Open-access Expansão da circulação do vírus Zika da África à América, 1947-2018: revisão da literatura*

Expansión de la circulación del virus Zika de África a América, 1947-2018: una revisión de literatura

Resumo

Objetivo:  descrever as expansões temporal e geográfica da circulação do vírus Zika (ZIKV) em países e territórios, desde seu isolamento até 2018.

Métodos:  revisão não sistemática da literatura do período entre 1947 e 2018, utilizando a base MEDLINE e estimativas da Organização Mundial da Saúde.

Resultados:  desde seu isolamento em 1947, a circulação do ZIKV expandiu-se pela África, Ásia e Pacífico, até chegar à América em 2013, causando manifestações clínicas graves; as maiores soroprevalências foram registradas na ilha de Yap (74%) e no Brasil (63%); mutações genéticas, a ausência de imunidade e a alta susceptibilidade dos vetores podem ter influenciado sua transmissibilidade e ajudam a explicar a magnitude de sua expansão.

Conclusão:  a expansão da circulação do ZIKV nas Américas foi a mais ampla já registrada, possivelmente resultado de características populacionais e geográficas dos locais por onde o vírus circulou.

Palavras-chave: Zika virus; Flavivírus; Epidemiologia; Epidemias; Anormalidades Congênitas; Literatura de Revisão como Assunto

Resumen

Objetivo:  Describir las expansiones temporal y geográfica de la circulación del virus Zika en países y territorios, desde su aislamiento hasta 2018.

Métodos:  Revisión no sistemática de la literatura del período comprendido entre 1947 y 2018 utilizando la base MEDLINE y estimaciones de la Organización Mundial de la Salud.

Resultados:  Desde su aislamiento en 1947 la circulación del virus Zika se expandió por África, Asia y el Pacífico hasta llegar a América en 2013, causando manifestaciones clínicas graves. Las mayores seroprevalencias se registraron en la isla Yap (74%) y en Brasil (63%). Mutaciones genéticas, ausencia de inmunidad y alta susceptibilidad de los vectores pueden haber influenciado su transmisibilidad y ayudan a explicar la magnitud de su expansión.

Conclusión:  La expansión de la circulación del virus Zika en las Américas fue la más amplia ya registrada, posiblemente como resultado de características poblacionales y geográficas de los lugares por donde el virus circuló.

Palabras clave: Virus Zika; Flavivirus; Epidemiología; Epidemias; Anomalías Congénitas; Literatura de Revisión como Asunto

Abstract

Objective:  to describe the temporal and geographical expansion of Zika virus (ZIKV) circulation in countries and territories, from the time it was first isolated until 2018.

Methods:  This was a non-systematic literature review covering the period from 1947 to 2018 using the MEDLINE database and World Health Organization estimates.

Results:  Since its isolation in 1947, ZIKV circulation spread through Africa, Asia and the Pacific before reaching the Americas in 2013, causing serious clinical manifestations; the highest seroprevalence rates were recorded in Yap (74%) and in Brazil (63%); genetic mutations, absence of immunity and high vector susceptibility may have influenced ZIKV transmissibility and help to explain the magnitude of its expansion.

Conclusion:  The spread of ZIKV circulation in the Americas was the most extensive recorded thus far, possibly as a result of population and geographical characteristics of the sites where the virus circulated.

Keywords: Zika Virus, Flavivirus; Epidemiology; Epidemics; Congenital Abnormalities; Review Literature as Topic

Introdução

Desde sua descoberta em 1947, o vírus Zika (ZIKV) foi responsável por casos esporádicos de infecções brandas, que não ensejavam maiores preocupações, limitados aos continentes africano e asiático.1 Este cenário mudou a partir de 2007, quando o vírus passou a ser considerado um patógeno capaz de causar grandes epidemias após ter produzido dois surtos em larga escala, em ilhas do Pacífico2-4 e na Polinésia Francesa.4-6 A circulação do ZIKV continuou sua expansão (Figura 1A). Em pouco tempo, o vírus passou a ser considerado um problema de Saúde Pública, associado a numerosos casos de microcefalia ocorridos no Brasil.7,8

