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Contracepção e planejamento reprodutivo na percepção de mulheres com doença falciforme

RESUMO

Objetivo

Compreender as percepções de mulheres com doença falciforme (DF) sobre planejamento reprodutivo em serviço público de saúde.

Método

Estudo qualitativo onde foram entrevistadas 15 mulheres com DF atendidas em um hospital público em Recife, entre agosto/2018 e maio/2019. Foi empregada a técnica de análise de conteúdo temática de Bardin.

Resultados

As mulheres tinham entre 25 e 38 anos, eram casadas e de baixa escolaridade. Após a análise emergiram quatro categorias temáticas: informações sobre contracepção, uso de contraceptivos, sentimento sobre gestação e consulta ginecológica. Observou-se que a mulher com DF sofre influência de fatores como medo da gestação, falta de informação sobre planejamento reprodutivo, influência do parceiro e do profissional de saúde e dificuldades de acesso ao serviço de saúde.

Considerações finais

Os relatos demonstram que os profissionais de saúde precisam melhorar a forma como à informação chega à paciente de modo a oferecer uma prática profissional mais satisfatória.

Palavras-chave
Mulheres; Anemia falciforme; Anticoncepção; Pesquisa qualitativa

ABSTRACT

Objective

To understand the perceptions of women with sickle cell disease (SCD) about reproductive planning in a public health service.

Method

This is a qualitative study conducted with 15 women with SCD attended at a public hospital in Recife, between August 2018 and May 2019. Bardin’s content analysis technique was used.

Results

The women were between 25 and 38 years old, married, and had low education. After the analysis, four thematic categories emerged: information about contraception, use of contraceptive methods, feelings about pregnancy, and gynecological consultation. It was found that women with SCD are influenced by factors such as fear of complications during pregnancy, lack of information on reproductive planning, partners and health professional opinion, and difficulties in health service access.

Final considerations

The reports demonstrate that health workers need to improve the way through which information reaches the patient, to offer a more satisfactory professional practice.

Keyword
Women; Anemia sickle cell; Contraception; Qualitative research

RESUMEN

Objetivo

Comprender las percepciones de las mujeres con anemia de células falciformes (AF) sobre la planificación reproductiva en un servicio de salud pública.

Método

Estudio cualitativo donde se atendió a 15 mujeres con AF en un hospital público de Recife, entre agosto de 2018 y mayo de 2019. Se utilizó la técnica de análisis de contenido temático de Bardin.

Resultados

Las mujeres tenían entre 25 y 38 años, estaban casadas y tenían baja escolaridad. El análisis generó cuatro categorías temáticas: información sobre anticoncepción, uso de anticonceptivos, sentimientos sobre el embarazo y consulta ginecológica. Se observó que las mujeres con AF son influenciadas por factores como el miedo del embarazo, la falta de información sobre planificación reproductiva, la influencia de su pareja y del profesional de la salud, y dificultades para acceder al servicio de salud.

Consideraciones finales

Los informes demuestran que los profesionales de la salud necesitan mejorar la forma en que la información llega al paciente para ofrecer una práctica profesional más satisfactoria.

Palabras clave
Mujeres; Anemia de células falciformes; Anticoncepción; Investigación cualitativa

