Acessibilidade / Reportar erro

O cuidado espiritual realizado em uma unidade de internação em adição

RESUMO

Objetivo:

Conhecer as práticas de cuidado espiritual de trabalhadores de saúde no contexto de uma unidade de internação para o tratamento de transtornos aditivos, visando incorporar uma prática assistencial ampliada.

Método:

Estudo qualitativo com referencial metodológico da Pesquisa Convergente Assistencial. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, três rodadas de conversas e conversas informais com 14 trabalhadores de saúde em uma unidade de internação em adição de julho a novembro de 2017. A análise das informações seguiu as etapas apreensão, síntese, teorização e transferência.

Resultados:

Emergiram quatro categorias: evocação dos valores éticos dos trabalhadores; respeito às crenças e valores do usuário; encontro trabalhador de saúde-usuário e cuidado espiritual em grupo. As principais ações destacadas foram individuais (relaxamento e oração) e coletivas (meditação, espiritualidade e 12 passos).

Conclusão:

As rodadas de conversas, realizadas nesta pesquisa, permitiram aos trabalhadores conversarem sobre o cuidado espiritual na adição, compreendendo melhor a sua relevância assistencial para atender às necessidades do paciente.

Palavras-chave:
Espiritualidade; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Saúde mental; Serviços de saúde mental; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To know the spiritual care practices of health workers in the context of an inpatient unit for the treatment of addictive disorders, aiming to incorporate an expanded care practice.

Method:

Qualitative study considering the Convergent Care Research theoretical framework. The data collection occurred using semi-structured interviews, with three rounds of conversations and informal chats with 14 health professionals, from July to November 2017. The analysis followed the steps of apprehension, synthesis, theorization and transference.

Results:

Four categories emerged: respect for user ethical values; addressing the beliefs and values of professionals; the health professional-user relationship; and collective spiritual care. The main actions highlighted were individual (relaxation and prayer) and collective (meditation, spirituality and the 12 steps).

Conclusion:

The rounds of conversations carried out in this research allowed workers to talk about spiritual care in addiction, to better understand its relevance to meet the needs of the patient.

Keywords:
Spirituality; Substance-related disorders; Mental health; Mental health services; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Conocer las prácticas de cuidado espiritual de los trabajadores de la salud en el contexto de una unidad de hospitalización para el tratamiento de trastornos adictivos, con el objetivo de incorporar una práctica de atención ampliada.

Método:

Estudio cualitativo con referencial metodológico de la Investigación Convergente Asistencial. Se realizaron entrevistas semiestructuradas, tres rondas de conversaciones y conversaciones informales con 14 trabajadores de salud en una internación por adición de julio a noviembre de 2017. El análisis de las informaciones siguió las etapas de aprehensión, síntesis, teorización y transferencia.

Resultados:

Surgieron cuatro categorías: respeto de los valores éticos de los usuarios; creencias y valores de la persona; relaciones profesional de salud-usuario; y cuidado espiritual en grupo. Las principales acciones destacadas fueron individuales (relajación y oración) y colectivas (meditación, espiritualidad y 12 pasos).

Conclusión:

Las rondas de conversaciones, realizadas en esta investigación, permitieron a los trabajadores conversar sobre el cuidado espiritual en la adición, comprendiendo mejor su relevancia asistencial para atender las necesidades del paciente.

Palabras clave:
Espiritualidad; Trastornos relacionados con sustancias; Salud mental; Servicios de salud mental; Enfermería

INTRODUÇÃO

As consequências negativas do consumo abusivo de álcool e outras drogas têm sido identificadas como um problema de saúde pública no Brasil. Muitos são os desafios para o tratamento da adição, que se constitui como um problema complexo, uma vez que não se restringe ao uso de substâncias e seus efeitos no organismo, mas abrange também a área psicossocial e espiritual11. Bastos FIPM,Vasconcellos MTL, De Boni RB, Reis NB, Coutinho CFS, organizadores. III levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ICICT; 2017 [cited 2019 Aug 18]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict...
. Dessa forma, a política nacional brasileira vem atuando numa perspectiva de redução de danos sociais e à saúde para atender às necessidades das pessoas com problemas relacionados ao abuso de drogas22. Presidência da República (BR). Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 2006 ago 24 [cited 2019 Aug 18];150(163 Seção 1):2-6. Available from: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=24/08/2006&jornal=1&pagina=2&totalArquivos=200
http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/v...
.

