Resumo
Neste artigo, minha tentativa é a de relacionar a estruturação do desejo amoroso e a estruturação do desejo filosófico por escrita. De imediato, podemos pensar que não há propriamente uma relação entre esses dois modos de desejar, ou seja, que a forma pela qual experenciamos o amor é independente da forma pela qual experenciamos a escrita filosófica. Mas, se pararmos para pensar com autoras como Hélène Cixous, Michel Foucault, Judith Butler, Paul B. Preciado, Margareth Rago e Audre Lorde, perceberemos que a estruturação fálico-patriarcal do desejo amoroso também configura a estruturação do desejo pela Filosofia, de modo a determinar o que é e como devemos filosofar. A estreita articulação entre a violência atrelada à heteronormatividade no campo amoroso e no campo filosófico, permite-nos compreender que a universalidade e objetividade da Razão, que tradicionalmente opera como motor do fazer filosófico, não passa de uma presunção, já que o logos depurado de sentimento e imaginação corresponde à materialidade de um certo tipo de corpo: em geral, corpos soberanos, brancos, heterossexuais, saudáveis e seminais. Com base nisso, no presente ensaio, busco oferecer algumas pistas histórico-filosóficas para entendermos por que as mulheres foram e são relegadas às margens da Filosofia, compreendida como um campo de ensino, de aprendizagem, de pesquisa e de produção de conhecimento que está classicamente ancorado no amor à sabedoria. Meu intento é, portanto, o de entender em que medida a configuração normativa desse amor nutre e é nutrida por uma dinâmica violenta que explícita ou tacitamente desvincula as mulheres do escopo da Sabedoria.
Palavras-chave:
Desejo; Escrita; Estrutura; Adulteração; Filosofia.
Abstract
In this article, my attempt is to relate the structuring of the love desire and the structuring of the philosophical desire for writing. Immediately, we can think that there is not exactly a relationship between these two ways of desiring, i.e., that the way in which we experience love is independent of the way in which we experience philosophical writing. But, if we stop to think about with authors such as Hélène Cixous, Michel Foucault, Judith Butler, Paul B. Preciado, Margareth Rago and Audre Lorde, we will realize that the phallic-patriarchal structuring of desire for love also configures the structuring of desire for Philosophy, determining what it is and how we should philosophize. The close articulation between violence linked to heteronormativity in the love field and in the philosophical field, allows us to understand that the universality and objectivity of Reason, which traditionally operates as the engine of philosophical action, is nothing more than a presumption, since the logos purified from feeling and imagination corresponds to the materiality of a certain type of body: in general, sovereign, white, heterosexual, healthy and seminal bodies. Based on this, in this essay, I seek to offer some historical-philosophical clues to understand why women were and are relegated to the margins of Philosophy, understood as a field of teaching, learning, research and production of knowledge, that is classically anchored in love of wisdom. My intention is, therefore, to understand to what extent the normative configuration of this love nourishes and is nourished by a violent dynamic that explicitly or tacitly detaches women from the scope of Wisdom.
Keywords
Desire; Writing; Structure; Adulteration; Philosophy.
Resumen
En este artículo, mi intento es relacionar la estructuración del deseo de amor y la estructuración del deseo filosófico de escribir. De inmediato, podemos pensar que no existe exactamente una relación entre estas dos formas de desear, es decir, que la forma en que experimentamos el amor es independiente de la forma en que experimentamos la escritura filosófica. Pero, si nos detenemos a pensar en autoras como Hélène Cixous, Michel Foucault, Judith Butler, Paul B. Preciado, Margareth Rago y Audre Lorde, nos daremos cuenta de que la estructuración fálico-patriarcal del deseo amoroso configura también la estructuración del deseo de Filosofía, determinando qué es y cómo debemos filosofar. La estrecha articulación entre la violencia ligada a la heteronormatividad en el campo amoroso y en el campo filosófico, permite comprender que la universalidad y objetividad de la Razón, que tradicionalmente opera como motor de la acción filosófica, no es más que una presunción, ya que el logos purificado de sentimiento y de imaginación corresponde a la materialidad de un determinado tipo de cuerpo: en general, cuerpos soberanos, blancos, heterosexuales, sanos y seminales. Con base en esto, en este ensayo busco ofrecer algunas pistas histórico-filosóficas para comprender por qué las mujeres estuvieron y están relegadas a los márgenes de la Filosofía, entendida como un campo de enseñanza, aprendizaje, investigación y producción de conocimiento que está anclado clásicamente en el amor de la sabiduría. Mi intención es, por tanto, comprender en qué medida la configuración normativa de este amor se nutre y es nutrida de una dinámica violenta que explícita o tácitamente separa a las mujeres del ámbito de la Sabiduría.
Palabras clave
Deseo; Escrita; Estructura; Adulteración; Filosofía.
Aviso
O texto a seguir possui um tom provocativo e é baseado em fatos, os quais abarcam tanto experiências próprias quanto experiências de colegas que também se relacionam com a Filosofia.
Além disso, vocês perceberão que, no presente ensaio, coloco em prática o ato de filosofar com mulheres. O tecido de retalhos, no qual costuro reflexões sobre a escrita filosófica, constitui-se prioritariamente por pensadoras. Também faço menção a pensadores que são de extrema importância para os feminismos e, em particular, para minha trajetória acadêmica. Entretanto, faz-se importante ressaltar que talvez essa tenha sido a primeira vez que conscientemente desejei escrever, sobretudo, na companhia de grandes pensadoras.
Entre tramas
Neste ensaio, minha tentativa é a de relacionar a estruturação do desejo amoroso e a estruturação do desejo filosófico por escrita. O objetivo é, portanto, o de mostrar que a estruturação fálico-patriarcal do desejo amoroso também configura a estruturação do desejo pela Filosofia, de modo a determinar o que é e como devemos filosofar. A estreita articulação entre a violência atrelada à heteronormatividade no campo amoroso e no campo filosófico, permite-nos compreender que a universalidade e objetividade da Razão, que tradicionalmente opera como motor do fazer filosófico, não passa de uma presunção, já que o logos depurado de sentimento e imaginação corresponde à materialidade de um certo tipo de corpo: em geral, corpos soberanos, brancos, heterossexuais, saudáveis e seminais. Com base nisso, busco oferecer algumas pistas histórico-filosóficas para entendermos por que as mulheres foram e são relegadas às margens da Filosofia. Meu intento é, portanto, o de entender em que medida a configuração normativa desse amor nutre e é nutrida por uma dinâmica violenta que explícita ou tacitamente desvincula as mulheres do escopo de certa modulação da Sabedoria.
Para tanto, divido o presente texto em quatro tramas, cujos títulos concisos antecipam as problemáticas que comumente enfrentamos quando nos relacionamos com a Filosofia.
Na trama 1, Amar e escrever, questiono, a partir do entrecruzamento trans-histórico entre a Antiguidade e a Contemporaneidade, em que medida a Filosofia, tradicionalmente entendida como amor à sabedoria, paulatinamente se consolidou como um vínculo erótico exclusivamente masculino. Em contrapartida a essa tradição erótica, a partir de Hélène Cixous e Margareth Rago, proponho a prática da filosofia em defesa de Eva, a qual se atrela ao desejo medúsico por escrita.
Na trama 2, A prática filosófico-poética da liberdade, penso sob a luz do embaralhamento entre os campos da filosofia e da literatura na tentativa de indicar a potência criativa da crítica e, por outro lado, a potência crítica da criação poético-conceitual. Com base na inversão operada por Audre Lorde no que se refere à postulação cartesiana do sujeito substância, expressa na fórmula “Penso, logo existo”, concebo a adulteração filosófica como um modo de se praticar a filosofia a partir da postulação feminista “Sinto, logo posso ser livre” (Lorde, 2019, p. 48).
Na trama 3, Adulterar e ressentir, com base em Judith Butler e em seu feminismo psicanaliticamente informado, indico se e em que medida o procedimento filosófico-poético da adulteração, incitado pelo desejo monstruoso pela escrita filosófica, atrela-se ao ressentimento, cujo alimento afetivo corresponde tanto ao amor quanto ao ódio.
Finalmente, na trama 4, A ambivalência do desejo filosófico por escrita, busco problematizar a ambivalência afetiva da adulteração filosófico-poética de maneira a apontar a força transformadora dos usos (críticos) da raiva e do amor no que se refere à infiltração da redoma de vidro da Filosofia.
