Open-access Félix Guattari em Belém do Pará - 1985: vestígios e efeitos

Félix Guattari in Belém do Pará - 1985: vestiges and effects

Félix Guattari en Belém do Pará - 1985: vestigios y efectos

Resumo

Félix Guattari viajou diversas vezes ao Brasil. Em 1985, saiu do circuito mainstream acadêmico brasileiro e esteve em Belém do Pará, na Região Norte do país. O objetivo deste artigo é discutir a vinda de Félix Guattari à Belém do Pará, no ano de 1985. Como método utilizamos a História Oral e Cultural para descrever e analisar as ressonâncias desta vinda. Analisamos fontes orais e registros de jornais que puderam apresentar passagens do acontecimento Guattari, em Belém. Constatamos que o convite à Guattari foi feito por professores relacionados à Psicanálise que tinham leituras políticas e críticas. Félix ministrou duas conferências: “Movimentos Sociais e Partidos Políticos” e “Desejo e Política”, em um auditório de hotel da cidade. Após esta passagem, inúmeras inflexões foram produzidas e ressonâncias geradas na formação em Psicanálise, em Psicologia, nas Artes, na Cultura e nas resistências políticas, na Cidade das Mangueiras.

Palavras-chave: Esquizoanálise; Belém-PA; Psicanálise; Política; História

Abstract

Félix Guattari traveled to Brazil several times. In 1985, he left the mainstream Brazilian academic circuit and went to Belém do Pará, in the North of the country. The aim of this article is to discuss the arrival of Félix Guattari to Belém do Pará, in 1985. As a method, we use Oral and Cultural History to describe and analyze the resonances of this arrival. We analyzed oral sources and newspaper records that could present passages of the Guattari event, in Belém. We found that the invitation to Guattari was made by professors related to Psychoanalysis who had political and critical readings. Félix gave two lectures: “Social Movements and Political Parties” and “Desire and Politics”, in an auditorium of a hotel in the city. After this passage, countless inflections were produced and resonances generated in training in Psychoanalysis, in Psychology, in the Arts, in Culture and in political resistance, in “City of Mangroves”.

Keywords: Schizoanalysis; Belém-PA; Psychoanalysis; Politics; History

Resumen

El objetivo de este artículo es discutir el pasaje de Félix Guattari a Belém do Pará, en 1985. Como método, utilizamos la Historia Oral y Cultural para describir y analizar las resonancias de este acontecimiento. Analizamos fuentes orales y registros periodísticos que pudieran presentar pasajes del evento de Guattari, en Belém. Encontramos que la invitación a Guattari fue hecha por profesores afines al Psicoanálisis que tenían lecturas políticas y críticas. Félix dictó dos conferencias: “Movimientos sociales y partidos políticos” y “Deseo y política”, en un auditorio de un hotel de la ciudad. Después de este pasaje, se produjeron innumerables inflexiones y se generaron resonancias en la formación en Psicoanálisis, en Psicología, en las Artes, en la Cultura y en la resistencia política, en la Ciudad de las Mangueras.

Palabras clave: Esquizoanálisis; Belém-PA; Psicoanálisis; Política; Historia

O otimismo que dominou a França em 1981, com a eleição do socialista François Mitterrand - mas que nunca contagiou Guattari, engajado na campanha do comediante Coluche -, transformou-se rapidamente em decepção com o alinhamento do presidente às práticas neoliberais de Margaret Thatcher e Ronald Reagan. Era o começo do que ele chamou de “anos de inverno”, expressão que deu título a um livro publicado em 1986. A introdução dePara passar os anos de invernofoi redigida na cidade de Belém (PA) e publicada naFolha de S. Paulo, quando Guattari cogitava a possibilidade de se mudar para o Brasil para escapar da glaciação europeia (Laberge, 2022, p. 11).

Introdução

Félix Guattari viajou diversas vezes ao Brasil. Na primeira vez participou em 1978 do I Simpósio Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições, a convite de Gregorio Baremblitt e dentre os diversos temas desenvolvidos, realizou duras críticas à psicanálise (Baremblitt, no prelo). Dentre as suas diversas vindas, a mais famosa foi a de 1982, que, a convite de Suely Rolnik, entabulou debates com movimentos sociais, movimentos populares, minorias sociais, o Partido dos Trabalhadores, acadêmicos e psicanalistas nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Olinda e Florianópolis, que foram sistematizados no famoso livro Micropolítica: Cartografias do desejo (Guattari; Rolnik, 1986).

Entretanto, em 1985, Félix saiu do circuito mainstream acadêmico-cultural brasileiro e esteve em Belém do Pará, na Região Norte do país, a convite de professores(as) de Psicanálise que atuavam em uma Faculdade particular, chamada FICOM, que era ligada ao Colégio Moderno, uma escola diferenciada em termos da oferta de um currículo marcado pelas artes e por um ensino politizado.

