim como o controle mulheres , também são justificados por serem grupos da população que tendem a ficar mais tempo nas residências, expostos por períodos longos a poluições em ambientes fechados, como as fumaças do cozimento de alimentos (ARBEX et al., 2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.).

O PIB per capita foi considerado pelo fato de o nível de renda ser destacado pela literatura como importante determinante da saúde das pessoas. Por um lado, renda mais elevada viabiliza o acesso adequado a alimentos, afetando o estado nutricional, o desenvolvimento fisiológico e imunológico e, assim, a suscetibilidade a doenças. Por outro lado, possibilita o pagamento por medicamentos e serviços de saúde. Em termos agregados, a capacidade de investimento em saúde de um local é influenciada por seu nível de renda (WENNEMO, 1993WENNEMO, I. Infant mortality, public policy and inequality - a comparison of 18 industrialized countries. Sociology of Health & Illness , v. 15, n. 4, 1993.; WANG, 2003WANG, L. Determinants of child mortality in LDCs: empirical findings from demographic and health surveys. Health Policy , v. 65, n. 3, set. 2003.).

Na ausência de dados para a construção de outras variáveis socioeconômicas municipais que podem afetar a saúde, foram utilizadas proxies calculadas com dados de empregos formais: fundamental , comércio e serviços , rendimento baixo e agropecuária . Com a primeira, buscou-se controlar o nível educacional da população, apontado pela literatura como um relevante determinante da morbidade. Pessoas mais educadas são mais informadas e, consequentemente, adotam ações, como de higiene, que reduzem a transmissão de doenças (CALDWELL, 1990CALDWELL, J. C. Cultural and social factors influencing mortality levels in developing countries. Annals of the American Academy of Political and Social Science , v. 510, 1990.).

Comércio e serviços são atividades tipicamente urbanas e, por isso, uma proxy para a urbanização, que deve ser controlada pela provável distribuição desigual de serviços de saúde entre áreas urbanas e rurais (WANG, 2003WANG, L. Determinants of child mortality in LDCs: empirical findings from demographic and health surveys. Health Policy , v. 65, n. 3, set. 2003.). Nos municípios brasileiros, pode refletir, ainda, as capacidades de investir, pois a base tributária municipal é composta por impostos sobre as propriedades urbanas e os serviços. A agropecuária é a proxy para a proporção de pessoas que residem e/ou trabalham em áreas rurais e, assim, estão mais próximas e expostas às queimadas.

A literatura aponta que não podem ser negligenciadas outras fontes de poluentes do ar, em especial indústrias e automóveis. A primeira foi controlada como default , pois foram usadas proxies para os demais setores. A segunda, pela variável veículos . A proxy para controlar a desigualdade de renda foi o rendimento baixo , que pode resultar em desigualdade de acesso a serviços e bens de saúde. Por exemplo, novos medicamentos e novos procedimentos, mesmo se rapidamente difundidos, tendem a beneficiar aqueles que podem pagar (WENNEMO, 1993WENNEMO, I. Infant mortality, public policy and inequality - a comparison of 18 industrialized countries. Sociology of Health & Illness , v. 15, n. 4, 1993.).

Alguns estudos averiguaram relações entre indicadores de saúde e despesas públicas com previdência, assistência social e saúde e com outras funções que afetam a saúde. Defende-se que esses gastos, ao beneficiarem segmentos da população com menores rendas, diminuem a proporção de pessoas na pobreza e, assim, com problemas de nutrição e sem acesso a serviços e a bens de saúde, o que reduz a propensão destas ficarem doentes (WENNEMO, 1993WENNEMO, I. Infant mortality, public policy and inequality - a comparison of 18 industrialized countries. Sociology of Health & Illness , v. 15, n. 4, 1993.; WANG, 2003WANG, L. Determinants of child mortality in LDCs: empirical findings from demographic and health surveys. Health Policy , v. 65, n. 3, set. 2003.). As variáveis bens meritórios e bem-estar controlaram os efeitos das despesas públicas9 9 Classificação de Oxley e Martin (1991). Bens meritórios são o somatório das despesas com educação, cultura, habitação, urbanismo, saúde e saneamento; e bem-estar, o somatório das despesas com assistência e previdência. .

