Open-access A hormonioterapia e os riscos de câncer em pessoas transgênero: revisão sistemática

RESUMO

Objetivo  Identificar as evidências disponíveis sobre o risco de desenvolver câncer em pessoas transgênero que se tratam por meio de hormonioterapia.

Métodos  Trata-se de uma revisão sistemática rápida nas bases de dados PubMed, Embase, Biblioteca Virtual em Saúde, Cochrane Library e Epistemonikos. A triagem e a extração de dados foram conduzidas por revisores independentes na plataforma Rayyan. A extração dos dados foi realizada por 3 revisores independentes. Utilizamos os checklists do Instituto Joanna Briggs específicos para estudos de coorte e caso-controle para avaliar a qualidade metodológica dos estudos incluídos.

Resultados  Foram incluídos 5 estudos, sendo 4 estudos de coorte e 1 caso-controle. O risco de pessoas transgênero desenvolverem câncer em hormonioterapias foi identificado por 2 estudos e não identificado por 3 estudos.

Conclusão  Apesar de estudos com grandes amostras e critérios de seleção rigorosos, a literatura não apresenta consenso sobre a associação entre a hormonioterapia e o desenvolvimento de câncer em indivíduos transgênero.

Contribuições do estudo

Principais resultados  Identificaram-se 5 estudos publicados entre 2013 e 2021. O risco de pessoas transgênero desenvolverem câncer em hormonioterapias foi identificado por 2 estudos, porém não há um consenso claro para recomendações.

Implicações para os serviços  Contribui com a atenção integral à saúde das pessoas transgênero. Isso favorece a melhor decisão no processo de hormonioterapia por essas pessoas e amplia a possibilidade de escolha dos recursos disponibilizados na rede de atenção à saúde.

Perspectivas  A revisão destaca a necessidade de mais estudos randomizados e de longo prazo para avaliar os riscos e benefícios da hormonioterapia em pessoas transgênero, em diferentes subgrupos, como idade, tempo de utilização e tipo de hormônios.

ABSTRACT

Objective  To identify the available evidence on the risk of developing cancer in transgender people undergoing hormone therapy.

Methods  This was a rapid systematic review conducted in the PubMed, Embase, Virtual Health Library, Cochrane Library and Epistemonikos databases. Screening and data extraction were performed by independent reviewers using the Rayyan platform. Data extraction was carried out by 3 independent reviewers. We used the Joanna Briggs Institute checklists specific to cohort and case-control studies to assess the methodological quality of the included studies.

Results  Five studies were included, 4 cohort studies and 1 case-control. The risk of transgender people developing cancer while on hormone therapy was identified by 2 studies and not identified in 3 studies.

Conclusion  Despite studies with large sample sizes and rigorous selection criteria, the literature does not present a consensus on the association between hormone therapy and the development of cancer in transgender people.

Keywords
Transgender People; Malignant Neoplasms; Hormonal; Hormone Therapy; Systematic Review

Study contributions

Main results  Five studies published between 2013 and 2021 were identified. The risk of developing cancer in transgender people undergoing hormone therapy was found in two studies, but there is no clear consensus for recommendations.

Implications for services  It contributes to comprehensive healthcare for transgender people. It supports more informed decision-making in the hormone therapy process and enhances the options available within the healthcare network for this population.

Perspectives  The review highlights the need for more randomized, long-term studies to assess the risks and benefits of hormone therapy in transgender people, in different subgroups, such as age, duration of use and types of hormones.

RESUMEN

Objetivo  Identificar las evidencias disponibles sobre el riesgo de desarrollar cáncer en personas transgénero que reciben tratamiento con hormonoterapia.

Métodos  Se trata de una revisión sistemática rápida en las bases de datos PubMed, Embase, Biblioteca Virtual en Salud, Cochrane Library y Epistemonikos. La selección y extracción de datos fueron realizadas por revisores independientes en la plataforma Rayyan. La extracción de datos fue llevada a cabo por tres revisores independientes. Utilizamos las listas de verificación del Instituto Joanna Briggs específicas para estudios de cohortes y casos y controles para evaluar la calidad metodológica de los estudios incluidos.

Resultados  Se incluyeron cinco estudios, de los cuales cuatro fueron estudios de cohortes y uno fue un estudio de caso y control. El riesgo de desarrollar cáncer en personas transgénero bajo hormonoterapia fue identificado en dos estudios y no identificado en tres estudios.

Conclusión  A pesar de la existencia de estudios con muestras grandes y criterios de selección rigurosos, la literatura no presenta un consenso sobre la asociación entre la hormonoterapia y el desarrollo de cáncer en individuos transgénero.