Belém-PA é conhecida como uma cidade marcada por movimentos sociais de forte reivindicação política desde o período das Revoltas conhecidas como Cabanagem, revolta contra desmandos do Brasil Império, questionando impostos altos e o abandono que esta região sofria comparativamente à atenção que era dada ao Centro-Sul do Brasil. A História da cidade de Belém e do povo paraense traz marcas de resistências diversas do povo preto, indígena, ribeirinhos, da floresta, marisqueiras, pescadores, segmentos da Igreja Católica ligados à Teologia da Libertação e da formação em Ciências Humanas e Psicanálise que trazem efeitos de relações próximas com Portugal e outros países europeus.

Há um intercâmbio forte de Belém-PA com a Europa e também há um diferencial desta cidade ser um polo articulador da Amazônia brasileira e da Pan-Amazônia, que envolve outros países da América que compõem o bioma amazônico. Esta realidade, acrescida do protagonismo construído pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e por grupos e coletivos de artes, de Psicanálise e estudos filosóficos contemporâneos independentes e bastante ativos na cena cultural criou e ainda propicia um ambiente complexo repleto de pulsações do desejo na maquinaria da produção estética, de ações éticas e micropolíticas.

Este contexto atrai a vinda de muitas pessoas de todas as partes do mundo para a Amazônia paraense, atraídas pela biodiversidade, mas também pelas manifestações culturais do estado do Pará, como a Festa do Círio de Nazaré, a Marajuda no Nordeste paraense, as danças do carimbó, as apresentações do Arraial do Pavulagem. Carlos Gomes esteve em Belém e uma das Escolas de Música da cidade têm o nome dele como homenagem à sua estadia na cidade. A imensidão de rios, formando praias de água doce; as praias na Costa oceânica banhadas pelo Atlântico; a culinária diversa atrai interessados em gastronomia de todos os cantos; as feiras livres e a abundância de peixes, camarões, caranguejos e mariscos acrescida da herança indígena e africana em hibridismo com a portuguesa, japonesa e marroquina traz singularidades que chamam a atenção.

O Pará recebeu fluxos migratórios de judeus marroquinos, de japoneses e, por fim, em função de grandes projetos energéticos e de mineração também recebe profissionais de todo o país e de inúmeros outros países. Evidentemente, há paradoxos nestas realidades múltiplas, tensões e, ao mesmo tempo, potências de tantos encontros inusitados e produtores de diferença. Ao mesmo tempo em que a biodiversidade atrai turistas também é alvo da cobiça de corporações internacionais no setor da extração mineral e energética. Portanto, Belém-PA recebe e acolhe pesquisadores/as, lideranças políticas, artistas, empresários, turistas e intelectuais em função de uma variedade de contextos e motivos.

Belém também é apelidada de “cidade das Mangueiras” por ter muitas mangueiras na sua região central, fazendo um arco nas ruas e avenidas que trazem sombra diante do calor intenso do clima tropical e úmido quente e que também produz uma beleza ímpar, lado a lado com os prédios históricos do período da Belle Époque.

Tivemos maior conhecimento dos detalhes da visita de Guattari à Belém apenas em 2019, durante um curso ministrado pelo Professor de Filosofia Dr. Ernani Chaves (UFPA), que ocorreu na sede do Fórum do Campo Lacaniano em Belém, intitulado “Lacan e a Filosofia”. O Prof. Ernani mencionou que naquele ano se completavam 34 anos da vinda de Félix Guattari à Belém-PA1. Logo, a vinda se deu em 1985. O convite estava relacionado ao desejo de psicanalistas paraenses em potencializar uma formação problematizadora e crítica na Psicanálise paraense. Vale ressaltar que, na década de 1980, não havia a presença das sociedades tradicionais de Psicanálise em Belém, tal como a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP), o que gerou um efeito controverso. Ao invés de reproduzir-se uma Psicanálise conservadora, houve o desenvolvimento de psicanalistas que tinham uma crítica refinada e se interessavam significativamente pela produção artística e militância ativa contra autoritarismos e desmandos de toda sorte. Assim, esse foi o cenário para o convite feito à Félix Guattari para vir à Belém-PA.

Nesse sentido, este artigo visa discutir a vinda de Félix Guattari à Belém do Pará, no ano de 1985. Como método utilizamos a História Oral e Cultural para descrever e analisar parte das ressonâncias desta vinda por meio da alguns acontecimentos materializados no cotidiano das práticas do território visitado e das desterritorializações vividas nos encontros realizados em Belém, no Brasil. Vale destacar que não encontramos na literatura acadêmica nenhum relato de como foi a passagem de Guattari em Belém. Para tanto, buscou-se mapear fontes orais e registros de jornais que pudessem apresentar análises do acontecimento Guattari, em Belém.

Consideramos a História Oral e Cultural como uma espécie de análise acontecimental. De acordo com Carlo Ginzburg (2007), a micro-história permite contar e analisar narrativas na esfera do cotidiano, em termos de circulação cultural dos valores, das práticas plurais e dos modos de existências em processos de singularidade. Dentro da História Oral, na virada cultural, a partir da segunda metade do século XX, emerge um fazer histórico que busca estudar vestígios em escalas minúsculas e dar ênfase à importância de várias lentes para olhar as fontes como um rastreio literário de uma escrita do que era, anteriormente, desprezado pela História tradicional.