A imunização a doenças é uma importante ação preventiva (WANG, 2003WANG, L. Determinants of child mortality in LDCs: empirical findings from demographic and health surveys. Health Policy , v. 65, n. 3, set. 2003.). Assim, a cobertura vacinal de um município pode afetar suas condições de saúde, o que foi controlado pela variável imunização . Outra ação preventiva relevante no Brasil é o Programa Saúde da Família, que, grosso modo, consiste em equipes multiprofissionais que levam informações e atendimento até os domicílios (SANTANA e CARMAGNANI, 2001SANTANA, L. S.; CARMAGNANI, M. Programa Saúde da Família no Brasil: um enfoque sobre seus pressupostos básicos, operacionalização e vantagens. Saúde e Sociedade , 2001.). Este foi controlado pela variável saúde da família . As variáveis leitos SUS e outros leitos foram as proxies usadas para a disponibilidade de serviços de tratamento de saúde nos municípios (KIM e MOODY, 1992KIM, K.; MOODY, P. M. More resources better health? A cross-national perspective. Social Science and Medicine , n. 34 (8), 1992.).

Finalizando a explicação das especificações, assim como em Chagas et al. (2014CHAGAS, A. L. S., ALMEIDA, A. N.; AZZONI, C. R. Sugar cane burning and human health: a spatial difference-in-difference analysis. Anais do 36ºEncontro da SBE, Natal, 2014.), o termo Tt é uma variável tendência para controlar atributos não observados fixos nos municípios e variantes no tempo. Alterações institucionais (legislações e programas estaduais e federais, por exemplo) podem impactar da mesma forma sobre as condições de saúde de todos os municípios, porém com efeitos distintos no tempo. Deve-se ressalvar que o Protocolo Agroambiental, ao incentivar o fim das queimadas por meio de metas parciais a serem atingidas ao longo dos anos, resultou em trajetória de expansão da mecanização (Figura 1). Contudo, a evolução desta pode ser colinear à variável tendência , o que justifica o seu emprego somente na especificação II .

Os efeitos fixos (μi) controlaram atributos específicos de cada município, constantes no tempo, que podem afetar a saúde. Caldwell (1990CALDWELL, J. C. Cultural and social factors influencing mortality levels in developing countries. Annals of the American Academy of Political and Social Science , v. 510, 1990.) discutiu, por exemplo, o papel de aspectos culturais. Duchiade (1992DUCHIADE, M. P. Poluição do ar e doenças respiratórias: uma revisão. Cadernos de Saúde Pública , v. 8, n. 3, Rio de Janeiro, jul./set. 1992.), por sua vez, destacou altitude, geologia e capacidade de dissipação de poluentes no ar como atributos locacionais fixos no tempo que afetam a saúde respiratória.

Anteriormente, foram apontados aspectos que permitem supor inexistência de correlações endógenas entre a decisão pela mecanização e as condições de saúde. Vale ressaltar, ainda, que: (i) variáveis de interesse (mecanizações) variam entre os municípios, seus entornos e no tempo (variabilidade horizontal e longitudinal), garantindo um instrumento favorável à identificação de efeitos causais (GALIANI et al., 2005GALIANI, S., GERTLER, P.; SCHARGRODSKY, E. Water for life: the impact of the privatization of water services on child mortality. Journal of Political Economy , v. 113, 2005.); e (ii) foram controlados "fatores de confusão" que também podem ter lidado com potenciais vieses de autosseleção (por características observadas e não observadas fixas no tempo)10 10 Os vieses de autosseleção são discutidos na literatura de tratamento oriunda do modelo Roy-Rubin (ROY, 1951; RUBIN, 1974). Para mais detalhes sobre a inclusão de covariadas, ver, entre outros, Angrist e Pischke (2009). . Ou seja, com a possibilidade de os municípios com diferentes graus de mecanização alcançarem morbidades distintas independentemente destes. Como os graus de mecanização não são definidos aleatoriamente, é importante que covariadas que os determinariam também sejam controladas.

Não foram encontrados trabalhos que avaliaram condicionantes da mecanização. Porém, é plausível supor que algumas das covariadas usadas nesse estudo a influenciam. Por exemplo, a escala de produção, que pode garantir a viabilidade econômica para a adoção da tecnologia, e o relevo (captado pelos efeitos fixos). A declividade, inclusive, é levada em conta nas metas de expansão da mecanização definidas nas legislações e no próprio Protocolo Agroambiental.

Apesar desses aspectos, a interpretação dos resultados obtidos para as relações entre graus de mecanização e morbidade respiratória como efeitos causais poderá sofrer críticas. Assim, para garantir evidências mais robustas à atribuição de causalidade, foram adotadas estratégias de identificação (testes de robustez) fundamentadas pelas literaturas de saúde e sobre o setor.