INTRODUÇÃO

Doença falciforme (DF) é o termo utilizado para caracterizar um grupo de doenças hematológicas com alterações estruturais na cadeia de produção da hemoglobina (Hb), gerando uma variante, denominada HbS11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria conjunta nº 05, de 19 de fevereiro de 2018. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas da doença falciforme. Brasília: Ministério da Saúde, 2018 [cited 2020 Jan 20]. Available from: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/fevereiro/22/Portaria-Conjunta-PCDT-Doenca-Falciforme.fev.2018.pdf
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. Possui formas clínicas distintas, cuja forma homozigótica (HbSS) é a mais conhecida e mais grave, denominada anemia falciforme (AF)11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria conjunta nº 05, de 19 de fevereiro de 2018. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas da doença falciforme. Brasília: Ministério da Saúde, 2018 [cited 2020 Jan 20]. Available from: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/fevereiro/22/Portaria-Conjunta-PCDT-Doenca-Falciforme.fev.2018.pdf
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Por atingir grande número de afrodescendentes, a doença é considerada uma afecção ões étnicas ou raciais e possui altas taxas de morbimortalidade11. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria conjunta nº 05, de 19 de fevereiro de 2018. Protocolo clínico e diretrizes terapêuticas da doença falciforme. Brasília: Ministério da Saúde, 2018 [cited 2020 Jan 20]. Available from: http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2018/fevereiro/22/Portaria-Conjunta-PCDT-Doenca-Falciforme.fev.2018.pdf
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. Com a introdução de diferentes estratégias que permitiram o aumento da sobrevida das pessoas com DF, como por exemplo, uso da hidroxiureia para prevenção das crises álgicas, tem sido observado aumento na sobrevida das pessoas com DF22. Araujo OMR, Ivo ML, Ferreira Júnior MA, Pontes ERJC, Bispo IMGP, Oliveira ECL. Survival and mortality among users and non-users of hydroxyurea with sickle cell disease. Rev Latino-Am Enfermagem. 2015;23(1):67-73. doi: https://doi.org/10.1590/0104-1169.3385.2526
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. Desse modo, um número maior de mulheres com DF tem chegado a idade reprodutiva, sem o adequado planejamento reprodutivo, levando a gestações não planejadas e maior risco de complicações gravídico-puerperais e clínicas33. Silva FAC, Ferreira ALCG, Hazin-Costa MF, Dias MLG, Araújo AS, Souza AI. Adverse clinical and obstetric outcomes among pregnant women with different sickle cell disease genotypes. Int J Gynecol Obstet. 2018;143(1):89-93. doi: https://doi.org/10.1002/ijgo.12626
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. Por outro lado, os profissionais de saúde da rede de atenção básica não demonstram segurança para atender este grupo de mulheres, o que tem influenciado negativamente na construção do vínculo profissional/paciente, com afastamento das mulheres dos serviços de saúde, e contribuindo para o agravamento do quadro clínico da DF44. Laguardia J. No fio da navalha: anemia falciforme, raça e as implicações no cuidado à saúde. Rev Estud Fem. 2006;14(1):243-62. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2006000100013
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O planejamento reprodutivo é um direito dos usuários do sistema único de saúde (SUS) e é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher ou ao casal, dentro do atendimento integral à saúde, conforme Lei 9.263/199655. Presidência da República (BR). Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Brasília, DF; 1996 [cited 2020 Feb 03]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9263.htm
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A escolha do método contraceptivo deve levar em consideração os critérios médicos de elegibilidade estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) baseados na situação clínica, vantagens e possíveis efeitos adversos do método, além do desejo da mulher66. World Health Organization (CH). Medical elegibility criteria for contraceptive use. 5th ed. Geneva: WHO; 2015 [cited 2020 Jan 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/181468/9789241549158_eng.pdf
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. O nível de conhecimento, os recursos financeiros, o estigma em relação aos métodos/técnicas contraceptivas, a construção do vínculo profissional/usuário estão entre os motivos da dificuldade de acesso das mulheres com DF aos serviços de saúde e ao adequado planejamento reprodutivo44. Laguardia J. No fio da navalha: anemia falciforme, raça e as implicações no cuidado à saúde. Rev Estud Fem. 2006;14(1):243-62. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2006000100013
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,77. Rizo AA, Bhor M, Lin X, McCausland KL, White MK, Paulose J, et al. The relationship between frequency and severity of vaso-occlusive crises and health-related quality of life and work productivity in adults with sickle cell disease. Qual Life Res. 2020;29(6):1533-47. doi: https://doi.org/10.1007/s11136-019-02412-5
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Considerando-se a DF como uma doença crônica que pode propiciar às mulheres com DF a construção de significados no seu modo de viver, no cuidado à saúde, bem como repercutir no acesso e no uso de métodos contraceptivos, buscou-se compreender essas mulheres baseadas no pensamento de Gadamer, onde o autor reflete sobre o ser humano nas questões relacionadas à saúde e sobre o papel do profissional de saúde no processo de cura88. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006.. Assim, o presente estudo tem como questão norteadora de pesquisa, compreender as percepções de mulheres com DF acerca da assistência recebida sobre contracepção e planejamento reprodutivo em um serviço público de saúde.

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo desenvolvido em um ambulatório especializado de um hospital público no Recife, nordeste brasileiro, entre agosto de 2018 e maio de 2019. O ambulatório foi criado em 2017 para prestar assistência ginecológica e obstétrica às mulheres com DF. A amostra foi composta por 15 mulheres delimitada por saturação teórica, ou seja, quando as informações trazidas por novos participantes não mais acrescentaram novos elementos para a análise99. Nascimento LCN, Souza TV, Oliveira ICS, Moraes JRMM, Aguiar RCB, Silva LF. Theoretical saturation in qualitative research: an experience report in interview with schoolchildren. Rev Bras Enferm. 2018;71(1):228-33. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0616
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. A coleta de dados foi realizada através de entrevista semiestruturada, com duração média de 45 minutos, gravadas e transcritas na íntegra, preservando a originalidade dos depoimentos e tendo como questões norteadoras as perguntas: como você usava o método para prevenir gravidez antes do atendimento nesse serviço? Como você percebeu o atendimento na consulta ginecológica nesse serviço? Como você percebeu o papel do profissional de saúde desse serviço na sua decisão de escolha do método para prevenir gravidez?

Participaram da pesquisa, aquelas mulheres que atenderam aos critérios de inclusão: diagnóstico de DF, estar em acompanhamento ginecológico no serviço, idade acima de 18 anos, vida sexual ativa e desejo de contracepção. Para a análise dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo, recomendada por Bardin, buscando entender o que está oculto nas falas das mulheres acerca do planejamento reprodutivo em um serviço público de saúde1010. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016. . A análise seguiu as três fases da modalidade temática. A pré-análise, onde foi organizado o material coletado e elaboradas as hipóteses por meio da leitura flutuante, que permitiu a composição do corpus da pesquisa pautado nas regras: exaustividade, representatividade, homogeneidade, pertinência e exclusividade. Na segunda etapa, a exploração do material, realizou-se a classificação das falas em categorias, para agrupar e codificar as informações semelhantes e diferentes entre discursos e práticas. No tratamento dos resultados, terceira e última etapa, realizou-se a inferência do conteúdo e dos significados das falas para comparar e unificar os relatos das entrevistadas. Os discursos das mulheres foram identificados com a letra “P”, seguidos do número atribuído a cada uma pela ordem da realização da entrevista. Quatro pesquisadoras realizaram a análise, para ampliar a compreensão das inter-relações entre dimensão subjetiva e contextual.