Figura 1
- Cronologia da expansão da circulação do vírus Zika e das medidas adotadas pelas autoridades de saúde

A preocupação quanto à gravidade das consequências da infecção fez o Ministério da Saúde declarar, no dia 11 de novembro de 2015, situação de Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional.9 A partir dessa comunicação, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) emitiu um alerta sobre o aumento no número de casos de microcefalia na região Nordeste do Brasil.10 Dias depois, em 28 de novembro de 2015, a despeito das poucas evidências, o Ministério da Saúde confirmou a relação existente entre o ZIKV e o surto de microcefalia.11 Logo, em 1º de dezembro de 2015, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a OPAS emitiram um alerta sugerindo possível associação entre o ZIKV e o aumento de casos de anomalias congênitas e síndrome de Guillain-Barré.12 Em 1º de fevereiro de 2016, a OMS declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional.13 A agilidade das ações de autoridades sanitárias e de pesquisadores permitiu a rápida comprovação da relação causal entre a infecção pelo ZIKV e a ocorrência de microcefalia e outras alterações do sistema nervoso central, posição endossada pela OMS em uma reunião do comitê de emergência ocorrida em junho de 201614 (Figura 1B).

O vírus teve confirmado seu potencial de ocasionar amplo espectro de manifestações clínicas, de sintomas inespecíficos, facilmente confundidos com outras viroses, a manifestações neurológicas e malformações congênitas.7,8,15-19 Até o final de 2016, 2.366 anormalidades congênitas associadas ao vírus foram confirmadas no país.20 O surgimento do ZIKV nas Américas e o potencial de expansão de sua circulação requerem melhor compreensão de seu perfil epidemiológico, para facilitar o entendimento das mudanças detectadas na infecção ao longo do tempo.

Esta revisão de literatura objetivou descrever as expansões temporal e geográfica da circulação do ZIKV em países e territórios, desde seu isolamento até 2018.

Métodos

Trata-se de uma revisão narrativa sobre a expansão da circulação do ZIKV ao longo dos anos, em países e territórios de diversos continentes. Foi realizada busca na base MEDLINE (via PubMed), mediante as seguintes palavras-chave extraídas dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS): ‘zika’, ‘zika virus’, ‘flavivirus’ e ‘arbovirus’. Foram elegíveis artigos que apresentassem evidências microbiológicas de infecção causada pelo ZIKV em humanos e não humanos, publicados entre 1947 e 2018, em qualquer região do mundo, e que contivessem informações completas sobre a realização do estudo: período, local, amostra, tipo de teste utilizado para o diagnóstico e resultado. Foram excluídos artigos que não apresentaram resultados de testes laboratoriais positivos para o vírus em humanos ou que não realizaram isolamento viral em não humanos. Não foi estabelecida restrição quanto ao idioma ou à gratuidade da publicação.

Adicionalmente, foram utilizadas estimativas, disponibilizadas no sítio eletrônico oficial da OPAS-OMS, de casos confirmados de Zika ou síndrome congênita associada à infecção, ocorridos em países ou territórios das Américas até janeiro de 2018.21 Para demostrar a magnitude da infecção em diferentes locais, a soroprevalência da infecção pelo ZIKV nas amostras examinadas foi calculada da seguinte maneira: primeiramente, foram somados os resultados de testes positivos, e o valor encontrado, dividido pela quantidade total de amostras em cada estudo.

A expansão global da circulação do ZIKV

Décadas de 1940 e 1950

Acredita-se que o ZIKV emergiu por volta de 1920,1 embora seu isolamento apenas tenha ocorrido em 1947, em estudo sobre febre amarela em macacos Rhesus conduzido por pesquisadores do Virus Research Institute.22 O termo ‘Zika’ foi tomado emprestado do nome da floresta de Zika, em Entebbe, Uganda, onde ficava sediado o instituto. Apesar de o referido estudo ter foco em febre amarela e dengue, os pesquisadores conseguiram evidências de que se tratava de um novo patógeno.22

Em 1948, menos de um ano após sua descoberta, o ZIKV foi isolado no vetor Aedes (Stegomyia) africanus,22-24 mesmo que ainda não se soubesse se esse era um vetor para o vírus.

