Resumo
A leitura da Crítica da Violência de Benjamin por Marcuse forma uma base fundamental à sua apreensão da sociedade vigente e dos movimentos de emancipação. No posfácio escrito à edição dessa obra, Marcuse destaca o centro da argumentação de Benjamin: sua distinção entre violência impura, ou positiva, como base da estrutura de poder do Estado de direito e a violência pura, ou negativa, potência presente legitimamente nos movimentos de libertação. Benjamin e Marcuse criticam a violência impura, do cotidiano, sustento da dominação. Para Marcuse há um direito à resistência dos oprimidos traduzido numa “violência” que é contrapoder. Este é vinculado a uma ordem social, política, cultural, jurídica alternativa, ainda por realizar, que resulta não de uma visão do futuro, mas da visão do passado e seu continuum a ser interrompido. Sua base “não se encontra no sonho dos netos libertos”, mas na crítica e superação dos horrores dos antepassados.
Palavras-chave:
Benjamin; Marcuse; Direito à; resistência; Violência; Continuum repressor.
Abstract
Marcuse's reading of Benjamin's Critique of Violence forms a fundamental basis for his understanding of current society and emancipation movements. In the afterword written to the edition of this work, Marcuse points out that the center of Benjamin's argument lies in his distinction between impure, or positive violence, as the basis of the power structure of the rule of law, and pure, or negative violence, a power legitimately present in the liberation movements. Both criticize the positive violence that sustains the existing power and justice. For Marcuse, there is a right of resistance for the oppressed translated into a “violence” as counter-power. This is linked to an alternative social, political, cultural, legal order, still to be realized, which results not from a vision of the future, but from the vision of the past and its continuum to be interrupted. Its basis “is not found in the dreams of the liberated grandchildren”, but in criticizing and overcoming the horrors of the ancestors.
Keywords
Benjamin; Marcuse; Right to resistance; Violence; Repressive continuum.
“A crítica ambicionava tornar intolerável o abismo entre as classes, quer dizer, intolerável para os cultos, já que no Brasil recém-saído da escravatura a debilidade do campo popular desestimulava outras noções.”
Roberto Schwarz, Nacional por Subtração.1
A obstrução da violência, ou mesmo seu disfarce, é tão importante na política quanto o é a própria violência. Ela se apresenta na estrutura do direito, por exemplo. E na própria “tradição dos oprimidos” (Benjamin, 1986, p. 226), tanto é assim que quando a violência socialmente disfarçada irrompe na normalidade, ela aparece referida como situação de exceção, quando na verdade a presença fatual da violência é regra geral, tudo menos excepcional. A necropolítica não é exceção.
A obstrução da experiência da violência na realidade do passado impede a percepção da realidade social presente como dinâmica de forças em tensão e suas possibilidades ou do bloqueio delas. Representa sempre um reforço do vigente, um modo de deter o fluxo histórico num estado de dominação privilegiada e, portanto, de desigualdade e de ausência de liberdade impostas por conta da organização social.
Walter Benjamin trata do tema em um texto de 1919 e publicado pela primeira vez em 1921, Zur Kritik der Gewalt2, que pode ser traduzido como Sobre a Crítica da Violência, única parte remanescente de um extraviado tratado de política. As obras de Benjamin começaram a ser publicadas em 1942 numa edição mimeografada pelo Instituto de Pesquisa Social, com uma tiragem minúscula e que continha as hoje comentadíssimas teses de Sobre o Conceito de História. Os primeiros dois volumes dos Escritos (Schriften) de Benjamin vieram a lume em 1955 na editora Suhrkamp, de Frankfurt, na então Alemanha Ocidental, organizados por Theodor W. Adorno. Este, nos anos 1960, convenceu a editora a dar maior divulgação à produção de Benjamin com edições “temáticas” que organizou com textos seletos em livros relativamente baratos, mais ou menos pequenos - pouco mais de 100 páginas -, mas de grande tiragem, algo como 10 mil exemplares. Algumas dessas coleções obtiveram muita repercussão. Uma dessas coletâneas, dedicada a temas políticos, foi Zur Kritik der Gewalt und andere Aufsätze - que pode ser traduzida como Crítica da Violência e outros ensaios - publicada em 1965 na coleção de popularização científico-acadêmica da editora, a Edition Suhrkamp. Este volume termina com um Posfácio de Herbert Marcuse redigido no último ano de sua docência em Massachussets, na Universidade Brandeis, onde acabara de publicar One-Dimensional Man (1964) e logo a seguir escreveria Repressive Tolerance (1965). Esses textos, mas sobretudo Crítica da Violência e outros ensaios de Benjamin e o referido Posfácio dialogam intensamente entre si.