A atual pesquisa acerca do desejo filosófico por escrita está longe de oferecer uma solução à crise do relacionamento entre as mulheres e a Filosofia. Nesse sentido, meu intento é mais o de mapear a emergência de tal crise do que propriamente o de buscar por uma solução aos problemas que parecem estruturar essa relação. Com efeito, o máximo que posso oferecer é a indicação de uma alternativa que talvez nos permita (e que tem me permitido) transvalorar a vinculação das mulheres com a Filosofia. Por meio da proposta da adulteração filosófico-poética, vislumbro, pois, uma alternativa ao filosofar. Deveras, seria demasiado presunçoso de minha parte tentar propor, a partir da técnica da adulteração, uma solução definitiva à crise que historicamente nos acomete, até porque lidamos diferentemente com esse relacionamento que nos atravessa e nos constitui, de modo que nem sempre fazemos uso das mesmas ferramentas para mitigarmos ou nos desvencilharmos das violências macro e micropolíticas perpetradas no âmbito da Filosofia, entendida como um campo de ensino, de aprendizagem, de pesquisa e de produção de conhecimento, que está classicamente ancorado no amor à sabedoria.
Amar e escrever
De imediato, podemos pensar que não há propriamente uma relação entre a forma pela qual experenciamos o amor e a forma pela qual experenciamos a escrita filosófica ou a escrita de filosofia. Mas se pararmos para pensar com Cixous (2022, p. 41) que as mulheres foram afastadas da escrita “tão violentamente quanto o foram de seus corpos; pelas mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo objetivo mortal”, talvez possamos começar a vislumbrar a possível articulação entre a matriz que estrutura o desejo amoroso e aquela que estrutura o desejo pela escrita, o qual é constituinte do fazer filosófico. Compartilho essa inquietação com vocês porque me sinto cada vez mais apartada da escrita puramente analítica, bastante comum à Filosofia2. Essa escrita racionalista e racionalizante - que visa afastar de seu escopo o corpo que escreve, fazendo de conta que esse corpo não faz parte do escrever ou que ele o faz, mas de forma depurada, isto é, sem sentimento e imaginação - essa escrita, nunca me serviu. Nunca fui capaz de corresponder à neutralidade e à objetividade esperadas pela racionalidade que opera na Filosofia e imagino que poucas de nós, ou talvez nenhuma de nós, consigamos pensar e escrever de tal modo, até porque nós não ocupamos o lugar do Sujeito Universal3. A presunção da universalidade e, com ela, da objetividade e da neutralidade não passa efetivamente de uma presunção que corresponde à realidade material de certo tipo de corpo, ou como nos explica Paul B. Preciado (2020, p. 132), “de um corpo soberano, branco, heterossexual, saudável, seminal. Um corpo estratificado, pleno de órgãos e de capital, cujas ações são cronometradas [...]”.4
Ora, não é justamente esse tipo de corpo que quase sempre é amado pelo e no jogo erótico da Filosofia? O amor, constitutivo da Filosofia, entendida como amor à Sabedoria5, possui uma dimensão erótica, como nos mostra Michel Foucault em suas História(s) da Sexualidade - e, mais precisamente, no último capítulo do segundo volume da História da Sexualidade: o uso dos prazeres, intitulado “O amor verdadeiro”. Nesse capítulo, Foucault (2012, p. 307) nos explica que o Éros filosófico correspondia a um amor masculino, “a esse amor pelos rapazes jovens e pelos adolescentes”. De modo geral, isso significa que a relação com a verdade era mediada pelo vínculo erótico entre os homens, os quais não necessariamente se furtavam do uso dos prazeres entretido por tal relação significativa; diferentemente, eles o assimilavam com temperança e controle reflexivo, já que “a erótica socrática tal como Platão a faz aparecer [...] tenta determinar por qual movimento próprio, por qual esforço e qual trabalho sobre si mesmo o Eros do amante poderá resgatar e estabelecer para sempre sua relação com o verdadeiro” (Foucault, 2012, p. 306), relação que só pode ser viabilizada por um vínculo filosófico masculino.
Se partirmos do referido diagnóstico foucaultiano acerca do verdadeiro amor na Antiguidade e caminharmos na direção de sua recepção feminista, somos capazes de perceber que, em certa medida, a dimensão erótica da Filosofia continua a alimentar e a ser alimentada pela estrutura do amor entre rapazes, cujos corpos são, em geral, como descreve Preciado (2020, p.132), soberanos, brancos, heterossexuais, saudáveis, seminais. Hoje, sob a estruturação fálico-patriarcal, a maioria das relações significativas continuam a ser entretidas por e entre homens, pois a homossocialização masculina é constitutiva da matriz heterossexual do desejo amoroso e talvez o seja da matriz heterossexual do desejo filosófico pela Sabedoria. Como nos mostra Butler (2002, p. 52) a partir de Luce Irigaray, hoje:
[...] as relações entre clãs patrilineares são baseadas em um desejo homossocial (o que Irigaray chama de “homo-sexualidade”), numa sexualidade recalcada e consequentemente desacreditada, numa relação entre homens que, em última instância, concerne aos laços entre homens, mas se dá por intermédio da troca e da distribuição heterossexual das mulheres. Numa passagem que revela o inconsciente homoerótico da economia falocêntrica.
Talvez seja possível afirmar que hoje o desejo filosófico, o qual nos incita ao pensamento e à escrita, revele “o inconsciente homoerótico da economia falocêntrica” (Butler, 2002, p. 52), o qual possivelmente remonta às bases socrático-platônicas da Filosofia, experenciada como amor verdadeiro no âmbito de um elo homoerótico não inconsciente, mas conscientemente orientado por uma ética dos prazeres e seus usos, pois, como nos mostra Foucault (2012, p. 308), “é na reflexão sobre o amor pelos rapazes que se vê a formulação do princípio [ético] de uma ‘abstinência indefinida’; o ideal de uma renúncia, cujo modelo Sócrates fornece com sua resistência sem falhas à tentação; e o tema de que essa renúncia detém, por si mesma, um alto valor”. Trata-se, então, de questionar, a partir do entrecruzamento trans-histórico6 entre Antiguidade e Contemporaneidade, em que medida o tema da abstinência indefinida de tipo temperante, que transmuta na direção histórica do tema da renúncia cristã, não teria hodiernamente se transformado em uma sexualidade recalcada. Não sou capaz de responder com o devido rigor histórico-filosófico à referida pergunta, sugerida por Foucault e sua recepção feminista. Contudo, gostaria de mantê-la em mente na intenção de tentar oferecer algumas pistas sobre a relação entre a estruturação do desejo amoroso e a estruturação do desejo filosófico por escrita.
Ademais, vale dizer que a partir de Foucault e de sua recepção feminista, também somos capazes de perceber que o amor à filosofia não repousa única e exclusivamente nesse jogo erótico masculino e masculinizante. Temos, portanto, uma alternativa? Sim, temos uma alternativa. Para fazermos filosofia não precisamos simular a universalidade do Humano de bem7. Existem outras maneiras de amar a(s) sabedoria(s), outros corpos que a sustentam e que despertam o desejo amoroso do si em relação aos outros, assim como o desejo do si pelo pensar e pelo escrever filosóficos. Façamos, pois, filosofia em defesa de Eva. Em seu artigo, “Foucault em defesa de Eva”, no qual me inspiro para pensar em uma filosofia em defesa de Eva, Rago (2019, p. 181-182) nos explica que:
Na pastoral cristã, as mulheres são continuamente associadas ao pecado e à carne, vistas como perigos públicos e citadas como perdulárias, frívolas, sensuais e pecadoras, desde Eva, responsável pela queda da humanidade; demandam, portanto, maior controle e vigilância pelos homens. Já a serpente, elevada à condição de deusa no Egito antigo, é ligada ao sexo, transformada em metáfora do falo, símbolo da perversão, da maldade e da traição8.