O ZIKV se disseminou a partir de sua linhagem original, denominada de africana, expandindo-se sobre parte do continente africano.1 Houve duas introduções na África Ocidental, ocorridas em momentos distintos, originando duas linhagens africanas.14

As primeiras infecções humanas pelo vírus foram registradas em 1952, no continente africano, confirmadas pela presença em soro de anticorpos neutralizantes contra o ZIKV.25,26 Naquele período, não havia outra maneira de demonstrar a infecção pelo vírus, cujos resultados poderiam apresentar vieses devidos a uma possível resposta imune à vacina contra a febre amarela.24 Durante a década de 1950, estudos identificaram a presença desses anticorpos em residentes do norte da África,27 nas Áfricas Ocidental,25,28 Oriental22,26,29,30 e Central,31 além da Ásia Meridional32 e do Sudeste Asiático27,32-34 (Figura 2 e Figura 3A). As maiores soroprevalências foram registradas na Malásia e nas Filipinas: 50% e 36%, respectivamente (Tabela 1).

Figura 2
- Países ou territórios que registraram a circulação do vírus Zika entre os anos de 1947 e 2018, listados por continente e década de ocorrência

Figura 3
- Expansão geográfica e temporal do vírus Zika

Tabela 1
- Soroprevalência do vírus Zika em humanos de acordo com o país atingido e o período da infecção, 1947-2016

Nos três casos humanos identificados em 1954, foi observada a presença de icterícia, indicando que o vírus também pode ser viscerotrópico.28 Outra característica descrita foi sua afinidade por tecidos nervosos, verificada em camundongos que desenvolveram doenças neurológicas após serem infectados.35 Em 1956, constatou-se o Aedes aegypti como vetor para o ZIKV.36

Décadas de 1960 a 1990

A terceira linhagem do ZIKV, a asiática, teve origem a partir da cepa isolada na Malásia por volta de 1966,37 onde também foi registrada a primeira infecção pelo vírus atribuída ao vetor Aedes aegypti.38 Naquele período, evidências sorológicas e virológicas indicavam sua circulação por quase toda a África, em suas regiões Norte,39,40 Central,40-43 Ocidental40,44-48 e Oriental39,49,50 (Figura 2 e Figura 3B). A maior parte dos países dessas regiões se localiza na faixa de latitudes de clima tropical, o qual é propício ao desenvolvimento de vetores. A circulação concomitante dos vírus da febre amarela e do Zika foi constatada em uma região da Etiópia, em 1968.49 Estudos indicam que anticorpos contra o ZIKV podem atenuar a infecção pelo vírus da febre amarela mas não interferem na transmissão.51,52 Durante essas décadas, as mais altas soroprevalências foram registradas em Burkina Faso (53%), no Mali (52%) e em Benin (44%).

Década de 2000

Por mais de meio século, o ZIKV permaneceu confinado nos continentes africano e asiático, até emergir nas ilhas do Pacífico no final dos anos 2000.3 Entre abril e julho de 2007, ocorreu a primeira grande epidemia causada pelo vírus, na ilha de Yap, na Micronésia (Figura 2). Este surto apresentou alta incidência de infecção, em torno de 74% (intervalo de confiança de 95%: 68-77).3 Apesar de acometer a maior parte da população, poucos indivíduos, cerca de 20% do total de casos, foram sintomáticos e relataram, principalmente, exantema, conjuntivite e dores nas articulações.2,3 As amostras de soro dos residentes de Yap foram testadas por meio do ensaio de imunoabsorção enzimática (ELISA), do teste de neutralização viral para detecção de anticorpos (NT) e da reação de transcriptase reversa seguida de reação em cadeia de polimerase (RT-PCR). Análises filogenéticas mostraram que uma cepa de linhagem asiática do vírus foi a responsável por esse surto.2