O pequeno ensaio-comentário de Marcuse, mal contando uma dezena de páginas e elaborado sob convite provavelmente devido à referência a Benjamin em One-Dimensional Man (Marcuse, 2015, p. 241), apresenta enorme densidade social, política e filosófica e constitui uma chave fundamental para a compreensão das obras de Marcuse e Benjamin, bem como da realidade sociopolítica contemporânea.
Fato é que permite ler em uma sequência muito esclarecedora o texto sobre a violência no plano sociopolítico-jurídico e as teses sobre o conceito da história, para assim expor o que há de “verdade” em seus nexos internos, para além do imediato e obter o conhecimento do futuro a partir do conhecimento do passado em termos que ultrapassam, que não se limitam aos recursos que o passado apresenta com esse objetivo. Marcuse apresenta a sociedade atual como opressão apoiada no direito e o “messianismo” benjaminiano como categoria social em que o sujeito não desaparece, ao contrário do que ocorre com a conciliação interpretada conforme uma era messiânica. Marcuse explicita: não se trata de esperar o messias, mas de considerar a luta de classes. O “tempo”, Zeit passado e futuro, é apreendido como “sociedade” em seu significado na Teoria Crítica, de “sociedade como sujeito”. A ruptura do continuum não é uma necessidade histórica, mas uma “grande recusa” que implica a subjetividade da luta de classes no sentido do conjunto dos oprimidos pelo capital. Segundo Marcuse, esse é o percurso da elaboração argumentativa de Benjamin no que diz respeito tanto ao que podemos denominar uma dialética negativa da realidade social quanto às possibilidades dos movimentos emancipatórios. O cruzamento dessas duas perspectivas forma o fulcro central da elaboração marcuseana, como se verá a seguir. Importa ainda destacar que a leitura feita por Marcuse expõe em fina sintonia os acentos dos significados da própria terminologia usada por Benjamin.
Gewalt significa tanto violência, quanto poder, também vertida como Macht, numa dupla referência fundamental para apreender a dinâmica política na sociedade. Para Benjamin a crítica da violência/poder pressupõe a “filosofia” de sua história, ou seja, uma visada que ultrapasse o plano imediato da disputa entre violências/poderes em conflito, para focar sua gênese como fundamento e manutenção da estrutura do direito. A estrutura jurídica não se origina de um sujeito que legisla pacificamente a respeito de si mesmo, como pretendia Kant. Mas, pelo contrário, “emerge de um estado violento de guerra” (Caygill, 1998, p. 27), da tensão entre partes em disputa e estabelece o direito como poder sustentado na violência. No ensaio, inspirado na Crítica da Razão Pura, Benjamin distingue entre violência impura, presente na experiência e a violência pura, da “natureza humana”3. Com a mesma base kantiana, no texto em causa crítica não é recusa, mas significa apreensão, estudo e discussão das condições de possibilidade que fundamentam a legitimidade ou não legitimidade da violência e do poder. Como afirma Marcuse logo ao iniciar seu ensaio-comentário, o intuito é o conhecimento do que o próprio Benjamin considera “verdade atual” de uma “visão do passado que ameaça desaparecer com cada realidade presente que já não se reconhece nele.” (Marcuse, 1971, p. 99). Ou seja, a verdade da realidade efetiva da sociedade - no caso, do poder em sua estruturação jurídico-legal - para além de sua aparência imediata, com o objetivo de compreender a dinâmica social em sua história.