Parece que essas caracterizações morais e moralizantes das mulheres habitam, de alguma forma, um certo modo de se fazer Filosofia, um modo que talvez ainda esteja muito atado à codificação cristã. Não sou capaz de desenvolver com mais detalhes essa impressão ou suposição metafilosófica que, à la Nietzsche, assimila a tradição filosófica ao platonismo e ao cristianismo9. Entretanto, parece-me possível afirmar que defender Eva no caso da filosofia, ou antes de Eva, Medusa - como contraponto ao Eros alado, que trans-historicamente privilegiou Adão e não Lilith -, é defender outras formas de amar e, assim sendo, de desejar o fazer filosófico que compreende, evidentemente, o ato de pensar e o ato de escrever10. Precisamos re-erotizar nossa relação com a filosofia, mas essa re-erotização não se refere ao Eros que sucumbiu à presunção da Razão Universal. Não se trata disso. Trata-se, pois, de uma forma de amar, de pensar e de escrever que escapa da “grande mão parental-conjugal-falogocêntrica”, como nos mostra Cixous (2022, p. 43), ou ainda “do estéril jogo de palavras que, tão frequentemente e de modo distorcido, os patriarcas brancos chamam de poesia - a fim de disfarçar um desejo desesperado de imaginação sem discernimento” e de discernimento sem imaginação, como se nossa capacidade de pensar, sentir e imaginar não estivessem e não fossem co-implicadas, para nos remetermos a Lorde (2019, p.46).
Quando nos desprendemos da grande mão paterno-falogocêntrica, que tipo de amor podemos vivenciar? E de que modo o nosso desejo pela sabedoria, que se manifesta como o desejo que incita o ato de pensar e de escrever, concretiza-se? Talvez possamos dizer que, nesses casos, nos casos em que adentramos o campo filosófico em vista de Eva/Medusa/Lilith, a filosofia pode vir a ser praticada não como um humanismo demasiado antropocêntrico, mas quiçá como terrafilia que corresponde, segundo Preciado (2020, p.116), a um estado de paixão pelo mundo, pelo planeta: “estou apaixonado pelo planeta, a espessura da relva me excita, nada me comove mais profundamente do que o delicado movimento de uma lagarta subindo pela casca de uma árvore”.
Tendo todo esse arsenal feminista em mente, vocês devem estar se perguntando: mas, a experiência do estado de paixão pelo mundo, a experiência da terrafilia que se articula à re-erotização de tipo medúsica do filosofar, garante-nos a prática de uma escrita mais livre no que se refere à analítica paterno-falogocêntrica da Razão?
Parece-me que sim. E me parece que a prática de tal liberdade está vinculada à afirmação da potência poética que emerge nas/das margens e não necessariamente à reivindicação da universalidade, que mantém a Filosofia em uma espécie de redoma, protegida em relação à infiltração da(s) e pela(s) diferença(s).
E vocês ainda devem estar se perguntando: mas, se assim for, não corremos o risco de romantizar a ocupação das margens? O objetivo não seria abandonar as margens para ocupar o centro racional e racionalizante da Filosofia, para que nós também possamos ser abarcadas por essa redoma?
De acordo com o arsenal feminista que mobilizo aqui, uma solução como essa seria simplista demais, adequada demais, liberal demais.11 O objetivo parece ser antes o de adulterar os valores atribuídos às margens e ao centro, manifestando, por um lado, a potencialidade criativa das margens, capazes de rachar a redoma e, por outro lado, a idiossincrasia anacrônica do centro de preservação da redoma, comumente habitado pelos filósofos-múmia, os quais estão muito presos ao passado e, portanto, são ainda bastante avessos ao vir-a-ser12.
A prática filosófico-poética da liberdade
Pensar, escrever e agir em nome de Eva/Medusa/Lilith é também pensar, escrever e agir em nome da nossa própria defesa, da autodefesa das mulheres que habitam um ambiente inóspito, no qual o amor como terrafilia é, quase sempre, descredibilizado, no qual nossas potências sentimentais ou imaginativas são, quase sempre, desvalorizadas e, se possível, excluídas da redoma de vidro construída para acolher os patriarcas brancos que dizem “Penso, logo existo” (Lorde, 2019, p. 48). Como Lorde, não só penso para existir, mas também sinto e quando sinto, sei que posso ser livre. Quando sinto, sei que posso exercer minha liberdade, a qual não tem nada a ver com o estado puro da Razão. Diferentemente, essa liberdade que experienciamos na afirmação de nossa ancestralidade infernal ou decaída é uma prática inesgotável, “prática de uma riqueza inventiva extraordinária, [...] [que] se prolonga ou é acompanhada de uma produção de formas, de uma verdadeira atividade estética, cada momento de gozo inscrevendo uma visão sonora, uma composição, algo belo” (Cixous, 2022, p. 43).
Até aqui, sabemos que, de uma forma ou de outra, as mulheres são vistas, entendidas e compreendidas como uma ameaça à Filosofia. As mulheres são vistas, entendidas e compreendidas como o prelúdio da decadência da Filosofia: assim como Eva fora responsável pela queda, pela concupiscência da carne, as filósofas são responsáveis pela queda da Razão, pela concupiscência do corpo que pensa, fala e escreve em nome da presunção de objetividade e neutralidade universais.
Até aqui, também sabemos que a prática de nossa liberdade muito provavelmente não nos garantirá passabilidade Filosófica.
É comum sentirmos vergonha por nossa falta de passabilidade Filosófica. É comum sentirmos medo, pois a afirmação de nossa liberdade poética pode nos manter do lado de fora das instituições filosóficas; não queremos nos manter do lado de fora; queremos, antes, infiltrar a redoma de vidro, trazendo as margens em direção ao centro na intenção de que o fora extrapole os limites do dentro e de que o dentro se adultere em nome das diferenças que vagam nos foras daqui. Mas, esse nosso desejo terrafílico talvez seja muito utópico e o fato é que não podemos simplesmente esperar por uma mudança radical, que destruiria a redoma filosófico-patriarcal em nome de um ambiente menos inóspito ou não-inóspito. Todas nós temos necessidades materiais, precisamos - e isto não é novidade - de recursos materiais. Como nos explica Judith Butler (2020, p.17): “o tratamento igualitário [das diferenças] só é possível em uma organização social de vida em que recursos materiais, distribuição de alimentos, moradia, trabalho e infraestrutura tentem alcançar condições iguais de manutenção [dessas] vida[s]” diversas.
Sei que minha constatação pode soar muito dramática, mas infelizmente o diagnóstico que lhes apresento não é nada exagerado13. Ainda somos aterrorizantes para aqueles que resguardam as redomas de vidro do patriarcado. Talvez seja por isso que hoje, em 2024, continuo a me identificar tão fortemente às perguntas levantadas por Cixous em 1975, perguntas que parecem problematizar o meu lugar e o nosso lugar mediante o círculo antropológico que continua a proteger a Filosofia14. Cixous (2022, p. 43-44) se pergunta e nos pergunta:
Qual é a mulher efervescente e infinita que, imersa como ela estava na sua ingenuidade, mantida no obscurantismo e no menosprezo dela mesma pela grande mão parental-conjugal-falogocêntrica, não sentiu vergonha de sua potência? Qual é a mulher que, surpresa e horrorizada pela balbúrdia fantástica de suas pulsões (já que a fizeram acreditar que uma mulher bem equilibrada, normal, é de uma calma...divina), não se acusou de ser monstruosa? Qual é a mulher que, sentindo agitar em si uma estranha vontade (de cantar, de escrever, de proferir, enfim, de pôr para fora coisas novas), não pensou estar doente? Ora, sua doença vergonhosa é o fato dela resistir à morte, é o fato dela causar tanta dor de cabeça.
Toda essa história que acabo de lhes contar me faz lembrar de uma música bastante paradigmática da banda punk Os Replicantes. A música “Adúltera” compõe o álbum Histórias de Sexo e Violência, de 1987. Por meio dessa letra, somos capazes de entender que a doença vergonhosa da mulher monstruosa se deve à sua capacidade de adulterar o sistema normativo ao qual ela deveria estar fadada; sistema que a dispensa do amor à Sabedoria, da Filosofia, para recrutá-la, sob a ordem da mão parental-conjugal-falogocêntrica, à fidelidade materno-conjugal. De modo geral, com base na letra d’Os Replicantes, podemos imaginar que elas devem se encarregar da ordem da casa para que eles possam trabalhar, estudar, militar. Seja como for, o que me interessa nessa música, não é a imagem da nossa destinação sistêmica, mas sim o refrão que repete “Adúltera, Adúltera, Adúltera”, de modo a promover a inversão de tal estruturação de nossa subjetividade - estruturação aparentemente incontornável e por isso mesmo violenta15. Além disso, as cenas que correspondem à história que acabo de lhes contar e que ganha, doravante, uma trilha sonora, também me permite rememorar o filme Numéro Deux, de 1975, dirigido por Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville. No longa, somos capazes de acompanhar o cotidiano de uma esposa de um militante de esquerda que faz jus ao velho ditado: Por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Essa mulher, tão potentemente crítica quanto seu marido, tem dificuldade de assimilar a força não-violenta da adulteração. No filme, tal dificuldade é manifestada através de sua constante constipação. Constipada e despontencializada ela não sai às ruas como seu vigoroso marido. Permanece fechada, isolada, atada à administração de sua casa, cuja demanda de trabalho nos remonta àquele de um sistema fabril - a diferença é que o trabalho da casa é entendido como doação, dedicação não sendo, jamais, digno de salário. Quando assistimos esse filme, a vontade que temos é a de envolver (antes que seja tarde demais) essa bela personagem no manto da adulteração filosófica para, assim, ativar e reativar nela a terrafilia, experiência passional de um desejo de tipo monstruoso.