Até o final dos anos 2000, o ZIKV foi isolado em vetores das espécies Ae. Aegypti, Ae. africanus, Ae. apicoargenteus, Ae. luteocephalus, Ae. vitattus, Ae. Furcifer e Ae. Hensilii,36,38,48,51,53 sendo esta última a espécie mais frequente no surto ocorrido em Yap.3 Por muito tempo, acreditou-se que a única forma de transmissão do vírus fosse a picada de mosquitos do gênero Aedes;2,23,29,38,53 em 2008, entretanto, dois pesquisadores infectaram-se no Senegal e um deles transmitiu o ZIKV à esposa, possivelmente por relação sexual.54 Outros estudos corroboraram essa hipótese ao indicarem a possibilidade da transmissão por essa via.55,56

Década de 2010

A década de 2010 foi marcada por descobertas importantes, como a possibilidade de transmissão vertical do ZIKV e de manifestações clínicas cuja associação à infecção eram inéditas, como anormalidades congênitas17,57,58 e a síndrome de Guillain-Barré.5,15,16

Naquele período, o vírus provocou uma nova epidemia, que atingiu parcela considerável da população da Polinésia Francesa a partir de 2013, com um total aproximado de 30 mil pessoas infectadas5,6,59 e 42 pacientes acometidos pela síndrome de Guillain-Barré.15,16 Essa epidemia foi consequência de uma nova cepa, surgida no mesmo ano, geneticamente relacionada às cepas isoladas em Yap no ano de 2007 e no Camboja em 2010.4,6 É provável que sua magnitude seja resultado de uma população com níveis baixos de imunidade, da alta densidade de vetores59 e de mutações genéticas, nas quais aminoácidos importantes foram modificados, aumentando a transmissibilidade do vírus pelo vetor Aedes aegypti.60

O ZIKV continuou sua expansão por outras ilhas do Oceano Pacífico4,5,59,61-64 e pelo Sudeste Asiático,65-72 até ser identificado nas Américas em maio de 2015.73-75 Entre 2015 e 2016, a soroprevalência apresentada no Brasil foi de 63% (Tabela 1).

Os marcos da expansão da circulação do vírus são apresentados na Figura 1A e sua expansão geográfica na Figura 3, destacados por períodos para evidenciar sua rapidez e abrangência.

Os testes de soroprevalência utilizados nos diversos estudos consultados diferem quanto à metodologia utilizada para o diagnóstico laboratorial e, portanto, apresentam diferentes níveis de sensibilidade e especificidade,76,77 comprometendo a comparabilidade dos resultados da aplicação de métodos distintos.

O teste mais utilizado foi a RT-PCR, empregada em 31 estudos, seguida pelo teste de hemaglutinação (HI), presente em 24 estudos, ELISA em 17 estudos, NT em 13 e teste de fixação de complemento (FC) em quatro. Alguns estudos utilizaram mais de um método de diagnóstico. A reação cruzada entre os anticorpos do ZIKV e de outros flavivírus também pode ter comprometido a correta estimativa da prevalência da infecção.78,79