No primeiro caso, a violência impura é a que instaura e mantém o poder estatal pela via da estrutura do direito. Na própria estrutura do direito a violência encontra-se presente na sociedade em que vivemos. A ordem jurídica condensa o monopólio do uso da violência - no sentido de ser meio instrumental para a realização de certos fins - de modo a “legalizar” ou normalizar esse uso da violência como ordem social. O campo ético é realizado nos nexos meios-fins conforme a estrutura do direito. É assim que deve ser compreendido o Estado hegeliano como conteúdo ético da sociedade. Dessa forma a ordem jurídica confere à utilização da violência uma determinada autonomia contextual na esfera do poder, a manutenção da ordem e da segurança, em que seu uso é justificado e, portanto, dissolvido em sua essência “violenta” como meio usado para a geração e manutenção do comum. Abre-se assim espaço para o “desvirtuamento mais grave do poder na democracia” (Benjamin, 1971, p. 45)4, a autonomia do exercício da violência no aparato policial e repressivo.
Benjamin demonstrou cuidado e refinamento no seu vocabulário conceitual-predicativo. A essa violência impura, referida também como “violência mítica”, denomina “schaltende”, que na versão literal significa “que liga ou desliga”, ou seja, que instaura ou extingue, ou então “verwaltende”, literalmente: que gerencia, administra. Em ambos os casos, a violência é ação referida a algo, donde ser “impura”, do mundo da experiência. Fica bem clara a dimensão de “poder” efetivo nessas significações. Nessas referências a violência é meio de realização amplamente presente na experiência do poder efetivo - estatal, por exemplo - na vida em sociedade.
Da violência impura, como meio, distingue-se a violência pura, chamada por Benjamin de “waltende”, literalmente a que vigora como expressão humana, violência/poder sem disfarce, tal como o é a raiva, por exemplo, lembra o autor. A violência pura não é exercício de poder administrativo ou constituinte na sociedade; não está no plano da experiência presente e não tem caráter instrumental. É um outro tipo de violência, uma “violência negativa” (Schmied-Kowarzik, 1999, p. 231). Trata-se de uma violência que não é meio para alcançar alguma meta posta antecipadamente, mas expressa uma indignação ética intolerável, isto é, não imanente à ordem jurídica, já que ela seria constituída justamente no plano motivador da indignação. É uma força “pura” no sentido de transcender o âmbito alcançado pela estrutura ético-jurídica vigente, e portanto também o Estado como universo ético da concepção hegeliana. Desse movimento se nutriu o movimento anarquista (Valverde, 2018, p. 50)5, seja em seu combate ao Estado, seja em sua valorização da individualização na sociedade, que seria base dessa violência pura da resistência legitimada. Essa violência é autorreferente; ao se expressar, por exemplo, seja na greve geral, seja na própria revolução, não corresponde a quaisquer interesses externos a si própria, mas realiza uma força presente na própria situação social do proletariado, como uma “vontade” de se manifestar. Precisa ter sua realidade reconhecida no plano do poder como potência, isto é, fazer parte da experiência possível, como sendo uma energia para constituir uma alternativa real nas decisões humanas. A greve geral é a única violência legalmente permitida, fora daquelas exercidas pela esfera do poder estatal. Mas sua experiência é difícil, para não dizer exceção, pois se encontra fora do plano até agora dominante historicamente6. A revolução, por sua vez, é o “espectro” que ronda a Europa nas palavras famosas do Manifesto, acerca da qual a ordem vigente não tem efetividade.
Herbert Marcuse comenta a apreensão da violência em seu Posfácio.
A violência referida na crítica de Benjamin não é aquela geralmente criticada7, em especial quando é (ou tenta ser) aplicada pelos de baixo contra os de cima. Essa é justamente aquela à qual em seus textos Benjamin se refere como violência “pura”, talvez apta a deter a violência “mítica” que dominou a história até agora. A violência criticada por Benjamin é a violência do vigente, que conserva no próprio existente o monopólio da legalidade, da verdade, do direito e em que o caráter violento do direito desapareceu, para aparecer de modo terrível nos chamados “estados de exceção”, que de fato não o são (Marcuse, 1971, p. 100).
Segundo Marcuse, Benjamin critica a violência oculta num mundo apresentado como dotado de poder desprovido de violência. Esse mundo aparente é um simulacro ideológico, em que a violência passou por uma inversão ideológica no contexto histórico da sociedade, inversão mediante a qual “a opressão é disposta como direito” (Marcuse, 1971, p. 101). A abordagem benjaminiana tem como alvo justamente oferecer “uma visão desse passado”, desse tempo passado ou sociedade constituinte da democracia burguesa atual. A gênese do direito a partir da violência decifra a dinâmica constituinte do poder, tornando o mesmo acessível. A base de opressão do poder, que impede as condições de possibilidade da esperança, precisa sofrer uma inflexão.
