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Objeção de consciência: reflexões para a enfermagem em Portugal

Resumos

Objetivo:

Proceder a uma discussão acerca da objeção de consciência na prática da enfermagem de forma a identificar a fundamentação ética e legal, para esta tomada de decisão.

Metodologia:

Estudo qualitativo no qual a metodologia utilizada foi a reflexão ética com base numa análise jurídica das leis em apreço, procedendo-se a uma pesquisa bibliográfica e documental.

Conclusão:

A lei portuguesa e as bases éticas que constituem a base do Código Deontológico dos enfermeiros em Portugal, protegem a liberdade de consciência como um direito profissional. Todavia, é também clara a obrigação de proteção da vida humana, pelo que se impõe a necessidade de articulação entre esta proteção e o exercício do direito à objeção de consciência por parte do enfermeiro.

Ética em enfermagem; Legislação de enfermagem; Início da vida humana


Objective:

to discuss conscientious objection in nursing, identifying the ethic and legal basis for this decision-making.

Methodology:

qualitative study in which the methodology used was ethical reflection based on a legal analysis of the laws in question, proceeding to a bibliographical and documentary research

Conclusions:

Portuguese law and ethical pillars that form the basis of the Code of Ethics of nurses in Portugal defend the freedom of conscience as a professional practice. However, the obligation to protect human life, which imposes the need for coordination between this protection and the exercise of the right to conscientious objection on the part of the nurse, is also clear.

Ethics in nursing; Nursing legislation; Beginning of human life


Objetivo:

llevar a cabo un debate sobre la objeción de conciencia, en la práctica de enfermería, con el fin de identificar la base ética y jurídica de esta toma de decisiones.

Metodología:

estudio cualitativo en el que la metodología fue la reflexión ética basada en un análisis jurídico de las leyes en cuestión, procediendo la búsqueda bibliográfica y documental

Conclusión:

la ley portuguesa y bases éticas que forman la base de nuestro Código de Ética, protegen la libertad de conciencia, que es un valor fundamental para las sociedades democráticas y plurales. Sin embargo, también es obligación clara protección de la vida humana desde su forma más cruda (desde el comienzo de la vida humana), por lo que impone la necesidad de coordinación entre esta protección y la existencia de aborto legal en la legislación nacional.

Ética en enfermería; Legislación de enfermería; Comienzo de la vida humana


INTRODUÇÃO

O presente artigo aborda a problemática da objeção de consciência relacionada com o agir profissional do enfermeiro, nomeadamente no que se refere à decisão de cuidado no início da vida. O início da vida, costuma ser definido em termos éticos, como o período do desenvolvimento humano que inclui o planeamento da gravidez, a própria gravidez e o nascimento. Por se tratar de um período da vida das pessoas que implica inúmeras decisões que têm consequências éticas, estão identificados na literatura diversos problemas éticos que se relacionam com os cuidados de enfermagem, sendo os principais domínios o planeamento familiar, a procriação medicamente assistida e o aborto, de onde emergem problemas éticos com os quais os profissionais de saúde em geral e os enfermeiros em particular se deparam.

Nas decisões de cuidado relativas aos problemas éticos identificados na sua prática clínica, o enfermeiro confronta-se com um eventual conflito entre os seus valores e os seus princípios éticos e os das pessoas ao seu cuidado. É o que acontece nas decisões de cuidado relativas ao início da vida.

Sendo confrontado num pedido de cuidados - por exemplo de aborto - o enfermeiro pode não aceitar a prática desse ato, por violar o seu valor profissional de respeito pela vida. Perante este confronto, o enfermeiro pode fazer uso do seu direito à objeção de consciência, consistindo esta na decisão de não realizar uma determinada ação, porque a mesma atenta contra os valores desse profissional, podemos afirmar que estamos perante uma discordância entre a consciência individual e o cuidado pedido.