A História Oral com a micro-história amplia enfoques, permite abordar novos temas e aumentar as possibilidades de trabalhar com arquivos. Fontes orais e minúcias das vidas eram invisibilizadas antes e se perdiam muitos acontecimentos e documentos que não eram vistos, pensados, que não apareciam nos livros, nas bibliotecas, nos currículos e na literatura em função da ausência de uma preocupação em analisar fontes do cotidiano. Na medida em que a História se aproxima da Antropologia, na década de 1960, pode realizar um giro cultural que passa a considerar o olhar para as memórias orais e para as narrativas e acontecimentos que pareciam minúsculos como elementos importantes a serem estudados (Ginzburg, 2019).

Assim, Etienne (2006) relata que a História Oral permite fazer circular o que era silenciado na História tradicional e passa a operar uma revolução no campo, sobretudo, porque possibilita trazer novas experiências e aumentar o contato com a alteridade, na sociedade, que passa a ter acesso às histórias que não eram vistas e que não apareciam como importantes por fazerem parte do cotidiano. Observa-se que o micropolítico não se separa do macropolítico, ao contrário, ambos estão em uma relação em efeitos recíprocos. Deleuze e Guattari (2014) destacam que o devir-minoritário e o que parece como literatura menor pode fazer proliferar processos de subjetivação e modos de existências disruptivos que abrem linhas de fuga. É possível fazer este jogo de conversação entre um devir-minoritário e uma analítica das fontes históricas. Assim, as fontes orais e jornalísticas da presença de Félix Guattari, em Belém, em setembro de 1985, foram trabalhadas neste movimento da micro-história e da História Oral Cultural.

Tateando a vinda e seus acontecimentos

Sérgio Bandeira, um Professor de História da Educação do campus de Abaetetuba da UFPA que é integrante do Grupo de Estudos, Pesquisas, Ensino e Extensão Transversalizando, trouxe uma pista importante a respeito dos vestígios da presença de Félix Guattari, em Belém. Sugeriu que certamente deveria ter registros dessa presença nos arquivos da sede da Fundação Cultural do Pará, o Centro Cultural e Turístico Tancredo Neves (CENTUR). Orientou que havia arquivos digitalizados, tais como jornais e revistas que não eram mais editadas.

Como acreditava que certamente haveria algum registro do evento que trouxe Guattari à Belém, Sérgio generosamente foi até o CENTUR conosco e nos ajudou a consultar os arquivos com seus saberes e metodologias de formação em História. Nós apenas sabíamos que Félix havia vindo em setembro de 1985. Ele tinha um manejo dos documentos, das técnicas de busca de arquivos e de como identificar séries e usos específicos das fontes históricas. Para nossa alegria e surpresa, encontramos a foto de Guattari, estampada em um jornal, na página 16 de um dos Cadernos do extinto Jornal A Província do Pará, que era uma publicação com notícias que traziam informações dos dias 01 e 02 de setembro de 1985, um domingo e uma segunda-feira, à época. Uma das fotos era de Guattari, sentado à mesa de um hotel antigo na cidade, chamado de Novotel (figura 1). Nesta matéria, estava anunciado um convite para um evento organizado nas Faculdades Integradas do Colégio Moderno (FICOM) por professores(as) que atuavam com a Psicanálise e eram responsáveis por trazê-lo à Belém e a síntese de uma breve entrevista.

Figura 1
Guattari vê partidos de esquerda iguais aos burgueses.

A entrevista ao Jornal “A Província do Pará” percorreu temáticas políticas, como a redemocratização da América Latina, os meios de comunicação de massa e os partidos de esquerda. No que se refere ao processo de redemocratização dos países latino-americanos, Guattari não estava entusiasmado com o que estava vendo, pois não vislumbrava uma democracia de fato, mas sim um processo levado pelas elites políticas e econômicas de cada país que desprezam a população e as minorias, de uma forma geral. Resulta-se assim mais numa “democracia” das pessoas que estão no poder. Já em relação aos meios de comunicação ainda mantinha uma esperança sobre seu potencial de multiplicação e criação, tal como apresenta em muitos dos seus escritos (Guattari, 1981), mas alertava sobre o risco de seu uso pelos políticos, que preferem desenvolver práticas de despotencialização e infantilização através das mídias. Para finalizar, realizou dura crítica aos partidos de esquerda, principalmente o francês, por passarem a se assemelhar aos partidos de direita, burgueses. Nesse sentido, considera necessário fomentar um processo intenso de democratização interna para transformar estes partidos. Por outro lado, Guattari não ignora a importância associativa e coletiva dos velhos partidos e sindicatos. Constatamos assim que mesmo sendo uma leitura da conjuntura de 1985, ela ainda se mostra muito atual para uma conjuntura de quase quarenta anos depois.

Segundo a matéria, observa-se que o evento aconteceu entre os dias 03 e 04 de setembro de 1985 e que se tratavam de duas apresentações de Guattari, cujos títulos eram: 1) “Movimentos Sociais e Partidos Políticos” e 2) “Desejo e Política”. Ambas as falas aconteceram em um evento promovido por professores das extintas Faculdades Integradas do Colégio Moderno (FICOM), sendo que ocorreram no Auditório do Equatorial Palace Hotel.