O ZIKV nas Américas

Os primeiros estudos genéticos da cepa causadora da epidemia do ZIKV no continente americano sugerem que ela tenha se originado de uma única linhagem genotípica asiática, introduzida no Brasil entre o fim de 2013 e o início de 2014, proveniente da Polinésia Francesa.6,80-83 Quatro hipóteses foram levantadas a respeito da introdução do vírus no país. Em um primeiro momento, acreditou-se que ela teria acontecido em 2014, durante a Copa do Mundo de Futebol,74 apesar de não haver países do Pacífico entre as seleções participantes. Uma segunda possibilidade foi a de que a introdução teria ocorrido por ocasião do Campeonato Mundial de Canoagem em agosto de 2014, no Rio de Janeiro, onde participaram equipes de quatro países do Pacífico com casos registrados de Zika: Polinésia Francesa, Nova Caledônia, Ilhas Cook e Ilha de Páscoa.84 Contudo, a hipótese da entrada do vírus pelo Rio de Janeiro não ajuda a explicar os porquês de a região Nordeste concentrar uma quantidade tão superior de casos. A terceira hipótese sustentou que a introdução se dera um ano antes, entre julho e agosto de 2013, quando se realizava a Copa das Confederações.81 Segundo a quarta e última hipótese, o vírus teria circulado pela Oceania e pela Ilha de Páscoa, disseminando-se para a América Central e Caribe até chegar ao Brasil no final do mesmo ano.85 Os casos estudados tinham como único ancestral uma cepa do Haiti, uma indicação da introdução do ZIKV no Brasil por imigrantes ou militares brasileiros que haviam regressado do país caribenho. No entanto, estudos recentes indicam uma rota contrária percorrida pelo vírus, do Brasil para a América Central, à qual adentraria por Honduras, entre os meses de julho e setembro de 2014.86 A análise filogeográfica estimou que o vírus tenha chegado ao país vindo do Brasil e, posteriormente, se expandido à Guatemala, Nicarágua e sul do México, até o início de 2015. Outro estudo corrobora a hipótese de a introdução na América do Sul preceder a da América Central, possivelmente na primeira metade de 2013.60

Em outubro de 2014, alguns municípios dos estados do Rio Grande do Norte, Paraíba e Maranhão notificaram casos suspeitos de doença viral, com presença de exantema, febre baixa, prurido e dor articular, sintomas não enquadrados nas definições de caso suspeito de outras doenças exantemáticas, a exemplo do sarampo e da dengue. Logo, outros seis estados notificaram casos de síndrome exantemática, entre outubro de 2014 e março de 2015.75 A circulação intensa e concomitante de outros flavivírus, aliada à apresentação clínica semelhante, à baixa especificidade dos testes diagnósticos ELISA para a dengue76 e ao fato de a presença do patógeno no país ainda ser ignorada, não indicavam o ZIKV como principal suspeito.

Em março de 2015, amostras provenientes do Rio Grande do Norte e da Bahia apresentaram resultados positivos para o vírus, confirmados por RT-PCR.73,74 Sua disseminação alcançou mais além das fronteiras do Brasil. Até o final de 2015, dez países das Américas Central e do Sul já haviam registrado casos autóctones,87 número que aumentou rapidamente para 48 ao final do ano seguinte88,89 (Figura 2 e Figura 3D). Apenas Canadá e Bermudas, ambos localizados na América do Norte, e Chile e Uruguai, estes na América do Sul, não apresentaram casos autóctones. A Figura 4 demonstra a expansão geográfica e temporal da circulação do ZIKV nas Américas, desde seu primeiro registro no continente até o ano de 2017.

Figura 4
- Expansão geográfica e temporal do vírus Zika nas Américas, 2015- 2017

O Brasil foi o país que apresentou o maior número de infecções pelo ZIKV, com um total de 137.288 casos confirmados entre 2015 e janeiro de 2018, seguido por Porto Rico e México, com 40.562 e 11.805 confirmações respectivamente.21 Houve uma redução de mais de 95% no número total de casos, em comparação aos registros do ano anterior, de forma que em 18 de novembro de 2016, a OMS deixou de considerar o vírus como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional.90 Em maio de 2017, foi a vez do Ministério da Saúde declarar o fim da emergência.91