Mas, e o que significa adulterar?
Adulterar e ressentir
Somos acusadas de adulterar a Filosofia, os Filósofos e os seus textos Filosóficos puramente racionais. Somos adúlteras que não sabem filosofar, que inventam moda ao invés de prometer a imaculada fidelidade a tal ou tal autor, a tal ou tal escola filosófica. Até podemos adulterar, mas na grande maioria das vezes não estamos habilitadas a fazê-lo. São poucos os que podem fazê-lo com devido respaldo institucional. Normalmente, a nós, defensoras do fazer filosófico-poético é dito: “sim, você pode criar, mas fora daqui” - porque a criatividade conceitual não garante a tradição da Filosofia formal. E muitas vezes nos perguntamos, quando tácita e micropoliticamente somos jogadas para escanteio: será que deveríamos ter escolhido outra área de atuação que não a filosofia?
Não podemos negar que frequentemente acometidas pela vergonha e pelo medo de sermos imediatamente associadas à adulteração da Filosofia, matamos o desejo pela escrita filosófica de tipo monstruosa ou medúsica. Simulamos a escrita que eles escrevem e deixamos nossos textos filosófico-poéticos arquivados, esquecidos... recalcamos esse desejo de tipo monstruoso a ponto de naturalizarmos a sua falta. Talvez seja por isso que algumas mulheres escrevem como se fossem eles, como se fossem o que eles têm. Elas precisam simular que têm o Falo para escrever Filosofia, para escrever como eles16. Talvez este seja o motivo que faz com que a escrita se torne tão dolorosa para algumas de nós. Nesses casos, a escrita se torna um processo melancólico de tipo oblativo que mortifica nosso desejo monstruoso na medida em que força uma vontade pretensamente universal, vontade que nunca foi nossa e que jamais o será17.
Por medo quase não escrevi o presente texto, mas eu estaria sendo injusta com esse desejo que não consigo mais recalcar. Já é hora de assumir o fato de que gosto de adulterar a Filosofia e que há para mim uma interconexão entre amar, saber, filosofar e adulterar. Quando escrevo sobre alguém ou algo que amo, inevitavelmente adultero-o e, por meio de tal gesto criativo, adultero-me. Traio ao mesmo tempo o alter e o ego, o outro e o eu. A adulteração, da perspectiva do código, é uma atitude imoral para com a Filosofia; mas, da perspectiva da ética, tal como pensada por Foucault, por exemplo, a adulteração pode ser uma atitude estética, uma atitude capaz de estetizar a nossa coexistência nesse mundo18. Parece que a adulteração se torna ainda mais imoral quando traímos a Filosofia e seus grandes autores com autoras, com outras mulheres, vindas de diferentes lugares.
Ressentimento: muitos dirão que minha escrita é ressentida. Essa palavra está na moda e normalmente é usada por aqueles que temem perder seus privilégios. Vivemos no temor: enquanto sinto medo por escrever um texto como esse, que dá vazão ao meu desejo de tipo monstruoso pela filosofia, alguns temem que nosso modo adúltero de pensar e escrever adultere a configuração erótica da Filosofia, cuja manifestação contemporânea ainda repousa no colo da lei patriarcal. Vale lembrar, como dito já no início desse ensaio, que a lei patriarcal parece estruturar o desejo amoroso, mas também o desejo filosófico por escrita, ou ainda, o amor à Sabedoria. De acordo com Butler (2002, p. 53), no patriarcado “a relação de reciprocidade estabelecida entre os homens é a condição de uma relação radical de não reciprocidade entre homens e mulheres e, também, por assim dizer, de uma não relação entre mulheres”.
Se transpomos a configuração da lei patriarcal à Filosofia, parece-nos possível afirmar que para a Filosofia ou na Filosofia “garotos são a norma, garotas a variante; garotos são centrais, garotas periféricas; garotos são indivíduos, garotas são tipos. Garotos definem o grupo, a história do grupo, seus códigos e valores. Garotas existem somente em relação aos garotos” (Pollitt, 1991, p. 22). A Filosofia não está apartada da estrutura social, embora geralmente se pretenda dissonante do senso comum. As bases curriculares da Filosofia19, as quais correspondem à grade de disciplinas, mas também à interação entre pesquisadores docentes e discentes que compõem as instituições, muitas vezes repercutem o princípio da Smurfette, que acabo de descrever a vocês a partir das palavras de Katha Pollitt, para quem o referido princípio explica a atual organização do mainstream cultural. O princípio da Smurfette nada mais é, por sua vez, do que uma variante da lei patriarcal, conforme a qual “um grupo de amigos homens [é] enfatizado por uma única mulher, definida e estereotipada” (Pollitt, 1991, p. 22), capaz de atender às expectativas e demandas do falogocentrismo. Na dinâmica da Filosofia as relações recíprocas normalmente se constituem entre homens, os únicos capazes de vivenciar, desde Platão, o amor verdadeiro. As mulheres, ou melhor, a mulher nada mais é do que alguém que catalisa a relação de reciprocidade entre esses homens amantes e amados. Com ela, relações significativas não são entretidas: ou ela é uma mera ouvinte que nunca fala, porque teme expressar o que realmente pensa, pois o que pensa não tem valor entre os que a circundam, ou ela é uma refletora dos que pensam e escrevem Filosofia com a “grande mão parental-conjugal-falogocêntrica” (Cixous, 2022, p. 43) e, nesse caso, ela simplesmente repete o que eles falam, forcluindo o seu desejo de tipo monstruoso ou medúsico por escrita filosófica.
Pode parecer que o meu discurso, que a minha escrita está carregada de ressentimento, como indiquei outrora. O fato é que não sei dizer se toda a adúltera comete adultério por ressentimento. No meu caso, o adultério, aquele vivenciado a partir do momento em que comecei a desfrutar da literatura de mulheres, sucedeu-se por puro prazer. Com as mulheres, comecei a desbravar a imaginação e o sentimento, de modo a me desvincular dos limites da Razão Universal. Na verdade - confesso -, antes de me encontrar, naquele ponto que está para além dos limites da Razão, com mulheres, eu já havia me encontrado com alguns homens, mas com aqueles homens-exceção que, como nos diz Cixous (2022, p. 50), são “capazes de amar o amor; de amar, assim, os outros e de os querer, de imaginar a mulher que resistiria ao esmagamento e se constituiria em sujeito deslumbrante, igual e, portanto, ‘impossível’, intolerável dentro do quadro real: essa mulher, o poeta só o pôde desejar rompendo os códigos que a negam”.
É nesse ponto de encontro, para além dos limites da Razão Universal, que somos capazes, como poetas-filósofas ou como filósofas-poetas, de praticar a liberdade do pensar e do escrever, de um pensar e de um escrever que são alimentados pela reflexividade da imaginação e do sentimento, “porque a poesia não é mais do que tirar força do inconsciente, e o inconsciente - [...] território sem limites - é o lugar no qual sobrevivem os recalcados: as mulheres ou, como diria Hoffman, as fadas” (Cixous, 2022, p. 51).
