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Reforma agrária, regimes alimentares e desenvolvimento rural: evidências a partir dos territórios rurais do Rio Grande do Norte1 1 Este trabalho faz parte de um conjunto de pesquisas desenvolvidas no âmbito da agricultura familiar, e contou com o auxílio do CNPq, através do edital MDA/SDT/CNPq, Chamada Encomendas, COSAE/MDA/2013 (APQ).

Land reform, food regimes and rural development: evidence from the rural territories from Rio Grande do Norte state

Resumo

O objetivo deste estudo é apresentar experiências de reforma agrária relacionadas a regimes agroalimentares da agricultura familiar no contexto do desenvolvimento rural dos territórios do Rio Grande do Norte, nos períodos dos I e II Planos Nacionais de Reforma Agrária (PNRA). A metodologia consistiu em uma pesquisa exploratória e descritiva, analisando informações quantizadas das ações de ATER (Assistência Técnica e Extensão Rural), inicialmente na lógica neoliberal de mercado dos anos 1990, e, depois, nos anos 2000, devido à emergência de regimes alimentares mais diversificados para cada território. Como técnicas, predominaram a pesquisa bibliográfica e documental, e a pesquisa de campo através de entrevistas com gestores públicos e privados, e agricultores familiares das experiências estudadas. Os resultados revelaram que as experiências de reforma agrária têm importância, especialmente, com os novos regimes alimentares mais diversificados, porém, apresentaram dificuldades devido às descontinuidades das ações de ATER. No entanto, os resultados mais marcantes da pesquisa referem-se às experiências de integração ao mercado, particulamente, na construção de dinâmicas de desenvolvimento rural nos territórios do Rio Grande do Norte.

Palavras-chave:
reforma agrária; regimes alimentares; agricultura familiar; território

Abstract

The objective of this study is to present agrarian reform experiences related to family farming agri-food regimes in the context of rural development of the territories of Rio Grande do Norte, during the periods of the I and II National Agrarian Reform Plans (PNRA). The methodology consisted of exploratory and descriptive research, analyzing quantified information on ATER (Technical Assistance and Rural Extension) actions, initially in the neoliberal market logic of the 1990s, and then due to the emergence in the 2000s of more diversified dietary regimes for each territory. As techniques prevailed the bibliographic and documentary research, and the field research with interviews with public and private managers, and with family farmers of the studied experiences. The results revealed that agrarian reform experiences are important, especially with new, more diversified diets, but presented difficulties due to the discontinuities of ATER actions. However, the most outstanding results of the research refer to the experiences of market integration when building rural development dynamics in the territories of Rio Grande do Norte, state.

Keywords:
land reform; food regimes; family farming; territory

1. INTRODUÇÃO

O debate em torno da necessidade da reforma agrária para o Brasil se deu mais fortemente a partir dos anos 1950 e com diferentes concepções ao longo do tempo. Primeiro, com discussões dos clássicos brasileiros dos anos 1950, especialmente, Paim (1957)Paim, G. (1957). Industrialização e economia natural. Rio de Janeiro: ISEB., Rangel (2000)Rangel, I. (2000). Questão agrária, industrialização e crise urbana no Brasil. Porto Alegre: UFRGS., Guimarães (1977)Guimarães, A. P. (1977). Quatro séculos de latifúndio. (4ª ed.). Rio de Janeiro: Paz e Terra. e Prado Júnior (1979), sob a inspiração marxista e influência desenvolvimentista, numa época em que se exigia forte presença do Estado. Segundo, nos anos 1980, 1990 e 2000, com Silva (2002)Silva, J. G. (2002). O desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e a reforma agrária. In J. P. Stédile (Ed.). A questão agrária hoje (pp. 137-143). Porto Alegre: UFRGS. , Abramovay (2002)Abramovay, R. (2002). Agricultura familiar e capitalismo no campo. In: J. P. Stédile (Ed.). A questão agrária hoje (pp. 94-104). Porto Alegre: UFRGS., Veiga (2002)Veiga, J. E. (2002). Fundamentos do agro-reformismo. In J. P. Stédile (Ed.), A questão agrária hoje (pp. 68-93). Porto Alegre: UFRGS., Stédile (2002)Stédile, J. P. (2002). A questão agrária e o socialismo. In J. P. Stédile (Ed.), A questão agrária hoje (pp. 306-322). Porto Alegre: UFRGS. e Sauer (2016)Sauer, S. (2016). Terra no século XXI: desafios e perspectivas da questão agrária. Retratos de Assentamentos, 19(2), 69-97., com o retorno do debate, agora influenciado pelos efeitos da “modernização” agrícola e pela concepção neoliberal da globalização, inspirada no modelo europeu do Novo Mundo Rural. E terceiro, já no século XXI, incluindo o apelo sustentável de regimes alimentares no debate da questão agrária, com as contribuições de Marsden (2003)Marsden, T. (2003). The condition of rural sustainability. The Netherlands: Van Gorcun., McMichael (2013)McMichael, P. (2013). Food regimes and agrarian questions. Warwickshire: Practical Action Publishing., Maluf & Reis (2013)Maluf, R. S., & Reis, M. C. Segurança alimentar e nutricional na perspectiva sistêmica. In. C. Rocha, L. Burlandy & R. Magalhães (Eds.), Segurança alimentar e nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas (pp. 43-67). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013., Friedmann (2016)Friedmann, H. (2016). Commentary: food regime analysis and agrarian questions: widening the conversation. The Journal of Peasant Studies, 43(3), 671-692., Maluf & Flexor (2017)Maluf, R., & Flexor, G. (2017). Questões agrárias, agrícolas e rurais: conjunturas e políticas públicas. Rio de Janeiro: E-papers., Mattei (2017)Mattei, L. (2017). Reforma agrária no Brasil: trajetórias e dilemas (298 p.). Florianópolis: Insular., Gazolla & Schneider (2017)Gazolla, M., & Schneider, S. (2017). Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS. e Niederle & Wesz-Junior (2018)Niederle, P. A., & Wesz-Junior, V. J. (2018). As novas ordens alimentares. Porto Alegre: UFRGS,..

A concepção neoliberal dos anos 1990 sugeria, para a reforma agrária brasileira, a integração a mercados com regime alimentar dominante e a redução da ação do Estado, dando espaço, nos anos 2000, para a ênfase territorial com sustentabilidade, a partir de estratégias baseadas na estruturação de sistemas alimentares alternativos da agricultura familiar, a exemplo dos baseados na agroecologia e na construção de mercados por meio de circuitos curtos de comercialização. Nesses mais de cinquenta anos de concepções sobre seu desenvolvimento, o país passou por transformações e descontinuidades, e o debate acerca da necessidade da reforma agrária oscila ainda nos dias atuais em função da herança de programas como o I e o II Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA).

Na verdade, o foco do debate em torno da necessidade da reforma agrária permaneceu sendo o contingente de agricultores que ficou de fora do padrão “moderno” de produção, e trabalhadores rurais desempregados pela modernização de complexos agroindustriais, nos quais o progresso técnico passou a atingir desde o preparo do solo até a colheita de culturas fortemente demandantes de força de trabalho, como algodão, café, cana, laranja, etc. Para este contingente de excluídos, o que sobrou foi a sua existência, a partir de um forte vínculo entre a produção e os mercados locais incompletos e de baixa integração. Porém, esse vínculo passou a ser ameaçado e a não mais se sustentar, pois, mesmo esses trabalhadores ficando em espaços menos favorecidos e fora dos circuitos “modernos” de produção, passaram por processos cada vez mais intensos de modernização em um período de abertura comercial que sinalizava para a homogeneização do desenvolvimento em espaços heterogêneos. Nesse contexto, o desafio desse contingente excedente, agora constituído em sua maioria por agricultores familiares, é o de se reinventar para a construção e inserção em mercados. (Ortega et al., 2004Ortega, A. C., Nunes, E. M., & Godeiro, K. F. (2004). Características e limites de uma experiência de desenvolvimento rural: o caso de Serra do Mel. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, 35(4), 445-464.).

Mas, se impactos do processo de globalização nos anos 1980 e 1990, presentes em maior ou menor grau nas diferentes regiões brasileiras acirraram o processo de exclusão e desagregação da produção familiar, levaram também os agricultores familiares para o desafio da reinvenção ou da reconfiguração. Esta se dá efetivamente nos anos 2000 com a tentativa da construção e inserção em mercados a partir da organização coletiva e da diversificação da agricultura familiar integrada com a agroindústria de pequeno porte e com a dinamização do desenvolvimento territorial. Neste sentido, as experiências de reforma agrária do Rio Grande do Norte buscaram, a partir dos anos 1990, construir diferentes concepções de dinâmicas de desenvolvimento rural baseadas na agricultura familiar. Isso ocorre com estratégias voltadas tanto para o mercado (adotando modelos agrícolas especializados, exógenos e alinhados com o regime alimentar global predominante), quanto para a estruturação de sistemas agroalimentares mais diversificados, localizados e sustentáveis, como alternativa ao regime alimentar global (Nunes & Schneider, 2013Nunes, E. M., & Schneider, S. (2013). Reestruturação agrícola, instituições e desenvolvimento rural no nordeste: a diversificação da agricultura familiar do Polo Açu-Mossoró (RN). Revista Economica do Nordeste, 44, 601-626.). Nesse sentido, a questão central deste estudo é: as experiências de reforma agrária do Rio Grande do Norte aqui analisadas têm a capacidade de estruturar sistemas agroalimentares que possibilitem regimes alimentares localizados e mais diversificados da agricultura familiar, e de se expandir, tanto no sentido de se expandir como de apontar caminhos e direcionar para uma trajetória de dinamização dos territórios, onde o rural é essencial?

Afirmativamente, a hipótese é a de que o desenvolvimento rural, a exemplo do que ocorre com as experiências de reforma agrária potiguar, pode ser pensado não somente como estratégia para estruturar sistemas agroalimentares que despertem um regime alimentar localizado e alternativo à concepção neoliberal dos regimes alimentares globalizados hegemônicos. Pode ser, sobretudo, pensado na perspectiva de um eixo estratégico para um desenvolvimento mais amplo, dinamizado com ações contínuas no sentido de integrar a agricultura familiar com a agroindústria de pequeno porte coordenadas cada vez mais por cooperativas, com serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e crédito, e sinalizando para a construção de mercados por meio de cadeias ou circuitos curtos de comercialização.

Dessa forma, cabe investigar até que ponto essas experiências têm cumprido o papel de constituir-se numa estratégia de dinamização dos territórios, de inclusão e de resgate da agricultura familiar, e elevá-las à condição de estratégias capazes de promover um processo geral de desenvolvimento. Nos termos da referida questão, cabe avaliar se na forma como essas experiências foram concebidas, implantadas, e se no seu alcance contribuem, de fato, como referência nos debates, assim como nas discussões atuais em torno de um projeto mais amplo de desenvolvimento rural.

2. POLÍTICAS DE APOIO AO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO BRASILEIRO

No início de 1980, a política agrícola brasileira encontra dificuldades com a crise fiscal e inicia o declínio do modelo de modernização agrícola, despertando o debate e uma pressão para mais atenção, por parte do Estado, com a política agrária, visando a reforma agrária. Em 1985 é elaborado o I Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), este se encontra regulamentado no Art. 33 do Estatuto da Terra2 2 Em 1964 a reforma agrária foi incluída pelos militares entre suas prioridades. Em 30 de novembro de 1964, após aprovação pelo Congresso Nacional, o presidente Castelo Branco sancionou a lei nº 4.504, que criava o "Estatuto da Terra", o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA), em substituição à antiga Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA), criada em 1962, durante o governo João Goulart. Em 9 de julho de 1970, o Decreto-lei nº 1.110 criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a partir da fusão do IBRA com o INDA (Brasil, 1964). , o qual também estabelece a criação do Ministério Extraordinário para o Desenvolvimento e a Reforma Agrária, MIRAD (ESTATUTO DA TERRA, Art. 33).