Primeiramente, deve-se apontar questões sobre a variável dependente. Para Briscoe et al. (1986BRISCOE, J., FEACHEM, R. G.; RAHAMAN, M. M. Evaluating health impact; water supply, sanitation, and hygiene education . International Development Research Centre, 1986.), a vantagem da morbidade para avaliar efeitos decorre da confiabilidade, facilidade e menor custo para sua determinação e da capacidade de resposta a mudanças em fatores que afetam a saúde. Uma restrição é a disponibilização de dados apenas de internações financiadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e não de custeadas diretamente ou por planos e seguros privados. Porém, a representatividade é bem significativa. Estimativas do Ministério da Saúde sugerem que o SUS atende mais de 60% da população. Ademais, covariadas socioeconômicas inseridas nos modelos podem lidar com variações dos usuários entre os municípios e no tempo.

Outra possível crítica é ter sido considerada a morbidade por causa mais geral (doenças respiratórias) e não por doenças específicas mais afetadas pelas queimadas. Essa opção levou em conta problemas que tornam dados por doenças específicas menos confiáveis. Em cada unidade hospitalar vinculada ao SUS, informações sobre as internações são notificadas ao SIH, mas podem apresentar falhas advindas de erros de diagnósticos, falta de clareza e lacunas nos prontuários, em parte, por falta de treinamento e conhecimento dos funcionários responsáveis pelo preenchimento. Ademais, pode existir incentivo adverso nos mecanismos de reembolso de gastos hospitalares - privilégio a diagnósticos que resultem em maiores reembolsos. Trabalhos que avaliaram a qualidade dos dados sugerem maior confiabilidade em categorias agregadas de diagnósticos, principalmente doenças com sintomas semelhantes11 11 Conferir, por exemplo: Mathias e Soboll (1998) e Laurenti et al . (2004). , o que é feito nesse estudo.

Embora seja possível defender a representatividade e a confiabilidade do indicador de morbidade, optou-se por também avaliar o coeficiente de mortalidade por doenças respiratórias (número de óbitos devido a tais doenças por 100 habitantes do município i em t ). Assim, foram feitas estimações (quatro especificações) nas quais a variável dependente Sit foi tal coeficiente12 12 As informações referentes aos óbitos nos municípios de residência também são disponibilizadas pelo Datasus. . Nesse caso, de acordo com Laurenti et al. (2004LAURENTI, R., MELLO-JORGE, M. H. P.; GOTLIEB, S. L. D. A confiabilidade dos dados de mortalidade e morbidade por doenças crônicas não-transmissíveis. Ciência & Saúde Coletiva , n. 9(4), 2004.), erros de diagnósticos também podem ocorrer, mas tendem a ser menores, uma vez que há um documento padronizado para se declarar o óbito e sua causa (certidão de registro) e é menor o incentivo adverso dos mecanismos de reembolsos.

O registro obrigatório também poderia garantir que todos os óbitos fossem considerados. Mas o principal problema para o cálculo da mortalidade é que, apesar da definição legal, há subnotificação, principalmente em função de sepultamentos em cemitérios clandestinos, o que é associado à pobreza e prevalecente em áreas rurais. Porém, Laurenti et al. (2004LAURENTI, R., MELLO-JORGE, M. H. P.; GOTLIEB, S. L. D. A confiabilidade dos dados de mortalidade e morbidade por doenças crônicas não-transmissíveis. Ciência & Saúde Coletiva , n. 9(4), 2004.) defendem que mesmo que os dados de mortalidade não reflitam bem as condições de saúde de um local em um momento, tendências no tempo podem ser aceitas. Ademais, variações na probabilidade de subnotificação não devem ser grandes para enviesar comparações condicionadas entre locais (WENNEMO, 1993WENNEMO, I. Infant mortality, public policy and inequality - a comparison of 18 industrialized countries. Sociology of Health & Illness , v. 15, n. 4, 1993.), como a feita nesse estudo. Deve-se considerar, então, que as covariadas socioeconômicas inseridas nos modelos podem suavizar problemas decorrentes de variações das notificações entre os municípios e no tempo. Assim, frente a essas limitações, o uso de dois indicadores para denotar a saúde respiratória buscou a obtenção de resultados mais robustos.

Como já mencionado, as doenças respiratórias são apontadas pela literatura como as mais sensíveis a variações de queimadas. Assim, a mecanização afetaria mais direta e imediatamente e/ou com maior intensidade a incidência destas. Considerando tal fato, adotou-se a estratégia de identificação de estimar efeitos da mecanização sobre o coeficiente de morbidade municipal por demais doenças (número de internações devido a estas enfermidades por 100 habitantes)13 13 Seguindo os capítulos da Classificação Internacional de Doenças (CID) que não tratam de doenças respiratórias. .