Palabras clave
Personas Transgénero; Neoplasias Malignas; Hormonal; Hormonoterapia; Revisión Sistemática

INTRODUÇÃO

O conceito de transgênero ou não conformista de gênero caracteriza pessoas cuja identidade de gênero difere daquela atribuída ao nascimento.1,2 Essa divergência pode levar à transição, que inclui tratamentos hormonais e cirurgias de afirmação de gênero, com o objetivo de alinhar o corpo à identidade de gênero. Aproximadamente, 0,6% da população dos Estados Unidos se identifica como transgênero.3 No Brasil, aproximadamente, 2% da população é transgênero.4

A Associação Mundial Profissional para a Saúde Transgênero enfatiza a necessidade de cuidados clínicos individualizados aos transexuais, aos transgêneros e àqueles que não se identificam pelo gênero de nascimento. Em linha com as diretrizes dessa associação, que defende a importância dos cuidados individualizados, estudos têm demonstrado que a cirurgia de redesignação sexual apresenta melhores resultados em serviços com equipes multidisciplinares especializadas em cuidados com pessoas transgênero.5

A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais6 e as normativas do processo transexualizador no Sistema Único de Saúde7 identificam como fundamental a garantia de acesso ao acompanhamento ambulatorial para o atendimento à pessoa transgênero no processo transexualizador. Isso evidencia a importância do trabalho multiprofissional no Sistema Único de Saúde.6-8

O número de serviços e de profissionais da saúde capazes de propor um cuidado em saúde integral para as pessoas transgênero ainda é insuficiente, o que demonstra um vazio assistencial no território nacional para essa população. Até 2022, somente 11 serviços no Brasil eram habilitados para atendimento na atenção especializada no processo transexualizador. Em 2023 foram habilitados mais 10 serviços.9

A terapia hormonal aprimora as características sexuais secundárias para que fiquem congruentes com a identidade de gênero do indivíduo. Pessoas transgênero podem receber hormônios esteroides, prescritos por profissionais de saúde, para reduzir o sofrimento psicológico e induzir mudanças físicas desejadas, como redução da oleosidade da pele, gordura corporal e crescimento/perda de pelos.10 A hormonioterapia para efeitos de afirmação de gênero pode ser administrada em doses elevadas e durante um período de décadas.3

O risco de câncer decorrente da terapia hormonal em pessoas transgênero é uma área de considerável preocupação.11 Esse potencial risco muitas vezes é utilizado como justificativa para contraindicar ou suspender a hormonioterapia. O uso de hormônios, especialmente o estrogênio, pode influenciar o desenvolvimento de células cancerígenas, o que aumenta o risco de certos tipos de câncer, como o de mama. É importante ressaltar que o risco varia de acordo com diversos fatores, incluindo o tipo de hormônio, a dose e a duração do tratamento. Outros fatores de risco, como histórico familiar e hábitos de vida, também podem contribuir para o desenvolvimento da doença.

Os benefícios da hormonioterapia para a saúde mental e o bem-estar das pessoas transgênero são inegáveis. É essencial identificar o risco, a fim de impulsionar, direcionar e informar as políticas de saúde pública e aumentar a sensibilização para as questões que afetam as pessoas transgênero.

Esta revisão sistemática rápida tem como objetivo identificar as evidências disponíveis sobre o risco de desenvolver câncer no uso de hormonioterapia por pessoas transgênero.

MÉTODOS

Tratou-se de uma revisão rápida, seguindo as etapas de acordo com o Cochrane Rapid Reviews Methods Group12 para investigar o risco de desenvolvimento de câncer em pessoas transgênero que se tratam por meio de hormonioterapia. A metodologia da revisão rápida visa maior agilidade na condução da revisão, buscando gerar o menor impacto possível na qualidade e no viés do estudo.13 A pergunta de pesquisa desta revisão foi construída com base no acrônimo PECOS (população, exposição, comparador, desfechos e tipo de estudo) (Quadro 1). Esta revisão rápida foi guiada pela pergunta: Qual o risco de pessoas transgênero desenvolverem câncer utilizando hormonioterapias?

Quadro 1
Pergunta de pesquisa estruturada em população, exposição, comparador, desfechos e tipo de estudo (PECOS)

Os atalhos metodológicos adotados para esta revisão foram: idioma de publicação em português, inglês e espanhol; e avaliação da qualidade metodológica realizada por um revisor com checagem por um segundo revisor. O protocolo foi publicado antes do início da seleção dos estudos no repositório online Zenodo.org.