Devido à complexidade da doença, é importante que qualquer abordagem de tratamento integre os aspectos biopsicossociais e espirituais. Dessa forma, um estudo internacional mostrou que o tratamento precisa contemplar mudanças de hábitos, a reconstrução de relacionamentos familiares, sociais e espirituais, para além da cessação do uso de drogas. Assim, a espiritualidade pode aumentar o potencial de adaptação e o enfrentamento da doença, diminuindo o nível de estresse e ansiedade, podendo evitar o retorno ao uso de drogas33. Shamsalina A, Norouzi K, Fallahi Khoshknab M, Farhoudiyan A. Recovery based on spirituality in substance abusers in Iran. Glob J Health Sci. 2014; 6(6):154-62. doi: https://doi.org/10.5539/gjhs.v6n6p154
https://doi.org/10.5539/gjhs.v6n6p154...
.

A espiritualidade faz parte da natureza humana e tem sido reconhecida cientificamente como uma dimensão essencial no cuidado em saúde. Tanto a espiritualidade quanto as necessidades espirituais do indivíduo são componentes essenciais para realização de um cuidado em saúde integral.

Para tanto, a concepção que o cuidado espiritual é aquele que reconhece e responde às necessidades de resiliência, especialmente quando confrontado com traumas, problemas de saúde ou tristeza. Embora, grande parte dos trabalhadores de saúde reconheça a importância dos aspectos espirituais para a saúde e qualidade de vida dos usuários, poucos se sentem preparados para abordar e incluir as demandas da espiritualidade do indivíduo no cotidiano do cuidado44. Koenig HG. Espiritualidade no cuidado com o paciente: por quê, como, quando e o quê. 2ª ed. São Paulo: FE; 2012..

A espiritualidade aplicada ao cuidado em saúde pode ser de fato um tema complexo por abranger diversos significados, sendo muitas vezes confundida com religião. Espiritualidade é um termo amplo, que envolve a dimensão humana que exprime a busca pessoal por significado e propósito de vida que transcende a realidade da vida cotidiana55. Puchalski CM, Ferrel B. Making health care hole: integrating spirituality into patient care. Pennsylvania: Templeton; 2010.. Por sua vez, a religião se configura como um sistema de crenças, fé, rituais e práticas desenvolvidas para facilitar a proximidade com Deus, com o transcendente, com o sagrado e costuma oferecer um código moral de conduta66. Koenig HG. Medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade. Porto Alegre: L± 2015..

Percebem-se ainda dilemas e angústias desses trabalhadores em abordar os aspectos espirituais dos pacientes devido à confusão gerada em alguns deles, com receio de impor suas crenças ao paciente55. Puchalski CM, Ferrel B. Making health care hole: integrating spirituality into patient care. Pennsylvania: Templeton; 2010.. Frente a esses aspectos, essa pesquisa buscou responder à seguinte questão: Que práticas de cuidado espiritual são realizadas na assistência ao usuário de drogas?

Este estudo teve por objetivo conhecer as práticas de cuidado espiritual de trabalhadores de saúde no contexto de uma unidade de internação para o tratamento de transtornos aditivos institucionalizados, visando incorporar uma prática assistencial ampliada. Com os resultados desta pesquisa, avaliou-se a contribuição para reflexão sobre o cuidado espiritual no serviço de atendimento a usuários de drogas. Espera-se possibilitar um espaço de aprimoramento do cuidado já realizado nesta unidade de internação em adição e que esses achados inspirem outros serviços semelhantes.

MÉTODO

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, que utilizou a Pesquisa Convergente Assistencial (PCA) como referencial metodológico. A PCA tem como característica principal articular ações de assistência com as ações de pesquisa científica, de modo a se tornarem fonte de dados de investigação para produção de mudanças na prática assistencial, quando necessária77. Trentini M, Paim L, Silva DMGV. Pesquisa convergente assistencial (PCA): delineamento provocador de mudanças nas práticas de saúde. Porto Alegre: Moriá; 2014..

A pesquisa foi realizada em uma unidade de internação em adição (UIA) do serviço de tratamento de comportamentos aditivos, sobretudo o abuso de drogas, vinculado ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Rio grande do Sul, Brasil. Trata-se de uma unidade de internação masculina com 22 leitos, sendo 20 públicos e dois privados. O serviço está organizado em um programa de tratamento com a oferta de atendimentos individuas e de grupos terapêuticos, contando com a atuação de uma equipe multiprofissional composta por nove enfermeiros assistenciais, uma enfermeira consultora em dependência química, 22 técnicos de enfermagem, uma nutricionista, três técnicas em nutrição, três atendentes em nutrição, uma psicóloga, um professor de educação física, sete médicos psiquiatras, uma terapeuta ocupacional, uma assistente social, quatro residentes médicos da psiquiatria e 12 residentes multiprofissionais em saúde - Programa de Atenção Integral ao Usuário de Drogas (serviço social, enfermagem, terapia ocupacional, educação física, psicologia e nutrição) - além de estagiários de diferentes categorias profissionais.