A perspectiva de Marcuse ao distinguir a violência presente no cotidiano da sociedade e aquela associada como expressão aos “de baixo”, “permite distinguir entre poder e impotência” (Mark Cobb, 2004, p. 182), associando esse contingente, os “de baixo”, a um plano exterior à ordem do poder instalado, onde a existência de resistência constitui uma esperança, que é obstruída pela violência do próprio poder dominante.
A emancipação só tem chance de ocorrer quando não se mantém inalterada a violência contida estruturalmente no poder, nos mecanismos de dominação da sociedade atual. E para interromper essa continuidade da violência, ela precisa se tornar consciente na experiência do poder na sociedade. A revolução existe como decisão sociopolítica. Como ela é possível e se fundamenta? Pela ruptura da estrutura legitimadora da violência que impõe o vigente no Estado de direito.
O conhecimento dessa violência na fundação e manutenção da democracia burguesa tal como a vivenciamos, demonstra, segundo Marcuse, que as minorias oprimidas “se rebelam contra a hierarquia estabelecida com meios que não se submetem à lei e à ordem quando estas se revelam incapazes de dirimir seus sofrimentos” (Marcuse, 2007, p. 55). Mas, ao recorrerem à violência nesses casos, “não iniciam nenhuma nova engrenagem de ações violentas, mas rompem aquela estabelecida” (Idem, ibidem). Eles praticam uma “contra violência”, “um direito natural à resistência” (Idem), cuja referência de poder não está na dimensão da estrutura do direito na sociedade capitalista vigente, porque esta é ausente no que se refere aos excluídos. O poder vigente, com sua lei e sua ordem, é “incapaz de dirimir seus sofrimentos” (Idem) justamente pelo predomínio da violência em prol da dominação vigente que gera sofrimento. Existe uma lógica negativa do poder vigente, exposta numa teoria negativa, uma teoria crítica; isto é, uma teoria do que ele não realiza, por exemplo, ao promover uma “tolerância repressora”.
Tolerância Repressora8 é o título de um ensaio dedicado em 1965 por Herbert Marcuse aos seus estudantes na Universidade Brandeis. O seu contexto é o da revolta de estudantes contra professores engajados em pesquisas com fins bélicos na Guerra do Vietnam. Face aos protestos, a administração universitária argumentou com a liberdade acadêmica e o direito dos professores de contribuírem para o conflito armado. Já na Alemanha os estudantes imediatamente vincularam a tolerância repressora ao silêncio imperante em relação ao passado nazista ainda socialmente presente nos anos 1960. A violência contemplada na tolerância repressora é a violência denominada de impura por Benjamin, a violência vinculada à continuidade da realidade vigente.
Os critérios de Marcuse são condicionados pelos nexos sociais concretos; ou seja, pelo jogo de forças em contraposição no plano das dinâmicas sociais, de transformação e de obstrução da transformação. Seus elementos constituem partes essenciais do capitalismo: indústria armamentista, mercados etc.
Para Marcuse, houve uma mudança social em que a função liberal da tolerância foi obstruída. Mas o ensaio vai além: é uma análise do processo geral de ressignificação das práticas vinculadas à democracia conforme era a tradição liberal. Na sociedade industrial avançada do capitalismo formou-se, como sociedade unidimensional, uma democracia provida de organização totalitária, cuja “objetividade realiza uma função de promoção de posturas que tendem a dissolver a diferença entre verdade e falsidade, informação e propaganda, justiça e injustiça.” (Marcuse, 2007, p. 43). Essas decisões não decorrem de imposições ditatoriais, mas “mediante o curso normal dos acontecimentos administrados e da mentalidade correspondente.” (Marcuse, 2007, p. 43). Já não basta recorrer ao Estado de direito.
Segundo Marcuse,
democracia é uma forma de governo apropriada para tipos muito diferentes de sociedade. (...) seus custos humanos são os custos sempre cobrados da sociedade, cujo governo está em causa. (...) desde a exploração normal, a miséria e a insegurança até as vítimas de guerras, ações policiais, ajudas militares etc. às quais a sociedade aquiesceu (Marcuse, 2007, p. 44).