A busca na literatura foi realizada em outubro de 2023, sem limitação de data, nas bases de dados eletrônicas: PubMed, Embase, Cochrane Library, Biblioteca Virtual em Saúde e Epistemonikos. As estratégias de busca foram construídas a partir do vocabulário controlado Medical Subject Headings (MeSH) do PubMed, Emtree do Embase e Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Os vocabulários não controlados, como palavras-chave e sinônimos, também foram utilizados na elaboração das estratégias de busca (Quadro 2).

Quadro 2
Estratégia de busca e resultado obtido em cada base bibiolográfica

Foram considerados critérios de inclusão: estudos que analisaram o risco de desenvolvimento de câncer em pessoas transgênero que se tratam por meio de hormonioterapia, publicados em qualquer ano e nos idiomas português, inglês e espanhol; e estudos com desenhos de revisão sistemática, estudo de coorte, ensaios clínicos não randomizados e ensaios clínicos randomizados. Os estudos transversais não foram incluídos pela dificuldade de estabelecer uma relação causal entre exposição e desfecho. A triagem dos títulos e resumos das referências identificadas foi realizada de forma independente por três revisores, seguindo os critérios de elegibilidade preestabelecidos, com auxílio do gerenciador de referências Rayyan. Realizou-se a extração dos dados por três revisores de forma cega e independente. Os dados foram organizados em uma planilha de Excel, seguindo a categorização definida com os tópicos: autor, ano, tipo de estudos incluídos na revisão, descrição da intervenção, tipo de câncer relatado, características da amostra (público-alvo), resultados e avaliação da qualidade metodológica dos estudos. Realizou-se a síntese dos dados de forma narrativa, considerando a presença de diversidades metodológica e de medidas de desfechos dos estudos incluídos. Isso impossibilitou o desenvolvimento de meta-análise com o cálculo de estimativas de efeito.14

Para a avaliação da qualidade metodológica dos estudos incluídos, foram utilizadas as ferramentas de avaliação crítica do Instituto Joanna Briggs.15 Utilizou-se a lista de verificação para estudos de coorte,16 e para o estudo de caso-controle, a lista de verificação para estudos de caso-controle.15 A avaliação foi realizada por um revisor e confirmada por um segundo revisor.

RESULTADOS

Foram identificadas 476 publicações nas bases de dados eletrônicas. Destas, após a remoção das duplicadas, 380 foram triadas por leitura de título e resumo, tendo sido excluídas 359, e acessadas, para a elegibilidade da leitura de texto completo, 21 publicações. Ao todo foram incluídas 5 publicações nesta revisão rápida.

Na Figura 1, é possível observar o fluxograma da revisão com os números de estudos incluídos e excluídos por etapa da revisão. No protocolo dessa revisão, (https://doi.org/10.17605/OSF.IO/F7DK8) está a lista completa de estudos excluídos após leitura na íntegra com o motivo de exclusão. Dos estudos incluídos para esta revisão, 4 apresentaram desenho de coorte;17-20 1 era caso-controle;21 2 estudos foram publicados em 2013;17,21 1 foi publicado em 2019;18 1, em 2020;19 e 1, em 2021,20 amostra entre 447 e 3.489 indivíduos (Tabela 1).

Figura 1
Processo de inclusão dos estudos na revisão
Tabela 1
Características dos estudos incluídos

Os desfechos analisados nas pessoas transgênero em uso de hormonioterapia foram diversos: 1 estudo analisou a prevalência de câncer;21 2 estudos analisaram a incidência de câncer;17,18 e 2 estudos, as taxas de anormalidade de células epiteliais e alterações histopatológicas19,20 (Tabela 2).

Tabela 2
Desfechos analisados nos estudos incluídos

Em relação ao desfecho de incidência, 2 coortes holandesas não identificaram aumento significativo de novos casos de câncer de mama na população transgênero.17,18 A taxa de incidência de câncer de mama em mulheres transgênero foi abaixo da que foi comparada com as mulheres cisgênero, porém dentro das expectativas para homens cisgênero. A taxa de incidência de câncer de mama para homens transgênero foi inferior ao esperado para mulheres cisgênero, mas dentro do esperado para o câncer de mama em homens cisgênero. A incidência do câncer de mama em ambos os grupos transgênero é comparável a dos cânceres de mama masculinos.17

Outro estudo18 identificou maior risco de câncer de mama em mulheres transgênero em comparação com homens cisgênero. Identificou também menor risco em homens transgênero em comparação com mulheres cisgênero. A maioria dos tumores identificados era de origem ductal com receptores de estrogênio e progesterona, e 8,3% eram devido à proteína responsável pelo crescimento das células mamárias. Outro importante resultado está no momento do diagnóstico de câncer de mama em indivíduos transgênero com idade mais jovem, quando comparado com mulheres cisgênero. O risco absoluto de câncer de mama em pessoas transgênero permaneceu baixo; portanto, o rastreamento do câncer de mama deve seguir as diretrizes para pessoas cisgênero.18