Os participantes do estudo foram 14 trabalhadores de saúde da UIA, que desenvolvem suas atividades no programa de tratamento. Os critérios de inclusão adotados foram: a) estar atuando no serviço há pelo menos 3 meses; b) ser trabalhador em saúde da unidade conforme consolidação das leis trabalhistas ou ser residente da área multiprofissional ou médica (psiquiatria) da unidade de adição; d) ser reconhecido pela equipe como alguém que realiza alguma ação ligada ao cuidado espiritual. E, enquanto critério de exclusão adotou-se o fato do trabalhador estar afastado de suas funções laborais no período de coleta de dados. O encerramento de novas entrevistas se deu de acordo com o número de pessoas indicadas pelos próprios trabalhadores pesquisados, identificados a partir da técnica de bola de neve.

A coleta de dados foi realizada, no período de julho a novembro de 2017, o total de 14 entrevistas semiestruturadas, conversas informais com a equipe e três rodadas de conversa, culminando na realização de capacitação institucional específica.

Utilizou-se como técnica principal de coleta de dados a entrevista semiestruturada, com um roteiro pré-estabelecido, abordando concepção sobre o cuidado espiritual, as ações desenvolvidas e os resultados identificados na prática do trabalhador em saúde. Essas entrevistas foram realizadas no próprio serviço e horário de trabalho do entrevistado, sendo registradas em gravador de voz digital e posteriormente foram transcritas na íntegra para serem analisadas.

Para a escolha dos entrevistados utilizou-se a técnica de coleta bola de neve (snowball), para que esta escolha não fosse feita por conveniência da pesquisadora de campo, possibilitando assim que os próprios trabalhadores indicassem um ou mais colegas que realizassem alguma ação de cuidado espiritual. A escolha do primeiro entrevistado foi intencional, a partir do reconhecimento do seu trabalho envolvendo práticas de cuidado espiritual. No final desta entrevista, a pesquisadora solicitou ao entrevistado a indicação de novos entrevistados que realizavam ações de cuidado espiritual na unidade de internação.

Na PCA as conversas informais são abordagens menos estruturadas que permite ao pesquisador estabelecer um vínculo estreito entre o que é dito que é observado nas situações no cotidiano do trabalho77. Trentini M, Paim L, Silva DMGV. Pesquisa convergente assistencial (PCA): delineamento provocador de mudanças nas práticas de saúde. Porto Alegre: Moriá; 2014.. Assim, durante o processo de coleta, realizaram-se conversas informais na sala de lanche, no posto de enfermagem e na sala de passagem de plantão com a intenção de enriquecer o repertório analítico do estudo.

Nesta pesquisa, após a etapa das entrevistas, foram realizadas três rodadas de conversas com a equipe assistencial da unidade nos diferentes turnos de trabalho (manhã, tarde e noite), com uma hora de duração, independentemente da participação desses profissionais na etapa de entrevista. Esta estratégia foi desenvolvida a partir do método da roda, e costuma ser utilizada para a discussão do processo de trabalho das equipes de saúde, visando melhorar a assistência ao usuário e a implicação profissional sobre o trabalho produzido88. Flores GE, Oliveira DLL, Zocche DAA. Educação permanente no contexto hospitalar: a experiência que ressignifica o cuidado em enfermagem. Trab Educ Saúde. 2016;14(2):487-504. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00118
https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip001...
. Estas rodadas foram gravadas e tiveram como objetivo compartilhar ideias e refletir sobre o cuidado espiritual realizado e as possibilidades do seu aprimoramento no cotidiano da assistência.

A partir dessas estratégias de coleta de dados, os participantes propuseram que a discussão realizada ao longo da pesquisa sobre o cuidado espiritual fosse incorporada à matriz de capacitação como uma possibilidade de agregar e expandir a temática da pesquisa a outros profissionais da unidade. Assim, a partir das demandas, interesses e necessidades identificadas pelos participantes em ter maior compreensão do cuidado espiritual na adição, enquanto desdobramento das etapas da pesquisa realizou-se uma capacitação institucional sobre o tema em três momentos distintos para oportunizar a participação dos turnos de trabalho da instituição (manhã, tarde e noite).