A FICOM foi extinta há muitos anos e, nas mesmas instalações, apenas permanecia o Colégio Moderno, que foi vendido para um grupo empresarial grande, grupo Ser Educacional, com outra proposta de ensino e organização, fundando a Faculdade Maurício de Nassau (UNINASSAU). De todo modo, fomos até lá e tentamos obter mais informações para buscar algum participante ou organizador deste evento. Conversamos com o coordenador do curso de Psicologia, o Professor Alex Miranda, que nos deu a pista de um novo contato que poderia nos dar mais notícias a respeito da vinda de Félix Guattari a Belém. Se tratava da Professora Ana Cleide Guedes Moreira, docente aposentada da UFPA, onde foi responsável pela cadeira de Psicanálise freudiana e Psicopatologia Fundamental por mais de três décadas e que criou o Programa de Pós-graduação em Psicologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFPA. Anteriormente, só existia o Programa de Pós-graduação em Teoria do Comportamento na UFPA, que estava consolidado e tinha hegemonia na formação na região.

O Prof. Alex Miranda, gentilmente, passou o contato de WhatsApp da Profa. Ana Cleide2 e foi possível dialogar com ela de forma alegre e muito acolhedora. A referida professora foi solícita e contribuiu bastante para acessarmos relevantes informações do acontecimento vinda de Guattari a Belém. A entrevista, em forma de bate-papo, foi registrada no que nomeamos como diário de bordo, um caderno de escritos e registros de impressões e elaborações do que ela nos disse e nos contou por meio de suas memórias relatadas. Foram conversas marcadas por um clima agradável e cheio de afetos, e que foram anotadas com atenção no diário de bordo. Buscou-se esta ferramenta, o diário de bordo, nos trabalhos de Lazzarotto3 (2009), que o define como uma escrita de rememorações e afecções de encontros e dos rastros e vestígios destes.

Ana Cleide não exigiu sigilo do seu nome e fez questão de nos contar suas memórias com o objetivo de contribuir para o legado histórico de Félix Guattari no Brasil, em especial, em Belém-PA. Ela relatou ter sido uma das organizadoras do evento. Ela era docente na FICOM, que foi a primeira Faculdade privada em Belém que, depois, foi unida ao Centro de Ensino Superior do Estado do Pará (CESEP) e se tornou, posteriormente, a Universidade da Amazônia (UNAMA). Nesse período, além dela, ministravam aulas na faculdade os professores Ernani Chaves e Léa Salles.

O Professor Ernani, após retornar do seu Mestrado em Filosofia na PUC-SP, já trazia em sua bagagem teórica a relação com Foucault e a Psicanálise, conhecia os trabalhos de Gilles Deleuze e Félix Guattari, enquanto a Professora Léa Salles fazia Mestrado em Psicologia Clínica, na PUC-SP, sob a orientação da Profa. Dra. Suely Rolnik. Suely Rolnik foi analisada por Félix Guattari na França, enquanto esteve exilada naquele país durante a Ditadura Civil-Militar brasileira e se tornou uma grande amiga e parceira de produções conjuntas com Guattari. Assim, foi Suely Rolnik quem articulou com Léa Salles, em um primeiro momento, a ideia de trazer Guattari a Belém. Naquela ocasião, Ana Cleide apoiou a ideia e participou da organização do evento, pois era vice-coordenadora do curso de Psicologia e de extensão na FICOM e já conhecia o trabalho teórico de Félix enquanto estudiosa de sua obra.

Nas palavras de Ana Cleide, trazer Guattari à Belém era de suma importância, pois, o país estava saindo da Ditadura e tentando se redemocratizar e eram poucos docentes e psicólogos(as) que estudavam Psicanálise em Belém. Então, era um desejo mobilizar a efervescência de um pensamento inquietante como o de Guattari em Belém e impulsionar um maior interesse pela Psicanálise, sobretudo, de um modo crítico e marcado pela relação entre desejo e política. Valeu à pena, na visão dela, porque a partir dos anos 90, no século XX, houve um interesse em expansão pela Psicanálise em Belém e um crescimento da difusão de um uso crítico da mesma.

De cursos pontuais, ministrados por psicólogos(as) e psiquiatras de orientação psicanalítica, que não faziam parte da Sociedade de Psicanálise, passou-se a se formar grupos e fóruns em tornou do aprendizado e compartilhamento da transmissão da obra de Freud e Lacan, na relação da Clínica como um dispositivo de escuta nas Políticas Públicas e em consultórios privados e/ou no campo teórico da Filosofia com a conversação com Walter Benjamin, Michel Foucault e intelectuais da Teoria de Frankfurt, tais como Adorno e Horkheimer, em Belém.