No primeiro semestre de 2015, foi observada mudança no padrão de ocorrência da síndrome de Guillain-Barré em dois estados da região Nordeste, Pernambuco e Bahia: no primeiro, o número de casos triplicou em comparação ao ano anterior, com pico no mês de abril, enquanto a Bahia registrou pico de ocorrência da síndrome entre os meses de junho e julho.92,93 No mesmo período, quatro pacientes submetidos a transplantes de órgãos sólidos foram infectados pelo ZIKV, diagnosticados por RT-PCR entre junho de 2015 e janeiro de 2016.94 Em outubro do mesmo ano, foi detectada uma mudança no padrão epidemiológico de ocorrência da microcefalia, quando as autoridades sanitárias pernambucanas informaram o Ministério da Saúde sobre um aumento significativo no número de casos.95 No final de novembro de 2015, o Instituto Evandro Chagas do Pará, órgão vinculado à Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (IEC/SVS/MS), enviou o resultado de exames realizados em um bebê com microcefalia: presença do ZIKV em sangue e tecidos, o que fez o Ministério da Saúde confirmar sua relação com a microcefalia.11

Até o final de 2016, 22 países já haviam registrado casos da síndrome congênita associada à infecção pelo vírus: um total de 2.525 notificações, das quais 2.289 (90%) no Brasil.96 Até dezembro de 2017, as 27 Unidades da Federação (UFs) registraram, juntas, 3.071 casos de microcefalia, dos quais 2.004 (65%) na região Nordeste.97 Esse quantitativo viu-se reduzido, de forma significativa, para 123 novos casos entre janeiro e maio de 2018. Afinal, foram totalizados 3.194 registros possivelmente associados à infecção pelo ZIKV desde o início de sua contabilização em 2015.98 O vírus, causador dessa pandemia, havia se tornado potencial ameaça à Saúde Pública devido a sua associação a complicações neurológicas e malformações congênitas, amplamente documentadas.7,8,12,18,19

As epidemias provocadas pelo vírus trouxeram à tona um amplo espectro de manifestações clínicas; todavia, não é possível conhecer a magnitude das complicações relacionadas à infecção, possivelmente maior que as apresentadas até o momento. Pouco se sabe de questões como a gravidade da apresentação clínica da infecção pelo ZIKV ou sua carga viral, e sua influência no espectro clínico observado em diferentes lugares e populações.99

Um estudo descritivo100 avaliou 1.950 casos confirmados de microcefalia, dos quais 1.373 na região Nordeste, a partir de dados secundários obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) referentes ao período entre 1º de janeiro de 2015 a 12 de novembro de 2016. Seus resultados revelaram duas ondas de infecção pelo vírus: na primeira onda, em 2015, houve um pico mensal de ocorrência de microcefalia estimado em 50 casos por 10 mil nascidos vivos, a maior parte deles (70% do total) residentes na região Nordeste; na segunda onda, a ocorrência foi bem menor, com picos mensais estimados variando de 3 a 15 casos por cada 10 mil nascidos vivos. O número de casos de microcefalia relacionados à infecção após ambos os surtos, ou ondas, apresentou variação temporal, de acordo com a região do país; entretanto, as razões para essas diferenças ainda carecem de esclarecimentos.

Uma possível explicação para o resultado dessas estimativas é o fato de, durante a segunda onda de infecção, já existirem fundadas suspeitas da relação entre a infecção pelo ZIKV e os casos de microcefalia observados, o que levou o governo a divulgar campanhas com o propósito de informar a população. Gestantes passaram a adotar medidas preventivas, para evitar contato com o vetor, a exemplo do uso de repelentes, telas de proteção nas casas e até mesmo o adiamento de gravidez desejada.100

Pouco se sabe de variações genéticas entre as linhagens do vírus e sua capacidade de interferir na patogenicidade do ZIKV.101 Um estudo experimental, que utilizou troboblastos derivados de células-tronco embrionárias humanas, mostrou diferenças entre as linhagens africana e asiática quanto a seu comportamento na placenta. Foi verificada a ocorrência de lise celular - processo pelo qual a célula é destruída ou dissolvida pela ruptura da membrana plasmática - apenas nas infecções pelo vírus da linhagem africana; porém, não foram identificadas diferenças quanto às taxas de replicação viral entre as infecções causadas pelas duas cepas. Essa característica permite inferir que uma infecção por uma cepa africana no início da gravidez, provavelmente, resultaria em aborto ao invés de malformações congênitas.102