Atributos não observados variantes no tempo e de forma distinta nos municípios podem influenciar a saúde e o grau de mecanização, caracterizando outro tipo de viés de autosseleção. Contudo, é plausível supor que dificilmente os efeitos ocorram apenas em doenças respiratórias, inclusive por diversos de seus determinantes terem sido controlados. Se os efeitos dos graus de mecanização nos testes para o coeficiente de morbidade por doenças respiratórias mostrarem padrões (sinais e/ou significâncias) distintos aos obtidos para as demais doenças, as evidências são mais robustas para a interpretação da provável relação mecanização-saúde como causal14 14 Galiani et al . (2015) adotaram estratégia similar para efeitos de privatizações do saneamento sobre a saúde. .

Outro aspecto já discutido é a maior vulnerabilidade de crianças e de idosos aos impactos das queimadas, o que não exclui a possibilidade de que pessoas de outras faixas etárias sejam afetadas; porém, devido às condições dos seus sistemas imunológicos e respiratórios, os efeitos tendem a serem menores. É plausível esperar, então, que a mecanização afete mais diretamente e com maior intensidade a saúde de crianças e de idosos. Considerando tal fato, outra estratégia foi a estimação dos efeitos em menores de 5 anos (crianças) e em maiores de 65 anos (idosos)15 15 Crianças e idosos deixaram de ser controladas e a população foi substituída pelos residentes da respectiva idade. .

As variáveis dependentes Sit passaram a ser, então: coeficiente de morbidade de crianças por doenças respiratórias (internações de crianças por essas doenças por 100 habitantes da faixa etária); e coeficiente de morbidade de idosos por doenças respiratórias (internações de idosos por tais doenças por 100 habitantes da faixa etária). Se os resultados mostrarem padrões (sinais e significâncias) similares aos do coeficiente de morbidade , é obtida outra evidência favorável à interpretação como efeitos causais, pois os efeitos permanecem nas doenças mais sensíveis a variações das queimadas (respiratórias) e nas faixas etárias mais vulneráveis a estas (crianças e idosos).

Arbex et al. (2004ARBEX, M. et al. Queima de biomassa e efeitos sobre a saúde. J. Bras. Pneumol , v. 30, n. 2, 2004.), ao analisarem evidências de diversos estudos, sinalizaram que ocorre aumento significativo de agravos respiratórios, crônicos ou não, em momentos com elevadas combustões de biomassas em ambientes externos, como é o caso, que foi inclusive discutido pelos autores, das queimadas no período de colheita da cana. Já Paraíso (2014PARAÍSO, M. Avaliação do impacto à saúde causado pela queima prévia de palha de cana-de-açúcar no Estado de São Paulo . Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 2014.) observou que a safra da cana em São Paulo concentra-se nos meses de abril a outubro. Assim, outra estratégia de identificação foi a estimação dos efeitos em dois momentos: meses com colheita e meses sem colheita16 16 As informações sobre as internações foram coletadas para cada mês em cada ano. Devido à indisponibilidade de dados, os controles são medidos em termos anuais, excetuando-se a precipitação pluviométrica . . Pode-se esperar que a mecanização impacte mais diretamente e/ou com maior intensidade a saúde respiratória nos meses com colheita; nos demais, há a possibilidade de que internações decorram de doenças contraídas durante a safra, mas estas tendem a serem menores. Se os resultados seguirem tal padrão, é outra evidência favorável à atribuição de causalidade.

Ribeiro e Assunção (2002RIBEIRO, H.; ASSUNÇÃO, J. Efeitos das queimadas na saúde humana. Estudos Avançados , v. 16, 2002.) defendem como inconclusivas as evidências de trabalhos que avaliaram efeitos da queima da cana na saúde respiratória. Segundo os autores, ao considerarem internações por doenças respiratórias em municípios produtores ao longo da safra, eles podem não ter identificado adequadamente efeito causal por tal período coincidir com meses mais frios e com menores umidades do ar, condições que aumentam a suscetibilidade a tais enfermidades.