Para realizar a análise das informações nesta pesquisa, foram utilizadas quatro etapas: apreensão, síntese, teorização e transferência77. Trentini M, Paim L, Silva DMGV. Pesquisa convergente assistencial (PCA): delineamento provocador de mudanças nas práticas de saúde. Porto Alegre: Moriá; 2014.. Os dados foram analisados à luz da literatura científica sobre a espiritualidade e adição, os quais possibilitaram discutir sobre o cuidado espiritual no tratamento da adição.

Na fase da apreensão consistiu na realização das entrevistas semiestruturadas e os dados referentes às conversas informais e rodadas de conversas. Nesta fase houve apreensão das informações e foi o primeiro momento da análise dos dados. Na fase da síntese houve a reunião dos elementos relevantes do estudo, após uma leitura aprofundada das transcrições das entrevistas e das rodadas de conversa realizadas, norteadas pelo olhar atento dos objetivos do estudo. As informações extraídas foram organizadas em quatro categorias.

Na teorização houve o processo de identificação, definição e de construção de relações entre um grupo de construtos de modo a possibilitar a produção de previsões do fenômeno investigado. A partir do agrupamento feito na fase de síntese, foi feita uma imersão na literatura, para definir a categoria que emergiam do material empírico. Houve o estreitamento das relações entre teoria e prática, possibilitando o desenho dos achados na pesquisa, buscando descobrir os valores nas informações, e a partir daí, a interpretação dos dados. Por fim, na fase da transferência houve a atribuição do significado aos resultados do estudo, contextualizando-os à realidade estudada com vistas à transformação dessa realidade (qualificar a prática assistencial), sem a pretensão de generalizá-los a outros contextos. Foi a etapa final do processo analítico, que foi diretamente ligado à questão do problema de pesquisa no cenário.

Após autorização do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (sob o número 68446517.0.0000.532), realizou-se a coleta dos dados, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) conforme orientações do Conselho Nacional de Saúde. Os participantes do estudo foram mantidos em anonimato, utilizando-se a expressão “E” (equipe), seguido da ordem de entrevista (exemplo: E4).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Participaram deste estudo 14 trabalhadores da saúde, dentre eles, 12 são da enfermagem, um da psicologia e um da nutrição. Foram 10 entrevistados do sexo feminino, com idade variando de 32 e 57 anos, e tendo como tempo de experiência na área da adição, um intervalo entre cinco a dez anos. Esses participantes autodeclararam como religião ou crença espiritual: cinco são espíritas, um luterano, dois católicos, dois budistas, dois evangélicos, um esotérico e um agnóstico.

Da análise dos dados emergiram quatro categorias que refletem as práticas de cuidado espiritual: respeito aos valores éticos dos usuários; crenças e valores da pessoa; encontro trabalhador-usuário e cuidado espiritual em grupo.

Evocação dos valores éticos dos trabalhadores

Ética é um conjunto de princípios, valores, hábitos e práticas que ordenam a vida particular e social de um determinado grupo. O estudo revelou que as práticas de cuidado espiritual realizadas pela equipe estão ligadas ao reconhecimento de valores éticos. As falas dos profissionais vêm ao encontro dos achados da literatura científica ao apontar que o cuidado espiritual envolve os valores éticos, tais como ser bondoso, amável, respeitoso, compassivo, compreensivo, sensível e honesto99. Veloza-Gómez M, Munõz de Rodríguez L, Guevara-Armenta C, Mesa-Rodríguez S. The importance of spiritual care in nursing practice. J Holist Nurs. 2017;35(2):118-31. doi: https://doi.org/10.1177/0898010115626777
https://doi.org/10.1177/0898010115626777...
. Isso fica evidente nas falas a seguir.

Cuidado espiritual é exercício da paciência, tolerância, respeito, compaixão, isso se faz no dia a dia isso é uma prática (E6).

Cuidado espiritual é o desenvolvimento de tolerância, empatia, bondade, paciência e compreensão (E7).

Trabalhar empatia, calma, bondade, perdão, paciência, os valores (E9).