É possível que o potencial patogênico do ZIKV dependa de variações genéticas individuais, conforme indicam evidências de um trabalho experimental comparativo de três pares de gêmeos dizigóticos, em que apenas um deles foi diagnosticado com a síndrome congênita do ZIKV. Foi verificado que, após infectar os tecidos neurais, o vírus causou retardo no crescimento das células dos gêmeos com a síndrome e aumentou a replicação viral. Os resultados das análises de transcriptoma mostraram uma diferença significativa no nível de uma proteína inibidora de mTOR, DDIT4L, entre os gêmeos com e sem a síndrome. Os resultados encontrados sugerem a existência de relação entre a disposição genética individual e o aumento da sinalização de mTOR e, como as vias de sinalização da mTOR são críticas para a depuração viral mediada por autofagia, as infecções pelo ZIKV são intensificadas nessas pessoas.103

Discussão

Os fatores que levaram à ampla e rápida emergência, disseminação e aparente aumento da patogenicidade do ZIKV no Pacífico e nas Américas ainda não foram totalmente compreendidos. É possível que haja vários mecanismos atuantes, entre os quais mutações virais que aumentariam a transmissão de humanos para mosquitos, modulando a resposta imune do hospedeiro.104-107 Outro fator carente de explicação é a ausência de grandes epidemias na África e na Ásia. O fato foi hipotetizado como possível reflexo de níveis mais altos de imunidade conferida por proteção cruzada contra outros flavivírus relacionados ao ZIKV,104 ou então, que as epidemias, existentes de fato, tenham sido associadas à dengue devido à semelhança clínica de ambas as viroses e à reatividade cruzada de seus anticorpos.37,108 Outro estudo corrobora a hipótese de não terem ocorrido grandes surtos na África porque o Aedes aegypti de origem africana seria menos susceptível às cepas do vírus que o de origem não africana. Ao mesmo tempo, tal característica não ajudou a esclarecer a razão da não existência de grandes surtos na Ásia, ao contrário das Américas, cujas populações tinham níveis semelhantes de susceptibilidade.109

A intensidade da disseminação, a viremia e os sintomas clínicos causados pelo ZIKV nas Américas, incluindo a microcefalia, poderiam se intensificar pela imunidade contra o vírus da dengue existente em regiões endêmicas.110 Contudo, um estudo de coorte pediátrica, conduzido na Nicarágua entre janeiro de 2016 e fevereiro de 2017, acompanhou 3.700 crianças de 2 a 14 anos e concluiu que pode ocorrer o contrário: uma redução nos sintomas da infecção por ZIKV devido à imunização prévia pelo vírus da dengue.111 Esta última hipótese é corroborada por uma pesquisa - um experimento com camundongos - que demonstrou o efeito da infecção por dengue nas células T CD8+ ao garantir proteção cruzada contra o ZIKV durante a gravidez.112 Outro fator capaz de ter intensificado a disseminação foi uma simples alteração genética na poliproteína do vírus, acontecida antes do surto de 2013, suficiente para aumentar de forma permanente sua infectabilidade em células neurais humanas.105 Este fato ajudaria a explicar o porquê de os casos de microcefalia terem sido tão numerosos na América quando comparados a outros continentes.

Mais aspectos a serem considerados estão relacionados à susceptibilidade do Aedes aegypti e do Aedes albopictus, bem como das cepas do ZIKV, devido a diferenças genéticas que influenciam os níveis de resposta dos vetores à infecção e à consequente transmissibilidade do vírus.113-120 A cepa americana é mais facilmente transmitida que a cepa asiática, da qual deriva, hipótese confirmada pela análise de saliva do vetor: apenas a amostra que continha a cepa americana mantinha o vírus viável passados três dias da infecção, além de apresentar uma taxa de infecção superior em Aedes aegypti.121