O I PNRA tinha como meta criar assentamentos rurais através da desapropriação, esta era considerada primordial para obtenção de terras e complementada com outros mecanismos, como a colonização e regulamentação fundiária. Conforme Palmeira (1989)Palmeira, M. G. S. (1989). Modernização, estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3(7), 87-108. e Medeiros & Leite (1999)Medeiros, L. S., & Leite, S. (1999). Perspectivas para a análise das relações entre assentamentos rurais e região. In F. C. T. Silva, R. Santos, L. F. C. Costa & A. C. Castro (Eds.), Mundo rural e política. Rio de Janeiro: Ed. Campus., os resultados com o I PNRA não foram os esperados, já que havia uma forte e ampla articulação dos grandes proprietários de terra representados pela União Democrática Ruralista (UDR). Em 1987, segundo Palmeira (1989)Palmeira, M. G. S. (1989). Modernização, estado e questão agrária. Estudos Avançados, 3(7), 87-108., o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que seria o responsável por colocar em prática o processo de Reforma Agrária, foi extinto e criado o Instituto Jurídico de Terras Rurais (INTER), através do Decreto-Lei nº 2363, para o qual foram repassadas todas as competências do INCRA. Na verdade, para fins de reforma agrária, a lei de desapropriação garantida pela Constituição de 1988, assegura o direito da União à desapropriação de terras ditas particulares, consideradas improdutivas em decorrência da utilidade pública (Medeiros & Leite, 1999Medeiros, L. S., & Leite, S. (1999). Perspectivas para a análise das relações entre assentamentos rurais e região. In F. C. T. Silva, R. Santos, L. F. C. Costa & A. C. Castro (Eds.), Mundo rural e política. Rio de Janeiro: Ed. Campus.).

Conforme Medeiros & Leite (1999)Medeiros, L. S., & Leite, S. (1999). Perspectivas para a análise das relações entre assentamentos rurais e região. In F. C. T. Silva, R. Santos, L. F. C. Costa & A. C. Castro (Eds.), Mundo rural e política. Rio de Janeiro: Ed. Campus., através do Decreto legislativo nº 2 de março de 1989 foi rejeitado o Decreto-Lei que criou o INTER e reativado o INCRA, sendo que este voltou a ser responsável pela execução da política de reforma agrária. Entre 1990 e 1992, mesmo após a promulgação da Constituição Federal, não foi registrada nenhuma desapropriação de terras no Brasil, em contrapartida, houve um estímulo à implementação de bolsas de arrendamento e à regulamentação da compra de terras. Essa política forçou os estados a desapropriarem as terras públicas e a adquirirem imóveis para amenizar os conflitos por terra. Entre 1992 e 1995 foi promulgada a Lei nº 8.629/93, denominada Lei Agrária, que determinou que as terras que não cumprissem sua função social seriam desapropriadas e destinadas à reforma agrária.

A adaptação a ajustes e a políticas macroeconômicas, conforme Silva et al. (1999)Silva, F. C. T., Santos, R., Costa, L. F. C., & Castro, A. C. (1999). Mundo rural e política. Rio de Janeiro: Campus., desencadearam crises políticas e econômicas na década de 1990, as quais levaram agências internacionais multilaterais, neste caso o Banco Mundial (BIRD), a financiar uma política de caráter desenvolvimentista e a lançar outra proposta baseada no desenvolvimento local. Esta última proposta buscou se inspirar na constituição de um modelo localizado de desenvolvimento endógeno operacionalizado com base em pequenas unidades familiares de produção, com capacidade de promover o dinamismo econômico e um estado de bem-estar.

Apesar da concepção de âmbito local dada pelo I PNRA, para Silva et al. (1999)Silva, F. C. T., Santos, R., Costa, L. F. C., & Castro, A. C. (1999). Mundo rural e política. Rio de Janeiro: Campus., a adoção da perspectiva neoliberal não seria um processo independente, isto é, o desenvolvimento na instância micro estaria imbricado na noção do macro. Ou seja, mesmo dando-se ênfase ao desenvolvimento nas pequenas unidades territoriais, não fugiria da lógica global da economia. Dessa forma, de acordo com Marsden (1998)Marsden, T. (1998). New rural territories: regulating the differential rural spaces. Journal of Rural Studies, 14(1), 107-117., a globalização provocaria uma reestruturação do espaço rural, no sentido de promover a padronização dos mercados e, por sua vez, a sua integração ao regime alimentar predominante global.

Van Der Ploeg (2008)Van Der Ploeg, J. D. (2008). The new pensantries: struggles for autonomy and sustainability in an era of empire and globalization. London: Earthscan Sterling VA. aponta, especialmente, para países subdesenvolvidos que são carentes de alimentos, que possuem elevado desemprego e têm renda reduzida no meio rural, cuja adesão aos modelos de modernização agrícola, muitas vezes, se apresenta como único caminho. Nos sistemas agroalimentares de estruturas precárias e que geralmente convivem com apertos (squeeze) financeiros, a dependência com o mercado pode surgir como única alternativa de inclusão. Assim, o padrão técnico baseado em modelos exógenos e especializados seria adotado e praticado de forma alinhada com o regime alimentar global predominante. E, apesar desses modelos possuírem uma dimensão global, não deixariam de valorizar as peculiaridades e vocações do desenvolvimento local, enquanto estratégia de estruturação e implantação dos sistemas agroalimentares, mas com controle à distância, por meio de cadeias ou circuitos longos de comercialização e distribuição (Marsden, 1998Marsden, T. (1998). New rural territories: regulating the differential rural spaces. Journal of Rural Studies, 14(1), 107-117.).

Nesse sentido, conforme a descentralização buscou viabilizar a formação de um aparato institucional com capacidade decisória e autonomia de gestão a municípios e comunidades, possibilitou que estes pudessem se organizar e definir estratégias de ação e de gestão dos seus programas e projetos. Esse aparato institucional foi formado para a reforma agrária a partir do tripé: a) ação dos conselhos municipais; b) desenvolvimento local; e c) serviços de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). Assim, remete-se a descentralização dos programas de reestruturação fundiária, baseada no ideário de desenvolvimento local com a valorização da agricultura familiar. Conforme Nunes et al. (2020)Nunes, E. M., Silva, V. M., & Sá, V. C. (2020). Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER): formação e conhecimentos para a agricultura familiar do Rio Grande do Norte. Redes, 25(2), 857-881. http://dx.doi.org/10.17058/redes.v25i2.14174
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, se fez necessária uma efetiva descentralização institucional por meio da qual se pudesse proporcionar uma maior integração entre as várias instâncias de poder (federal, estadual e municipal) e a sociedade civil organizada.

A descentralização da reforma agrária, segundo Silva (1999b)Silva, J. G. (1999b). Tecnologia & agricultura familiar. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS. e Silva et al. (1999)Silva, F. C. T., Santos, R., Costa, L. F. C., & Castro, A. C. (1999). Mundo rural e política. Rio de Janeiro: Campus., está justificada no documento Diretrizes do processo de descentralização da reforma agrária e esteve apoiada na concepção do desenvolvimento local que, juntamente com a valorização da agricultura familiar e da reforma agrária nos anos 1990 consolidariam a Política de Desenvolvimento Rural. Para esses autores, esta política foi inspirada no modelo europeu que ficou conhecido Novo mundo Rural, defendido por instituições multilaterais, a exemplo do Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

No ano de 1996, dá-se destaque para a criação do Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar (PRONAF), mecanismo da política de crédito específico para a agricultura familiar, que depois de certo tempo acabou substituindo, no ambiente da reforma agrária, o que era atribuição do então Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA). Conforme Silva (1999a)Silva, E. R. A. T. (1999a). Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar: relatório técnico das ações desenvolvidas no período 1995/1998 (46 p.). Brasília, DF: IPEA., com a criação do PRONAF, a agricultura familiar foi dividida em três modalidades, apesar das críticas no meio acadêmico por considerar nessas modalidades fatores essencialmente econômicos: a) agricultura familiar consolidada (estrato A), formada por agricultores integrados ao mercado, com acesso às inovações tecnológicas e que operam como empresas, alguns integrados ao agribusiness; b) agricultura familiar de transição (estrato B), constituída por agricultores com acesso parcial tanto à inovação tecnológica quanto ao mercado e sem acesso à maioria dos mecanismos de políticas e, embora não operando como empresas, possuem viabilidade econômica; e c) agricultura familiar periférica (estrato C), formada por trabalhadores sem terra (arrendatários, meeiros, parceiros, etc.) e por agricultores sem infraestrutura, inviáveis e dependentes de políticas agrárias, de crédito, de pesquisas, e de assistência técnica, etc. (Guanziroli, 1996Guanziroli, C. E. 1996. Perfil da agricultura familiar no Brasil: dossiê estatístico. Brasília, DF: FAO/INCRA.).

Os assentados, segundo Silva (1999a)Silva, E. R. A. T. (1999a). Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar: relatório técnico das ações desenvolvidas no período 1995/1998 (46 p.). Brasília, DF: IPEA., passaram a pertencer ao estrato “A”, ocupado antes da reformulação3 3 Com a reformulação, a classificação dos estratos para o PRONAF ficou a seguinte: estrato (A) - assentamentos de reforma agrária; (B) - trabalho familiar é a base da exploração do estabelecimento e renda anual bruta de até R$ 1.500,00; (C) - trabalho familiar predominante, com recurso eventual ao trabalho assalariado e renda anual bruta entre R$ 1.500,00 e R$ 10.000,00; e (D) - trabalho familiar predominante, com até 2 empregados permanentes e recurso eventual de trabalho de terceiros e renda bruta anual familiar entre R$ 10.000,00 e R$ 30.000,00. pelos agricultores familiares consolidados, os quais passaram a ser colocados como a parcela que não necessita de apoio das políticas públicas, pois já possuem terra e encontram-se atendidos pela política agrícola da modernização, uma vez que dominam a tecnologia, têm acesso a crédito e estão inseridos e dominam mercados. Os agricultores familiares do estrato “B” seriam o “público alvo” prioritário do apoio das políticas agrícolas, com vistas a inseri-los nos mercados. Já para os agricultores familiares do estrato “C”, conforme Nunes & Schneider (2013)Nunes, E. M., & Schneider, S. (2013). Reestruturação agrícola, instituições e desenvolvimento rural no nordeste: a diversificação da agricultura familiar do Polo Açu-Mossoró (RN). Revista Economica do Nordeste, 44, 601-626., a conclusão foi a de que estes necessitavam das políticas agrárias, pois, além da maioria não possuir o acesso ao crédito, acompanhamento técnico e à tecnologia, ainda não possuía terra.

Com a finalidade de atender aos que não possuíam terra, conforme Pereira (2012)Pereira, J. M. M. (2012). Avaliação do projeto Cédula da Terra (1997-2002). Estudos Avançados, 26, 111-136., foi criado, mediante parceria entre o Banco Mundial e o Governo Federal, o Programa Cédula da Terra4 4 O Programa Cédula da Terra teve seu plano-piloto no Estado do Ceará. , em 1997, visando construir um mercado de compra e venda de terras. Neste programa, o acesso à terra se dava por intermédio de uma associação de agricultores que se responsabilizaria pela procura de um de um proprietário disposto a vender a sua terra. De acordo com Pereira (2012)Pereira, J. M. M. (2012). Avaliação do projeto Cédula da Terra (1997-2002). Estudos Avançados, 26, 111-136., caso a proposta fosse aceita, os recursos financeiros estariam disponibilizados para a aquisição de terras, infra-estrutura econômica e social em áreas produtivas, os quais seriam reembolsáveis em dez anos. No entanto, antes mesmo de concluir a avaliação do programa, começou a ser negociada sua extensão para outras áreas do país, adotando agora o nome de Banco da Terra. A regulamentação do Banco da Terra se deu através da Lei Complementar nº 93, de 2000 (Silva et al., 1999Silva, F. C. T., Santos, R., Costa, L. F. C., & Castro, A. C. (1999). Mundo rural e política. Rio de Janeiro: Campus.).