Então, como disse, comecei a adulterar a Filosofia por puro prazer, pelo prazer que está retido em meu inconsciente, junto às fadas e às bruxas, adúlteras do mito e da civilização. Paulatinamente, percebi que contra elas, eles “cometeram o maior dos crimes: eles as levaram, insidiosamente, violentamente, a odiarem as mulheres, a serem suas próprias inimigas, a mobilizarem sua imensa potência contra elas mesmas, a serem as executoras da obra viril deles” (Cixous, 2022, p. 47). Mediante tal constatação, que torna manifesta a violência contra as mulheres, violência que alcança, inclusive, níveis epistemológicos e institucionais, surgiu em meu âmago o ressentimento. Foi assim que comecei a adulterar a Filosofia não mais por puro prazer, mas também por ressentimento e foi assim que meu amor ao(s) saber(es) também se mesclou à raiva em relação à “história da escrita que se confunde com a história da razão, da qual ela é ao mesmo tempo o efeito, o suporte, e um dos álibis privilegiados [...] [coincidindo] com a tradição falocêntrica” (Cixous, 2022, p. 49). Nesse sentido, posso afirmar com honestidade que minha escrita também está carregada de ressentimento, embora se apoie fortemente no amor, em um amor terrafílico, como afirma Preciado, ou em um amor monstruoso, de tipo medúsico, que busca me conectar àquelas que foram psíquica e socialmente recalcadas pela estrutura falocêntrica e antropocêntrica dos patriarcas brancos.
E agora? O que faço com essa ambivalência?
A ambivalência do desejo filosófico por escrita
O desejo filosófico por escrita aqui em operação é ambivalente, já que nutrido por amor, mas também por raiva. Há nesse amor pelo(s) saber(es) uma força destrutiva atrelada ao ressentimento, uma força que me move na direção da desidentificação em relação à Filosofia e da identificação em relação às formas “irrealista(s)” de filosofias outras que não descredibilizam a imaginação e a sensação. Assim sendo, talvez seja possível afirmar, através de Butler (2020, p. 171), que o desejo filosófico por escrita, na medida em que articulado na prática poética da liberdade, vincula-se à experiência ético-política da melancolia criativa ou mania, que introduz o “desejo de existir e persistir, desejo que não parece se basear em uma realidade perceptível e que não tem bons fundamentos para assim ser em um regime político específico”. O desejo monstruoso pela escrita filosófica parece resguardar essa característica típica da ambivalência maníaca, experiência que depende da paradoxal coimplicação entre polos aparentemente distintos: por um lado, os polos do amor e da raiva; por outro lado, os polos da desidentificação em relação à realidade perceptível, que diz respeito ao nosso status quo, e da identificação em relação às imagens ainda difusas de outras maneiras de se pensar e de se escrever filosofias, maneiras ou manias cuja indefinição repousa na operação tecnológica do contrarrealismo poético. A partir de Butler, parece-nos possível dizer que a proposição do contrarrealismo se vincula à força da imaginação e preconiza a solidariedade terrafílica, a qual abarca o amor por outros humanos e por outros mais-que-humanos. Com efeito, afirma Butler (2020, p. 10-11), essa proposta filosófica pode parecer irrealista, mas o fato é que ela parece irrealista, melancolicamente irrealista, porque
requer uma crítica do que conta como realidade, e afirma o poder e a necessidade de um contrarrealismo em tempos como esses. Talvez [essa proposta] requeira um certo distanciamento em relação à realidade como correntemente constituída, deixando aberta as possibilidades que pertencem a um novo imaginário político.
Por amar saber e por entender e, sobretudo, imaginar que o(s) saber(es) pode(m) ser manejado(s) por outras mãos que não a grande mão fálico-patriarcal, odeio o Saber que permanece fixo, imóvel, intacto, inalterado, o Saber cuja objetividade analítica se fundamenta na universalidade do formalismo filosófico. Aliás, vale dizer, a partir de Lorde (2019, p.155), que o sentimento que habita o ressentimento não é sem direção: trata-se, pois, da “raiva da exclusão, do privilégio que não é questionado, das distorções raciais, do silêncio, dos maus-tratos, dos estereótipos, da postura defensiva, do mau julgamento, da traição [não adúltera] e da cooptação”. Com base nisso, posso afirmar que o amor que sinto pelo filosofar não é puro e nem poderia sê-lo, tendo em vista que o corpo que aqui filosofa - sem medo de dizer que filosofa - é de um sujeito material, marcado por diferentes recortes de saberes e poderes. Com base nisso, também posso afirmar que há uma estranha relação entre amar, ressentir, adulterar e reparar. O objeto do ressentimento não corresponde apenas aos outros, mas também ao si. Quando, por raiva, desidentificamo-nos de nosso status quo, também nos desidentificamos daquilo que éramos nesse contexto. Dito de outro modo, por meio do contrarrealismo, adulteramos não apenas os outros e o quadro de referência que com eles constituímos, mas também a nós mesmas como aquelas personagens falocêntricas, patriarcais e patriarcalistas que outrora contribuíram para a solidificação do pedestal do privilégio humano, demasiadamente humano. No caso da melancolia criativa ou mania, a hostilidade atrelada à raiva que compõe o ressentimento não se volta apenas ao exterior ou à exterioridade, mas também abarca o eu que constituiu e constitui uma estrutura interacional violenta ou excludente (Butler, 2020, p. 171). A adulteração da exterioridade estrutural que nos abarca depende da adulteração daquilo que somos nessa estrutura.
Ao nos ressentirmos com aquela que fomos, passamos a amar aquela que vislumbramos ser em defesa de uma realidade ainda irreal, de uma realidade não violenta, não falocêntrica, não patriarcal. Ao nos ressentirmos com aquela que fomos na escatologia excludente do erotismo filosófico, que quase nunca nos levou a sério, passamos a amar aquela que imaginamos ser em defesa de Eva/Medusa/Lilith. Parece ser a partir desse jogo complexo e ambivalente de identificação e desidentificação que a adulteração, que mescla o prazer do amor à raiva do ressentimento, manifesta-se como reparação, tanto do si em relação a si mesmo, quanto do si em relação aos outros. Como nos explica Butler (2020, p. 87-88, p. 90-91), a partir de Melanie Klein:
[...] o desejo de fazer as pessoas felizes está associado a um “forte senso de responsabilidade e preocupação” e “a solidariedade [simpathy] genuína com outras pessoas” envolve “nos colocarmos no lugar das outras pessoas”. Para isso, a “identificação” nos aproxima ao máximo da possibilidade de altruísmo [...] [Klein] deixa claro que, embora naquele momento [de solidariedade] dirija sua atenção ao amor, a agressão é copresente, que tanto a agressão como o ódio podem ser produtivos, e que não deve causar surpresa que as pessoas mais capazes de amar também podem e vão manifestar esses outros sentimentos. [...] Assim, uma discussão que começa com a afirmação de que a solidariedade genuína é possível graças a modos de identificação evolui para uma exposição de como cada uma de nós, ao tratar bem os outros e tentar lhes garantir felicidade, representa nossos ressentimentos em relação às pessoas que não nos amaram [...]. [...] elaboramos perdas e ressentimentos, ou até mesmo expiamos culpas, quando nos envolvemos no que Klein chama de “solidariedade genuína”. [...] Mesmo quando sou solidária com o outro, talvez pela reparação que esse outro nunca recebeu por uma perda ou uma privação, parece que estou, ao mesmo tempo, reparando o que nunca tive ou o cuidado que eu deveria ter recebido.
Assim, a adulteração filosófica se torna uma reivindicação por reparação, reivindicação nutrida pela mescla pouco inocente entre o amor e o ódio. Sei que tudo isso pode soar clichê. Efetivamente, talvez o seja; mas, para ser honesta, não estou interessada nesse tipo de desvalorização dos argumentos que lhes trago nesse texto. Interessa-me entender como nós somos capazes de adulterar a estrutura erótica da Filosofia por meio de uma mistura explosiva entre amor, ódio, reflexividade crítica e imaginação, já que esses são os elementos do desejo monstruoso por escrita filosófica. Para nosso coquetel molotov literário, que se alimenta da força do contrarrealismo filosófico, all we need is love (and hate), de modo que a
tarefa parece ser a de encontrar uma maneira de viver e agir com a ambivalência - desde que a ambivalência não seja entendida como um impasse, mas como uma partição interna que clama por uma orientação e prática éticas. Pois apenas a prática ética que conhece o seu próprio potencial destrutivo terá chance de resistir a ele (Butler, 2020, p. 172).
No nosso caso, resistimos por meio da re-erotização do desejo filosófico por escrita: somente assim conseguimos existir e persistir nesse terreno da tradição desde sempre expropriado de nossas mãos.