Estudo da Bélgica21 mostrou que a taxa de câncer em pessoas transgênero foi semelhante ou inferior à de homens e mulheres cisgênero do grupo controle – nenhum dos homens transgênero desenvolveu câncer durante o período de acompanhamento. As mulheres transgênero desse estudo realizaram hormonioterapia por uma média de 7,7 anos (variação de 3 meses a 35 anos); destas, 42,5% receberam estrogênio oral. A maioria das mulheres transgênero (65%) foi submetida à orquiectomia. Homens transgênero estiveram em terapia de reposição de testosterona por uma média de 9,4 anos (variação de 3 meses a 49 anos), e 65% desses indivíduos realizaram tratamento intramuscular de testosterona com uma mistura de ésteres de testosterona. Dessa amostra de homens transgênero, 86% foram submetidos à histerectomia/ovariectomia.21

Dois estudos norte-americanos19,20 sobre células epiteliais e alterações histopatológicas não mostraram também maior risco de câncer em pessoas transgênero. Um deles analisou resultados de exames de Papanicolau em um grupo de mulheres cisgênero e homens transgênero. Não foi encontrada nenhuma relação significativa entre a duração da terapia com testosterona e a presença das células transicionais de metaplasia e pequenas em exames de Papanicolau dos pacientes transgênero. A diferença entre as taxas de anormalidade das células epiteliais nas duas coortes não foi estatisticamente significativa.19

Foram revisadas 447 amostras cirúrgicas de mama provenientes de cirurgias de contorno torácico de confirmação de gênero e comparadas com os achados histopatológicos entre homens transgênero e em indivíduos não conformes de gênero centrados no masculino que receberam e não receberam terapia de testosterona. Os 85,6% da amostra realizaram administração de testosterona intramuscular, seguidos de 7,9% que usaram gel ou creme transdérmico de testosterona. A maioria dos indivíduos que receberam hormonioterapia por um período mínimo de 12 meses apresentou atrofia lobular moderada (p-valor<0,001). As lesões atípicas foram detectadas em 2,5% dos pacientes que receberam hormonioterapia. Os resultados do estudo indicaram que a hormonioterapia não resultou em alterações clinicamente significativas na morfologia mamária (isto é, aumento da frequência de lesões atípicas ou carcinoma), mesmo quando é realizado por mais de 12 meses.20

Apesar de a população do estudo ser pequena e jovem, além de achados em uma amostra reduzida, considerou-se importante o rastreamento rotineiro de câncer de mama em tecido residual após cirurgia de contorno torácico para homens transgênero e em indivíduos não conformes de gênero centrados no masculino.20 Rastrearam-se, além do câncer, outras morbidades como trombose venosa e/ou embolia pulmonar, infarto agudo do miocárdio e doenças cerebrovasculares. Cinco por cento das mulheres transgênero apresentaram trombose venosa e/ou embolia pulmonar. Mulheres transgênero tiveram mais infartos do miocárdio do que as mulheres cisgênero do grupo controle (p-valor=0,001), mas uma proporção semelhante em comparação com os homens do grupo controle. A prevalência de doença cerebrovascular foi maior em mulheres transgênero do que em homens cisgênero do grupo controle (p-valor=0,03). As taxas de infarto do miocárdio e doenças cardiovasculares em homens transgênero foram semelhantes às dos indivíduos cisgênero do grupo controle. A prevalência de diabetes tipo 2 foi maior tanto em homens como em mulheres transgênero quando comparada com seus respectivos controles.21

DISCUSSÃO

Esta revisão incluiu cinco estudos e teve o intuito de identificar evidências científicas sobre o risco de câncer em pessoas transgênero submetidas à hormonioterapia. Dois desses estudos17,19 apontaram um aumento no risco geral de neoplasias neste grupo, enquanto os demais16,18,20 não encontram essa associação. Os estudos incluídos nesta revisão sistemática rápida apresentaram métodos robustos com amostra populacional considerável e com critérios de inclusão e exclusão bem-definidos. O câncer de mama é a neoplasia que apresentou maior propensão de desenvolvimento em pessoas transgênero em uso de hormonioterapia.17,19 Destaca-se que a magnitude desse risco não foi avaliada em profundidade nesta revisão. São necessárias pesquisas adicionais para confirmar e quantificar essa associação.