Baseados nesse processo emergiram quatro categorias temáticas: informação sobre métodos contraceptivos; uso de métodos contraceptivos; sentimento diante da gestação, e consulta ginecológica.

O estudo seguiu a Resolução 510/16 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde do Brasil e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CAAE: 04201718.8.0000.5201) e todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As mulheres deste estudo tinham entre 25 e 38 anos de idade, eram em sua maioria, casada, procedente da região metropolitana do Recife e com renda familiar entre um e dois salários mínimos. No que se refere ao nível de escolaridade, metade da amostra não possuía o ensino médio completo, e somente duas haviam concluído o ensino superior. As mulheres não estavam inseridas no mercado de trabalho, tendo apenas o auxílio-doença como fonte de renda familiar.

A impossibilidade de estudar em decorrência de crises álgicas freqüentes, internações recorrentes e do temor de irem à escola, representam uma questão de vulnerabilidade, que afetou o contexto social e intelectual de uma infância constituída no ambiente hospital/casa. A constância das crises e as complicações da doença além de afetar a condição física e psicológica das mulheres com DF, por vezes, interferem nos papéis de estudante e de trabalhador77. Rizo AA, Bhor M, Lin X, McCausland KL, White MK, Paulose J, et al. The relationship between frequency and severity of vaso-occlusive crises and health-related quality of life and work productivity in adults with sickle cell disease. Qual Life Res. 2020;29(6):1533-47. doi: https://doi.org/10.1007/s11136-019-02412-5
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. Isto corrobora com os discursos encontrados neste estudo, onde as mulheres relataram empecilho para estudar, consolidar um emprego, tornando-as, muitas vezes, dependentes de “auxílio-doença”.

Todas as participantes da pesquisa eram do genótipo HbSS, ou seja, possuíam a forma homozigótica da doença, que é a forma mais grave, e o diagnóstico foi feito ainda na infância. Apenas uma participante teve seu diagnóstico aos 25 anos de idade durante a primeira gestação. No tocante a raça/cor, 14 mulheres consideraram-se negras, exceto uma participante que se autodeclarou de cor branca. Por ser uma doença hematológica hereditária de origem afrodescendente, a questão da raça/cor torna-se um ponto importante especialmente no Brasil, um país miscigenado, mas com grande parcela da população que se autodeclara parda/preta1111. Ministério da Saúde (BR). Doença falciforme: condutas básicas para o tratamento. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 Jan 02]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doenca_falciforme_condutas_basicas_tratamento.pdf
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Informação sobre métodos contraceptivos

Observou-se uma relação entre o cuidado com a saúde e a importância de ter informação sobre o uso dos métodos contraceptivos na prevenção de gestação não planejada. O desejo por informações e quebra de estigmas com a doença reflete a necessidade de disseminação do conhecimento, como mostra os seguintes discursos:

[...] eu queria juntar todo mundo de falciforme e dar várias palestras e chamar vários profissionais, pra falar de contraceptivo, de medicações, e instruir as pessoas, porque quando você sabe sobre a sua doença é muito importante [...] porque a falta de informação é muita, eu sempre disse lá que eu sempre queria antes de eu morrer criar alguma coisa de ajudar os falciformes que mudasse (a situação), entendesse? Alguma coisa que ajudasse e mostrasse a eles que não é o fim. (P5)

[...] tem muitas pessoas, que não entende, até que não sabe [...] que você não precisa ter uma gravidez indesejada, por conta da falta de conhecimento dos métodos que se pode, né [...] Então assim, a pessoa tem que conhecer, explorar todos, né, porque se você não se adapta com um, você tem que conhecer os outros pra poder ir usando, né. (P12)

Em muitos relatos, foi possível perceber o desconhecimento da mulher com DF sobre o que vem a ser planejamento reprodutivo. Das 15 participantes, 11 referiram nunca ter ouvido o termo “planejamento familiar” nas consultas em unidades básicas de saúde e nos serviços de referência em que são acompanhadas. No entanto, foi relatado a oportunidade de conhecer os métodos contraceptivos ao iniciar o atendimento na instituição.

[...] planejamento familiar? Isso é uma pergunta, ou já tem esse [...] Será que é assim, no início da gravidez? (P8)

[...] não, e as médicas que eu ia pra fazer exame nunca passava não (anticoncepcional), eu tomava por mim mesmo e quando eu queria trocar eu trocava. (P6)

A desinformação sobre os métodos contraceptivos nos remete a necessidade de um espaço para o diálogo entre o profissional de saúde e o paciente, uma vez que para Gadamer o diálogo é parte do tratamento88. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006.. Nessa perspectiva, esse momento deve ocorrer livre de pré concepções, a fim de que o profissional possa avaliar a necessidade de saúde, que nesse estudo envolve as questões sobre a contracepção e planejamento reprodutivo.