Por isso os oprimidos recorrem a um “outro” plano do “direito”, ou do poder tal como este existe numa outra sociedade em que não haja tais custos na própria construção das formas de sociabilidade humana. Este é o recurso à revolução: não é violência/poder, tal como o existente, mas é um potencial exercitado contra a violência do poder vigente, um contrapoder organizado coletivamente.
Dessa maneira, existe uma potência de ruptura do “continuum repressor” da violência e de seus efeitos na manutenção do presente, uma indignação, uma intolerância, uma revolta abrindo uma chance para a transformação, para a negação radical do passado e do presente de opressão. Este seria “o verdadeiro Estado de Exceção”.
Segundo Marcuse, Benjamin
considerou o que é referido na palavra “paz” como sério demais para ser pacifista: percebeu como o que hoje denominamos paz se vincula inseparavelmente à guerra [...] e como essa paz perpetua a violência guerreira. [...] a verdadeira paz é a “verdadeira redenção” materialista, a ausência de violência (Marcuse, 1971, p. 100).
Na interpretação de Marcuse destaca-se a perspectiva social em que o destino messiânico é decifrado como aquele de uma sociedade convertida em “história”. Nesse sentido, passado e futuro são usados como referência a sociedades - sociedade do passado, sociedade do futuro - que se distinguem pela realização da esperança.
Sob o poder do vigente, até mesmo o bem se torna impotente e cúmplice. [...] Cumplicidade e expiação são categorias sociais. A sociedade dispõe o destino ao qual ela própria se submete; na sociedade o homem se torna cúmplice. [...] Quando o destino é [...] o da opressão disposta como direito, então a libertação é um conceito político materialista: o conceito de revolução (Marcuse, 1971, p. 100 e 101).
Justamente essa opressão disposta como direito, como ordem ou sequência legal constitui o continuum antes referido; a revolução tem como fim a superação dessa legalidade. Não pode se orientar pelo próprio continuum, pois é uma negação radical do mesmo e não somente uma negação determinada. Ou seja: sem qualquer recurso a essa ordem de legalidade. É o que em sua 14ª tese Sobre o Conceito da História Benjamin denomina “pulo do tigre” (Tigersprung) ao passado, e não ao futuro e não na arena dominada pela classe dominante, mas sob o céu da história. A ruptura do continuum é uma negação que não é aperfeiçoamento, gradualismo; não é “nutrida pelo ideal dos netos libertos, mas pela visão dos antepassados oprimidos.” (Marcuse, 1971, p. 102). O importante é garantir a ruptura com “a arena dominada pela classe dominante” (Idem, ibidem), a sociedade tal como a do passado; isto é, em prol do passado sujeitado, dispor, fixar e sustentar uma outra sociedade em que os homens possam se individualizar. Marcuse destaca:
Raras vezes a verdade da Teoria Crítica foi expressa de uma maneira tão exemplar: a luta revolucionária tem como objetivo a interrupção do que aconteceu e segue a ocorrer - antes de todos os propósitos positivos, essa negação é o positivo primordial. O que os homens perpetraram contra os homens e contra a natureza, deve acabar, cessar radicalmente - então e unicamente então a liberdade e a justiça podem iniciar (Marcuse, 1971, p. 104).
A ruptura do continuum, prossegue Marcuse, não se refere apenas aos acontecimentos objetivos, mas inclusive aos subjetivos, ao pensamento perpassado pela injustiça, com uma procedência de que não consegue se libertar e que percorre o pensar. A ruptura dessa continuidade “é o momento em que essa origem se torna consciente e muda a consciência. A negação se converte num princípio construtivo.” (Marcuse, 1971, p. 105).
Em um Prefácio redigido também em 1964 para uma coletânea de seus próprios textos, Marcuse afirmava que:
O Estado fascista era a sociedade fascista, e o poder totalitário e a razão totalitária se originavam da estrutura da sociedade vigente, que se encontrava em vias de superar seu passado liberal, incorporando a sua negação histórica Dessa situação resultaria para a teoria crítica a tarefa de identificar as tendências que uniam seu passado liberal com sua superação totalitária. Superação que de modo algum se limitou aos Estados totalitários, tornando-se realidade desde então em várias (e justamente as mais desenvolvidas) democracias. O presente não parecia contraposto de imediato ao passado: cabia revelar a mediação graças à qual a liberdade burguesa pôde se converter em ausência de liberdade; mas cabia também apresentar os elementos que se opunham a essa transformação (MARCUSE, 1997, p. 38).