Todavia, no primeiro momento, a inserção universitária da Psicanálise foi maior no curso de Psicologia da UNAMA e, somente, no fim dos anos 90 do século XX teve mais ressonância no curso de Psicologia da UFPA, pois havia uma hegemonia da Psicologia experimental na UFPA naquela época. Inflexões foram fabricadas e deslocamentos produzidos. Assim, houve a abertura de uma brecha para a criação de outro Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Social em 2005, que hoje é apelidado pela sigla PPGP-UFPA e incorporou várias teorias, temas e uma diversidade de propostas em Psicologia na relação com a Clínica, as Políticas Públicas, movimentos sociais, arte e cultura.

Outro efeito foi no currículo de graduação da Psicologia, que passou a ter a disciplina Análise Institucional na UFPA, proposta pela própria Ana Cleide, como parte das ressonâncias do legado de Félix Guattari em Belém. Esta disciplina existe até hoje na graduação de Psicologia da UFPA. Assim, na terra da cabanagem, devires ganharam passagens e blocos de intensidade ganharam atualização, rostidades e expressões plurais. A singularidade emergiu com a tensão entre virtual e atual, em territorialidades e desterritorializações, em criações paradoxais e dispersas éticas, estéticas e políticas. Vale salientar que, também, a Psicologia no Pará recebeu grande repercussão de psicanalistas argentinos que chegaram ao Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, fugindo da ditadura na Argentina.

Portanto, o contato que tiveram com a psicanálise foi fortemente marcado pelo legado de Gregorio Baremblitt, Antonio Lancetti, Enrique Pichon-Rivière, pensadores que propunham uma espécie de Psicanálise crítica, materialista, mais posicionada à esquerda e que fizeram parte do Grupo Plataforma, direta ou indiretamente, na Argentina. Apesar de não ter morado no Brasil, outro psicanalista marxista que teve forte incidência na Psicologia Institucional brasileira foi José Bleger, o “mestre comunista” (Grande; Baremblitt, 2022; Hur, 2014). Estes acontecimentos são importantes porque trazem um plano de composição de forças múltiplas e heterogêneas que explicitam diferenciações nos modos de usar e receber a Esquizoanálise e os trabalhos de Félix Guattari no Brasil em diversas frentes, grupos, movimentos, áreas, coletivos, instituições e territórios (Balieiro; Flexa, 2018).

Ana Cleide também ressaltou que Guattari trouxe um frescor a Belém e um vigor nos modos como elaborava o pensamento de Freud no sentido libertário, colocando em xeque a apropriação norte-americana da Psicanálise, que tinha um vetor de ajustamento de condutas e adaptações às normas sociais. Para a professora, foi um conjunto de movimentos libertários que lutavam contra o regime autoritário e ditatorial e que não se rendiam ao medo e ao terror de Estado que trouxeram Guattari ao Brasil e a Belém. As vindas dele eram efeito de movimentos revolucionários, em uma micropolítica que vicejava nos corpos, subjetividades e coletivos que tinham sonhos e desejos de transformação e que não aceitavam se submeter aos ditames do capitalismo e dos tecnicismos utilitaristas.

Félix Guattari encontrava no Brasil potências criativas e políticas que o deixavam alegre e mexido com as pulsações desejantes nestas terras. Perguntamos à Ana Cleide se ela se lembrava de experiências não acadêmicas desses dias em que Guattari esteve em Belém. Respondeu que possuía algumas memórias. Lembrou-se de quando o levaram para tomar sorvete na Cairú, uma sorveteria que existe até hoje em Belém e produz sorvetes com sabores de frutas típicas da Amazônia. Foram à Cairú, que ficava na esquina da Avenida Braz de Aguiar com a Rua Quintino Bocaiúva. Disse que ele adorou todos os sorvetes, experimentou vários sabores. Lembrou também que o pensador foi pra casa de alguns amigos da professora Léa Salles e de seu marido Egydio Salles, em Icoaraci.

Em Icoaraci há praia de rio e uma orla linda, com restaurantes que servem peixes e mariscos e também há bancas de artesanato da cerâmica que traz contribuições da arte indígena marajoara. A Ilha do Marajó é acessada em duas horas e meia de lancha e em cinco horas de barco, em sua parte mais próxima de Belém. Mas há lugares na Ilha que são acessados por navios e barcos de grande porte que demoram mais de 12 horas de viagem por meio dos rios.

A Ilha do Marajó é constituída por 17 municípios, na atualidade; é um território gigantesco e tem praias de rio com água doce que se misturam já com as águas salgadas do Oceano Atlântico. Além da cerâmica marajoara, muito procurada e admirada por seus requintes de desenhos, que são estudados por matemáticos e diferentes pesquisadores(as) da arqueologia e antropologia, também é um atrativo na região a diversidade ecológica, a presença de búfalos e uma variedade grande de estilos de dança e música que são formadoras do carimbó.

Falar da vinda de Félix Guattari à Amazônia é extremamente relevante, pois ele era um ecologista e se preocupava com as questões ambientais na relação com uma ética, estética e política que ele denominou como ecosofia em “As três ecologias” (1993). A militância ativa de Guattari e a força crítica de seu legado nos movimentos sociais foram e são importantes para o enfrentamento à pilhagem feita na exploração da biodiversidade amazônica e para a criação de territórios de existências que operam ressonâncias produtivas em termos de singularização das práticas libertárias.