O Ministério da Saúde (MS)1111. Ministério da Saúde (BR). Doença falciforme: condutas básicas para o tratamento. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013 [cited 2020 Jan 02]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/doenca_falciforme_condutas_basicas_tratamento.pdf
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preconiza que todas as mulheres devem ser informadas sobre todos os métodos contraceptivos e sobre os riscos que a gestação pode acarretar, porém cada mulher deve ser avaliada sobre os riscos individuais. Cada mulher deve escolher o método que melhor se adeque a sua realidade, permitindo uma prática sexual segura e não apenas ligada à função reprodutiva1212. Moura LNB, Gomes KRO. Planejamento familiar: uso dos serviços de saúde por jovens com experiência de gravidez. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(3):853-63. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232014193.10902013
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A realidade vivenciada pelas mulheres deste estudo é que elas não receberam, durante boa parte de suas vidas, informações sobre contracepção, contrapondo o que é recomendado pelo MS. Os relatos apresentados traduzem a falta de acesso à informação segura para o uso correto de contraceptivos, favorecendo a automedicação ou perpetuando dúvidas, medos e anseios.

[...] eu comecei a tomar o ciclo 21 [anticoncepcional] por conta própria [...] foi da minha cabeça. Eu ouvi falar, minha irmã tomava, eu via ela tomar e decidi tomar isso também [...] aí um mês, dois mês depois eu tive uma consulta com a minha doutora [...] aí eu disse a ela, ela fez: não, isso não tem problema, o problema é se você não tomar. (P01)

[...] eu nem sabia que essas coisas davam trombose. Eu vim saber aqui. (P6)

A orientação acerca do planejamento reprodutivo deveria estar presente em todos os serviços de saúde. Nessa perspectiva, destaca-se a importância do enfermeiro como parte da equipe de saúde no processo de cuidado das mulheres que buscam por atendimento, provendo orientações de forma clara e objetiva, a fim de reforçar o vínculo profissional/paciente1313. Shamian J. O papel da enfermagem na atenção à saúde [editorial]. Rev Bras Enferm. 2014;67(6):869-70. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2014670601
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Uso dos métodos contraceptivos

O uso correto do método guarda relação ao acesso à informação sobre modo de usar, benefícios, efeitos colaterais e possíveis complicações diante do uso contínuo1212. Moura LNB, Gomes KRO. Planejamento familiar: uso dos serviços de saúde por jovens com experiência de gravidez. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(3):853-63. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232014193.10902013
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. Um estudo realizado no Paraná1414. Bahamondes L. A escolha do método contraceptivo. Rev Bras Ginecol Obstet. 2006;28(5):267-70. doi: https://doi.org/10.1590/S0100-72032006000500001
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identificou que um terço das mulheres usuárias de contracepção hormonal iniciaram o uso sem orientação médica prévia, e que aproximadamente metade das participantes apresentavam contra indicações ao uso, segundo os critérios de elegibilidade estabelecidos pela OMS66. World Health Organization (CH). Medical elegibility criteria for contraceptive use. 5th ed. Geneva: WHO; 2015 [cited 2020 Jan 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/181468/9789241549158_eng.pdf
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. Isto corrobora com os achados deste estudo, onde grande parte das participantes relatou ter iniciado métodos contraceptivos sem orientação de um profissional de saúde e ter apresentado efeitos colaterais nas primeiras experiências com métodos.

[...] pelutan [anticoncepcional injetável] estava vindo com coágulos [menstruação], aí fui pra ginecologista de novo, ela passou level [anticoncepcional oral], passou um mês, dois, aí no terceiro começou a vim de novo, os pedaço, e deu aquele desmantelo, menstruei e não foi embora, e eu fiquei 22 dias sangrando direto, aí foi quando meu esposo tava já me carregando nos braço [...] Sentia dor, cólica. (P10)

[...] Eu ficava mais ictérica com o comprimido, eu sentia que as veias, sei lá, pulava, ficava mais durinha. Mas só quando eu estava tomando... depois que eu tomei o depoprovera [anticoncepcional], a injeção, depois de 3 meses, eu tive a embolia. (P14)

A partir do surgimento dos caracteres sexuais secundários, a mulher precisa receber informações relacionadas ao sistema reprodutivo e contracepção1515. Carvalho NS, Braga JP, Barbieri M, Torloni MR, Figueiredo MSW, Guazzelli CAF. Contraceptive practices in women with sickle-cell disease. J Obstet Gynaecol. 2017;37(1):74-77. doi: https://doi.org/10.1080/01443615.2016.1225023
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. Isso ficou evidente nas falas das participantes, quando relataram os problemas de saúde que atribuíram ao uso do contraceptivo. Nesse sentido, fica claro a falta de conhecimento acerca do uso correto e dos efeitos colaterais do método, que podem estar relacionados à falta de orientação e consequente automedicação.

O uso de métodos contraceptivos sem orientação adequada favorece a não adesão e uso descontinuado, contribuindo para a ocorrência de efeitos adversos e gravidez não planejada. É fundamental o manejo seguro da contracepção na DF pelos profissionais de saúde, que devem prover as orientações dos métodos contraceptivos que melhor se adeque à condição clínica da mulher, permitindo-as autonomia de escolha e poder de decisão frente ao uso seguro e eficaz1616. Xavier ASG, Medeiros LD, Ferreira, SL. Use of contraceptive methods by women with sickle cell anemia. Cienc Cuid Saude. 2014 [cited 2020 Jan 02];13(1):27-34. Available from: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/19459/pdf_139
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Para o sucesso da orientação sobre os métodos contraceptivos é necessário que aquele que cuida haja cautelosamente diante da situação de saúde, e assim, profissional de saúde e paciente estarão imbuídos do mesmo desejo de estabelecer o equilíbrio da saúde. Isso é possível pelo diálogo que, segundo Gadamer, pode abolir o distanciamento na relação entre profissional de saúde e paciente88. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006..