Nesta reflexão incidiremos o nosso foco essencialmente sobre a questão do aborto, porque este constitui uma dos maiores problemas éticos relacionado com o inicio da vida, com o qual o enfermeiro se confronta, contudo é de referir que o conceito de objeção de consciência é de maior amplitude. No conjunto dos problemas éticos em saúde, podemos também fazer uso da objeção de consciência noutras situações em que haja conflito entre o cuidado que nos é pedido e os nossos valores e princípios éticos(11. Paço S. Breve reflexão sobre a objeção de consciência. Salutis Scientia. 2013;5: 40-50.).

Deste modo, o presente artigo, usa como metodologia a reflexão ética sobre a temática da objeção de consciência de enfermagem relacionada com os problemas éticos relativo ao início da vida, com base numa análise jurídica das principais leis que regulam a objeção de consciência em Portugal e numa análise deontológica dos normativos deontológicos portugueses sobre este assunto. Pretendemos assim, aprofundar a reflexão ética sobre este tema, mas com um suporte jurídico e deontológico adequados.

O quadro regulador da objeção de consciência do enfermeiro português

A liberalização do aborto até à 10ª semana em Portugal, deu origem a uma enorme discussão na sociedade, tendo emergido a questão da objeção de consciência, nomeadamente no caso do aborto a pedido a mulher, sem necessidade de qualquer outra razão. A legalização do aborto, fez intensificar a discussão acerca do conflito entre a liberdade da mulher nesta decisão e a liberdade dos profissionais de saúde envolvidos. É, pois obrigatória, alguma reflexão acerca da determinação do papel do enfermeiro nesta decisão, enquanto profissional de saúde, uma vez que a enfermagem tem como função o cuidado em todo o ciclo vital do homem(22. Ministério da Saúde (PT). Decreto-lei nº 104/98, de 21 de abril. Cria a Ordem dos Enfermeiros e aprova o respectivo estatuto. Diário da República. 1998 abr. 21;(93 I Série A):1739-57. Aterado pela Lei 111/ 2009 de 16 de setembro.).

Temos sempre presente que a liberdade de consciência constitui um direito fundamental do homem (como veremos na legislação adiante mencionada) e que este direito foi também consagrado pela Ordem dos enfermeiros em Portugal , no seu Código Deontológico (Decreto-Lei nº 104/98 de 21 Abril/ Estatuto da Ordem dos enfermeiros), para estes profissionais. Assim, o profissional de enfermagem é objetor de consciência sempre que por motivos de ordem filosófica, ética, moral ou religiosa "esteja convicto de que não lhe é legítimo obedecer a uma ordem particular, por considerar que atenta contra a vida, contra a dignidade da pessoa humana ou contra o código deontológico"(22. Ministério da Saúde (PT). Decreto-lei nº 104/98, de 21 de abril. Cria a Ordem dos Enfermeiros e aprova o respectivo estatuto. Diário da República. 1998 abr. 21;(93 I Série A):1739-57. Aterado pela Lei 111/ 2009 de 16 de setembro.) . Podemos também afirmar que a objeção de consciência é uma "posição subjetiva, protegida constitucionalmente, que se traduz no não cumprimento de obrigações e no não praticar de atos previstos legalmente, em virtude de as próprias convicções do sujeito o impedirem de as cumprir, sendo que estes atos e incumprimentos estão isentos de quaisquer sanções"(22. Ministério da Saúde (PT). Decreto-lei nº 104/98, de 21 de abril. Cria a Ordem dos Enfermeiros e aprova o respectivo estatuto. Diário da República. 1998 abr. 21;(93 I Série A):1739-57. Aterado pela Lei 111/ 2009 de 16 de setembro.).

A objeção de consciência em cuidados de enfermagem significa também uma decisão de não fazer um determinado ato e portanto "implica sempre uma recusa de cuidado e portanto uma violação do direito ao cuidado do outro"(33. Deodato S. Responsabilidade profissional em enfermagem: valoração da sociedade. Coimbra: Almedina; 2008.). Desta forma é necessário o exercício de alguma reflexão acerca deste conflito e sobretudo perceber de que forma está alicerçado este direito.