A partir disso, nos anos 1990, foram várias as pressões das organizações demandantes de terra para que fosse feita pelo Banco Mundial, então órgão financiador, uma inspeção no Programa Cédula da Terra e seu derivado Banco da Terra, pois os resultados obtidos não estavam acontecendo de acordo com as expectativas dos agricultores familiares5 5 A forma como o Estado brasileiro conduzia a operacionalização da Cédula da Terra e do Banco da Terra começou a se mostrar simpática inclusive a quem se colocava contrário a reforma agrária, ou seja, a categoria dos grandes fazendeiros. Esse movimento tendia para uma pressão de demanda por terra criando um ambiente para a valorização do preço da terra, pois este havia sido forçado para baixo desde o Plano Real, em 1994. . No entanto, em função das críticas direcionadas à forma de execução deste Programa, o Banco Mundial apresentou outra proposta, o Programa Crédito Fundiário e Combate à Pobreza Rural, que representou apenas uma mudança de nomenclatura.

A partir do ano de 2003 foi reafirmada a necessidade de avanço e reestruturação do processo de reforma agrária e elaborado o II Plano Nacional de Reforma Agrária (II PNRA). Este Plano, segundo Nunes et al. (2015)Nunes, E. M., Tôrres, F. L., Silva, M. R. F., Sá, V. C., & Godeiro-Nunes, K. F. (2015). Dinamização econômica e agricultura familiar: limites e desafios do apoio a Projetos de Infraestrutura (PROINF) em territórios rurais do Nordeste. Revista de Economia e Sociologia Rural, 53, 529-554. apresenta novos elementos, a exemplo da viabilidade econômica, da segurança alimentar e nutricional, da sustentabilidade, a garantia de acesso a direitos e a formação de igualdade de gênero, raça e etnia; e uma novidade: agora numa perspectiva de desenvolvimento territorial. É no II PNRA que a alimentação passa a ser incluída, no mesmo sentido que consta nas contribuições de McMichael (2013)McMichael, P. (2013). Food regimes and agrarian questions. Warwickshire: Practical Action Publishing. e Friedmann (2016)Friedmann, H. (2016). Commentary: food regime analysis and agrarian questions: widening the conversation. The Journal of Peasant Studies, 43(3), 671-692., como novo elemento na centralidade da questão agrária, chamando a atenção para regimes alimentares localizados e alternativos6 6 Para McMichael (2013), quanto aos regimes predominantes, o primeiro regime alimentar colonial (ou imperial) abrange o período de 1870 a 1914, o segundo regime mercantil-industrial compõe de 1947 a 1973, e por fim, o terceiro regime, o corporativo, que inicia a sua hegemonia no final da década de 1980, a partir do processo da globalização da economia mundial, e que vem até os dias atuais. ao regime alimentar predominante de influência global.

Os regimes alimentares alternativos passam a representar, no Brasil, o que Gazolla & Schneider (2017)Gazolla, M., & Schneider, S. (2017). Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS. apontam como a compreensão do papel das cadeias ou circuitos curtos de comercialização, como forma de construção e organização dos mercados no âmbito da agricultura familiar. Especialmente, a partir do ano de 2003, e no âmbito do no II PNRA, são constituídos cenários favoráveis ao surgimento das políticas públicas brasileiras voltadas à construção de mercados e forte apelo à Segurança Alimentar e Nutricional, a exemplo do Programa de Aquisição de Alimentos, do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), depois de introduzidas mudanças em 2010, com exigência da participação da agricultura familiar, entre outras. Para essa nova configuração, Gazolla & Schneider (2017)Gazolla, M., & Schneider, S. (2017). Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS., Niederle & Wesz-Junior (2018)Niederle, P. A., & Wesz-Junior, V. J. (2018). As novas ordens alimentares. Porto Alegre: UFRGS,. e Nunes & Freitas (2020)Nunes, E. M., & Freitas, C. C. G. (2020). Governança territorial e ação coletiva para o desenvolvimento rural do território Açu-Mossoró (RN). Revista Controle Social e Desenvolvimento Territorial, 6, 49-73. chamam a atenção para a importância das cadeias curtas, ou circuitos curtos, como estratégias em espaços nos quais é organizada a produção e a comercialização dos produtos da agricultura familiar, numa ação localizada no sentido de conectar a oferta do produtor com a demanda do consumidor, visando, com isso, a dinamização cada vez mais intensa de mercados regionais.

Essa perspectiva é reforçada por contribuições de Maluf & Flexor (2017)Maluf, R., & Flexor, G. (2017). Questões agrárias, agrícolas e rurais: conjunturas e políticas públicas. Rio de Janeiro: E-papers., com a sugestão de que sistemas agroalimentares localizados e descentralizados são fundamentais para analisar a existência, ao mesmo tempo, de diferentes sistemas agroalimentares. Para os autores, é isso o que constrói tanto o caráter do abastecimento alimentar localizado quanto a dinâmica da produção de alimentos nos próprios territórios em que se encontram. Com essa perspectiva, Maluf & Flexor (2017)Maluf, R., & Flexor, G. (2017). Questões agrárias, agrícolas e rurais: conjunturas e políticas públicas. Rio de Janeiro: E-papers. tentam chamar atenção para o fato de que o acesso aos alimentos da agricultura familiar pela população (especialmente, em uma sociedade urbanizada) em sua diversidade e suas escolhas alimentares encontram-se de certa forma influenciadas pela fusão de dinâmicas regionais e políticas com amplitudes que variam em diferentes níveis, ou seja, global, nacional, local e/ou territorial.

E quanto aos desafios da questão agrária para o século XXI, de acordo com Sauer (2016)Sauer, S. (2016). Terra no século XXI: desafios e perspectivas da questão agrária. Retratos de Assentamentos, 19(2), 69-97. deve-se considerar a importância das crises recentes que têm gerado mudanças nas questões agrárias e impactos sobre usos da terra, não só no Brasil, relacionadas, muitas vezes, com a cada vez maior presença da China. As principais crises despertam o apelo ambiental quanto às questões do clima, a garantia da segurança alimentar e o acesso aos alimentos em mercados por meio do que Gazolla & Schneider (2017)Gazolla, M., & Schneider, S. (2017). Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS. definem como circuitos curtos, e a busca de opções de estilo de vida em que, segundo Marsden & Rucinska (2019)Marsden, T. K., & Rucinska, K. (2019). After COP21: contested transitions in the energy/agriculture food nexus. Sustainability, 11(6), 1695., as atividades econômicas possam adotar fontes alternativas de energia que reduzam cada vez mais a emissão de carbono. Outro ponto, têm sido a movimentação de interesses para investimentos tanto no âmbito da produção de commodities agrícolas como na esfera da especulação com a compra de terras. Para Sauer (2016)Sauer, S. (2016). Terra no século XXI: desafios e perspectivas da questão agrária. Retratos de Assentamentos, 19(2), 69-97., corporações como a chinesa COFCO (China National Cereals, Oils and Foodstuffs Co.), uma das maiores empresas de cereais, óleo e alimentos do mundo, tem adentrado tanto na aquisição de terras como na compra de empresas exportadoras do agronegócio brasileiro. Inclusive, os chineses importaram em dezembro de 2020 um primeiro carregamento de 3,5 toneladas de melão pele de sapo das exportadoras Agrícola Famosa e Vita Mais7 7 Ver em:AgoraRN (2020). da região de Mossoró, no Rio Grande do Norte, uma fruta de exportação da qual a China é o país maior produtor do mundo, já chegando a produzir, anualmente, mais de dezessete milhões de toneladas (AgoraRN, 2020AgoraRN. (2020, dezembro 19). Primeira carga de melão do Rio Grande do Norte desembarca na China. AgoraRN. Recuperado em 31 de dezembro de 2019, de https://agorarn.com.br/ultimas/primeira-carga-de-melao-do-rio-grande-do-norte-desembarca-na-china/.
https://agorarn.com.br/ultimas/primeira-...
).

Neste renovado panorama, em que o debate sobre a questão agrária inclui o apelo a temas, a exemplo da produção sustentável de alimentos saudáveis, a soberania e segurança alimentar e nutricional, sistemas agroalimentares estruturados com base na agroecologia, redução de desigualdades, entre outros, se faz necessário um retorno à valorização das ações de política agrária atribuídas ao INCRA. Cabe ressaltar que, a partir do II PNRA, o INCRA chegou a ser submetido a um processo (que há alguns anos já foi interrompido) de fortalecimento e recuperação de suas bases institucionais e organizativas para que pudesse desenvolver a sua função de executar o processo de reforma agrária de forma mais ágil e eficiente. Tomando como parâmetro o Estatuto da Terra em seu Art. 33, o II PNRA se estendeu desde o seu lançamento em novembro de 2003, em Planos Regionais de Reforma Agrária (PRRAs). Apesar de já ter deixado de ocorrer, conforme Nunes et al. (2015)Nunes, E. M., Tôrres, F. L., Silva, M. R. F., Sá, V. C., & Godeiro-Nunes, K. F. (2015). Dinamização econômica e agricultura familiar: limites e desafios do apoio a Projetos de Infraestrutura (PROINF) em territórios rurais do Nordeste. Revista de Economia e Sociologia Rural, 53, 529-554., essa iniciativa era realizada com o intuito de adequar suas ações à política de desenvolvimento territorial, a regimes alimentares alternativos por meio da agricultura familiar e à organização fundiária de cada estado e região.

O II PNRA apresenta a ação de ATER, conforme Nunes et al. (2020)Nunes, E. M., Silva, V. M., & Sá, V. C. (2020). Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER): formação e conhecimentos para a agricultura familiar do Rio Grande do Norte. Redes, 25(2), 857-881. http://dx.doi.org/10.17058/redes.v25i2.14174
http://dx.doi.org/10.17058/redes.v25i2.1...
, em sistemas agroalimentares estruturados visando constituir um regime alimentar local e alternativo, enquanto política de segurança alimentar e padrão tecnológico de produção para as áreas reformadas. Nesse contexto, segundo Nunes et al. (2015)Nunes, E. M., Tôrres, F. L., Silva, M. R. F., Sá, V. C., & Godeiro-Nunes, K. F. (2015). Dinamização econômica e agricultura familiar: limites e desafios do apoio a Projetos de Infraestrutura (PROINF) em territórios rurais do Nordeste. Revista de Economia e Sociologia Rural, 53, 529-554., se destaca o Projeto Dom Helder Câmara (PDHC), como um PRRA na região Nordeste do Brasil; e a articulação para formar o arranjo institucional para conduzir a política de reforma agrária. Ao analisar as experiências de reforma agrária no Rio Grande do Norte, conforme Nunes et al. (2015)Nunes, E. M., Tôrres, F. L., Silva, M. R. F., Sá, V. C., & Godeiro-Nunes, K. F. (2015). Dinamização econômica e agricultura familiar: limites e desafios do apoio a Projetos de Infraestrutura (PROINF) em territórios rurais do Nordeste. Revista de Economia e Sociologia Rural, 53, 529-554., buscar-se-á perceber se as experiências neoliberais dos anos 1990 do I PNRA, baseadas no mercado, e as territoriais dos anos 2000 do II PNRA, baseadas na agroecologia, se mostram compatíveis ou não com o debate clássico da questão agrária dos anos 1950, assim como com o contexto recente, considerando a promoção da reforma agrária e a afirmação da agricultura familiar.

3. METODOLOGIA

A pesquisa pode ser classificada como analítica-descritiva quanto aos fins e comparativa quanto aos meios. De acordo com Thomas & Nelson (1996)Thomas, J. R., & Nelson, J. K. (1996). Research methods in physical activity. 3. ed. Champaign: Human Kinetics., as pesquisas analíticas consideram o estudo e avaliação detalhados de informações disponíveis, visando interpretar e explicar o contexto de um acontecimento ou fenômeno, e podem se caracterizar em histórica, revisão e meta-análise. Quanto as pesquisas descritivas, essas são caracterizadas como estudos que procuram determinar status, opiniões ou projeções futuras nas respostas obtidas.