Ao questionar às mulheres acerca do uso atual de contraceptivos, não foram relatadas dificuldades para a aquisição dos métodos, pois o ambulatório do serviço onde o estudo foi realizado disponibilizou os métodos. O acetato de medroxiprogesterona (injetável trimestral) aparece como o método mais aceito, seguido pelo preservativo masculino.

De acordo com os critérios de elegibilidade da OMS66. World Health Organization (CH). Medical elegibility criteria for contraceptive use. 5th ed. Geneva: WHO; 2015 [cited 2020 Jan 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/181468/9789241549158_eng.pdf
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, o uso da medroxiprogesterona por mulheres com DF é classificado como categoria I. Para alguns autores a medroxiprogesterona é considerada o método de primeira escolha entre mulheres com DF, por ser prático e tolerável e por diminuir o risco de trombose venosa e das crises álgicas1515. Carvalho NS, Braga JP, Barbieri M, Torloni MR, Figueiredo MSW, Guazzelli CAF. Contraceptive practices in women with sickle-cell disease. J Obstet Gynaecol. 2017;37(1):74-77. doi: https://doi.org/10.1080/01443615.2016.1225023
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-1616. Xavier ASG, Medeiros LD, Ferreira, SL. Use of contraceptive methods by women with sickle cell anemia. Cienc Cuid Saude. 2014 [cited 2020 Jan 02];13(1):27-34. Available from: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/CiencCuidSaude/article/view/19459/pdf_139
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Durante as entrevistas não foram relatados efeitos colaterais persistentes com o uso da medroxiprogesterona, contudo, foi possível identificar a insatisfação de algumas mulheres frente a efeitos colaterais, como a ausência da menstruação, gerando por vezes a sensação de uma falsa gravidez. As falas a seguir mostram essa insatisfação:

[...] então, por que não desce, não desce a menstruação, né? Aí você fica: meu Deus do céu! Aí eu me olho muito no espelho. Aí eu fico neurótica, todo dia eu me olho no espelho e digo que tá normal meu corpo, porque eu sei que muda, como eu já engravidei, de cara eu já sei que muda algumas coisas. (P5)

[...] eu preferi trocar porque eu estava sentindo muitas dores no primeiro mês que eu tomava a injeção [...] é do quadril pra baixo, as pernas doem bastante, aqui essa região (aponta), e às vezes eu fico de cama mesmo. (P13)

No tocante ao uso do preservativo masculino (condom), método que confere dupla proteção, anticoncepção e prevenção de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)1515. Carvalho NS, Braga JP, Barbieri M, Torloni MR, Figueiredo MSW, Guazzelli CAF. Contraceptive practices in women with sickle-cell disease. J Obstet Gynaecol. 2017;37(1):74-77. doi: https://doi.org/10.1080/01443615.2016.1225023
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, é perceptível nas falas das mulheres, a falta de satisfação e confiança na segurança e eficácia desse método:

[...] é melhor sem camisinha, mas eu gosto de prevenir. No começo eu tinha alergia né, sempre ficava coçando a vagina mais agora acho o organismo se deu, né, ai parou mais […] pra parar de usar... assim, só se a pessoa decidir engravidar. (P8)

[...]eu, no momento, tô usando ela [preservativo] porque tô com dificuldade, mais aí eu consigo engravidar, [...]aí depois [...] eu não vou usar ela mais, porque prefiro tomar injeção, eu acho que injeção ou um anticoncepcional é mais seguro do que ela, porque ela pode correr o risco de estourar e engravidar de novo. (P15)

Um estudo que avaliou a vulnerabilidade feminina em contrair IST verificou a resistência das mulheres ao preservativo, que tendem a atribuir pouco valor ao condom, alegando interferência no prazer, medo de rompimento e ardência durante o ato sexual1717. Silva CM, Vargens OMC. Women´s perception about female vulnerability to STD and HIV. Rev Esc Enferm USP. 2009 [cited 2020 Jan 02];43(2):401-6. Available from: https://doi.org/10.1590/S0080-62342009000200020
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A influência do parceiro na escolha do método contraceptivo aparece como fator importante na adesão e uso correto do condom, como se percebe nas seguintes falas:

[...] não, a gente não esquece. Porque é assim, tipo, ele vai fazer as coisas assim sem o preservativo, aí quando tá perto, ele coloca (o condom) [....] as vezes ele goza fora né, aí tem vez, que ele vai sem (o preservativo)... (P2)

[...] é porque ele não gosta de usar [...] acho que se fosse pela camisinha e tomar remédio ele preferia que eu tomasse remédio, porque ele não gosta de camisinha. (P7)