Os participantes destacaram a importância de exercitar e desenvolver atitudes de paciência, empatia, respeito, tolerância e a compaixão no cotidiano do trabalho, como elementos que fazem parte do cuidado espiritual. Esses achados estão de acordo com a literatura, que mostra que o cuidado espiritual leva em consideração os valores éticos das pessoas, preservando-os. Dessa forma, a equipe deve ter respeito com a individualidade da pessoa, de não julgamento, exercitando atitude compassiva, de empatia e bondade, como atributos do cuidado espiritual1010. Caldeira S, Timmins F. Implementing spiritual care interventions. Nurs Stand. 2017;31(34):54-60. doi: https://doi.org/10.7748/ns.2017.e10313
https://doi.org/10.7748/ns.2017.e10313...
-1111. Ramezani M, Ahmadi F, Mohammadi E, Kazemnejad A. Spiritual care in nursing: a concept analysis. Int Nurs Rev. 2014;61(2):211-9. doi: https://doi.org/10.1111/inr.12099
https://doi.org/10.1111/inr.12099...
.

O cuidado espiritual inicia-se com a atitude ética do trabalhador de estar junto, próximo à pessoa que está vivenciando um momento delicado de estresse e dificuldade, como por exemplo, estar numa internação hospitalar. É importante estabelecer uma relação de confiança e vínculo entre usuário e trabalhador, a fim de construir uma relação terapêutica, para proporcionar bem-estar, otimismo e esperança.

Os profissionais relataram que o cuidado espiritual envolve aproximar-se da pessoa de forma tranquila, exercitando a escuta ativa e estabelecendo diálogo. Logo, pode auxiliar o paciente na atribuição de significado ao sofrimento, como uma maneira de desenvolver esperanças e forças, podendo ajudar na motivação do paciente.

Fornecer conforto, esperança, eles chegam desesperançosos, com vontade de morrer, a gente tenta encontrar um objetivo junto com ele para continuar a viver (E1).

Tem tudo a ver com questão do aspecto do vínculo (E3).

Melhora a questão do vínculo, de não julgar as pessoas que não são iguais [...]. Uma escuta atenta, estabelecer bom vínculo, não julgar as pessoas. Estimular esperanças em situações, onde aparentemente está tudo destruído (E7).

Conforme os relatos descritos, quando se estabelece uma relação entre trabalhador de saúde e paciente, embasada na espiritualidade, é desenvolvido o fortalecimento de vínculos, a relação dialogada, a escuta sensível, a afetividade e a valorização da dignidade humana. Quando se aborda o cuidado em saúde ao usuário de drogas, é importante superar o estigma e preconceito, que fazem com que os usuários sejam vistos como perigosos, violentos e únicos responsáveis pela sua condição. Tal postura, preconceituosa e estigmatizante, restringe as possibilidades de acolhimento e acesso para pessoas que apresentam problemas com o uso de drogas1212. Bard ND, Antunes B, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB. Stigma and prejudice: the experience of crack users. Rev Latino-Am Enfermagem. 2016;24:e2680. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.0852.2680
https://doi.org/10.1590/1518-8345.0852.2...
.

Então, os atributos do cuidado espiritual podem auxiliar os profissionais a romperem com essa lógica de rotulação do usuário de drogas. Assim, esta atitude deve ser acolhedora, sobre a pessoa que sofre com uso de drogas, de forma empática, sensível e que a auxilie a ter uma postura mais otimista diante da vida. O cuidado espiritual está ligado à ética e o senso de propósito de vida de uma pessoa, e serve à qualidade de relação terapêutica, por meio da sensibilidade do cuidador e do esforço e dedicação da equipe em manter um ambiente positivo e motivador durante o período de tratamento1313. Lavorato-Neto G. Rodrigues L, Turato ER, Campos CJG. The free spirit: spiritualism meanings by a Nursing team on psychiatry. Rev Bras Enferm. 2018;71(2):280-8. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0428
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0...
.

Com relação ao entendimento sobre o cuidado espiritual realizado na unidade de adição, os participantes consideraram que está ligado às relações interpessoais, que envolve estar disposto a escutar, sem julgamentos e preconceitos. Essa abordagem mais positiva vai ao encontro de alguns princípios da entrevista motivacional, que é um estilo de conversa colaborativa voltado para o fortalecimento da motivação do paciente e seu comprometimento com a mudança1414. Figlie NB, Guimarães LP. A entrevista motivacional: conversas sobre mudança. Bol Acad Paul Psicol. 2014 [cited 2019 Aug 18];34(87):472-89. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2014000200011
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
. Trata-se de uma proposta que reforça a necessidade do trabalhador interagir e se interessar pela história do indivíduo, valorizando o seu potencial. Os entrevistados apontam que o cuidado espiritual está vinculado a uma escuta ativa, a demonstrar afeto, carinho, atenção e interesse pelo usuário e entender como ele lida com a sua espiritualidade.