A pesquisa que suportou este artigo, iniciou-se nas fontes jurídicas internacionais, pelo que o primeiro olhar incide sobre a "Declaração Universal dos Direitos do Homem"(44. Declaração Universal dos Direitos do Homem: adotada e proclamada pela Resolução n.º 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em10 de dezembro de 1948 [cited 2015 jul. 30]. Available at: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPAG3_1_3.htm
http://direitoshumanos.gddc.pt/3_1/IIIPA...
). Esta Declaração tem como objetivo ser o "ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações", e afirma no seu artigo 18º que "Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou de convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos". Consagra-se assim o direito à liberdade de pensamento, em que se fundamenta o direito à objeção de consciência.

Também a "Convenção Europeia dos Direitos do Homem"(55. Conselho da Europa (FR). Convenção Europeia dos Direitos Humanos [Internet]. Strasbourg: Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, 2003 [cited 2015 jul. 10. Available at: http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf
http://www.echr.coe.int/Documents/Conven...
), profere no número 1 do seu artigo 9º que "Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião...". Refere também no número 2 do mesmo artigo, que as restrições existentes ao seu exercício, serão "as que previstas na lei, constituíremdisposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem".

A legislação portuguesa assegura igualmente, o direito à objeção de consciência dos cidadãos e profissionais de saúde. Iniciamos a sua análise pela "Constituição da República Portuguesa"(66. Presidência da República (PT). Decreto da aprovação da Constituição de 10 de abril. Diário da República. 1976 abr. 10;(86 I Série):738-75.) que no seu artigo 41º consagra de forma explícita o direito à objeção de consciência a todos os cidadãos, enquanto direito relativo à liberdade de consciência.

Sendo a Constituição da República Portuguesa a base de toda a legislação portuguesa, é possível constatar que a objeção de consciência é um direito que assiste a qualquer cidadão português (incluído os profissionais de saúde e em particular os enfermeiros)

Uma das primeiras primeira referências legais à objeção de consciência em saúde, foi efetuada apenas em 1984, com a Lei 3/84, de 24 de Março relativa à educação sexual e planeamento familiar, que estabelece a garantia do direito à objeção de consciência, para os profissionais de saúde. Afirma-se, no art.º 11º que "É assegurado aos médicos o direito à objeção de consciência quando solicitados para a prática da inseminação artificial ou de esterilização voluntária".

O Código Penal nas suas sucessivas revisões, contemplou também o direito à objeção de consciência para estes profissionais em caso de pedido de aborto (Lei 6/84, de 11 de Maio; Decreto Lei 48/95, de 15 de Março; Lei 90/97, de 30 de Julho e por último Lei 16/2007, de 17 de Abril). Estas alterações sucessivas da lei, relativamente à interrupção voluntária da gravidez, ocorreram no sentido de uma maior liberalização, com alargamento dos prazos, e também da exclusão da ilicitude por vontade própria da grávida até a décima semana (na sua última revisão).

A Lei 6/84, de 11 de Maio(77. Assembleia da República (PT). Lei 6/84, de 11 de maio. Exclusão da ilicitude em alguns casos de interrupção voluntária da gravidez. Diário da República. 1984 maio 11;(109 I Série):1518-9.) é a primeira no que diz respeito à exclusão de ilicitude nalguns tipos de aborto. Até esta data, qualquer tipo de aborto era crime passível de pena. Nesta lei são consideradas situações de exclusão, nomeadamente aquelas que implicarem risco para a vida ou para a saúde da mulher, casos em que se preveja doença incurável, grave doença ou malformação do nascituro ou em casos de violação sexual.