Questões ligadas ao gênero, fatores socioculturais e econômicos influenciam na forma de ser e agir das pessoas, fazendo com que a relação do casal seja orientada por modelos, ideias e valores do masculino e feminino. A recusa do homem frente ao uso do condom revela uma relação de desigualdade, onde as mulheres não encontram espaço para discutir e negociar o uso do condom, deixando-se influenciar pela afetividade, medo de ser considerada má esposa e receio de perder o parceiro1717. Silva CM, Vargens OMC. Women´s perception about female vulnerability to STD and HIV. Rev Esc Enferm USP. 2009 [cited 2020 Jan 02];43(2):401-6. Available from: https://doi.org/10.1590/S0080-62342009000200020
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[...] o homem reclamava [do preservativo], ai a gente tava usando nada, tava fazendo coito interrompido [...] às vezes eu evitava assim com preservativo, [...] ai pegava e fazia assim, tinha relação normal e quando ele tava pra terminar ele interrompia o coito, aí pronto [...] é, deu certo, mas sempre eu com pé atrás. (P10)

Nesse estudo o uso da pílula (contraceptivo hormonal oral combinado) aparece com pouca aceitação e adesão por ser um método que necessita ser lembrado e utilizado diariamente, o que se torna difícil no período da crise álgica e internamentos recorrentes. Além do medo dos efeitos colaterais da pílula.

[...] olha, eu tomo, mas porque me dão, porque se for pra me levantar e pegar, eu não vou tomar[...] até porque os remédios que eu tomo ainda dão muito sono, aí eu posso esquecer de tomar [...] É dificultoso, a gente esquece de qualquer coisa no período da crise [...] debilitadíssima, dependente de qualquer outra pessoa.(P1)

[...] comprimido eu esqueço muito por tomar muito comprimido né!? Já tomo dois, é dois comprimidos, hydrea [hidroxiuréia] né, um de manhã e um de noite. Ácido fólico, é muito comprimido e às vezes a gente acaba esquecendo né? (P5)

Apesar da contracepção combinada ser fator de risco para tromboembolismo e a DF também ser uma condição protrombótica, não há evidências em estudos bem desenhados de que as duas condições possam potencializar os riscos de trombose1818. Haddad LB, Curtis KM, Legardy-Williams JK, Cwiak C, Jamieson DJ. Contraception for individuals with sickle cell disease: a systematic review of the literature. Contraception. 2012;85(6):527-37. doi: https://doi.org/10.1016/j.contraception.2011.10.008
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. No que se refere aos contraceptivos combinados de baixa dose, estes são classificados pela OMS66. World Health Organization (CH). Medical elegibility criteria for contraceptive use. 5th ed. Geneva: WHO; 2015 [cited 2020 Jan 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/181468/9789241549158_eng.pdf
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como de categoria II para DF, onde os benefícios superam os riscos.

Em relação ao Dispositivo Intra Uterino (DIU) as participantes deste estudo, não o relacionaram a dor ou piora do quadro, porém, demonstraram insegurança e medo perante a ação do método. Para elas, há falta de esclarecimento sobre a ação do DIU e sobre os efeitos que ele pode somar ao quadro da DF, como se percebe nas falas das mulheres:

[...] porque o povo fala demais que isso causa câncer, atrai câncer, coisa assim, aí eu fico meio assim, com aquele negócio né. (P6)

[...] tinha medo do DIU, porque cada um que fale um negócio diferente, aí a gente fica sem saber em quem acreditar. Eu tenho medo também, é, sei lá, porque assim, eu tenho anemia falciforme, eu sei que tem muita gente que tem ai e tá usando, ai eu tenho medo de se acontecer alguma coisa comigo. (P8)

O DIU tem alta eficácia contraceptiva e alta taxa de continuidade do uso. Pelos critérios da OMS66. World Health Organization (CH). Medical elegibility criteria for contraceptive use. 5th ed. Geneva: WHO; 2015 [cited 2020 Jan 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/181468/9789241549158_eng.pdf
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, o DIU de progesterona é classificado na categoria I, enquanto o de DIU de cobre é classificado como categoria II, pela possibilidade de aumentar o risco hemorragia na mulher com DF.

Uma revisão sistemática sobre contracepção em mulheres com DF, analisou 9 artigos, dos quais apenas um avaliou a segurança do DIU em 28 mulheres, sem especificar o tipo do DIU. Menorragia e infecção não especificada foram descritos entre os efeitos colaterais1818. Haddad LB, Curtis KM, Legardy-Williams JK, Cwiak C, Jamieson DJ. Contraception for individuals with sickle cell disease: a systematic review of the literature. Contraception. 2012;85(6):527-37. doi: https://doi.org/10.1016/j.contraception.2011.10.008
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. Há de se mencionar também que muitos profissionais de saúde não estão adequadamente treinados para inserção de DIU, gerando insegurança na decisão das mulheres em escolher esse método contraceptivo.

Sentimento diante da gestação

Das 15 mulheres entrevistadas neste estudo, 14 já tinham experimentado uma gravidez e destas, oito relataram que não desejariam nova gravidez pelo temor de reviver os problemas enfrentados em gravidezes anteriores. Para a maioria das mulheres, a gestação traz consigo um marco de lembranças de dor e sofrimento. Sete das 15 mulheres entrevistadas haviam experimentado a ocorrência de abortos espontâneos em gestações anteriores. Entre aquelas com filhos vivos, todos nasceram com o traço falciforme. O medo de engravidar aparece como o principal fator de escolha e continuação de uso do método contraceptivo. O desejo de ser mãe é entrelaçado a expressões de sofrimento, ao relembrar o aumento das crises álgicas e internações, o medo de morrer, de ter filhos com malformações, que não sobrevivam ou que venham a sofrer com a doença. O momento da gestação foi um assunto difícil de ser lembrado como se percebe nos seguintes relatos:

[...] não é porque eu não queira engravidar, é porque eu não quero que um filho meu passe pela mesma coisa que eu passo, que é sofrimento, é sofrimento pra mim e pra minha família, que tem que me socorrer, porque não tem hora pra atacar. É tarde da noite, de madrugada, pode ser a hora que for, bateu tem que levar logo, que eu não consigo nem andar. Então eu não quero isso para filho meu, não quero mesmo. (P4)

[...] [durante a gestação] tive muitas crises de dores nas pernas, eu sempre era internada, sempre, sempre! O médico daqui não queria liberar pra voltar pra casa [...] todo dia praticamente tinha que vir tomar sangue pra conseguir chegar até o final da gravidez. (P9)

Estudo que analisou a percepção de mulheres com DF sobre a gestação, encontrou sentimentos negativos relacionados às intercorrências gestacionais em gestações anteriores1919. Xavier ASG, Ferreira SL, Carvalho ESS, Araújo EM, Cordeiro RC. Perception of women suffering from sickle cell anemia regarding pregnancy: an exploratory study. Online Braz J Nurs. 2013;12(4):834-43. doi: https://doi.org/10.5935/1676-4285.20134289
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. Esse sentimento das mulheres tem fundamento na literatura. Em uma pesquisa sobre intercorrências gestacionais em mulheres com DF, encontrou-se uma taxa de 28,5% de abortamentos na primeira gestação. Além disso, a morbidade materno-fetal esteve relacionada às crises álgicas recorrentes, infecções pré e pós-parto, insuficiência cardíaca congestiva, abortamento espontâneo, crescimento intrauterino restrito, pré-eclâmpsia, malformação fetal, dentre outras complicações33. Silva FAC, Ferreira ALCG, Hazin-Costa MF, Dias MLG, Araújo AS, Souza AI. Adverse clinical and obstetric outcomes among pregnant women with different sickle cell disease genotypes. Int J Gynecol Obstet. 2018;143(1):89-93. doi: https://doi.org/10.1002/ijgo.12626
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.

Apesar dos riscos evidenciados na literatura, a DF por si só, não é contra-indicação para engravidar66. World Health Organization (CH). Medical elegibility criteria for contraceptive use. 5th ed. Geneva: WHO; 2015 [cited 2020 Jan 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/181468/9789241549158_eng.pdf
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. O acompanhamento pré-natal criterioso e a capacitação permanente dos profissionais para realização do manejo correto da doença, são estratégias que podem possibilitar a gestação, reduzindo assim, o risco da morbimortalidade materno-fetal33. Silva FAC, Ferreira ALCG, Hazin-Costa MF, Dias MLG, Araújo AS, Souza AI. Adverse clinical and obstetric outcomes among pregnant women with different sickle cell disease genotypes. Int J Gynecol Obstet. 2018;143(1):89-93. doi: https://doi.org/10.1002/ijgo.12626
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A visão do profissional de saúde centrado nos riscos gestacionais na mulher com DF, acaba por amedrontar e desencorajar mulheres que possuem o desejo de ser mãe, contribuindo para a construção do pensamento equivocado, amplamente difundido, que a mulher com DF não pode ter filhos1919. Xavier ASG, Ferreira SL, Carvalho ESS, Araújo EM, Cordeiro RC. Perception of women suffering from sickle cell anemia regarding pregnancy: an exploratory study. Online Braz J Nurs. 2013;12(4):834-43. doi: https://doi.org/10.5935/1676-4285.20134289
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. Esse pensamento é expresso através da fala das mulheres deste estudo, em atendimentos em outros momentos:

[...] já falou que eu podia morrer no parto, que um filho meu podia nascer com a falciforme. Disseram até que eu não tinha nem chance. (P4)

[...] falavam que era de alto risco [gestação], explicava que não era muito indicado pra quem tem anemia falciforme. Fiquei até com vergonha quando engravidei, pra dizer ao médico. (P9)

Consulta ginecológica

A consulta ginecológica foi considerada um espaço importante para o acompanhamento da saúde e aquisição de conhecimento; descrita pela maior parte das mulheres como o momento onde, de fato, foi possível conhecer os métodos contraceptivos e ter acesso ao acompanhamento reprodutivo. O profissional de saúde teve um papel fundamental na orientação para escolha do método contraceptivo. Como revelam os discursos a seguir:

[...] eu sempre ouvi falar do DIU, mas eu nunca tinha visto, então foi quando ela (profissional de saúde) me mostrou e disse que também não engravidaria e tinha um (DIU) que a pessoa pode menstruar, só que o que ela vai botar em mim eu não vou menstruar. Então, pra mim foi importante. É muito importante. Porque se você tem alguma dúvida ela sempre está ali pra lhe ajudar e até por telefone mesmo ela conversa comigo. (P4)

[...] ela me explicou todas [anticoncepcionais], qual era o melhor, o que eu mais gosto, se eu gosto de injeção, se eu não gosto, se eu me incomodo, então ela me deu tudo em pratos limpos e me mandou escolher. Entendeu? (P5)

É preciso ressaltar a importância que a orientação dos profissionais de saúde desempenha sobre o processo de escolha dos métodos. Percebeu-se no discurso das mulheres que o fato de não terem acesso à informação contraceptiva durante boa parte da vida, as fizeram identificar a diferença quando recebem orientações claras e eficazes, assim como proporcionou o desenvolvimento de um vínculo de confiança com o profissional de saúde o que possibilitou conhecimento referente ao uso dos métodos.