Outros vestígios e movimentos de Guattari em Belém

A segunda fala de Guattari na FICOM foi brevemente citada em outra matéria que encontramos, na qual consta uma foto que reúne Félix Guattari, Suely Rolnik e Ernani Chaves, em uma mesa do segundo dia da conferência, realizada no dia 03 de setembro de 1985 (figura 2). De sua fala destaca-se a articulação entre os denominados sistemas pré-pessoais aos sistemas produtivos, remetendo assim às máquinas que se constituem entre as distintas engrenagens desejantes. A matéria também traz um breve minicurrículo de Félix, assim como cita sua primeira fala em Belém, sobre movimentos sociais e partidos políticos.

Figura 2
Guattari faz segunda conferência em Belém.

Na memória da professora Ana Cleide, permanece a imagem de Guattari como uma pessoa muito alegre e bonita, com “olhos lindos!”. Era alguém muito gentil, interessado e conversador. Perguntamos se ele havia ficado entusiasmado com as discussões que foram surgindo nos encontros na FICOM, e respondeu-nos com a memória de um dia específico em que o auditório estava lotado, havia gente sentada no chão. Ela mencionou também que solicitou a Félix que explicasse melhor o conceito de territorialização e desterritorialização que, para ela, era de difícil compreensão. Guattari respondeu tomando como exemplo a Amazônia. Disse que quando uma estrada é aberta no meio da mata, está sendo produzido ali um processo de desterritorialização e reterritorialização, pois há uma mudança na cultura, a penetração de novos elementos que, necessariamente, desterritorializam. Assim como acontece com a subjetividade que se deixa afetar por esse processo e, novamente, se reterritorializa já com novos elementos.

Quando se leva luz elétrica, por exemplo, a luz elétrica chega transformando, desterritorializando. São processos que andam juntos, a desterritorialização e a reterritorialização. Perguntamos se ela não achava que ele ainda trazia muito dos conceitos da psicanálise nas suas proposições como, por exemplo, a ideia da subjetividade como algo coletivo. Respondeu-nos que achava que isso já é uma ampliação do conceito freudiano realizado por Guattari, pois Freud pensava a subjetividade a partir da singularidade. Para a professora, Freud é muito mais que os psicanalistas, ele conseguiu pensar coletivamente, mas ainda assim o grande problema da psicanálise que precisou ser enfrentado foi o elitismo presente em uma perspectiva de atuação restrita ao consultório.

No Brasil, essa psicanálise pôde ser enfrentada, sobretudo, em decorrência das críticas elaboradas por Guattari, o que, segundo Ana Cleide, possibilitou sua disseminação ao ponto de hoje psicólogos(as) definirem suas práticas a partir da escuta qualificada. A professora lembrou que a escuta é um procedimento psicanalítico por origem e, embora muitos psicólogos(as) falem constantemente em escuta, poucos sabem, de fato, o que ela significa. Às vezes, só se ouve e não se escuta.

Para Ana Cleide, Guattari ampliou a Psicanálise para as massas, trazendo uma psicanálise que pretende, verdadeiramente, aliviar o sofrimento do povo e libertar o desejo, criando condições para que, no coletivo, o desejo apareça e se multiplique de forma transversal. Tais elementos estão evidentes, por exemplo, a partir da noção dele de grupo sujeito e grupo sujeitado e de agenciamento coletivo de enunciação.

Encontramos nos arquivos do CENTUR uma terceira matéria (figura 3) que registra a passagem de Guattari em Belém. Nela caracteriza-se a maioria do público presente no “curso” de 8 horas, dividido em dois dias, sendo formado por estudantes e profissionais de pedagogia, psicologia, sociologia e história, a parceria com Suely Rolnik e um mini-histórico de alguns interesses de estudos e práticas de Félix, principalmente as políticas.

Figura 3
Filósofo francês fala dos partidos.

Ana Cleide lembrou que, durante o evento, houve a participação do movimento estudantil e algumas lideranças de esquerda sem a participação de outros movimentos populares ou sociais. O debate foi composto, basicamente, por estudantes e professores. Havia a presença de intelectuais de esquerda e uma parte do movimento estudantil de esquerda, mas não de líderes populares. Ela explicou que existia uma tendência, no movimento estudantil daquele momento que chamava-se Caminhando. Este foi um grupo importante do movimento estudantil em Belém. Lembrou que como efeito das articulações daquele período foi possível, inclusive, a eleição de um paraense como presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), o estudante Valmir Bispo dos Santos. Esse movimento era ligado ao Partido Revolucionário Comunista (PRC) que era um partido clandestino criado por José Genoíno, partido que ajudou a construir o Partido dos Trabalhadores (PT) e teve lideranças importantes em Belém. Essa parte do movimento estudantil estava no evento do Guattari, de acordo com a professora. Perguntamos se esse evento estava dentro de um evento maior. A professora nos respondeu que não, foi um evento específico da vinda de Guattari.