Nesta lei fica assegurado o direito à objeção de consciência e a forma da sua manifestação (O art.º 4º, alínea 2 estabelece que "A objeção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objetor e a sua decisão deve ser imediatamente comunicada à mulher grávida ou a quem no seu lugar pode prestar o consentimento, nos termos do Artigo 141º do Código Penal").

Ainda no âmbito do início da vida, em 2006, é novamente mencionado o direito à objeção na Lei sobre a Procriação Medicamente Assistida(88. Assembleia da República (PT). Lei nº 32/2006, de 26 de julho. Procriação medicamente assistida. Diário da República. 2006 jul. 26(143 I Série):5245-50.). Referimos esta lei porque possui a particularidade de evidenciar a necessidade do objetor explicitar o porquê dessa decisão, estabelecendo no número 3 do seu art.º11"a recusa do profissional deve especificar as, razões de ordem clínica ou de outra índole que a motivam, designadamente a objeção de consciência" (e nesse sentido é única, pois todos as outras leis não fazem referencia a essa obrigação). A explicitação do "porquê" da objeção, prevista na lei, constitui uma forma de exercício de reflexão acerca dos nossos valores e consciência ética que devem guiar os nossos cuidados, o que constitui um apelo à fundamentação da decisão, que nos parece bastante apropriado e necessário.

Em 2007, é novamente alterada a lei de exclusão de ilicitude nos casos de interrupção voluntária de gravidez (IVG) com a Lei nº16/2007, de 17 de Abril(99. Assembleia da República (PT). Lei nº16/2007, de 17 de abril. Exclusão da Ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez. Diário da República. 2007 abr. 17;(75 1ª Série):2417-8.), que previu, desde logo, a objeção de consciência para os profissionais de saúde. Esta lei vem novamente alargar prazos e permite o aborto da mulher até à décima semana por decisão da mesma. A lei determina ainda a obrigatoriedade do ato de abortamento ser executado, em estabelecimentos autorizados oficialmente. Fica regulado que os objetores não poderão participar nas consultas previstas, que antecedem o ato da IVG, nem no acompanhamento das mulheres grávidas, durante este período de reflexão (previsto na lei, e que deve ser de pelo menos 3 dias).

Esta lei menciona ainda que a objeção de consciência deve ser manifestada "em documento assinado pelo objetor, o qual de deve ser apresentado, conforme os casos, ao diretor clínico ou ao diretor de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objetor preste serviço e em que se pratique a interrupção voluntária da gravidez" (número 4, do Artigo 6º). Na prática, a objeção de consciência é manifestada em documento assinado pelo objetor, o qual deve ser apresentado, conforme os casos, ao diretor clínico ou ao diretor de enfermagem de todos os estabelecimentos de saúde onde o objetor preste serviço, e em que se pratique interrupção voluntária da gravidez existindo um documento onde consta o nome do profissional, o número da sua cédula profissional, data e assinatura. Devem também ser especificadas, quais as alíneas do nº1 do artigo 142ª do Código Penal a que concretamente se refere a objeção. É também neste documento que o profissional se compromete a prestar assistência às mulheres cuja saúde esteja comprometida ou em risco decorrente da Interrupção Voluntária da Gravidez. Comprometem-se também a encaminhar estas mulheres para os serviços competentes dentro dos prazos legais. Deste modo, o direito à objeção de consciência do profissional não prevalece sobre o direito a receber cuidados de saúde. Havendo decisão de não agir, pelo enfermeiro, há o dever de encaminhar a pessoa em causa, para outro profissional que esteja em condições - que não seja objetor de consciência - para realizar a intervenção.

Por outro lado, uma vez invocada a objeção de consciência, a mesma produz necessariamente efeitos independentemente da natureza dos estabelecimentos de saúde em que o objetor preste serviço, sendo evidente a necessidade de coerência , pois o profissional que se declara objetor no serviço público, será igualmente no exercício em instituição privada. Caso incorra em falta, sofrerá sanção deontológica e legal.