Apesar de haver uma grande preocupação dos profissionais de saúde em oferecer uma boa orientação sobre métodos para prevenção de gravidez, muitas vezes, não foi considerado o desejo da paciente, comprometendo a autonomia da mulher sobre questões reprodutivas1919. Xavier ASG, Ferreira SL, Carvalho ESS, Araújo EM, Cordeiro RC. Perception of women suffering from sickle cell anemia regarding pregnancy: an exploratory study. Online Braz J Nurs. 2013;12(4):834-43. doi: https://doi.org/10.5935/1676-4285.20134289
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[...] eu gostaria de menstruar, eu já falei pra ela [profissional de saúde] dá outra vez que eu vim, ela disse: por que? Eu disse porque eu sinto falta da minha menstruação, quero menstruar [...] Ela disse que não é bom pra mim, quanto mais sangue eu perco é pior pra mim [...] Eu: mais doutora, (a menstruação) era só três dia.(P4)

[...].não que eu confie também no DIU, mais de tanto que já me insistiram, de tanto que ela fala [profissional de saúde], tanto que ela fala... aí eu disse a ela, depois quem sabe, depois que eu engravidar de novo ai eu coloco.(P7)

O conhecimento técnico-científico é relevante, pois favorece a expansão do cuidado em saúde. No diálogo há a possiblidade de identificar as reais necessidades do outro e fazer as escolhas mais adequadas de cuidado de saúde88. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006.. Deste modo, atender a mulher com DF demanda do profissional de saúde não apenas conhecimento dos aspectos clínicos da doença e dos métodos contraceptivos, mas também sensibilidade para questões que envolvem a relação paciente-profissional. O profissional de saúde tem que ver para “além do caso” a fim de conseguir avaliar o paciente no todo, considerando não só a melhora da saúde, mas o modo de ser e pensar de quem busca cuidado88. Gadamer HG. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes; 2006.. Assim, é fundamental ajudar as mulheres com DF a terem autonomia no seu processo de se cuidar, bem como suas questões contraceptivas2020. Silvia RCC, Ferreira SL, Santos ACC. The illness of women and men with sickle cell disease: a Grounded Theory study. Rev Latino-Am Enfermagem. 2015;23(6):1113-20. doi: https://doi.org/10.1590/0104-1169.0594.2656
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. Ressalta-se também que muitos profissionais de saúde podem se sentir inseguros e despreparados para o atendimento de mulheres com DF, o que pode influenciar na escolha contraceptiva desse grupo de mulheres. Dessa forma, é importante o engajamento desses profissionais em treinamentos e programas de educação continuada com ênfase não apenas nos riscos de uma gestação em mulheres com DF mas também programas que alertem esses profissionais sobre as demandas contraceptivas não atendidas nesse grupo de mulheres bem como a necessidade de orientação e oferecimento de contracepção efetiva e segura.

O enfermeiro se torna uma profissional chave de aproximação entre os serviços e as mulheres com DF, uma vez que é o profissional treinado para o cuidado, entre outras habilidades. Cabe ao enfermeiro desenvolver aptidões para o acolhimento cuidadoso da mulher com DF, principalmente no contexto da atenção primária, no intuito de fortalecer a equipe de saúde na busca pelo atendimento individualizado e de qualidade na assistência contraceptiva1212. Moura LNB, Gomes KRO. Planejamento familiar: uso dos serviços de saúde por jovens com experiência de gravidez. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(3):853-63. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232014193.10902013
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os relatos demonstram que a doença vai além da condição de saúde, influenciando o âmbito profissional, econômico, social e psíquico dessas mulheres e gerando fragilidades na qualidade de vida e no convívio com a doença.

Ficou evidente que a mulher com DF sofre influência de vários fatores: medo da gestação, falta de informação sobre planejamento reprodutivo, efeitos colaterais dos métodos contraceptivos, influência do parceiro, influência profissional e dificuldades de acesso ao serviço de saúde. Diante desses potenciais fatores influenciadores na decisão contraceptiva das mulheres em geral, e particularmente aquelas com DF, fica reservado aos profissionais de saúde não só o conhecimento e compreensão deles, mas também ações e estratégias educativas no momento da orientação contraceptiva de cada mulher sempre levando em consideração uma prática centrada no indivíduo. Fatores relativos às dificuldades de acesso aos serviços de saúde e ao seguimento do uso dos métodos contraceptivos, devem ser também enfatizados, no sentido de contribuir para implementação de serviços de saúde sexual e reprodutiva sustentáveis. Uma limitação deste estudo é que ele reflete a percepção de um grupo de mulheres com DF que não permite generalização para outros grupos.

Destaca-se a importância do investimento na capacitação profissional permanente, a fim de aprimorar o manejo reprodutivo na DF, bem como, sugere-se o desenvolvimento de políticas públicas, incentivos financeiros e estruturação dos serviços de saúde, de forma a facilitar o acesso contraceptivo das mulheres com DF.

Agradecimento

À FACEPE - Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco pela bolsa de doutorado (Processo: IBPG-0860-4.01/16) concedida a Evelyne Nascimento Pedrosa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2020
  • Aceito
    11 Dez 2020
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