Dados epidemiológicos confiáveis ainda são escassos apesar dos avanços dos estudos na área. Pessoas transgênero podem desenvolver câncer em órgãos relacionados ao sexo atribuído no nascimento, bem como em órgãos recém-formados.17,19

O risco aumentado de câncer em pessoas transgênero, em comparação com a população cisgênero, é multifatorial. Isso inclui a maior prevalência de infecções sexualmente transmissíveis, o aumento da exposição a fatores de risco, como o tabagismo e o consumo de álcool, e a falta de acesso adequado ao rastreio de neoplasias.11 Várias publicações identificaram o câncer como prioridade na investigação sobre a saúde de pessoas transgênero e reconheceram a importância de estudos em grande escala populacional.11,21

O tratamento com estrógenos e testosterona das pessoas transgênero deve seguir em constante monitoramento devido ao risco relativo de outras morbidades, como o desenvolvimento de doenças cardiovasculares.20 Doses e formas de administração também podem apresentar modificações no decorrer da reposição hormonal, o que reforça o acompanhamento próximo da equipe de saúde aos indivíduos transgênero em uso de hormonioterapia.22

As pessoas transgênero podem apresentar risco diferenciado de ocorrência de condições crônicas e agravos não transmissíveis, bem como dos fatores de risco para essas doenças e agravos.22 Recomendações específicas para as pessoas transgênero em relação ao câncer e a outras morbidades são necessárias para um melhor cuidado da saúde de forma integral. Entretanto, existem incertezas sobre os protocolos de rastreamento para câncer em pessoas transgênero.22

O processo transexualizador no Sistema Único de Saúde constantemente é marcado pela ausência da articulação da rede. Isso resulta em pessoas transgênero responsáveis por traçar o próprio percurso terapêutico, o que leva muitas vezes à busca por assistência em espaços alternativos. Esses fatores resultam no uso abusivo de hormônios, na desassistência dos profissionais de saúde e no abandono do tratamento. A descrição desse cenário piora as condições de saúde das pessoas transgênero e favorece a naturalização de negligências assistenciais e produtoras de iniquidades.23

Uma das limitações desta revisão rápida foi a indisponibilidade de duas revisões sistemáticas devido à falta de acesso ao texto completo e à exclusão de estudos transversais. As revisões rápidas são realizadas com alguns atalhos para abreviar o tempo de execução e, assim, não foram feitas consultas aos autores para solicitação do texto completo e análise de viés. A exclusão de estudos transversais se justifica pela dificuldade em estabelecer relações causais nesse tipo de delineamento.

A ausência de uma metanálise impede uma análise mais precisa e robusta dos dados, o que limita a capacidade de gerar estimativas precisas dos efeitos da hormonioterapia sobre as neoplasias. Apesar de os estudos incluídos nesta revisão não estarem no contexto brasileiro, os achados desta revisão poderão subsidiar a construção de políticas públicas acerca do acompanhamento das pessoas transgênero em uso de hormonioterapia.

Houve a inclusão de poucos estudos e não foram incluídos a revisão sistemática e o ensaio clínico randomizado, que são delineamentos de estudos considerados como as melhores evidências científicas. As evidências recuperadas mostraram que ainda faltam determinados tipos de estudos, como os ensaios clínicos randomizados, para melhor responder à pergunta de pesquisa.

Esta revisão teve como objetivo principal investigar o risco de desenvolvimento de câncer em pessoas transgênero em uso de hormonioterapia. Embora os resultados dos estudos incluídos tenham sido heterogêneos, não sendo possível estabelecer uma conclusão definitiva sobre o aumento do risco, a necessidade de mais pesquisas nessa área é evidente, em especial no contexto brasileiro. Considerando-se as particularidades da população transgênero brasileira e as lacunas de conhecimento existentes, estudos futuros devem aprofundar a investigação sobre os fatores de risco, os tipos de câncer mais prevalentes e as melhores práticas para o acompanhamento da saúde dessa população. Uma possível associação com aumento de incidência de câncer não deve ser utilizada neste momento como contraindicação para a hormonioterapia, mas deve subsidiar a construção das recomendações para acompanhamento da população transgênero em uso de hormonioterapia. Isso visa ao rastreamento populacional e ao diagnóstico precoce do câncer.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a revisão de Patrícia de Campos Couto, Camille Cristine Gomes Togo, Izabela Fulone e Keitty Regina Cordeiro de Andrade da Coordenação-Geral de Evidências em Saúde, Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde do Ministério da Saúde.

  • FINANCIAMENTO
    Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS) (Processo 25000.010649/202-01).

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Editado por

  • Editor associado:
    Letícia Xander Russo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2025
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Fev 2024
  • Aceito
    01 Set 2024
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