Arremate
Para arrematar a presente reflexão, alimentada pelo desejo monstruoso por escrita filosófica, gostaria de rememorar os nós atados até aqui. Passamos por quatro tramas que nos permitiram problematizar a relação entre a estruturação do desejo amoroso e a estruturação do desejo filosófico por escrita para, em seguida, propor o vislumbre prático da adulteração poético-filosófica, a qual foi objeto e método de nosso pensamento e escrita.
O primeiro nó conceitual que tentamos elaborar teve como intuito mostrar que a exercitação da filosofia em defesa de Eva depende da re-erotização do nosso vínculo com esse campo do(s) saber(es) através da aliança terrafílica com Medusa e não mais com o Eros alado, que trans-historicamente privilegiou Adão e não Eva. Tal tecitura foi artesanalmente elaborada por meio da articulação entre os fios condutores de diferentes intelectuais, como é o caso de Foucault, Preciado, Halberstam, Cixous, Rago, Butler e Lorde.
Ainda no ziguezague entre as linhas (de fuga) abertas por tais intelectuais, busquei mostrar de que modo a adulteração filosófico-poética pode ser colocada em operação. Além disso, sinalizei algumas das dificuldades institucionais que comumente enfrentamos ao assumirmos tal postura ético-política e epistêmico-metodológica frente à redoma de vidro da Filosofia, cuja institucionalização parece se amparar no conservadorismo fálico-patriarcal.
Em seguida, caracterizei a relação entre a adulteração e o ressentimento, de modo a apontar as complexas interações entre o amor, o ódio e o prazer no que se refere à prática da adulteração filosófico-poética. Para tanto, recorri às análises que Butler desenvolve acerca da concepção kleiniana do ressentimento e da solidariedade genuína.
Por fim, tentei caracterizar em que medida a mistura explosiva entre amor, ódio, reflexividade crítica e imaginação dão ensejo a um cenário contrarrealista em que a redoma de vidro da Filosofia paulatinamente racha... racha... racha através da infiltração de subjetividades medúsicas que invadem o espaço governado pela mão paterno-conjugal-falogocêntrica sem, contudo, com ela pactuar.
Confesso que ainda não sou capaz de arrematar de uma vez por todas essa colcha de retalhos que acabo de lhes apresentar. Muitos fios continuam soltos e penso que não é o caso de camuflá-los ou cortá-los sem mais nem menos. Precisamos preservar as rebarbas das costuras que tentamos desenvolver. As rebarbas indicam que ainda há trabalho porvir.
Ao retomar cada um dos nós que tentei atar até aqui, percebo que ainda temos três grandes pontas soltas: a primeira corresponde à crise da identidade filosófica que manifesta a transição pela qual a filosofia vem passando em decorrência das rachaduras perpetradas na redoma de vidro de sua História soberana; a segunda concerne à necessidade de pensarmos a teoria de currículo no campo da filosofia a partir dessas diferenças que infiltram o espaço do qual foram sub-repticiamente expropriadas; e a terceira diz respeito à compreensão das inflexões epistêmico-metodológicas da relação ético-política entre o ressentimento, a reparação e a solidariedade relativamente à transformação dos sujeitos que filosofam e dos contextos nos quais filosofam. É justamente aqui, nos entremeios das rebarbas, que me dou conta da importância de dobrar essa colcha de retalhos sobre ela mesma. Ao dobrá-la, deparo-me com uma questão que coloca em xeque o pressuposto sobre o qual elaborei minha costura.
Comecei a costurar a partir da seguinte pressuposição: a Razão Universal, assim como mobilizada pela mão parental-conjugal-falogocêntrica, pretende-se depurada de afeto e de imaginação, ou seja, a performance crítica da racionalidade concebida como universal se supõe neutra e objetiva, embora seja bastante material - de uma materialidade soberana, branca, heterossexual, saudável, seminal. A presunção da universalidade comporta, então, a simulação da neutralidade e da objetividade.
Até aqui, minha colcha permanecera estendida.
Entretanto, ao começar a dobrar uma rebarba sobre a outra e ao dobrá-las sobre si mesmas, confrontei-me com a seguinte questão: mas será... será mesmo que a simulação da neutralidade e da objetividade são capazes de apaziguar a força dos afetos e a força da imaginação no que se refere às práticas filosóficas20 dos sujeitos afagados pela mão paterno-conjugal-patriarcal?
Percebo, com base em tal questão, que os elementos - amor, ódio e imaginação - que me movem na direção de uma reflexividade crítica impura também os movem na direção de uma crítica presunçosamente pura.
Parece, portanto, que não somos tão diferentes assim.
Mas será? Será mesmo que não o somos?
Pensando bem, concebo que o somos.
Ao contrário deles, admito a adulteração e não simulo a neutralidade e a objetividade. Admito que sou movida pelo amor, pelo ódio e pela imagem difusa da multiversidade21 que efetivamente se opõe à imagem que os move, ou seja, à imagem da unidade. A ilusão da homogeneidade configura a redoma de vidro da Filosofia e aqueles que a anseiam tentam nos convencer de que isso não é fetiche, mas antes Vontade universal de Verdade absoluta.
É, então, com base nessa nova trama que volto a costurar na intenção de reparar algumas pontas soltas para, desse modo, soltar outras.
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Como citar:
STEPHAN, Cassiana. O desejo filosófico por escrita: um problema de gênero. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 37, e202531297, 2025. DOI: https://doi.org/10.1590/2965-1557.037. e202531297
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Este estudo foi financiado pela FAPERJ - Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, Processo SEI E-26/200.030/2024.
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No decorrer do presente ensaio, para me referir à tradição da História da Filosofia utilizarei a palavra “Filosofia” com a primeira letra em maiúscula, ou seja, trata-se aqui da Grande Filosofia, tal que sustentada pela antiga fórmula do conhece-te a ti mesmo (gnôthi seautón), assim como nos explica Michel Foucault (2010). De modo geral, a Filosofia se contrapõe às filosofias historicamente consideradas menos importantes ou menos propriamente filosóficas em decorrência da prevalência da ética sobre a epistemologia e a metafísica. Na via de Foucault, podemos associar tais filosofias à cultura do cuidado de si (epiméleia heautôu), que não estaria vinculada à substancialização do sujeito e à absolutização/universalização da verdade, como acontece na tradição racionalista e racionalizante do conhecimento de si. A tradição histórico-filosófica do conhece-te a ti mesmo é representada pelas filosofias clássicas de Platão e Aristóteles, mas também pelas filosofias modernas de Descartes e Kant; ao passo que as filosofias outras, atreladas à cultura do cuidado de si, são representadas, de acordo com Foucault (2010, p.224), pelos estoicos, cínicos, epicuristas, mas também por Montaigne, “Stirner, Schopenhauer, Nietzsche, o dandismo, Baudelaire, a anarquia, o pensamento anarquista [...]”. Faz-se importante mencionar que Foucault não possui uma perspectiva unívoca em relação a Platão, Aristóteles, Descartes e Kant. Para Foucault, esses autores são paradoxais, na medida em que oscilam entre o conhecimento de si e o cuidado de si. Seja como for, o que Foucault nos permite perceber é que esses autores foram, em geral, recepcionados na trilha do conhecimento de si. Foi, então, mais precisamente esta recepção (platonismo, aristotelismo, cartesianismo, kantismo) que constituiu - e ainda constitui - a tradição da Filosofia (sobre o “paradoxo” do platonismo na história do pensamento, cf. Foucault, 2010, p.71-72; sobre Aristóteles, cf. Foucault, 2010, p. 16, p. 26, p. 129, p. 171-172; sobre Descartes, cf. Foucault, 2010, p. 263, p. 319; sobre Kant, cf. Foucault, 2010, p.27, Foucault, 2015, p. 33-80 e Foucault, 2001, nº 339). Ademais, o conceito “Filosofia”, tal que empregado em meu texto, pode ser associado àquilo que Foucault entende por “filosofia”, no que se refere ao contexto histórico do momento cartesiano, em oposição à “espiritualidade”, a qual podemos articular às filosofias outras (sobre a filosofia versus a espiritualidade no contexto do momento cartesiano, cf. Foucault, 2010, pp. 3-39; para uma discussão acerca do assunto, cf. também Stephan, 2022, pp. 127-251). Por fim, para pensarmos as filosofias outras em oposição à Filosofia, gostaria de lhes remeter à obra A arte queer do fracasso, de Jack Halberstam (2020). Em seu livro, Halberstam (2020, p. 22) empresta do sociólogo Stuart Hall o termo “baixa teoria” e, assim, propõe “uma baixa teoria ou um saber teórico que funcione em vários níveis de uma só vez, exatamente como um desses modos de transmissão que se diverte nos desvios, nas viradas e nas curvas por meio de conhecimento e confusão, e que busca não explicar, mas envolver. Portanto, o que é baixa teoria, aonde ela nos leva e por que deveríamos investir em algo que parece confirmar, em vez de incomodar, a formação binária que a posiciona como o outro para a alta teoria? A baixa teoria é um modo de pensar que extraí da famosa noção de Stuart Hall de que teoria não é um fim em si mesmo, mas ‘um desvio de caminho para uma outra coisa’”. Com base nisso, no presente artigo, também associo a Filosofia à alta teoria e as filosofias outras, oriundas do desvio atinente à adulteração filosófico-poética, à baixa teoria.