Ana Cleide comentou que tinha a impressão de que o nosso interesse de pesquisa pela vinda de Guattari ao Brasil poderia servir como um analisador de modo a recuperar alguns elementos históricos que, talvez, sejam de grande interesse para a nossa geração ou para as gerações futuras. Como, por exemplo, para compreender o movimento de extrema direita que se instalou no Brasil. Movimento que está produzindo subjetividades capitalísticas conservadoras alienadas, segundo a professora: “É preciso ainda dar conta dessa produção que o Vladimir Safatle chama de uma revolução conservadora. Como eles conseguem esse grau de manipulação da subjetividade... É impressionante!”.

Ana Cleide lembrou que Guattari andava pelo mundo em momento em que estavam ocorrendo revoluções libertárias, algo oposto ao que ocorre atualmente com as revoluções conservadoras. A professora trouxe informações sobre as falas de alguns cientistas políticos como Gisalio Cerqueira e Gizlene Neder durante um Congresso de Psicopatologia Fundamental em que ela esteve na organização. De acordo com os pensadores, estamos vivendo um período equivalente aos anos 30 do século XX, período que levou Hitler ao poder, em 1933. Se lembrou também de um artigo de Michel Gherman, em que o autor afirmava a semelhança entre Bolsonaro e Hitler. Acerca do modo de operação de Bolsonaro, a professora pontuou que o discurso dele é um discurso contra o sistema. Em relação ao modo de ação dos grupos bolsonaristas, ela argumentou que eles estão muito bem articulados, pois pegam as nossas palavras e as transformam em ideologia.

As falas da professora permitem enxergar as ressonâncias de Guattari no modo de pensar e analisar o contexto político, social e subjetivo brasileiro. As memórias de Guattari no Brasil mostram também sua contribuição na articulação dos movimentos sociais de caráter libertário, colaborando para as resistências e lutas que foram travadas contra o regime autoritário, no país. Ana Cleide recordou que, nos anos 80, quando Guattari veio à Belém foi, exatamente, no momento em que eles estavam lutando pelas eleições diretas, mas ao final mantiveram-se as indiretas. Tancredo Neves e José Sarney foram eleitos indiretamente pelo Partido da Mobilização Democrática Brasileira (PMDB), derrotaram Maluf que era do Partido Democrático Social (PDS), o partido herdeiro do Arena. Tancredo não chegou a governar, pois morreu e quem assumiu foi seu vice, José Sarney. Portanto, Guattari veio pra Belém exatamente em um clima de que a democracia venceu, mesmo que ainda deslocando o entulho autoritário lentamente. Era um momento de abertura maior, nas palavras da professora, e de um esperançar depois dos anos de chumbo.

Outro episódio rememorado e trazido por Ana Cleide ocorreu após a vinda de Félix a Belém. Ela salientou que naquele período era vice-coordenadora do curso de Psicologia da FICOM e foi chamada pela diretora da Faculdade e pelo coordenador do curso de Psicologia para dar explicações sobre o que a motivou a trazer Guattari a Belém. A professora foi questionada também sobre os motivos que a faziam ter interesse pelo autor, já que este usava palavrões em público e em seus livros. A insurgência de Guattari causou mal-estar aos poderes estabelecidos na Instituição mesmo após sua partida.

Interrogamos quais, então, foram os desdobramentos daquela interpelação. Ana Cleide disse que respondeu aos seus superiores apenas que Guattari era um psicanalista importante e também um pensador muito significativo com ideias potentes que os ajudavam em seus estudos e reflexões. Deste modo, o assunto foi encerrado.

No entanto, a professora sentiu-se intimidada por este comportamento de questionamento recebido e também considerou “esdrúxulas” as falas de certa recriminação de seus superiores, sobretudo por não ter havido uma participação dela de forma destacada na organização do evento. Contou que apenas acelerou a burocracia na instituição para que o evento ocorresse. O que mais surpreendera a docente, no entanto, foi a disparidade entre a maneira como os citados superiores eram reconhecidos na instituição e a postura que eles assumiram perante a professora.

Segundo Ana Cleide, a diretora era considerada uma mulher progressista entre os sócios que eram proprietários da FICOM, da mesma forma o coordenador do curso, que tinha um reconhecimento visível, inclusive, na história de atuação na coordenação. De acordo com a professora Ana Cleide, o coordenador do curso foi padre na década de 60 e 70. Era conhecido como progressista, atuava na Igreja da Trindade, em Belém, como religioso e líder da juventude.

Os jovens daquela época eram famosos por serem rebeldes, revolucionários e libertários. Assim, não demorou para que a afinidade entre os jovens e o padre se estabelecesse. Os jovens costumavam, inclusive, a frequentar as missas presididas pelo coordenador. Contudo, como professor na FICOM, o coordenador assumiu uma postura autoritária. Pouco após a vinda de Guattari, Ana Cleide foi aprovada como docente no concurso da UFPA, e pontuou que, talvez, se continuasse na FICOM, já não teria mais tanta liberdade para trabalhar no lugar depois de ter colaborado para trazer Guattari a Belém.