A importância da pesquisa analítico-descritiva, segundo Thomas & Nelson (1996)Thomas, J. R., & Nelson, J. K. (1996). Research methods in physical activity. 3. ed. Champaign: Human Kinetics., se baseia na premissa de que problemas podem ser resolvidos e as práticas podem ser melhoradas por meio da descrição e análise de registros e observações objetivas e diretas. As técnicas utilizadas para a obtenção de informações são bastante diversas, destacando-se instrumentos como questionários e práticas como as entrevistas e as observações. Quanto a pesquisa comparativa, conforme Schneider & Schmitt (1995Schneider, S., & Schmitt, C. J. (1995). O uso do método comparativo em Ciências Sociais. Cadernos de Sociologia, 9, 49-87., p. 27), a sua importância se revela quando podemos identificar “regularidades, perceber deslocamentos e transformações, construir modelos e tipologias, identificando continuidades e descontinuidades, semelhanças e diferenças, e explicitando as determinações mais gerais que regem os fenômenos sociais”.

A unidade de análise é a experiência de reforma agrária relacionada a regimes alimentares de sistemas estruturados no âmbito da agricultura familiar de territórios do Rio Grande do Norte, com ações de ATER, em momentos do I e do II PNRA. As experiências de reforma agrária pesquisadas foram três: a) a da integração do melãod nas regiões de Mossoró e do Vale do Açu, de 1996 a 2000; b) a da integração do mamão na região da grande Natal, desde 2003 a 2016; e c) a do Projeto Dom Helder Câmara (PDHC), no território da Cidadania Sertão do Apodi, de 2003 a 2017.

O recorte territorial utilizado na pesquisa é o mesmo adotado pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA), por ocasião da Política Nacional de Desenvolvimento Territorial. O Rio Grande do Norte, segundo o Censo Brasileiro de 2010, e que consta em IBGE (2012)Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. (2012). Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE., possui uma área territorial de 52.811,110 Km2 e uma população de 3.168.133, da qual 22,18% reside no meio rural, correspondendo a 702.692 habitantes. Conforme a Figura 1, o Rio Grande do Norte é constituído por dez territórios: Açu-Mossoró, Alto Oeste Potiguar, Sertão do Apodi, Sertão Central Cabugi e Litoral Norte, Seridó, Mato Grande, Potengi, Metropolitana Natal, Trairi e Agreste Litoral Sul.

FIGURA 1
Mapa do Rio Grande do Norte e o recorte com os 10 Territórios Rurais e da Cidadania. FONTE: Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável, (Brasil, 2010Brasil. (2010). Ministério do Desenvolvimento Agrário. Secretaria de Desenvolvimento Territorial. Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável: guia para o planejamento territorial (Documentos de Apoio, No. 2, 45 p.). Brasília: MDA/SDT.)

A análise se concentrou nas experiências de reforma agrária relacionadas aos regimes alimentares submetidos aos agricultores familiares dos territórios do Rio Grande do Norte, envolvendo ações de ATER em dois momentos distintos: o primeiro desde 1997 com as experiências de mercado integrados ao regime alimentar global e baseadas no I PNRA; e o segundo momento, a partir de 2003, com experiências que se caracterizam pela emergência de regimes alimentares alternativos, a exemplo da agroecologia, no âmbito da agricultura familiar. Trata-se de um estudo teórico-empírico sobre as experiências de reforma agrária no Rio Grande do Norte, em particular, cuja base de discussão está na análise da bibliografia acerca do tema em questão, com entrevistas a atores e coleta de dados de fonte secundária, especialmente, do INCRA e das empresas. A análise foi feita a partir da coleta, sistematização e a tabulação dos dados para a construção de tabelas quadros e gráficos, e as principais variáveis foram: 1) do lado da reforma agrária, foram a quantidade de assentamentos no Rio Grande do Norte, ano de criação, área, famílias assentadas, principais culturas e densidade; e 2) do lado das empresas, foram a área irrigada plantada com melão e as demais culturas.

Do ponto de vista do método, pode-se classificar essa pesquisa como do tipo exploratória, envolvendo um levantamento bibliográfico e de documentos oficiais, além de entrevista a atores-chave das experiências, por meio de roteiro estruturado, procurando obter informações de exemplos que possam elucidar a problemática em questão. As entrevistas foram realizadas durante visitas agendadas com os atores-chave nos territórios, aproveitando no período a oportunidade da coordenação das ações relacionadas com a Política Nacional de Desenvolvimento Territorial no Rio Grande do Norte. Portanto, a maioria da coleta de dados foi realizada especificamente através da Superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), do Rio Grande do Norte.

Os atores-chave pesquisados foram gestores do INCRA, do PDHC, representantes das empresas, lideranças dos assentamentos e os assentados que produziam o melão e o mamão na integração com as empresas âncoras. Com vistas à seleção dos entrevistados para participarem da pesquisa, alguns critérios foram definidos para o estudo em questão. Os critérios utilizados para escolhê-los foram: ser gestor da área de assentamentos do INCRA do Rio Grande do Norte; ser gestor do PDHC no território da Cidadania Sertão do Apodi; ser liderança dos assentamentos e ser agricultor familiar envolvidos na integração com as empresas na produção de frutas para a exportação e nos quintais produtivos do PDHC; ser representante da empresa envolvida diretamente com a integração com os assentados da reforma agrária.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO:

4.1. Principais experiências de reforma agrária desenvolvidas no Rio Grande do Norte

O processo de reforma agrária do estado do Rio Grande do Norte remonta das décadas de 1970 e 1980, mas, a sua ampliação se deu mais intensamente a partir dos anos 1990, como resultado de um esforço conjunto empreendido pelas Organizações Não-Governamentais (ONGs) e a Superintendência do INCRA no Rio Grande do Norte. A ação de atores sociais na execução da reforma agrária exigiu a formação e a operacionalização de um arranjo institucional, sendo este o responsável, nos anos 1990, pelo avanço do direcionamento neoliberal para o mercado, com padrão técnico alinhado com o regime alimentar global; e nos anos 2000, com a ênfase na dinamização territorial voltada à estruturação de sistemas sustentáveis e baseados na agroecologia, visando constituir regimes alimentares localizados.

As políticas empreendidas no espaço rural tiveram sua formulação e execução seguindo a perspectiva neoliberal nacional, e as ações de ATER seguiram a lógica de desenvolvimento local e territorial sugeridas pelos organismos internacionais e multilaterais. No plano local, a articulação das organizações que formou o arranjo institucional para conduzir a política de reforma agrária no Rio Grande do Norte procurou adaptar a estrutura disponibilizada pelo INCRA às determinações neoliberais de 1997 de “descentralização da reforma agrária”. A implantação dessa concepção de reforma agrária esteve apoiada à lógica do desenvolvimento local que, juntamente com a valorização da agricultura familiar e da reforma agrária consolidariam a Política de Desenvolvimento Rural inspirada, segundo Silva (1999b)Silva, J. G. (1999b). Tecnologia & agricultura familiar. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS., no “Novo Mundo Rural” europeu.

Quanto ao modelo de desenvolvimento rural da Europa, e que inspirou, de certa maneira, a reforma agrária brasileira, inclusive as experiências de reforma agrária do Rio Grande do Norte, chama atenção para contribuições de Marsden (2003)Marsden, T. (2003). The condition of rural sustainability. The Netherlands: Van Gorcun.. O autor explora novos parâmetros conceituais e teóricos na construção da “sustentabilidade rural” e coloca como necessidade um entendimento mais refinado da regulação social e da “governança” do espaço rural, de uma forma que não é somente um exame crítico das condições existentes, mas também, uma discussão acerca das maneiras através das quais as coisas podem começar a mudar.

Quanto ao avanço das mudanças, Marsden (2003)Marsden, T. (2003). The condition of rural sustainability. The Netherlands: Van Gorcun. dá ênfase a três modelos, ou dinâmicas, que passam a caracterizar o espaço rural europeu e a constituir sua estrutura analítica para entender o sistema agroalimentar e as dinâmicas do desenvolvimento rural: 1) a dinâmica agroindustrial (mais neoliberal); 2) a pós-produtivista ou pós-fordista; e 3) a do desenvolvimento rural sustentável (mais territorial). Para o autor, desde os anos 1990 essas dinâmicas têm evoluído a partir de uma competição entre elas, se configurando em modelos e definindo uma estrutura que pode justificar tipos particulares de políticas econômicas.

Na dinâmica do desenvolvimento rural sustentável (considerada a mais emergente), o fato mais surpreendente, conforme Marsden (2003)Marsden, T. (2003). The condition of rural sustainability. The Netherlands: Van Gorcun., é que esta tem se destacado mais nas regiões pouco desenvolvidas e menos exploradas pelas outras dinâmicas. Isso é feito por diferentes grupos de princípios coletivos que colocam a natureza, a alimentação e o trabalho decente como valores em diferentes conjuntos de equações. No mesmo sentido há que se considerar a perspectiva de McMichael (2013)McMichael, P. (2013). Food regimes and agrarian questions. Warwickshire: Practical Action Publishing. e Friedmann (2016)Friedmann, H. (2016). Commentary: food regime analysis and agrarian questions: widening the conversation. The Journal of Peasant Studies, 43(3), 671-692., quando analisam o desenvolvimento da agricultura através de regimes alimentares, colocando a alimentação no centro do debate recente da questão agrária e mantendo a importância da luta pela terra.

O desenvolvimento rural, no contexto da reforma agrária potiguar, em seu primeiro momento, quando do I PNRA demonstrou preocupação com os assentamentos, apontando para a necessidade de uma infraestrutura adequada à dinâmica agroindustrial, para Marsden (2003)Marsden, T. (2003). The condition of rural sustainability. The Netherlands: Van Gorcun. um modelo produtivista e de princípio neoliberal. Para isso, foram elaborados estudos das principais cadeias produtivas potenciais dos assentamentos, com vistas a projetos focados num fator meramente econômico: a renda. Em seu segundo momento, no âmbito do II PNRA, passa a se identificar mais com a dinâmica do desenvolvimento rural sustentável, de modo que a reforma agrária potiguar buscou a diversificação de atividades rurais, apostando na agroecologia e nas ocupações não agrícolas, no sentido de Silva (1999b)Silva, J. G. (1999b). Tecnologia & agricultura familiar. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS., visando a redução do caráter setorial da agricultura e elevar os níveis sociais e de renda no meio rural.

Nesse sentido, por meio de um caráter mais multidisciplinar e da ação local dos agentes e instituições envolvidos, procurou-se dar ênfase não somente ao caráter econômico como a renda, mas também, a aspectos não econômicos, antes desconsiderados e marginalizados no meio rural brasileiro, como por exemplo, a diversidade local constituída pela questão de gênero, cultura, etnia, tradição, segurança alimentar e os cuidados com o meio ambiente. Com isso, as experiências de reforma agrária inseriram mulheres e jovens em atividades econômicas antes negadas a estes, valorizando sistemas agrários a partir de práticas de melhor uso e conservação dos recursos existentes com enfoque na agroecologia. Dessa forma, é superada a concepção neoliberal e de mercado do I PNRA e difundida a noção de desenvolvimento territorial sustentável nos Projetos de Desenvolvimento dos Assentamentos (PDAs).