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Sobre o privilégio do sujeito universal, no contexto de um mundo patriarcal-colonial, faz-se interessante certificar o relato de Paul B. Preciado (2022, p. 40-41) acerca de sua transição.
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Reconhecemos, pois, a importância e influência de Donna Haraway e Rosi Braidotti para as críticas que Preciado direciona ao humanismo, cuja configuração é antropo-andro-cêntrica, mas também aos feminismos centrados no humanismo. Talvez possamos afirmar que, na via de Haraway e de Braidotti, Preciado desenvolve um feminismo pós-humano ou terrafílico, isto é, um feminismo que afirma a monstruosidade ou a inumanidade dos sujeitos desviantes sob a luz da centralidade planetária ou terrafílica e, portanto, à revelia da política humanista por reconhecimento (para compreender a importância de Haraway e Braidotti para os feminismos pós-humanistas, queers e transfeministas, cf. Haraway, 2009; Braidotti, 2019, 2022). Também não podemos deixar de mencionar que Judith Butler é uma grande interlocutora de Preciado, inclusive no que se refere à desmistificação da materialidade que subjaz à hegemonia pretensamente pura da Razão Universal (para uma análise da importância do corpo nas discussões filosófico-feministas, cf. Butler, 2019). Então, quando cito Preciado, situo-me no bojo de uma tradição feminista específica, a saber, a pós-estruturalista cujos tentáculos medúsicos são pós-humanos.
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A palavra “Sabedoria” com a primeira letra em maiúscula nos remete à “Filosofia”. Isso significa que se associamos, na via de Foucault, a Filosofia à tradição epistemológico-metafísica do conhecimento de si, a qual pode ser articulada à alta teoria como caracterizada por Halberstam, então podemos compreendê-la como o amor à Sabedoria. O conceito “Sabedoria” nos remete, portanto, ao caráter substancial do saber tal que atrelado à universalização e absolutização da verdade, que só pode ser apreendida através do exercício de uma única e mesma racionalidade (logos, res cogitans, Razão Universal). Diferentemente, se pensamos no contexto alternativo das filosofias - que podem ser associadas, sob uma perspectiva foucaultiana, à cultura do cuidado de si e à baixa teoria, como mobilizada por Halberstam -, então nos abrimos à complexa relação entre os saberes e os poderes, de maneira a colocar em questão “as estruturas de racionalidade que articulam os discursos verdadeiros e os mecanismos de assujeitamento que a eles estão ligados” (Foucault, 2015, p. 48). Nesse caso, exercemos a filosofia como amor à sabedoria sob o escopo da pluralidade atinente aos múltiplos jogos de saber-poder sempre em mutação. Mais precisamente, em nome do amor a esse tipo de sabedoria não substancial, conhecemos alguns dos jogos de saber-poder que nos circunstancializam e desenvolvemos uma atitude crítica em relação a eles. A crítica, entendida aqui como a “arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade refletida” (Foucault, 2015, p.39), permite-nos adulterar esses jogos de verdade que incidem sobre as nossas subjetividades por meio de técnicas governamentais visíveis e invisíveis, as quais não se reduzem ao poder do Estado e interferem tanto no âmbito de nossa vida psíquica quanto de nossa vida social. Muitas vezes a filosofia, sobretudo quando a pensamos como uma prática poética, torna-se o instrumento de tal adulteração - adulteração da qual desponta a baixa teoria e a possibilidade de não “sermos tão governad[a]s assim”, ao menos “não desse modo, não por isso, em nome de tais princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não dessa maneira, por isso, por eles [...]” (Foucault, 2015, p. 37).
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Para o conceito de “trans-historiedade” em Foucault, cf. Foucault, 2011, pp.155-167. Para uma análise acerca do valor trans-histórico das continuidades estabelecidas por Foucault entre a modernidade e a Antiguidade, cf. Lorenzini, 2014, pp.317-321.
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Para uma análise acerca da relação entre a racionalidade produtivista, típica do neoliberalismo, a heteronormatividade, atrelada ao desejo fálico, e o especismo no que se refere à amálgama que constitui o ideal normativo do Humano de Bem, cf. Stephan, 2022, p.100.
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Ainda sobre a serpente, há um detalhe a ser acrescentado. No famoso livro O martelo das feiticeiras, escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger (1991, p.122), diz-se que “o poder das bruxas é mais aparente nas serpentes do que em outros animais, porque foi através da serpente que o demônio tentou a mulher”.
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Sobre as bases platônico-cristãs da tradição filosófica, cf. Nietzsche, 2005, § 46, 61, 62, 191 e 202.
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Transpomos as figuras de Eva, Medusa e Lilith sob inspiração de Margareth Rago (2019) e seu Foucault em defesa de Eva, do riso da Medusa de Cixous (2022), no qual baseamos a metodologia da adulteração filosófico-poética, mas também dos sujeitos medúsicos de Marguerite Duras (Duras, 2010), cujos desejos se agitam em decorrência da estranheza perante a diferença dos outros com os quais se relacionam amorosamente, e da Lilith que, segundo Blanchot (2012), atrelada a Eva se manifesta como Medusa nas personagens femininas de Duras. De modo geral, o entrelaçamento entre Eva, Medusa e Lilith denota a singularidade das mulheres que desviam das normas às quais são sistematicamente enquadradas no tocante à experiência do desejo amoroso, à constituição psíquica e social de suas identidades de gênero e à prática de suas sexualidades. Eva, Medusa e Lilith representam a atipia das mulheres que adulteram o jogo valorativo de uma tradição patriarcal e falocêntrica. No presente ensaio, não chego a mencionar os sujeitos medúsicos de Duras e a Lilith de Blanchot, figura que lhe permite interpretar o aspecto ctônico do amor durassiano, em especial na obra La maladie de la mort. Então, para uma análise mais aprofundada da relação entre a figura mítica de Medusa, tal que recepcionada pela literatura contemporânea de Duras, e sua relação com a tradição judaico-cristã a partir de Lilith e Eva, cf. Blanchot, 2012, pp.50-93; para uma apropriação filosófica dos sujeitos medúsicos a partir de Duras, cf. Stephan, 2022, pp.307-381.
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Para uma reflexão crítica acerca das soluções simplistas das feministas liberais e neoliberais, ancoradas no humanismo cujos pressupostos são antropo-andro-falogocêntricos, cf. BRAIDOTTI, 2022, pp.25-53.
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12
Sobre o recrudescimento da estagnação da criatividade filosófica, cf. NIETZSCHE, 2006, p.21, §1. Sobre o anacronismo da norma, cf. BUTLER, 2005, p.4-5.
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13
Para uma análise detalhada da desigualdade de gênero nos contextos institucionais da Filosofia no Brasil, cf. Araújo, 2019, pp. 13-33.