Nesse estudo, tal deficiência foi menor, pois foram controlados atributos meteorológicos e geológicos (precipitação e altitude captada pelos efeitos fixos, por exemplo), além de outros aspectos (covariadas discutidas nessa seção) e, indiretamente pelas estratégias de identificação, atributos não observados variantes no tempo e distintamente nos municípios, como mudanças nas direções e intensidades dos ventos. A temperatura seria outro exemplo. Nicolella e Belluzzo (2015NICOLELLA, A. C.; BELLUZZO, W. The effect of reducing the pre-harvest burning of sugar cane on respiratory health in Brazil. Environment and Development Economics , v. 20, 2015.), a partir de dados do Centro Integrado de Informações Agrometeorológicas (Ciiagro), observaram que as temperaturas médias municipais não variam muito no tempo, de modo que não é uma hipótese forte as considerar como constantes e, assim, captadas pelos efeitos fixos.

Optou-se, no presente estudo, por também levar em conta a classificação climática de Köppen-Geiger para os municípios paulistas. Porém, ela não varia no tempo17 17 Informação obtida no Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri). Para detalhes sobre a metodologia adotada para a classificação Köppen-Geiger, consultar: www.cpa.unicamp.br. . Assim, a última estratégia de identificação consistiu em estimações para dois grupos de municípios, divididos pelos climas predominantes em São Paulo: tropical (temperaturas mais elevadas e ausência de inverno acentuado) e temperado (temperaturas menores em alguns meses e inverno definido). Se os resultados mostrarem efeitos similares nos dois grupos, é outra evidência de causalidade, pois apontará a existência de efeitos da mecanização sobre a saúde inclusive nos municípios com condições climáticas que favorecem o funcionamento do sistema respiratório (tropicais).

5. Análise dos resultados: efeitos da mecanização sobre a saúde respiratória

A seguir, foram analisados os resultados que permitiram avaliar efeitos das mecanizações da colheita da cana sobre a incidência de doenças respiratórias. Devido à restrição de espaço e à menor importância para a discussão, os resultados das covariadas não foram reportados18 18 Estes podem ser obtidos junto aos autores do estudo. . O teste de Hausman apontou, em todos os testes, a melhor adequação do método de efeitos fixos. Portanto, como era esperado, atributos não observados fixos no tempo influenciam a saúde.

A Tabela 1 mostra os resultados para o coeficiente de morbidade por doenças do aparelho respiratório como variável dependente. Nos municípios com produção de cana, à medida que aumenta a proporção das áreas destinadas para este fim com colheita mecanizada, diminuem as internações, o que foi sugerido pelos coeficientes negativos e significativos da mecanização nas quatro especificações. O coeficiente associado à mecanização microrregião (especificação III ) também foi negativo e significativo, o mesmo sendo constatado para a mecanização vizinhos (especificação IV )19 19 A comparação dos resultados microrregional ao municipal, em todas as estimações analisadas nesta seção, sugere que a mecanização no resto da microrregião afetaria mais a saúde respiratória do que a mecanização no próprio município. Em contraposição, não é possível determinar um padrão pela comparação entre municípios e vizinhos. . Portanto, as mecanizações dos entornos também reduzem a morbidade.

Tabela 1
Efeitos da mecanização da colheita sobre os coeficientes de morbidade e de mortalidade por doenças do aparelho respiratório

Para avaliar a robustez dos resultados, foram adotadas estratégias de identificação. Em função de problemas na mensuração da morbidade, a primeira estratégia foi a substituição desta pelo coeficiente de mortalidade respiratória. A Tabela 1 também mostra os resultados dessas estimações. Nos municípios com produção, os óbitos por doenças respiratórias diminuem à medida que aumenta a mecanização, o que foi sinalizado pelos coeficientes negativos e, nas especificações I e II , significativos da mecanização . Nas demais especificações, não foram significativos, mas mantiveram os sinais negativos. Os efeitos da mecanização microrregião (especificação III ), assim como da mecanização vizinhos (especificações IV ), foram negativos e significativos. Ou seja, maior mecanização no entorno também reduz mortalidade. Portanto, tais resultados foram favoráveis à hipótese de que a mecanização melhora a saúde respiratória.

Doenças respiratórias são apontadas como as mais sensíveis a variações das queimadas. Baseando-se nesse fato, a segunda estratégia foi a estimação dos efeitos das mecanizações sobre o coeficiente de morbidade por demais doenças. Partiu-se do pressuposto de que atributos não observados podem ser diferentes nos municípios com graus distintos de mecanização; porém, os efeitos destes dificilmente são apenas sobre a saúde respiratória. Assim, efeitos significativos da mecanização apenas na morbidade respiratória são evidências mais robustas para interpretá-los como causais. Os resultados da Tabela 2 foram favoráveis, então, ao argumento, pois, para a morbidade hospitalar, devido às demais doenças, os coeficientes estimados da mecanização , da mecanização microrregião e da mecanização vizinhos foram positivos e não significativos.