No que diz respeito à política de segurança alimentar, as organizações e técnicos incentivaram a produção e o beneficiamento de alimentos nos assentamentos, possibilitando o surgimento de promissoras agroindústrias de pequeno porte. Para esse alcance, a estratégia consistiu na implantação de pomares, hortas comunitárias e a criação de pequenos animais (conhecidos como quintais produtivos), partindo de uma premissa de ação local e de sustentabilidade, a exemplo da terceira dinâmica de Marsden (2003)Marsden, T. (2003). The condition of rural sustainability. The Netherlands: Van Gorcun. e da perspectiva de regime alimentar alternativo de McMichael (2013)McMichael, P. (2013). Food regimes and agrarian questions. Warwickshire: Practical Action Publishing. e Friedmann (2016)Friedmann, H. (2016). Commentary: food regime analysis and agrarian questions: widening the conversation. The Journal of Peasant Studies, 43(3), 671-692.. Isso, como forma de provocar uma maior diversificação das atividades e divisão do trabalho, envolvendo mulheres e jovens, além de agregar valor e estimular a produção e o consumo de produtos mais saudáveis e de melhor qualidade. A ideia foi promover, nas áreas de assentamento, a produção de alimentos para a ampliação do autoconsumo, possibilitando segurança alimentar às famílias com histórico de restrição econômica e de deficiência nutricional, assim como construir mercados no âmbito da agricultura familiar, por meio da realização de feiras agroecológicas, no sentido proposto por Gazolla & Schneider (2017)Gazolla, M., & Schneider, S. (2017). Cadeias curtas e redes agroalimentares alternativas: negócios e mercados da agricultura familiar. Porto Alegre: UFRGS., relacionado aos circuitos curtos de comercialização.

Para colocar em prática essa concepção de desenvolvimento rural sustentável, foi necessária a ação de entidades que atuaram regulando e estimulando o relacionamento entre técnicos e agricultores assentados. O arranjo constituído pela superintendência do INCRA-RN e os movimentos sociais, capitaneados pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Norte (FETARN), pelo Movimento dos Sem Terra (MST) e pela Igreja Católica estimularam a atuação de organizações, em sua maioria Organizações da Sociedade Civil (ONGs). As ONGs já vinham preenchendo um espaço, desde o início dos anos 1990, deixado pelo Estado que passou por um desmonte das suas organizações de ATER, entre elas, o Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER-RN).

Esse aparato de organizações teve seus técnicos submetidos a um treinamento com qualificações adequadas às exigências do PRRA visando a articulação institucional e uma melhor gestão do PRRA. Para isso, foram criadas organizações coletivas dos agricultores familiares, a exemplo de cooperativas e associações dos projetos de assentamentos e Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDRs). Apesar do enfoque neoliberal de mercado dado ao âmbito local pelo Banco Mundial durante o I PNRA, teoricamente, esse enfoque é colocado como um processo independente e autônomo e de âmbito micro, mas encontra inteiramente imbricado na noção do macro8 8 Essa relação do local para o global ou do micro para o macro, sugerida pelas instituições multilaterais, reforça a constatação de autores como Marsden (2003), que afirma que isso faz parte de conceitos de “ação à distância e espaço de ação”. Dessa forma, são elaboradas estratégias com a finalidade de combinar processos produtivos locais e não locais e conduzir para interesses de consumidores distantes (Europa, por exemplo). A partir das preferências desses consumidores é determinado que as grandes cadeias de comercialização de alimentos globalizadas interfiram na forma, quantidade e qualidade dos bens produzidos e, consequentemente, nos processos de produção localizados de regiões de outros países (frutas no Nordeste do Brasil, por exemplo). . Conforme aponta Buarque (1998)Buarque, C. (1998).O Brasil, o desenvolvimento e a globalização. Rio de Janeiro: Revista Nação Brasil., mesmo dando-se ênfase ao desenvolvimento endógeno, ou seja, aquele que se processa no interior das unidades familiares de produção e se comporta de “baixo para cima”, mesmo na dimensão local este não foge da lógica global da economia.

Tais reflexões remetem para o foco do local a partir do global, isto é, implica na apreensão de que

a globalização é uma fase da internacionalização do capital com conotações muito particulares que resultam de dois fatores básicos: a natureza e revolução científica e tecnológica (...) e a liberalização e integração dos mercados de bens e serviços(...). (...) representa a implantação e a difusão de um novo paradigma de desenvolvimento que altera os padrões de concorrência e competitividade e revoluciona as condições de acumulação de capital e as bases das vantagens competitivas das nações e regiões (Buarque, 1998Buarque, C. (1998).O Brasil, o desenvolvimento e a globalização. Rio de Janeiro: Revista Nação Brasil., p. 12).

Silva (1999a)Silva, E. R. A. T. (1999a). Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar: relatório técnico das ações desenvolvidas no período 1995/1998 (46 p.). Brasília, DF: IPEA. complementa que o caráter neoliberal da globalização denominado de “nova ordem” provoca uma situação de desvantagem tanto para as regiões mais pobres como para os países em desenvolvimento, gerando uma relação mais intensa de dependência de mercados monopolistas. Outro efeito da internacionalização do capital refere-se à sua organização no espaço, entendida como uma via de mão dupla, já que ao mesmo tempo em que representa uma uniformização e padronização dos mercados e produtos, possibilita a integração dos mercados no nível local, o que resulta em um processo de dinamização dos mercados em nível macro e micro, ou seja, numa relação em que a economia global interage e influencia a dinâmica dos mercados locais.

Assim, fica claro que, apesar desse processo possuir uma dimensão global, não deixa de valorizar as peculiaridades e vocações do desenvolvimento local e territorial, enquanto estratégia estruturante de implantação de projetos econômicos. Ainda no âmbito do desenvolvimento local e de caráter neoliberal, é interessante chamar atenção para o advento do processo de descentralização, classificado por Buarque (1998)Buarque, C. (1998).O Brasil, o desenvolvimento e a globalização. Rio de Janeiro: Revista Nação Brasil. como:

(...) transferência da autoridade e do poder decisório de instâncias agregadas para unidades espacialmente menores, entre as quais o município e as comunidades, conferindo capacidades de decisão e autonomia de gestão para as unidades territoriais de menor amplitude e escala (Buarque, 1998Buarque, C. (1998).O Brasil, o desenvolvimento e a globalização. Rio de Janeiro: Revista Nação Brasil., p. 16).

Dessa forma, já que a descentralização concede capacidade decisória e autonomia de gestão a municípios e comunidades, possibilita que estes possam se organizar e definir estratégias de ação e gestão dos projetos. Tais projetos remetem à descentralização da reestruturação fundiária baseada no ideário de desenvolvimento local, com valorização da produção familiar, para tanto, se faz necessária uma efetiva descentralização institucional.

Ainda na perspectiva de desenvolvimento local do I PNRA, para viabilizar os projetos de assentamento do Rio Grande do Norte, o crédito passou a ser um importante mecanismo de política agrícola, e o financiamento da reforma agrária tinha a sua fonte específica de recursos financeiros no Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária (PROCERA), desde 1985. O PROCERA foi substituído em 1997 pelo PRONAF, que foi criado para oferecer condições aos agricultores familiares, das áreas reformadas ou não, visando ampliar a produção e torná-la viável para o mercado e fonte de renda. Para que o assentado da reforma agrária pudesse acessar os recursos do PRONAF, as agências de crédito, entre elas o Banco do Nordeste, passaram a fazer exigências para facilitar a aprovação das propostas. Uma delas foi a organização coletiva com participação em associações, conselhos e em cooperativas que, juntamente com a viabilidade de mercado, tornaram-se requisitos para liberação dos recursos. Neste caso, se o assentamento não estivesse na lógica neoliberal do mercado, se tornaria desinteressante para agências financiadoras que dificultariam a liberação dos recursos.

Na realidade, a política de reforma agrária de caráter neoliberal do I PNRA tem como pano de fundo o processo de inclusão parcial e segue uma relação característica do ambiente capitalista que ao mesmo tempo inclui e exclui. Para a vertente neoliberal, a inclusão dos assentamentos deve se dar mediante a inserção de seus produtos no mercado, viabilizada pelo apoio das agências de financiamento. Nesse sentido, são excluídos, os agricultores com produção para a subsistência ou os que têm pouca ou nenhuma capacidade de organização.

No outro sentido, o caráter territorial de desenvolvimento sustentável do II PNRA visa incluir os agricultores familiares de áreas reformadas em novas ordens alimentares, nas quais as ações relacionadas às questões agrárias se dão por meio de estratégias de diversificação da agricultura familiar, organização coletiva e de práticas sustentáveis, baseadas na agroecologia. Para o êxito dessas ações, a orientação dos serviços de ATER e os programas de capacitação continuada para os agricultores familiares se configuram fundamentais nesse processo para que se viabilize o tripé: acesso a crédito, tecnologia e inserção em mercados.

4.2 A política de assistência técnica e a extensão rural na reforma agrária potiguar

Os serviços de ATER, de acordo com Nunes et al. (2020)Nunes, E. M., Silva, V. M., & Sá, V. C. (2020). Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER): formação e conhecimentos para a agricultura familiar do Rio Grande do Norte. Redes, 25(2), 857-881. http://dx.doi.org/10.17058/redes.v25i2.14174
http://dx.doi.org/10.17058/redes.v25i2.1...
, foram direcionados aos assentados do Rio Grande do Norte, inicialmente, seguindo o caráter neoliberal de mercado do I PNRA, para a introdução de cultivos, armazenamento e comercialização, novas tecnologias e estímulo à organização coletiva. Nessa estratégia, a assistência técnica se apresentou como mecanismo para a consolidação dos assentamentos, numa integração iniciada em 1996, a partir da ação conjunta do INCRA e do movimento sindical, que decidiram realizar um projeto experimental de assistência técnica e capacitação junto aos assentamentos de reforma agrária. Este projeto, chamado de Apoio à Capacitação para Gestão de Projetos Associativos, desenvolvido em assentamentos dos territórios potiguares do Mato Grande, Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, se constituiu numa experiência-piloto de assistência técnica no Nordeste.

Foi a partir dessa experiência-piloto de ATER que, em 1997 surgiram outras iniciativas, a exemplo da integração de assentados da reforma agrária com empresas agrícolas, ditas âncoras, no sentido de produzir frutas para exportação. Conforme Nunes et al. (2019)Nunes, E. M., Gondim, M. F. R., & Silva, M. R. F. (2019). Identidade e reestruturação produtiva nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte. Estudos Sociedade e Agricultura, 27(1), 137-166., cabe ressaltar que sobre assentamentos rurais se destacam três ângulos de análise que se comunicam: a) a territorialização, que, embora não represente desconcentração da posse da terra, modifica a estrutura agrária formando as chamadas manchas de assentamentos; b) as alterações positivas das condições de vida das famílias e as relações interna e externa aos assentamentos, sejam relacionadas à produção, cooperação e acesso a mercados; e c) as vivências, identidade9 9 A Identidade é um conceito que indica a condição social e o sentimento de pertencer a uma determinada cultura. De acordo com Perico (2009) e Nunes et al. (2019), ela representa um conjunto de características de um povo, oriundas da interação dos membros do território e da forma destes interagirem com o mundo. Em um indivíduo, o nível de identidade vai depender da sua participação ou exclusão relativa à cultura que o envolve. e (re)significações de acontecimentos do dia a dia em relação à compreensão dos atores quando na luta pela terra (Piccin, 2015Piccin, M. B. (2015). Assentamentos rurais e geração de renda: posição social restringida, recursos socioculturais e mercados. Economia e sociedade, 21(1), 115-141.).

Para isso, o Estado passou a ampliar o processo da reforma agrária com o acesso do agricultor familiar à terra e ao crédito, estimulando a capacitação através do Ministério do Trabalho, a exemplo do Sistema Nacional do Emprego (SINE) e do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Quanto à reforma agrária, a Figura 2 mostra a ação do Estado na criação de assentamentos no Rio Grande do Norte de 1987 a 2014, na qual se pode observar que o período de 1995 a 2001 é o mais intenso. E é nesse momento de reorganização do espaço, cujo ano de 1999 se destaca com a criação de 44 assentamentos, que é implantada a estratégia neoliberal de mercado do I PNRA, sob a perspectiva descentralizada e de atendimento às demandas no nível local, promovendo certa reterritorialização do meio rural potiguar.