Isso significa que o processo histórico não pode ser abandonado à própria dinâmica que o move, o processo de acumulação capitalista de valor, pois este é destrutivo em sua positividade. Destrutivo não apenas no que diz respeito às relações entre os homens e às relações destes com a natureza, mas também ao pensamento, às ciências e à tecnologia. A “democracia (ordem social - WLM) vigente tornou-se ela própria o maior obstáculo à transformação, exceto para pior.” (Marcuse, 2001, p. 165). E o que pode ser feito? Com o pulo do tigre, a revolução não pode se orientar pela ordem vigente. Orienta-se pela vontade e pela prática dos que “sofrem com o vigente, dos sujeitados; para Benjamin: na luta de classes. Se esta não é aguda, a liberdade só aparece num tempo completamente diferente” (Idem, ibidem). No tempo futuro e não passado, ou seja, numa sociedade ainda não realizada mas sob a égide da “negação como princípio construtivo”, em que a ruptura com a continuidade se apresenta em termos - como atualmente “confiança, coragem, astúcia, leveza, persistência” (Idem) - que colocam impreterivelmente em cheque cada nova vitória dos dominadores. Mas a seguir Marcuse adverte, grave, à mudança dos tempos.
A distância que separa o presente de tais palavras é colossal. Foram escritas no tempo do fascismo triunfante, na irrupção da Segunda Guerra Mundial. O presente já não faz parte do mesmo período histórico: ele liquida o tempo, em que o combate aberto ou disfarçado do fascismo ainda parecia capaz de romper o continuum da história. Ele novamente se fechou. Assim o desenvolvimento efetivo constitui testemunho sangrento da verdade benjaminiana: é da visão do passado e não da visão do futuro, que a luta pela libertação sorve sua força (Marcuse, 1971, p. 106).
Parecia que uma configuração de sociedade ainda não feita, futura, seria capaz de animar a luta material no combate de ruptura da continuidade. Mas desenvolveu-se uma sociedade pautada pela racionalidade capitalista e, individualizando-se na mesma, homens com atitudes e pensamentos unidimensionais, ineptos para qualquer oposição ou transformação. É o tempo da Grande Recusa apresentada em One-Dimensional Man. Acerca dela, Marcuse advertira: “Se o caráter abstrato da recusa é o resultado da reificação total, então o fundamento concreto para a recusa ainda deve existir, pois a reificação é uma ilusão.” (Marcuse, 2015, p. 241).
Na contemporaneidade a que essa obra se refere, Marcuse rompe com a descrição de Benjamin e adverte para a persistência do continuum na reificação total, na passagem da sujeição formal ao capital, via relação assalariada, à sujeição real de todos à dominação capitalista. A rigor o tempo continua na prática de “todos os que em sua fraqueza persistem no combate à permanência do vigente: alquebrados, rompem a teia de cumplicidade da ordem que instaura e mantem o direito.” (Marcuse, 1971, p. 107).
Ao questionarem como sendo violência a legalidade da cadeia de cumplicidade da ordem estabelecida, pelo testemunho do sangue, tornam o vigente intolerável. Mas falta o seu conhecimento efetivo de como são as condições que impedem a realização da esperança. A prática já não constitui contrapoder e não questiona a dominação vitoriosa. Falta constituir coletivamente a partir de um direito à resistência, a partir da violência negativa, uma estrutura de poder social alternativa. Um paralelo no Brasil seria a transição da escravidão ao racismo estrutural.
O Homem unidimensional, de 1964, termina com uma citação de Benjamin que é replicada por esse final do Posfácio.
A teoria crítica da sociedade não possui nenhum conceito que possa fazer a ponte sobre o abismo entre o presente e seu futuro; sem sustentar nenhuma promessa e sem obter nenhum sucesso, ela permanece negativa. Assim ela quer permanecer leal àqueles que, sem esperança, deram e dão sua vida à Grande Recusa. No início da era fascista, Walter Benjamin escreveu: “Somente por causa dos que não tem esperança é que nos é dada a esperança.” (Marcuse, 2015, p. 241).