Tabela 2
Efeitos da mecanização da colheita sobre o coeficiente de morbidade por demais doenças

Crianças e idosos são mais vulneráveis a doenças respiratórias. Assim, foram feitas, como terceira estratégia, estimações para a morbidade por doenças respiratórias em duas faixas etárias: menores de 5 anos e maiores de 65 anos. A ideia é que se forem obtidos resultados similares aos anteriores na morbidade por doenças mais sensíveis a variações das queimadas nas faixas etárias mais vulneráveis, então há mais evidências da causalidade. A Tabela 3 mostra que, nas crianças, os coeficientes das mecanizações (municipal e do entorno) foram negativos, mas não significativos. Nos idosos, o efeito da mecanização foi negativo e significativo (quatro especificações). Na especificação III , o coeficiente da mecanização microrregião foi negativo e não significativo; na IV , o coeficiente da mecanização vizinhos foi negativo e significativo.

Tabela 3
Efeitos da mecanização da colheita sobre os coeficientes de morbidade de crianças e de idosos por doenças do aparelho respiratório

Mesmo se for considerado que os resultados da Tabela 3 não confirmam integralmente o efeito causal da mecanização sobre a saúde respiratória, eles também não o refutam. Se, por um lado, não houve significância nas crianças; por outro, esta foi constatada nos idosos para as mecanizações municipal e dos vizinhos. Portanto, nas doenças mais sensíveis a variações das queimadas, em uma das faixas etárias mais vulneráveis, a mecanização foi associada à queda da morbidade. Ademais, nas crianças, os efeitos das mecanizações municipal e do entorno não foram significativos, mas foram negativos; o mesmo ocorreu na mecanização microrregional para os idosos.

Outra estratégia foi a estimação dos efeitos em dois períodos: meses com colheita e sem colheita . Os resultados, apresentados na Tabela 4, foram favoráveis à atribuição de causalidade. O efeito da mecanização foi negativo e significativo (quatro especificações) nos meses com colheita , mas não significativo nos meses sem colheita . O mesmo padrão foi constatado na mecanização microrregião (especificação III ) e na mecanização dos vizinhos (especificação IV ). Assim, mecanizações municipal e do entorno relacionam-se negativa e significativamente à morbidade por doenças mais sensíveis a variações das queimadas nos meses com colheita20 20 Vale ressalvar que, apesar de não significativos, alguns coeficientes nos meses sem colheita foram positivos, o que contradiz a literatura, que prevê a existência de consequências posteriores à colheita (ARBEX et al ., 2004). .

Tabela 4
Efeitos da mecanização da colheita sobre o coeficiente de morbidade por doenças do aparelho respiratório, segundo períodos (com e sem colheita)

A Tabela 5 apresenta os resultados das estimações para a quinta (e última) estratégia de identificação. Os municípios foram divididos em dois grupos segundo suas classificações climáticas de Köppen-Geiger: temperado e tropical . Como já mencionado, baixa temperatura potencializa o efeito das queimadas sobre a saúde. Assim, em municípios com clima temperado (temperatura mais baixa em alguns meses e inverno definido), a mecanização pode resultar em queda, provavelmente maior, da incidência de doenças respiratórias. Porém, o resultado poderia ser criticado como relação espúria. Mas, se o efeito, mesmo que menor, existir em municípios tropicais, com clima mais benéfico ao sistema respiratório (temperaturas médias mais elevadas e ausência de inverno acentuado), é uma evidência mais robusta para a atribuição de causalidade.

Tabela 5
Efeitos da mecanização da colheita sobre o coeficiente de morbidade por doenças do aparelho respiratório, segundo a classificação climática dos municípios

Os resultados estimados foram favoráveis a esse argumento. Os efeitos das mecanizações municipal, microrregional e dos vizinhos foram negativos e significativos nos dois conjuntos climáticos. No caso da mecanização municipal, o efeito foi maior nos municípios temperados, o que está de acordo com a lógica de que o clima potencializa o efeito da queimada. Porém, no entorno (microrregião e vizinhos), os coeficientes sinalizaram efeitos maiores nos tropicais.

Portanto, considerando todos os resultados, pode-se sugerir que os graus de mecanização municipais e dos entornos relacionam-se negativamente à incidência de doenças respiratórias. Com certa confiança, as relações estimadas podem ser interpretadas como efeitos causais da mecanização sobre a saúde respiratória, pois, mesmo nos testes em que não foram robustas, não refutaram totalmente a hipótese de causalidade. Ademais, com estratégias empíricas distintas, corroboraram evidências de outros trabalhos, algumas delas, inclusive, discutidas nesse estudo.