FIGURA 2
Gráfico - evolução de projetos de assentamentos criados por ano, no Rio Grande do Norte, de 1987 a 2014. FONTE: INCRA – SIPRA, Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (INCRA, 2015Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. (2015). Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária – SIPRA.). Elaboração dos autores.

A distribuição espacial é marcada por uma concentração dos projetos de assentamento de reforma agrária do INCRA por territórios do Rio Grande do Norte, conforme Figura 3, e a alta densidade tende a modificar a estrutura fundiária do estado constituindo manchas de assentamentos no território potiguar. Nota-se que a maioria das chamadas manchas de assentamentos se encontra mais ao norte do Estado, num processo de territorialização, concentrado nos territórios Mato Grande, Potengi e Trairi, Sertão Central Cabugi e Litoral Norte e, nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi.

FIGURA 3
Mapa do Rio Grande do Norte: distribuição dos assentamentos criados de 1987 a 2015. FONTE: INCRA – SIPRA, Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (INCRA, 2015Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA. (2015). Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária – SIPRA.).

As áreas onde localizam-se os assentamentos são em sua maioria as que apresentam terras de boa fertilidade para as atividades agrícolas, além de abundantes em água subterrânea do aquífero Jandaíra-Açu, que se estende de leste a oeste na porção superior do Estado do Rio Grande do Norte, alcançando o nordeste do Ceará. E, ainda possuem água de superfície das principais bacias hidrográficas: Piranhas-Açu (onde foi construída em 1983 a barragem Armando Ribeiro Gonçalves); Apodi-Mossoró (onde foi construída em 2002 a barragem de Santa Cruz); e Potengi no fértil Vale do Ceará-Mirim.

Além dessas vantagens, quanto aos recursos naturais por meio dos quais proliferaram os assentamentos no Rio Grande do Norte, não devem ser desconsiderados aspectos econômicos e políticos dessas áreas, Isto porque elas sempre se caracterizaram pela presença de latifúndios que, historicamente, foram palcos dos primeiros conflitos10 10 Os primeiros registros de conflitos por terras no Rio Grande do Norte são de ocupações ocorridas no final dos anos 1980, organizados pelo MST e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em latifúndios dos municípios de João Câmara, Ceará-Mirim e Touros (no território Mato Grande) e em Mossoró e Baraúna (no território Açu-Mossoró). Já nos anos 1990, os conflitos ganharam um novo aliado, pois, em 1993 foi criado o Fórum do Campo Potiguar (FOCAMPO), que passou a contar com o apoio da Igreja Católica, por meio do Serviço de Apoio às Pequenas Comunidades do Campo (SEAPAC). A Igreja Católica sempre foi atuante na luta pela reforma agrária, pois, antes do MST, os trabalhadores rurais sem terra se mobilizavam em função dos seus serviços pastorais. pela terra no estado e que, no momento atual possuem uma organização política mais presente, com forte atuação do Movimento dos Sem Terra (MST) mais no Leste (no território Mato Grande) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT) da Igreja Católica, especialmente, a da arquidiocese de Mossoró (no território Açu-Mossoró). Foram em áreas desses três territórios que se registraram as primeiras ocupações de terras no Rio Grande do Norte e as primeiras iniciativas para pressionar o Estado por meio do INCRA para desapropriá-las para fins de reforma agrária.

Quanto à experiência-piloto de reforma agrária de caráter neoliberal do I PNRA, para integrar o mercado ao regime alimentar predominante da globalização, na prática o INCRA transferiu para o MST e para a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Norte (FETARN), a responsabilidade de contratar organizações para o acompanhamento técnico aos assentados. Diante dos resultados, os quais se apresentaram positivos no ano de 1997, essa experiência-piloto foi ampliada para todo o Brasil, através do Projeto LUMIAR. O LUMIAR se configurou numa ação de ATER governamental com a finalidade de viabilizar a inserção e a integração dos assentados da reforma agrária a mercados e, posteriormente, torná-los autossuficientes. Para isso, seria necessário um suporte técnico de profissionais capazes de atuar numa lógica mais compatível com a defesa de Silva (1999b)Silva, J. G. (1999b). Tecnologia & agricultura familiar. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS., por mais renda e de inclusão, do que com a proposta de Veiga (1991) Veiga, J. E. (1991). O desenvolvimento da agricultura: uma visão histórica (pp. 23-68). São Paulo: HUCITEC. de formar uma classe média no meio rural.

A principal estratégia desenvolvida inicialmente no sentido da inclusão foi a dos assentados da reforma agrária produzirem frutas numa “integração” com grandes empresas globalizadas e integradas ao regime alimentar global predominante. Nesse contexto, o Rio Grande do Norte se configurava no estado do Nordeste com um dos melhores desempenhos no processo de ampliação da reforma agrária, principalmente, no território Açu-Mossoró. Isso fez com que as empresas enxergassem uma oportunidade de terceirizar as suas atividades da fase de produção da cadeia, transferindo-as para os assentados da reforma agrária. Em um acordo com a superintendência do INCRA/RN, em 1996 se deu a inserção de alguns assentamentos na produção de frutas (principalmente, o melão), inicialmente, para o mercado interno e regional. Logo depois, os assentamentos foram aos poucos se aperfeiçoando até atingirem o padrão para o mercado externo, no qual as grandes empresas atuavam como âncoras.

No início do processo de “integração” foi destaque a expectativa, tanto por parte dos agentes executores como dos assentados, na esperança de obterem retornos econômicos e melhores condições de vida, a partir dos resultados que esse relacionamento com as grandes empresas exportadoras traria. As vantagens foram repassadas pelos representantes das empresas âncoras, com a intermediação do INCRA, e os contratos foram concretizados.

Com o tempo, os próprios assentados foram percebendo que as vantagens colocadas anteriormente não estavam se realizando como o esperado, e as informações sobre preços e o desempenho das atividades não eram explicitadas com regularidade e transparência por parte das empresas. Isso fez com que surgissem focos de reação, partindo de lideranças, que foram logo contornados através da obrigatoriedade do cumprimento dos contratos e das negociações entre as partes. O depoimento de um assentado é ilustrativo:

No começo a conversa e a promessa eram muito bonitas. Chegaram aqui uns doutores de umas empresas junto com uns técnicos do INCRA conhecidos nossos e falavam muito bonito. Em pouco tempo convenceram a gente de que o negócio era bom. Sem pestanejar entrei no negócio junto com outros meus companheiros na produção de melão pra MAISA e Fazenda São João de Mossoró. Mas, com o tempo passei a ver que o negócio era bom pra gente porque não tinha outro, mas o certo é que era bem melhor pras empresas do que pra gente (L. A. S, agricultor familiar assentado, Associação do Projeto de Assentamento Catingueira, Baraúna-RN).

O depoimento mostra como os assentados da reforma agrária potiguar se encontravam vulneráveis na ausência de um projeto de desenvolvimento rural, e que a “integração” com as empresas âncoras, apesar de se mostrar desvantajosa, como em Van Der Ploeg (2008)Van Der Ploeg, J. D. (2008). The new pensantries: struggles for autonomy and sustainability in an era of empire and globalization. London: Earthscan Sterling VA., se configurava para os agricultores familiares na única oportunidade de integração com o mercado, por meio da produção vinculada ao regime alimentar predominante global. Um dos pontos de maior insatisfação, segundo técnico de uma ONG que atuou no assentamento Poço de Baraúna II, município de Baraúna, era a elevada dependência com as empresas e a assimetria e não transparência de informações. As empresas âncoras constituíam uma estrutura de oligopsônio com poder quase absoluto diante dos agricultores familiares, e incluía o fornecimento de insumos de alto custo e o acompanhamento técnico, e os assentados eram forçados a receber das empresas pacotes tecnológicos com itens de elevadíssimo valor, a exemplo da semente de melão para o plantio comprada de multinacionais.

Do lado do INCRA, principalmente, essa estratégia passou a ser colocada no período de 1997 a 2003 como uma intervenção de sucesso, e a ação da assistência técnica, através do Projeto LUMIAR, passou a se apresentar como fundamental para o êxito dessa estratégia que visava, por meio da concepção neoliberal de mercado do I PNRA vinculado ao regime alimentar global, a sobrevivência, consolidação e emancipação dos assentamentos de reforma agrária. Nesse sentido, o depoimento do superintendente adjunto do INCRA/RN é ilustrativo:

(...) não basta só ter a posse da terra, tem que haver todo um processo de acompanhamento de mercado e até de técnicas modernas desenvolvidas dentro dos assentamentos. Estamos trazendo a modernização agrícola para a reforma agrária... E a assistência técnica vem fazer o diálogo entre as empresas e os trabalhadores para misturar a tradição com técnicas modernas de produção dentro do assentamento. E, somente assim, vai se poder fazer um trabalho de desenvolvimento de verdade na reforma agrária do Rio Grande do Norte (C.G.S., técnico do INCRA/RN, Natal).

As principais empresas âncoras eram a Mossoró Agroindustrial S.A. (MAISA), a Fazenda São João, na área de influência de Mossoró, e a Fruticultura do Nordeste Ltda. (FRUNORTE), na área de influência de Açu, essas duas, áreas principais de influência do território Açu-Mossoró. Estimulada pela política de financiamentos especiais para as áreas de reforma agrária, inicialmente, com o PROCERA e depois com o PRONAF, difundiu-se a produção irrigada nos assentamentos, geralmente, em áreas exploradas de forma coletiva com base na agricultura familiar. A área de produção irrigada inicial nos projetos de assentamento para o ano de 1997 era, predominantemente, no território Açu-Mossoró, conforme Tabela 1.

TABELA 1
Áreas irrigadas e frutas produzidas para exportação nos assentamentos (por município e território)

A estratégia de “integração” sob o comando das empresas MAISA, Fazenda São João e FRUNORTE não se deu exclusivamente com as áreas de assentamento, mas abrangia outros pequenos e médios produtores não incluídos na reforma agrária. Além da produção agrícola, as etapas do beneficiamento e classificação das frutas eram realizadas pelas empresas em seus packing houses, o que passou a constituir uma demanda específica por força de trabalho não-agrícola, sendo absorvidos assentados desempregados. Conforme Nunes & Schneider (2013)Nunes, E. M., & Schneider, S. (2013). Reestruturação agrícola, instituições e desenvolvimento rural no nordeste: a diversificação da agricultura familiar do Polo Açu-Mossoró (RN). Revista Economica do Nordeste, 44, 601-626., a MAISA, a Fazenda São João e a FRUNORTE contratavam no auge dessa experiência de 400 a 500 empregados para atuarem nos packing houses, e cerca de 50% das frutas exportadas pelas empresas âncoras eram da produção “integrada” com os assentados e outros produtores.

Mesmo assim, as empresas foram se mostrando, ao longo do tempo, cada vez menos capazes de se sustentar diante dos impactos do capital financeiro e da globalização, e a experiência com a reforma agrária tornou-se inviável no final dos anos 1990 e início dos anos 2000. Nesse contexto, como constatam Nunes & Schneider (2013)Nunes, E. M., & Schneider, S. (2013). Reestruturação agrícola, instituições e desenvolvimento rural no nordeste: a diversificação da agricultura familiar do Polo Açu-Mossoró (RN). Revista Economica do Nordeste, 44, 601-626., as empresas âncoras da “integração” com os assentados da reforma agrária, a MAISA, a Fazenda São João e a FRUNORTE decretaram falência11 11 Para Nunes e Schneider (2013), a desestruturação das empresas deu lugar a uma nova configuração, na qual parte do espaço foi ocupado pelo capital internacional com a chegada, em 1996, da Directivos Agrícola e, em 1998, da transnacional DEL MONT FRESH PRODUCE, gigante norte-americana exportadora de frutas. : a primeira no ano de 2002 e as demais no ano de 2003.