Por fim, a docente descreveu um pouco da atmosfera social daquele período em que Guattari esteve na cidade. Vivia-se a era da Nova República e o Brasil estava saindo de uma ditadura. Ainda não havia uma nova Constituição. Para isso, houve muito protesto dos movimentos sociais que defendiam uma Assembleia Nacional Constituinte com deputados e senadores eleitos, exclusivamente, para escreverem a Constituição. A proposta foi derrotada. No entanto, conseguiram eleger um congresso nacional que se tornou constituinte.

A articulação dos movimentos sociais foi importantíssima naquele momento histórico-político, pois organizaram conferências nacionais para discutir teses que foram levadas até a constituinte. Ao final, aprovou-se uma Constituição cujo eixo fundamental é a cidadania da população, elevando a condição da brasilidade ao estatuto da cidadania. Havia um ar de progresso em circulação que coexistia com forças conservadoras presentes em todos os níveis, evidente até mesmo entre os espíritos considerados progressistas, como aqueles que interrogaram Ana Cleide.

Era o começo de um período mais democrático, embora o autoritarismo ainda estivesse presente na subjetividade como cultura política e como processo de subjetivação que organizava rearranjos. A professora encerrou a nossa conversa, caracterizando o movimento estudantil da FICOM. Relatou que havia uma polarização entre os estudantes que compunham a esquerda - ligados à Caminhando - e aqueles alinhados aos ideais da direita - ligados ao PDS, que era o partido dos militares. Os ares democráticos estavam apenas começando. Ana finalizou dizendo que, em 1985, quase não conseguia distinguir um clima muito alegre. Ainda estavam saindo da ditadura, daquele longo inverno que durou mais de duas décadas.

Considerações finais

Com Veyne (1998), aprendemos que toda História tem lacunas e nunca alcança a totalidade, que ela é feita de fazeres que são práticas e lidas por perspectivas conceituais de quem acessa as fontes históricas e as usa de determinada maneira. Assim, a vinda de Félix Guattari foi lida por alguns ângulos neste artigo, na tentativa de mapear os efeitos e acontecimentos de sua passagem em Belém-PA, em 1985. Analisamos as três matérias encontradas em jornais de grande circulação em Belém, bem como a narrativa da Profa. Ana Cleide, uma das organizadoras do evento.

Constatamos que o convite à Guattari foi feito por professores relacionados à Psicanálise que tinham leituras políticas e críticas, eram docentes em uma faculdade privada chamada FICOM, tinham interesse em disseminar o pensamento revolucionário de Félix Guattari, em Belém, e criar agenciamentos para a difusão de um modo de atuar com uma Psicanálise marcada pela escuta que considerasse a conjuntura brasileira, os elementos culturais, sociais, econômicos e históricos no exercício de formação e de atendimento.

A passagem de Guattari em Belém foi marcada por duas conferências: “Movimentos Sociais e Partidos Políticos” e “Desejo e Política”, realizada em um auditório de hotel da cidade e houve vigor e intensidade nas falas e perguntas do público.

Possivelmente, ressonâncias foram multiplicadas com efeitos que se atualizam de variadas maneiras e para além do controle de um currículo oficial das instituições consagradas pela formação e dos ditos e indizíveis, após 1985. Forças se moveram com aquela presença forte, inquietante e provocativa que a figura de Félix manifestava por onde ele passava. Suas falas, textos, livros, entrevistas e posições produziram torções de deslocamentos nas psicanálises que fabricaram ecos de singularização nas práticas de psicanalistas, tanto em termos de os conduzirem a repensar alguns conceitos ou, pelo menos, de desenvolverem uma cautela maior nos modos de usá-los em termos de situar historicamente e culturalmente, a partir das condições de possibilidades de emergência dos saberes.

Portanto, este encontro com Belém pela via da Psicanálise trouxe efeitos na formação de gerações de psicanalistas no Pará, mesmo que muitas vezes não ocorra a citação direta do nome Félix Guattari, ou a criação de uma tradição esquizoanalítica naquele momento. A influência de sua visita perdura, mesmo que de modo imaterial e até imperceptível. Seja na inspiração de devires-revolucionários com o fim da ditadura no Brasil, ou a resistência contra os extremismos políticos e neofascismos da atualidade. Assim, esta análise traz ressonâncias que podem ainda produzir muitos ecos e efeitos de atualização da vinda de Félix Guattari à Belém-PA, que possam movimentar o jogo de forças e tensões que marcam os usos e legados de um pensamento e as potências criativas e revolucionárias de um intelectual militante que trouxe contribuições relevantes para a Amazônia, para a Psicanálise, para a Psicologia, para as Artes e coletivos políticos de Belém.

Referências

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  • VEYNE, P. Como se escreve a História. Brasília: EdUNB, 1998.
  • 1
    Vale citar que em 1976 o filósofo Michel Foucault visitou Belém, mas infelizmente os registros de sua conferência se perderam (Rodrigues, 2016).
  • 2
    A partir de agora nos referimos a ela apenas por Ana Cleide.
  • 3
    Psicóloga e Professora no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, atualmente aposentada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2023
  • Aceito
    03 Abr 2024
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