6. Considerações finais

A mecanização da colheita da cana-de-açúcar em substituição à queima prévia, ao cessar ou reduzir a emissão de poluentes, melhora a qualidade do ar em um local e no seu entorno e, assim, a incidência de doenças respiratórias. O objetivo do presente artigo foi justamente avaliar as relações entre os graus de mecanização municipal e dos vizinhos e a morbidade respiratória.

Para isso, por meio de estimações econométricas para um painel de municípios paulistas nos anos de 2006 a 2011, foram relacionados dados do Canasat do Inpe e do Datasus, entre outras fontes. Fundamentadas pelas literaturas de saúde e sobre o setor, foram adotadas estratégias de identificação para controlar características observadas e não observadas (fixas e variantes no tempo) que também podem afetar a incidência de doenças respiratórias e lidar com viés de autosseleção. Os resultados sinalizaram que as mecanizações municipais e dos entornos se relacionam negativa e, no geral, significativamente com a incidência dessas doenças. Pelas estratégias, os efeitos estimados podem ser interpretados, com certa robustez, como causais.

Isto porque relações negativas e significativas entre graus de mecanização e morbidade respiratória foram observadas apenas nas doenças tidas como as mais sensíveis a variações das queimadas (respiratórias); em uma faixa etária mais vulnerável (idosos); somente nos meses com colheita e em municípios com clima tanto temperado como tropical. Ademais, também foram obtidas relações negativas e significativas entre mecanização e mortalidade respiratória. Em comparação a outros trabalhos que também avaliaram efeitos da produção de cana sobre a saúde respiratória, esse estudo diferenciou-se por utilizar medidas de mecanização variando no tempo e entre os municípios, o que também garante maior robustez à atribuição de causalidade.

Assim, o estudo apresentou evidências adicionais para um tipo de avaliação que é sujeita a várias limitações, justamente devido às condições de saúde de uma pessoa resultarem de uma complexa cadeia causal na qual interagem atributos próprios, socioeconômicos, climáticos e de oferta de serviços públicos. No caso, foram avaliados os efeitos da redução das queimadas nos canaviais especificamente sobre a saúde respiratória. A mecanização seria, então, um fator que contribuiria para a diminuição da incidência de doenças respiratórias. Porém, outros aspectos relacionados a políticas públicas também seriam relevantes, como: combate à desigualdade de renda e de acesso a bens e a serviços de saúde; melhora da qualidade do ar (reflorestamento e filtros em indústrias e automóveis, por exemplo) e educação ambiental. Tais fatores, apesar de não terem sido explicitamente avaliados, estão intrínsecos na revisão dos "fatores de confusão".

Um aspecto discutido no estudo foi que externalidades das queimadas sempre motivaram pressões que culminaram, a partir dos anos 1990, na promulgação de leis federais e estaduais que tentaram induzir o fim da prática com metas graduais de expansão da mecanização. Porém, ao sofrerem oposições de produtores e sindicatos, não foram efetivas. No estado de São Paulo, esse quadro alterou-se em 2007 com o Protocolo Agroambiental. Em um contexto de expansão da produção motivada pela inovação dos automóveis flex-fuel , pela perspectiva de exportação a mercados demandantes de produtos que degradem menos o meio ambiente e por incentivos governamentais (financiamentos do BNDES, por exemplo), o mecanismo de governança não compulsório e, por isso, diferente das leis anteriores, baseadas em instrumentos de comando-e-controle, teve grande adesão. Ao governo estadual, coube a criação de certificação (instrumento de comunicação), com a concessão de um selo verde. Motivados pelos potenciais ganhos da venda de biocombustível "mais limpo", os produtores expandiram rapidamente a mecanização.

Assim, mesmo que indiretamente, as evidências desse estudo ressaltaram a relevância de mecanismos público-privados de governança, como o Protocolo Agroambiental do estado de São Paulo, que, ao conciliarem incentivos públicos e privados, reduzam as externalidades de atividades econômicas sobre o meio ambiente e, consequentemente, sobre a saúde pública.