A falência das empresas promoveu uma reconfiguração da estrutura agrária e do espaço rural do Rio Grande do Norte, pois a MAISA, a Fazenda São João e a FRUNORTE se transformaram em assentamentos, impactando de forma significativa as estatísticas da reforma agrária do estado. Somente a MAISA, agora “Projeto de Assentamento MAISA” absorveu de uma só vez, em 2003, 1.359 famílias em uma área de 20.202 hectares, se tornando o segundo maior assentamento do Brasil (Agência Brasil, 2003Agência Brasil. (2003, dezembro 20). Assentamento vai beneficiar mil famílias de trabalhadores rurais em Mossoró (RN). Retrieved in 2005, Fevereiro 26, de http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2003-12-20/assentamento-vai-beneficiar-mil-familias-de-trabalhadores-rurais-em-mossoro-rn
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/...
).

Para Nunes & Schneider (2013)Nunes, E. M., & Schneider, S. (2013). Reestruturação agrícola, instituições e desenvolvimento rural no nordeste: a diversificação da agricultura familiar do Polo Açu-Mossoró (RN). Revista Economica do Nordeste, 44, 601-626., o impacto para as famílias assentadas que vinham produzindo de forma integrada a essas empresas foi de exclusão das relações com o mercado e de significativa descapitalização e endividamento. Muitas das famílias assentadas se tornaram inadimplentes com suas fontes de financiamento, especialmente, os bancos, o comércio local e demais credores, e, por um considerável período, ficaram sem o acesso ao crédito para produzir. A nova configuração do espaço rural marcada pela ampliação do número de assentamentos e de famílias assentadas, pode ser vislumbrada na Tabela 2. Nesta se destacam os territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, outrora áreas de influência da MAISA, da Fazenda São João e da FRUNORTE, e o Mato Grande que passaram a concentrar 72,81% dos assentamentos e 72,76% das famílias assentadas do Rio Grande do Norte.

TABELA 2
Total de assentamentos de reforma agrária e famílias por território no Rio grande do Norte (em %).

Considerando a concentração por território estudado, cabe destacar a área do assentamento por família, a densidade de assentamentos por território e a densidade de famílias assentadas por território. Conforme mostrado na Tabela 3, há uma tentativa de mostrar a diferença entre as medidas e um índice que trata da concentração por território. Considerando a relação área (ha) do assentamento por família assentada (AA/FA), se destacam os seguintes territórios: 1º) Sertão Apodi, com 30,59; 2º) Sertão Central Cabugi/Litoral Norte, com 30,50; e 3º) Potengi, com 26,42. Quanto à densidade de assentamentos por território (DA/T), o destaque fica para os seguintes territórios: 1º) Seridó; 2º) Sertão do Apodi; e 3º) Mato Grande. E quanto à densidade de famílias assentadas por território (DF/T), se destacam os seguintes territórios: 1º) Metropolitana Natal, com 0,074; 2º) Agreste/Litoral Sul, com 0,050; e 3º) os territórios Açu-Mossoró, Seridó e Trairi, com 0,040.

TABELA 3
Indicadores de concentração e densidade de área de assentamento por família, de assentamentos por território e de famílias assentadas por território do Rio Grande do Norte.
  1. 1

    Área do assentamento por família = área total dos assentamentos por território/nº de famílias assentadas por território;

  2. 2

    Densidade de assentamentos por território = número de assentamentos/área do território;

  3. 3

    Densidade de famílias assentadas por território = nº de famílias assentadas/área do território

Graficamente, quando a análise mostra a relação da área total dos assentamentos com o número das famílias assentadas por território, percebe-se o destaque para o território Açu-Mossoró com 161.805 hectares para 6.461 famílias, o território Mato Grande com 137.978 hectares para 5.393 famílias, e o território Sertão do Apodi com 87.343 hectares para 2.855 famílias assentadas, como mostra a Figura 4. Cabe destacar ainda o território Sertão Central Cabugi e Litoral Norte com uma área de reforma agrária de 54.390 hectares para 1.783 famílias, se unindo aos três primeiros como os que constituem as áreas de maior densidade de assentamentos da reforma agrária do Rio Grande do Norte.

FIGURA 4
Gráfico - assentamentos por território do Rio Grande do Norte e a relação área (ha) por famílias assentadas. FONTE: Pesquisa de campo, 2015. Elaboração dos autores.

Ainda no âmbito do I PNRA, outra experiência de reforma agrária no Rio Grande do Norte voltada para o mercado e integrada ao regime alimentar global, de caráter neoliberal, surgiu mediante a produção de frutas, especialmente, com a produção de mamão com a empresa âncora CALIMAN Agrícola, que tem sede no estado do Espírito Santo. A CALIMAN Agrícola se instalou no Rio Grande do Norte por volta do ano 2003 explorando áreas próprias de terras nos municípios de Pureza e Touros. Para suprir a demanda, inclusive das exportações para os Estados Unidos da América, a empresa passou a contar com a produção de cinco assentamentos de reforma agrária dos territórios Mato Grande e Agreste/Litoral Sul, perfazendo 122 hectares de cultivo da fruta, conforme a Tabela 4.

TABELA 4
Área irrigada e frutas produzidas nos assentamentos de reforma agrária (por município e território)

No relacionamento entre a empresa e os assentados da reforma agrária, a prática passou a reproduzir o modelo da produção de melão, ou seja, os técnicos da empresa visitam e orientam os assentados, visando melhores resultados através da especialização e padronização dos produtos. Como na produção do melão, a orientação e o manejo para o mamão seguem a exigência do padrão do mercado internacional, e uma das preocupações da CALIMAN nesse relacionamento com os assentados, diz respeito à reformulação dos termos de “parceria”. Uma mudança foi a divisão das famílias de cada assentamento em aptas e inaptas para acessar crédito, trabalhando apenas com as aptas e excluindo as inaptas, numa tentativa de evitar erros como os cometidos na “integração” com o melão, conforme destaca um dos seus diretores:

Estamos em um momento de análises dos resultados, com o objetivo de reformular o sistema de parceria com os hoje produtores rurais assentados da reforma agrária do Rio Grande do Norte. Não queremos cometer erros do passado, como alguns da época da produção de melão entre empresas e assentados no polo fruticultor Açu-Mossoró. A nossa preocupação se dá porque também estamos envolvendo as mesmas instituições governamentais da época do melão, como o Incra e a Secretaria Estadual de Agricultura e Pecuária do Rio Grande do Norte, através da Emater (F. F., da CALIMAN, Natal-RN).

Do lado dos agricultores assentados, a “integração” na produção do mamão também se apresenta como uma alternativa de melhoria das suas condições de vida, e eles destacam a importância da parceria com a empresa para obter bons resultados. Da mesma forma que ocorreu anteriormente com os assentados na produção de melão para exportação, a integração na produção do mamão também se configura, como destacado por Van Der Ploeg (2008)Van Der Ploeg, J. D. (2008). The new pensantries: struggles for autonomy and sustainability in an era of empire and globalization. London: Earthscan Sterling VA., a única alternativa de inserção no mercado, além de demonstrar a vulnerabilidade dos agricultores familiares em função da falta de um projeto que defina o papel da reforma agrária. O depoimento de um assentado é ilustrativo nesse sentido:

Hoje somos organizados e, além de uma renda, pagamos nossos financiamentos em dia ao Banco do Nordeste. A gente tá aqui há sete anos e a qualidade de vida melhorou um bocado. Temos renda e mais condição de criar e educar os filhos da gente (A. R. S. N., assentado do Projeto de Assentamento Gonçalo Soares, São José de Mipibu-RN).

Os assentados da reforma agrária que praticaram a técnica moderna com as empresas âncoras na produção de frutas para a exportação, tanto na produção de melão a partir de 1996, quanto na de mamão a partir dos anos 2000, conforme Nunes & Schneider (2013)Nunes, E. M., & Schneider, S. (2013). Reestruturação agrícola, instituições e desenvolvimento rural no nordeste: a diversificação da agricultura familiar do Polo Açu-Mossoró (RN). Revista Economica do Nordeste, 44, 601-626., constituíam no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, o segmento mais “integrado” ao mercado vinculado ao regime alimentar global. Na verdade, esses agricultores representavam a parte mais dinâmica da agricultura do Rio Grande do Norte e, apesar de contarem com uma estrutura de associações e cooperativas, com o fim da “integração” a maioria dos agricultores assentados passou a enfrentar dificuldades e a lidar com uma situação ainda mais precária do que a que se encontrava antes da integração com as empresas. A deficiência de infraestrutura de produção e comercialização, associada à falta de assistência técnica com o fim do Projeto LUMIAR em 2000 e a diminuição do acesso ao crédito levaram muitos assentados a um processo de descapitalização e a elevados níveis de endividamento.

Por fim, a mais recente das experiências de reforma agrária do Rio Grande do Norte foi a desenvolvida pelo Projeto Dom Helder Câmara (PDHC), no território Sertão do Apodi. O PDHC foi criado em 2001 no âmbito do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e é fruto de um acordo com o Fundo de Investimentos para o Desenvolvimento Agrário (FIDA), trazendo no seu escopo a ênfase territorial e agroecológica do II PNRA. As suas ações foram iniciadas no ano de 2003, tendo contribuído com a perspectiva territorial, introduzindo um regime alimentar localizado e alternativo ao regime alimentar global, conforme McMichael (2013)McMichael, P. (2013). Food regimes and agrarian questions. Warwickshire: Practical Action Publishing. e Friedmann (2016)Friedmann, H. (2016). Commentary: food regime analysis and agrarian questions: widening the conversation. The Journal of Peasant Studies, 43(3), 671-692., a partir de dinâmicas sustentáveis de agricultura agroecológica.

Como mostra a Tabela 5, a atuação do PDHC no Rio Grande do Norte ocorreu por meio da diversificação da agricultura familiar em áreas de reforma agrária de 10 municípios: Apodi, Caraúbas, Governador Dix-Sept Rosado, Upanema, Umarizal, Rafael Godeiro, Olho D'água do Borges, Felipe Guerra, Campo Grande e Janduís.

TABELA 5
Assentamentos atendidos pelo Projeto Dom Helder Câmara no Território Sertão do Apodi (RN).

Ao contrário das experiências de concepção neoliberal de reforma agrária para o mercado vinculado ao regime alimentar global, o PDHC se configurou como um Plano Regional de Reforma Agrária (PRRA) e buscou adequar as ações de ATER às novas ordens alimentares, visando a constituição do regime alimentar alternativo localizado por meio da biodiversidade territorial, diversificação da agricultura familiar, segurança alimentar e da sustentabilidade.

Considerando a tabela acima, o PDHC se caracterizou como um projeto mais complexo e transversal, atuando no território Sertão do Apodi com 1.135 famílias em 26 assentamentos e realizando atividades diversificadas. Uma das marcas das suas ações no território Sertão do Apodi foi envolver técnicos de várias ONGs para colocar em prática a política de segurança alimentar, incentivando, nos assentamentos, a produção, o beneficiamento e a venda de alimentos numa concepção de regime alimentar alternativo. Essa prática resultou na implantação de pomares que constituíram quintais produtivos, hortas comunitárias, na ampliação da criação de pequenos animais, possibilitando embriões de agroindústrias familiares e de circuitos curtos de comercialização por meio de feiras agroecológicas. A estratégia foi a de construir mercados na agricultura familiar por meio da integração de cadeias produtivas locais, em que parte da produção in natura seja beneficiada com o aproveitamento e a agregação de valor de produtos regionais.

O depoimento de um dos assentados atendidos pelo PDHC destaca o seguinte:

O PDHC qualificou a gente para produzir numa relação de produção sustentável com a organização, e valorizou as mulheres e a socialização do trabalho doméstico com os quintais produtivos. E com esses quintais tiveram políticas públicas que apoiaram a gente na produção de polpa de frutas, do mel, nas hortas, e outros produtos, e na venda da nossa produção para o governo e nas feiras agroecológicas do território. E a assistência técnica foi importante em apoiar os grupos participantes das feiras agroecológicas e os dos quintais produtivos, especialmente, os das mulheres, e trouxe um pouco de esperança para nós (D. C. S., assentado do Projeto de Assentamento Moaci Lucena, Apodi/RN).