Existe pois em Portugal o direito ao aborto, em determinadas circunstâncias, que estão previstas na lei, mas a mesma confere o direito à objeção por parte dos profissionais. Fica assim assegurada a proteção dos profissionais de saúde, sendo possível não efetuaram atos que violem a sua consciência, sempre que os mesmos estejam previstos na lei, como no caso do aborto.

Existem autores(10) que defendem que no "Abortion Act" de 1967 (1ª Lei em Inglaterra a permitir o aborto legal, dentro de determinados critérios), que ninguém está obrigado a participar em qualquer tratamento aí previsto, exceto se necessário para prevenir danos graves da saúde ou morte da mulher grávida. Esta obrigação está igualmente plasmada, na legislação portuguesa. Por esta razão muitos autores invocam o princípio do duplo efeito, no sentido tornar aceitável a perda da liberdade de consciência em detrimento de valores como a vida e a saúde de terceiros.

Como a maioria das legislações indica, a objeção só pode existir relativamente a um ato em concreto. O limite para a recusa do procedimento só poderá ser invocado apenas por profissionais diretamente ligados ao ato em si, como o médico, anestesista ou enfermeiro. No entanto, os cuidados essenciais, como os pós-anestésicos não podem ser declinados.

Com base nesta diferença de opiniões, podem os enfermeiros invocar o seu direito à liberdade de consciência. Deontologicamente, este direito é concedido, sob forma da objeção de consciência, sendo depois regulamentado com mais detalhe no "Regulamento do Exercício do Direito à Objeção de Consciência" da Ordem dos Enfermeiros(22. Ministério da Saúde (PT). Decreto-lei nº 104/98, de 21 de abril. Cria a Ordem dos Enfermeiros e aprova o respectivo estatuto. Diário da República. 1998 abr. 21;(93 I Série A):1739-57. Aterado pela Lei 111/ 2009 de 16 de setembro.). O direito à objeção, para estes profissionais, "consubstancia-se, no direito a recusar uma obrigação legal em nome da consciência individual"(1111. Nunes L. Breve memória cronológica da objecção de consciência. Revista da Ordem dos Enfermeiros. 2007;26(6):19-21.) e, quando a ação de enfermagem a desenvolver relativa a uma ordem emanada pelos seus superiores hierárquicos ou através de uma prescrição realizada no âmbito das suas intervenções interdependentes e independentes, coloque em causa os valores ou os princípios desse profissional ou esteja em oposição com as convicções religiosas, morais ou éticas do enfermeiro, e perante a qual, é manifestada a recusa para a sua concretização fundamentada em razões de consciência(11).

O Código Deontológico dos enfermeiros portugueses, afirma no seu artigo 78º (Lei nº 111/2009 de 16 de setembro) que as intervenções em enfermagem "são realizadas com a preocupação da defesa da liberdade e da dignidade da pessoa humana e do enfermeiro". Analisando ainda este artigo pode dizer-se que a defesa da liberdade implica a aceitação das escolhas dos outros, respeitando a integridade e a consciência do próprio profissional. As intervenções em enfermagem têm sempre presentes preocupações com os valores da liberdade e da dignidade humana da pessoa, mas obviamente, também respeita os mesmos valores para o enfermeiro. Por isso, podemos ler na alínea b) do número 2 do Artigo 75º do Estatuto da Ordem, que o enfermeiro tem direito ao "respeito pelas suas convicções políticas, religiosas, ideológicas e filosóficas", e é consagrado o direito à objeção de consciência.

O Artigo 76º, refere-nos que é dever dos enfermeiros "exercer a profissão com os adequados conhecimentos científicos e técnicos, com respeito pela vida, pela dignidade humana e pela saúde e bem-estar da população". No artigo 82º pode ainda ler-se que "o enfermeiro no respeito do direito da pessoa igual à vida, durante todo o ciclo vital, assume o dever de atribuir à vida de qualquer pessoa igual valor, pelo que protege e defende a vida humana em todas as circunstâncias".