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Daniel Verginelli Galantin (2021, p.39) nos explica a propósito do círculo antropológico em Michel Foucault o seguinte: “Por círculo antropológico podemos designar aquilo que pode ser considerado o cerne da experiência moderna da loucura. Devido ao conjunto articulado de fatores morais, institucionais e de saberes incipientes, a loucura não será mais considerada enquanto portadora de uma verdade de outro mundo, nem mais será puro erro, ilusão do não-ser, noite falsa diante do conhecimento claro do dia, ou alteridade a ser excluída do mundo humano. A loucura agora passará dessa estrutura binária a outra ternária, designada pelos termos homem-loucura-verdade. Ao invés de uma perda da relação com a verdade (ou uma relação inadequada), nessa nova estrutura histórica a loucura passará a dizer a verdade do homem, tornando-se um elemento de mediação do homem para consigo mesmo”. Essa nova estrutura histórica parece incidir fortemente sobre a subjetividade das mulheres, às quais a loucura foi imputada como o elemento de mediação da relação que estabelecem consigo mesmas. Na modernidade, as mulheres deixam de ser bruxas e, portanto, de carregar, sob o escopo da loucura, a verdade de outro mundo - no caso das bruxas, do submundo dos demônios - para se tornarem histéricas. E, como se trata da estruturação do círculo antropológico, a verdade da histeria lhes é atribuída por um outro, de modo que a sua “cura” também depende da Razão do outro: “A cura do louco está na razão do outro - sua própria razão sendo apenas a verdade da loucura” (Foucault, 2019, p. 534). A Razão que imputa a loucura às mulheres, que também se apresenta como a chave de sua “cura”, parece ser a mesma Razão que vige na tradição filosófica, de maneira a proteger a pretensa racionalidade do homem em relação à suposta loucura da mulher, loucura que a torna alheia a si mesma, já que, no contexto da modernidade, “o louco não é mais o insensato no espaço dividido [da desrazão] clássic[a]; ele é o alienado na forma moderna da doença. Nessa loucura, o [ser humano] não é mais considerado numa espécie de recuo absoluto em relação à verdade; ele é, aí, sua verdade e o contrário de sua verdade; é ele mesmo e outra coisa que não ele mesmo; é considerado na objetividade do verdadeiro, mas é verdadeira subjetividade; está mergulhado naquilo que é sua perdição, mas só entrega aquilo que quiser entregar; é inocente porque não é aquilo que é, e culpado por ser aquilo que não é” (Foucault, 2019, p. 541). Não entrarei nos detalhes da hipótese que pergunta pela transição entre a bruxaria e a loucura no que concerne aos processos de subjetivação das mulheres no decorrer da história. Meu objetivo é simplesmente o de indicar a alienação das mulheres em relação a si mesmas no contexto dos usos da Razão, tanto em seu contexto iátrico quanto filosófico. Com base nisso, talvez seja possível afirmar que, em certa medida, a mesma Razão que protege a Filosofia é aquela que aliena as mulheres do contexto da tradição filosófica.
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A letra “Adúltera”, da banda Os Replicantes (1987), censurada na época de seu lançamento pelos Departamentos de Censura de São Paulo e de Brasília por atentado à moral e aos bons costumes, diz o seguinte: “Você mulher solteira/Só pensa em se casar/ Ter um pênis só pra si/ Constituir um lar/ Adúltera, Adúltera, Adúltera/ De dia lava a louça/ De noite quer trepar/ Seu homem tá cansado de tanto trabalhar/ Adúltera, Adúltera, Adúltera”. Até hoje, por conta da censura, a versão à qual temos acesso mantém apenas o refrão.
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Conforme Judith Butler (2002, p. 56), no que se refere à matriz heterossexual do desejo, “a ordem do Simbólico cria inteligibilidade cultural através das posições mutuamente exclusivas do ‘ter’ o Falo (a posição do homem) e do ‘ser’ o Falo (a paradoxal posição da mulher)”. Essa que não tem o Falo precisa mascarar o fato de não o ter, mas ao mesmo tempo proteger a referida falta para que a sua necessidade de ser amada seja correspondida por aquele que tem o Falo - e que orienta o seu desejo ao objeto que representa o Falo justamente porque não o tem. Assim, “‘ser’ o Falo é sempre um ‘ser para’ um sujeito masculino que busca reafirmar e reforçar sua identidade através do reconhecimento daquele ‘ser para’. [...] A divisão e a troca entre o ‘ser’ e o ‘ter’ o Falo é estabelecida pelo Simbólico, a lei patriarcal” (Butler, 2002, p.58). É, pois, justamente essa estruturação da mascarada que abandonamos quando nos vinculamos à afirmação de nossos traços medúsicos: não precisamos e tampouco queremos ser o Falo, ou melhor, ser para um sujeito masculino. Ademais, de acordo com nossa perspectiva adúltera, desmascarada pela força do riso de Medusa, a dinâmica da mascarada parece operar do lado de lá, isto é, do lado da masculinidade que se mascara, ao menos no contexto filosófico, de neutralidade racional sob a chave da universalidade.
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A partir Butler podemos distinguir, no que se refere à constituição melancólica dos sujeitos, entre a melancolia criativa e a melancolia oblativa. Basicamente, no que concerne à identidade de gênero, a melancolia criativa corresponde ao processo de desidentificação entre o si e a instância normativa que rege a estruturação do desejo amoroso, de modo que dessa experiência desponta o desvio em relação à heteronormatividade. Já a melancolia oblativa corresponde ao processo de identificação entre o si e a instância normativa que rege a estruturação do desejo amoroso, de modo que essa experiência se atrela à estruturação da subjetividade heteronormativa. No contexto da melancolia criativa, o sujeito se desvencilha do ideal normativo para se abrir às diferentes possibilidades de vinculação para consigo e para com os outros. Em outras palavras, podemos afirmar que a melancolia criativa abarca e é abarcada pela estetização da existência, ou seja, a melancolia criativa comporta uma dimensão autopoética que incita e é incitada pela experiência de amores proibidos no contexto heteronormativo. Já a melancolia oblativa opera na direção da estruturação da subjetividade heteronormativa, a qual depende da mortificação de nossa potência criativa. Butler nos mostra que a melancolia criativa fora patologizada pelos discursos psicanalíticos e que a melancolia oblativa fora normalizada em virtude da vigência da heteronormatividade (sobre as melancolias, cf. Butler, 1997, pp.132-150; Butler, 2002, pp. 55-84; Butler, 2020, p. 167). Tendo essa diferenciação em mente, para o momento, interessa-nos, de modo geral, transpor a dinâmica das melancolias ao contexto do desejo filosófico por escrita para, desse modo, questionarmo-nos quando, como e por que mortificamos nossa potencialidade criativa (para uma interpretação acerca das melancolias no que diz respeito à constituição da identidade de gênero, cf. Stephan, 2020).
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Sobre a diferença entre a moral voltada à ética e a moral voltada ao código, cf. Foucault, 2012, pp. 33-44.
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De acordo com William Pinar (2008), a teoria de currículo é o estudo interdisciplinar da experiência de tornar-se sujeito junto com o outro do outro e não com o outro do mesmo. Mais precisamente, a teoria de currículo é uma conversa complicada, que envolve e é envolvida por uma rede multiaxial e aberta de/para as diferenças. Parece-me possível afirmar, portanto, que a compreensão de Pinar acerca do currículo coadunaria com o riso de Medusa, que nutre e é nutrido pela alteridade em sua radicalidade. A referida hipótese encontra sustentação nas reflexões de Thiago Ranniery (2017) acerca da importância de pensarmos a teoria de currículo a partir e em nome da socialidade queer, que busca promover e sustentar a multiversidade no contexto educacional. Com base nisso, é deveras manifesto que se faz urgente re-pensar as bases curriculares da Filosofia sob a perspectiva crítica da teoria de currículo, tal que inspirada em Pinar e referendada por Ranniery, por exemplo. Esse tipo de problematização das bases curriculares da Filosofia não tem por objetivo negar de modo absoluto a tradição e os autores tradicionais, mas antes trabalhá-los sob a égide da conversa complicada, que abre espaço para o diálogo com as baixas teorias, tal que caracterizadas por Halberstam (2020), e com as demandas ético-políticas do tempo presente. Por outro lado, vale dizer que esse tipo de problematização, embora não negue de forma absoluta a tradição, tampouco a ampara em sua vigência privilegiada: diferentemente, desmantela-a em Seu privilégio através da afirmação das múltiplas possibilidades de se praticar a(s) filosofia(s).
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Por “práticas filosóficas” compreendo tanto a produção de conhecimento(s) quanto as decisões burocráticas que amparam as instituições educacionais.
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Não desenvolverei o conceito de “multiversidade”, mas o utilizo a partir das propostas institucionais de Roisi Braidotti, para quem a universidade, caso queira estabelecer um vínculo de correspondência material e realista com o cosmos, deveria se tornar uma multi-versidade, já que a imagem subjacente ao conceito “universidade” é a da “unidade” e não a da “multidão” (para a reflexão sobre a multi-versidade, cf. Braidotti, 2019, pp.173-185).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Jun 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
23 Fev 2024 -
Aceito
22 Dez 2024 -
Publicado
07 Mar 2025