Posteriormente, tanto o excedente da produção in natura como o da transformada seriam comercializados pelos próprios assentados e suas organizações coletivas (especialmente, cooperativas) em feiras e mercados institucionais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Assim, o PDHC contribuiu para a constituição de agroindústrias familiares de polpa de frutas, casas e entrepostos de mel de abelha, fábricas de castanha e, como uma das ações principais, para a inserção de alimentos em mercados, através das feiras agroecológicas. E quanto à inserção dos assentados no mercado, particularmente, o institucional, os técnicos de ATER do PDHC agiram no sentido de estimular a organização coletiva e a legalização dos produtos, como a conquista no ano de 2008 do Serviço de Inspeção Federal (SIF) para o Entreposto de Mel de abelha do assentamento Lage do Meio, no município de Apodi.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O debate desenvolvido em torno da necessidade da reforma agrária no Brasil mostra uma mudança de concepção ao longo de sua evolução. As ideias frutos do debate dos anos 1950 foram reprimidas e superadas pelo desempenho do processo de modernização agrícola dos anos 1960 aos 1980. Essa modernização, por sua vez, cumpriu o papel de ampliar a oferta de alimentos e se integrar aos regimes alimentares globais predominantes, especialmente, ao final do segundo regime, o mercantil-industrial nos anos 1970, e ao início do terceiro regime, o corporativo global que teve início no final dos anos 1980, a partir da globalização. Porém, geraram, em bases capitalistas insuficientes, problemas como o desemprego, o subemprego, problemas ambientais e deficientes condições de trabalho. Além disso, a não alteração da estrutura fundiária associada aos excedentes de desempregados rurais resultou numa pressão por outro modelo de reforma agrária, o que estimulou um novo debate nos anos 1980.

Este novo debate, tendo como base as consequências sociais da “modernização” e a não prioridade à implantação da política agrária do Estatuto da Terra, passou a defender uma lógica mais social do que econômica. A partir da década de 1990, esse debate se uniu aos anseios dos movimentos sociais e às políticas de caráter neoliberal sugeridas por instituições multilaterais (BIRD, BID, etc.), que sugeriam a difusão do desenvolvimento local e a integração aos mercados. Isso estimulou o avanço do processo de reforma agrária no Brasil, no qual o Rio Grande do Norte passou a desenvolver um processo de “integração” entre assentamentos e empresas âncoras exportadoras, como a MAISA, a Fazenda São João e FRUNORTE.

Entretanto, a política da reforma agrária contida no I PNRA que teve como inspiração a inclusão e a renda seguiu uma relação que, ao mesmo tempo em que incluía também excluía. No que confere a reconfiguração que vem ocorrendo no espaço rural do Rio Grande do Norte, constata-se nesse período uma tendência para o avanço da lógica capitalista nas atividades rurais e a ausência de um projeto que, como no caso dos clássicos dos anos 1950, defina o real papel da reforma agrária para o desenvolvimento. O que se tentou com a reforma agrária neoliberal de mercado foi atrelar a produção local ao regime alimentar global direcionando as ações de ATER para a inserção da reforma agrária potiguar na modernização agrícola. O resultado foi uma crescente “mercantilização” da agricultura familiar, adequando-a aos padrões da moderna ciência agrícola introduzidos mediante a difusão de pacotes técnicos das grandes empresas agrícolas. Nessa lógica, os assentados da reforma agrária se moviam unicamente pelas oscilações do mercado (produção de frutas para a exportação) sinalizadas pelas empresas, definindo um ambiente que faz aumentar a competição em um número cada vez menor de agricultores, elevando a sua dependência aos mercados de tecnologias externas.

Com o II PNRA, a partir dos anos 2000, os assentados da reforma agrária do Rio Grande do Norte entraram em uma dinâmica, por meio da ênfase no desenvolvimento territorial, com a experiência do Projeto Dom Helder Câmara (PDHC), na tentativa de construir um regime alimentar alternativo. Para isso, foi iniciado um processo que buscava cada vez mais autonomia na construção de mercados locais, por meio dos circuitos curtos de comercialização e do acesso aos mercados institucionais do PAA e do PNAE. Nesse sentido, mesmo com dificuldades e descontinuidades, as ações de ATER são focadas na diversificação da agricultura familiar, na segurança alimentar e na sustentabilidade.

Desse modo, a pesquisa constatou que, sobre as experiências de reforma agrária, a maior parte dos resultados referem-se às de integração ao mercado, considerando a forma como estas foram implantadas nos territórios do Rio Grande do Norte. Cabe destacar a concentração do processo de criação dos assentamentos nos anos 1990, a descontinuidade e deficiência das ações de ATER, especialmente a pública, e o lado malsucedido da receita da integração que predominou no período, a assimetria de poder e informações entre empresas e assentados, resultando em prejuízos mais graves para os últimos. A pesquisa revela, ainda, que no ambiente de globalização o gigantismo empresarial é inviável, o que forçou as grandes empresas exportadoras à falência, além de constatar a existência de uma crise econômica e política que traz a compreensão da realidade nacional de uma questão agrária ainda não resolvida.

Por outro lado, mostra a força do regime alimentar global que tem promovido mudanças nas questões agrárias e nas formas de utilização da terra, forçando o desmonte das políticas de segurança alimentar e dificultando a estruturação de sistemas agroalimentares localizados alternativos ao regime alimentar global, baseados na diversificação da agricultura familiar e na sustentabilidade, a exemplo do PDHC. Concluindo, faz-se necessária a sugestão de aprofundar pesquisas neste tema, assim como apontar estratégias no sentido de potenciar cada vez mais dinâmicas de desenvolvimento rural no âmbito da reforma agrária do Rio Grande do Norte, como a de integrar a agricultura familiar com a agroindústria de pequeno porte, coordenada por cooperativas, com acesso a crédito, serviços de Ater e vinculada de forma qualificada aos mercados.

  • 1
    Este trabalho faz parte de um conjunto de pesquisas desenvolvidas no âmbito da agricultura familiar, e contou com o auxílio do CNPq, através do edital MDA/SDT/CNPq, Chamada Encomendas, COSAE/MDA/2013 (APQ).
  • 2
    Em 1964 a reforma agrária foi incluída pelos militares entre suas prioridades. Em 30 de novembro de 1964, após aprovação pelo Congresso Nacional, o presidente Castelo Branco sancionou a lei nº 4.504, que criava o "Estatuto da Terra", o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (INDA), em substituição à antiga Superintendência de Reforma Agrária (SUPRA), criada em 1962, durante o governo João Goulart. Em 9 de julho de 1970, o Decreto-lei nº 1.110 criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), a partir da fusão do IBRA com o INDA (Brasil, 1964Brasil. (1964). Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra. Retrieved in 2016, Outubro 20, de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4504.htm.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
    ).
  • 3
    Com a reformulação, a classificação dos estratos para o PRONAF ficou a seguinte: estrato (A) - assentamentos de reforma agrária; (B) - trabalho familiar é a base da exploração do estabelecimento e renda anual bruta de até R$ 1.500,00; (C) - trabalho familiar predominante, com recurso eventual ao trabalho assalariado e renda anual bruta entre R$ 1.500,00 e R$ 10.000,00; e (D) - trabalho familiar predominante, com até 2 empregados permanentes e recurso eventual de trabalho de terceiros e renda bruta anual familiar entre R$ 10.000,00 e R$ 30.000,00.
  • 4
    O Programa Cédula da Terra teve seu plano-piloto no Estado do Ceará.
  • 5
    A forma como o Estado brasileiro conduzia a operacionalização da Cédula da Terra e do Banco da Terra começou a se mostrar simpática inclusive a quem se colocava contrário a reforma agrária, ou seja, a categoria dos grandes fazendeiros. Esse movimento tendia para uma pressão de demanda por terra criando um ambiente para a valorização do preço da terra, pois este havia sido forçado para baixo desde o Plano Real, em 1994.
  • 6
    Para McMichael (2013)McMichael, P. (2013). Food regimes and agrarian questions. Warwickshire: Practical Action Publishing., quanto aos regimes predominantes, o primeiro regime alimentar colonial (ou imperial) abrange o período de 1870 a 1914, o segundo regime mercantil-industrial compõe de 1947 a 1973, e por fim, o terceiro regime, o corporativo, que inicia a sua hegemonia no final da década de 1980, a partir do processo da globalização da economia mundial, e que vem até os dias atuais.
  • 7
    Ver em:AgoraRN (2020)AgoraRN. (2020, dezembro 19). Primeira carga de melão do Rio Grande do Norte desembarca na China. AgoraRN. Recuperado em 31 de dezembro de 2019, de https://agorarn.com.br/ultimas/primeira-carga-de-melao-do-rio-grande-do-norte-desembarca-na-china/.
    https://agorarn.com.br/ultimas/primeira-...
    .
  • 8
    Essa relação do local para o global ou do micro para o macro, sugerida pelas instituições multilaterais, reforça a constatação de autores como Marsden (2003)Marsden, T. (2003). The condition of rural sustainability. The Netherlands: Van Gorcun., que afirma que isso faz parte de conceitos de “ação à distância e espaço de ação”. Dessa forma, são elaboradas estratégias com a finalidade de combinar processos produtivos locais e não locais e conduzir para interesses de consumidores distantes (Europa, por exemplo). A partir das preferências desses consumidores é determinado que as grandes cadeias de comercialização de alimentos globalizadas interfiram na forma, quantidade e qualidade dos bens produzidos e, consequentemente, nos processos de produção localizados de regiões de outros países (frutas no Nordeste do Brasil, por exemplo).
  • 9
    A Identidade é um conceito que indica a condição social e o sentimento de pertencer a uma determinada cultura. De acordo com Perico (2009)Perico, R. E. (2009). Identidade e território no Brasil. Brasília: IICA. e Nunes et al. (2019)Nunes, E. M., Gondim, M. F. R., & Silva, M. R. F. (2019). Identidade e reestruturação produtiva nos territórios Açu-Mossoró e Sertão do Apodi, no Rio Grande do Norte. Estudos Sociedade e Agricultura, 27(1), 137-166., ela representa um conjunto de características de um povo, oriundas da interação dos membros do território e da forma destes interagirem com o mundo. Em um indivíduo, o nível de identidade vai depender da sua participação ou exclusão relativa à cultura que o envolve.
  • 10
    Os primeiros registros de conflitos por terras no Rio Grande do Norte são de ocupações ocorridas no final dos anos 1980, organizados pelo MST e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), em latifúndios dos municípios de João Câmara, Ceará-Mirim e Touros (no território Mato Grande) e em Mossoró e Baraúna (no território Açu-Mossoró). Já nos anos 1990, os conflitos ganharam um novo aliado, pois, em 1993 foi criado o Fórum do Campo Potiguar (FOCAMPO), que passou a contar com o apoio da Igreja Católica, por meio do Serviço de Apoio às Pequenas Comunidades do Campo (SEAPAC). A Igreja Católica sempre foi atuante na luta pela reforma agrária, pois, antes do MST, os trabalhadores rurais sem terra se mobilizavam em função dos seus serviços pastorais.
  • 11
    Para Nunes e Schneider (2013)Nunes, E. M., & Schneider, S. (2013). Reestruturação agrícola, instituições e desenvolvimento rural no nordeste: a diversificação da agricultura familiar do Polo Açu-Mossoró (RN). Revista Economica do Nordeste, 44, 601-626., a desestruturação das empresas deu lugar a uma nova configuração, na qual parte do espaço foi ocupado pelo capital internacional com a chegada, em 1996, da Directivos Agrícola e, em 1998, da transnacional DEL MONT FRESH PRODUCE, gigante norte-americana exportadora de frutas.
  • JEL Classification: Q1, Q15, Q18.

6. REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Dez 2019
  • Aceito
    04 Dez 2021
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