O respeito pela vida é sem dúvida um dos valores que regem esta profissão, embora fique por definir neste artigo 82º, o que se entende como ciclo vital, para que se possa alcançar quando se deve iniciar esta proteção. Não é claro o critério adotado pela Ordem dos Enfermeiros Portugueses, deixando em aberto a definição de início de vida humana. Num breve resumo relembramos a existência de distintos juízos acerca deste conceito: Concepção; nidificação; aparecimento da linha primitiva; aparecimento da atividade cerebral ou a viabilidade(1212. Loureiro J C .Estatuto do embrião. In: Archer L, Biscaia Osswald W, Renaud M. Novos desafios à bioética. Lisboa: Porto Editora; 2001. p. 110-21.).

Em 2005, contudo, a Ordem publica o "Código Deontológico do Enfermeiro: dos comentários à Análise de Casos"(1313. Nunes L, Amaral M, Gonçalves R. Código deontológico do enfermeiro: dos comentários à análise de casos. Lisboa: Edição da Ordem dos Enfermeiros; 2005.), onde é possível apurar o que se entende por Ciclo Vital e consequentemente o início de vida humana. Surge com a fecundação, segundo os autores, e termina com a morte. Mas subsiste sempre, relativamente a opção de objeção de consciência, a avaliação efetuada pelo agente (no caso pelo enfermeiro) e a sua reflexão ética, que será baseada nos seus valores pessoais e profissionais.

Segundo a Ordem dos Enfermeiros, a "consciência moral deve ser respeitada porque é a dimensão mais específica da dignidade do ser humano"(1313. Nunes L, Amaral M, Gonçalves R. Código deontológico do enfermeiro: dos comentários à análise de casos. Lisboa: Edição da Ordem dos Enfermeiros; 2005.). A legitimidade da objeção advêm da reflexão que foi realizada pelo próprio acerca dos seus valores pessoais, e às quais se pretende manter fiel, pelo que se preconiza que este seja um ato de boa-fé e de respeito pela liberdade de pensamento dos outros.

CONCLUSÃO

Neste artigo, procuramos conjugar a legislação vigente na saúde em Portugal, relativamente à questão da objeção de consciência, nomeadamente no que se refere ao exercício profissional de enfermagem, permitindo a identificação da sua fundamentação ético-legal, para esta tomada de decisão. Desta análise surge como evidente a proteção da liberdade de consciência em Portugal, assim como idêntico direito para os enfermeiros em particular.

A defesa da vida, constitui uma obrigação moral, deontológica e ética para este grupo profissional e, a objeção de consciência, concede perante a legislação vigente, esta vivência ética. Sobretudo, permite aos enfermeiros uma vivência com a sua profissão, que lhe garante a existência de congruência entre os atos que pratica e a afirmação concomitante dos seus valores pessoais, mas sem prejuízo do direito ao cuidado por parte do cliente (e por isso a obrigação de reencaminhar para outro profissional). A lei exige também a organização dos serviços no sentido que não exista prejuízo para o cliente, obrigando também o profissional a declarar-se atempadamente, de forma a que essa organização seja possível. Por último , não olvidamos a necessidade de este direito ter que ceder sempre que exista perigo para a saúde ou vida para a cliente em causa.

Como ficou demonstrado, quer nos principais documentos legislativos internacionais, quer nas leis que integram o ordenamento jurídico português, o direito à objeção de consciência está claramente consagrado. Através dele, é possível o enfermeiro resolver conflitos éticos entre eventuais pedidos de cuidados e os seus valores e princípios morais.

REFERENCES

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    Paço S. Breve reflexão sobre a objeção de consciência. Salutis Scientia. 2013;5: 40-50.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2015
  • Aceito
    19 Ago 2015
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