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  • *
    Além das valiosas contribuições de pareceristas anônimos, os autores agradecem o auxílio da dra. Andrea Koga Vicente e do dr. Rafael Terra de Menezes na coleta e no tratamento de alguns dados.
  • 5
    Ver, por exemplo, Arbex (2001), Cançado et al . (2006), Ribeiro (2008) e Chagas et al . (2014). Já relações entre mecanização e saúde foram avaliadas por Paraíso (2014) e Nicolella e Belluzzo (2015)PRIULI, R. M. A., MORAES, M. S.; CHIARAVALLOTI, R. M. Impacto do estresse na saúde de cortadores de cana. Revista de Saúde Pública , v. 2, n. 48, 2015., que já foram comentados.
  • 6
    A definição dessas doenças segue o capítulo 10 da Classificação Internacional de Doenças (CID).
  • 7
    Índice que pode ser criticado por sinalizar a área na qual há produção de cana sem queima para a colheita e não o volume queimado. Na ausência de outros dados, ele pode ser defendido como uma boa proxy , pois é plausível supor que, pelo menos na média, o volume produzido correlaciona-se positivamente à área destinada à produção.
  • 8
    Nicolella e Belluzzo (2015)PRIULI, R. M. A., MORAES, M. S.; CHIARAVALLOTI, R. M. Impacto do estresse na saúde de cortadores de cana. Revista de Saúde Pública , v. 2, n. 48, 2015. apontaram a necessidade, em análises desse tipo, de lidar com dependência (autocorrelação) espacial. Porém, também ressaltaram que, sem variáveis dependentes espacialmente defasadas, a dependência não gera viés, mas afeta as variâncias (eficiência), sendo erros padrões robustos (clusters) uma opção adotada pelos autores e seguida no presente estudo. Para mais detalhes sobre tais aspectos econométricos, ver: Elhorst (2003)ELHORST, J. P. Specification and estimation of spatial panel data models. International Regional Science Review , v. 26, n. 3, jul. 2003..
  • 9
    Classificação de Oxley e Martin (1991OXLEY, H.; MARTIN, J. P. Controlling government spending and deficit: trends in the 1980s and prospects for the 1990s. OECD Economic Studies , n. 17, 1991.). Bens meritórios são o somatório das despesas com educação, cultura, habitação, urbanismo, saúde e saneamento; e bem-estar, o somatório das despesas com assistência e previdência.
  • 10
    Os vieses de autosseleção são discutidos na literatura de tratamento oriunda do modelo Roy-Rubin (ROY, 1951ROY, A. D. Some thoughts on the distribution of earnings. Oxford Economic Papers , 1951.; RUBIN, 1974RUBIN, D. B. Estimating causal effects of treatments in randomized and nonrandomized studies. Journal of Educational Psychology , v. 66, n. 5, 1974.). Para mais detalhes sobre a inclusão de covariadas, ver, entre outros, Angrist e Pischke (2009)ANGRIST, J. D.; PISCHKE, J. S. Mostly harmless econometrics: an empiricist's companion. Princeton University Press, Princeton, 2009..
  • 11
    Conferir, por exemplo: Mathias e Soboll (1998)MATHIAS, T. A. F.; SOBOLL, M. L. M. S. Confiabilidade de diagnósticos nos formulários de autorização de internação hospitalar. Revista de Saúde Pública , v. 32, n. 6, dez. 1998. e Laurenti et al . (2004).
  • 12
    As informações referentes aos óbitos nos municípios de residência também são disponibilizadas pelo Datasus.
  • 13
    Seguindo os capítulos da Classificação Internacional de Doenças (CID) que não tratam de doenças respiratórias.
  • 14
    Galiani et al . (2015) adotaram estratégia similar para efeitos de privatizações do saneamento sobre a saúde.
  • 15
    Crianças e idosos deixaram de ser controladas e a população foi substituída pelos residentes da respectiva idade.
  • 16
    As informações sobre as internações foram coletadas para cada mês em cada ano. Devido à indisponibilidade de dados, os controles são medidos em termos anuais, excetuando-se a precipitação pluviométrica .
  • 17
    Informação obtida no Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura (Cepagri). Para detalhes sobre a metodologia adotada para a classificação Köppen-Geiger, consultar: www.cpa.unicamp.br.
  • 18
    Estes podem ser obtidos junto aos autores do estudo.
  • 19
    A comparação dos resultados microrregional ao municipal, em todas as estimações analisadas nesta seção, sugere que a mecanização no resto da microrregião afetaria mais a saúde respiratória do que a mecanização no próprio município. Em contraposição, não é possível determinar um padrão pela comparação entre municípios e vizinhos.
  • 20
    Vale ressalvar que, apesar de não significativos, alguns coeficientes nos meses sem colheita foram positivos, o que contradiz a literatura, que prevê a existência de consequências posteriores à colheita (ARBEX et al ., 2004).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2014
  • Aceito
    10 Dez 2015
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