Os desesperançados são os que são impotentes em função da violência da ordem dominante. Mas essa ordem não deve ser apenas contemplada. Ser leal a esses oprimidos sem esperança, como lembra o Posfácio, é reforçar sua esperança no resultado da ruptura do continuum das relações de cumplicidade nessa ordem: as possibilidades de instituição de outras relações humanas, com outro vigor e outras decisões e sobretudo com outra ordem.
Ernst Bloch comenta, em sua Introdução à Filosofia, também escrita em 1965, a ruptura “de um passado meramente contemplado”, em que haveria uma herança cultural compreendida como “re-produção para diante” (Bloch, 1970, p. 152). Para ele, seria preciso ver nessa herança cultural inclusive “a tradição do ainda a ser feito” (Idem), que permitiria elaborar criativamente o passado.
É o que ele então denomina utopia concreta: não só a que leva em conta as mediações com a lealdade ao passado revolucionário. Mas também a tentativa de obter nos objetivos imediatos e por vezes irracionais, traços de uma racionalidade não destruída que poderia substituir comportamentos e atitudes.
Assim como a utopia, a ruptura do continuum e a Grande Recusa não podem ser abstratas, meros anúncios verbalizados. Precisam ser fundadas concretamente e apreendidas numa sequência prática e argumentativa: esse é o problema legado tanto por Marcuse como por Benjamin. Marcuse avançará na questão, por exemplo ao procurar fundamentar a Grande Recusa na natureza humana em seu livro Ensaio sobre a Libertação, de 1969.
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Como citar: MAAR, Wolfgang Leo. Opressão, violência, emancipação: Benjamin, Marcuse e o direito à resistência. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 37, e202532344, 2025. DOI: https://doi.org/10.1590/2965-1557.037.e202532344.
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SCHWARZ, R. “Nacional por subtração”. In: Que Horas São?. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 29-48 - p.41.
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BENJAMIN, W. Zur Kritik der Gewalt und andere Aufsätze. Frankfurt: Suhrkamp, 1971. O texto Zur Kritik der Gewalt não foi perdido por ter sido publicado separadamente como artigo na revista Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik em 1921. Todas as citações que não são de versões brasileiras são traduções do autor.
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Há quem veja nessa distinção também o debate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt acerca de “direito positivo e direito natural”, desenvolvido na época.
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Há duas versões do texto em português: BENJAMIN, W. "Crítica da violência - Crítica do poder". In: BENJAMIN, W.; BOLLE, W. (Ed.) - Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1985 - p. 160-175. BENJAMIN, W. "A crítica da violência". In: BENJAMIN, W. - Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Editora 34, 2011 - p.121-154.
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Ele lembra que a marcuseana posição de força dos excluídos da inserção operária como crítica à ordem vigente e sua superação, também é usada para os movimentos de descolonização do Terceiro Mundo, ajudando a esclarecer o direito à resistência amplamente apoiado frente à imposição colonialista.
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Do ponto de vista dos acontecimentos históricos, Benjamin teria sido influenciado pela greve geral operária que em março de 1920 evitou a tentativa de golpe de Estado na Alemanha conhecida como Kapp-Putsch. Quanto à revolução, estava presente na recentíssima memória com a chamada “revolução de novembro”, que de 1918 a 1919 procurou instalar uma “república de soviets” após a derrota na 1ª. Guerra Mundial e a queda do Império alemão.
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“Criticada” como termo agora usado no sentido de “recusada”, como o fazem, por exemplo, os liberais e também Hannah Arendt em sua obra Sobre a violência, de 1966. A amiga de Benjamin em momento algum deste seu livro se refere à Crítica da Violência. Arendt recusou a violência, que para ela “é absolutamente incapaz de criar poder“, mas que o destrói (Arendt, 2010, p. 74). Temia que os “fortes sentimentos fraternais engendrados pela violência coletiva desencaminharam várias pessoas para a esperança” (Arendt, 2010, p. 88) de uma nova comunidade e um novo homem, o que ela associava à origem do totalitarismo.
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O texto apareceu originalmente numa coletânea: WOLFF R. P./ MOORE Jr. B./ MARCUSE H. - Repressive Tolerance. Boston: Beacon Press, 1965.
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
17 Mar 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
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Recebido
25 Nov 2024 -
Aceito
19 Dez 2024 -
Publicado
07 Fev 2025