O Nordeste brasileiro registrou o maior número de casos de Zika e de microcefalia. Alguns dos motivos apontados foram apresentados por um estudo de análise ecológica: a concomitância da circulação do vírus causador da febre Chikungunya, presente na região, poderia elevar o risco de transmissão de outras doenças infecciosas.122 Outro estudo encontrou uma prevalência mais alta da infecção pelo ZIKV em estratos sociais mais pobres.123 O fato de as primeiras notificações da infecção terem ocorrido na região Nordeste do país, aliado aos massivos alertas midiáticos subsequentes, ajudaram na adoção de medidas que, possivelmente, contiveram o aumento da disseminação do vírus por outras regiões. Poder-se-ia aplicar o mesmo raciocínio ao Brasil, onde foram registradas as primeiras infecções, e aos demais países da América Latina, que não apresentaram casos numerosos.

A epidemia do Brasil apresentou acentuado declínio nos registros de infecções a partir de 2017. A cessação teve como possível causa a alta soroprevalência da população, o que teria conferido imunidade contra o ZIKV.123,124 Um estudo conduzido na Bahia, estado do Nordeste, avaliou 633 indivíduos mediante suas amostras de soro coletadas entre os anos de 2015 e 2016. Os resultados dessas análises mostraram um rápido aumento na soroprevalência da infecção pelo vírus na população, até atingir 63% em 2016.123 É possível que as características populacionais e geográficas tenham influenciado diretamente a velocidade da propagação, e suas possíveis razões estariam nas variações de densidade de vetores, imunidade e mudanças nos hábitos de rotina, além da alta mobilidade populacional.100,120,123

O surto nas Américas cessou. Não obstante, um trabalho apoiado em modelo espacial estocástico indicou a possibilidade de surgimento de novas epidemias com intervalos de aproximados dez anos, tempo necessário para a renovação de parcela da população de forma a se tornar novamente susceptível.124

Em conclusão, a expansão da circulação do ZIKV verificada na última década foi a mais rápida e ampla já registrada, e teve, como possíveis fatores agravantes, mutações genéticas que potencializaram sua transmissibilidade, aliadas à favorabilidade das características populacionais e geográficas das regiões por onde o vírus circulou. Havia a expectativa de que ocorressem numerosos casos de microcefalia na maior parte dos países das Américas,99 afinal não confirmada. De forma semelhante, permanecem não totalmente esclarecidos os motivos para o Brasil ter registrado uma quantidade tão superior de casos, na comparação com outros países da América Latina, assim como as razões de a região Nordeste ter concentrado a maior parcela das infecções registradas no país, provocando várias questões - sem resposta - acerca da expansão da circulação do vírus e sua patogenicidade. Outra limitação desta revisão de literatura remete às diferentes metodologias adotadas nos estudos consultados, dificultando a obtenção de valores precisos de soroprevalência. A reatividade cruzada, causada por anticorpos contra outros flavivírus, foi um empecilho limitante da acurácia dos resultados apresentados.76

Mais pesquisas serão necessárias para suprir as lacunas de conhecimento sobre a patogênese do ZIKV e avaliar os riscos locais; estudos de soroprevalência, para identificar regiões vulneráveis à infecção, de forma a antever o potencial de futuras epidemias. Como benefício do trabalho em tela, as autoridades sanitárias teriam seus esforços mais bem direcionados, de modo a contribuir com o desenvolvimento de medidas efetivas de controle da infecção pelo vírus Zika.

Outrossim, deve-se estimular o desenvolvimento de vacinas, de modo a se interromper a cadeia de transmissão e evitar futuros surtos e epidemias.

Agradecimentos

À Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), pelo apoio ao desenvolvimento do estudo.

Referências

  • *
    Artigo derivado de tese de doutorado intitulada ‘Dispersão, prevalência e dinâmica da transmissão do vírus Zika, de 1947 a 2018’, defendida por Gilmara de Souza Sampaio junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, em 21 de março de 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2019
  • Aceito
    17 Abr 2019
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