Eu sempre tento ser próximo, pra criar uma relação de confiança e vínculo (E1).

Eu procuro ouvir o que eles têm a falar, eu procuro saber o que se passa, como é que eles lidam com a espiritualidade deles (E2).

Escuta atenta, respeitosa por conta da necessidade de manutenção da motivação e de esperança (E3).

Primeiro tu tem que ouvir, fazer um afago no paciente, fazer um carinho e mostrar pra ele que a gente está ali para ajudar ele (E8).

De acordo com as falas, realizar o cuidado espiritual auxilia no estabelecimento do vínculo, por meio de escuta ativa e respeitosa. Vivenciar a espiritualidade inclui exercitar a fé, a esperança, a compaixão e a solidariedade, propiciando a sensibilização com o sofrimento do outro e em auxiliar a encontrar um significado para sua própria existência. Assim, o profissional de saúde precisa proporcionar um cuidado que valorize o apoio espiritual, para que a pessoa possa vivenciar momentos difíceis com serenidade1515. Nascimento LC, Santos TFM, Oliveira FCS, Pan R, Flória-Santos M, Rocha SMM. Spirituality and religiosity in the perspectives of nurses. Texto Contexto Enferm. 2013;22(1):52-60. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-07072013000100007
https://doi.org/10.1590/S0104-0707201300...
.

Respeito às crenças e valores do usuário

Nesta categoria, os entrevistados destacaram que reconhecem as crenças e valores espirituais do usuário durante o período de internação. De acordo com as falas dos trabalhadores, há um interesse genuíno da equipe em considerar as crenças e valores que compõem a vida do paciente.

A gente pergunta e conversa sobre as crenças, o que cada um tem, se pratica, não pratica (E1).

Identificar as crenças do paciente e ver no que ele acredita, no que ele pode investir em relação à espiritualidade (E4).

É respeitar as crenças e os valores de cada pessoa, de cada paciente. Temos que respeitar e nunca e considerar aquilo que o paciente acredita, aquilo que ele pensa que é bom pra ele (E5).

É respeitar a crença do nosso assistido independente de qual seja ela (E12).

A equipe demonstra estar atenta e disposta a conhecer as crenças e valores que fazem parte da vida do paciente e compreender o papel que elas têm para auxiliá-lo no enfrentamento dos momentos de ansiedade durante a internação. É importante compreender o papel que as crenças e valores têm na vida da pessoa, sem julgar ou tentar modificá-las.

Destaca-se que o trabalhador de saúde deve fornecer apoio e respeito quando identifica as crenças espirituais e religiosas do paciente, mesmo frente àquelas que ele não conheça ou que sejam diferentes das quais o profissional está habituado a ter, ou mesmo frente àquelas que sejam conflitantes com o próprio tratamento66. Koenig HG. Medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade. Porto Alegre: L± 2015.. Para os trabalhadores de saúde, um importante propósito de conhecer a história da pessoa é revelar e entender as crenças que norteiam a vida do paciente, como aparece nas falas a seguir:

Respeitar as crenças dos pacientes e que as nossas crenças não sejam transmitidas para o paciente (E3).

Trabalhar a crença que o paciente tem, como ele tem vivido essa crença no seu dia a dia. E o quanto esse conhecimento pode fazer com que ele tenha uma melhora durante o tratamento (E6).

Eu não vou interferir na crença espiritual do paciente e sempre pergunto qual é a crença dele (E8).

As crenças e valores espirituais dos usuários são fatores relevantes e devem ser levados em consideração na realização do cuidado em saúde. A conscientização dos profissionais de saúde em relação à importância do cuidado espiritual é um fator importante, ao oferecê-lo estamos compartilhando respeito, empatia, orientações desprovidas de críticas ou julgamentos. O cuidado espiritual pode ser abordado pelos profissionais como estratégia para oferecer conforto, tranquilidade e bem-estar ao paciente1616. Rusa SG, Peripato GI, Pavarini SCI, Inouye K, Zazzetta MS, Orlandi FS. Quality of life/spirituality, religion and personal beliefs of adult and elderly chronic kidney patients under hemodialysis. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014;22(6):911-7. doi: https://doi.org/10.1590/0104-1169.3595.2495
https://doi.org/10.1590/0104-1169.3595.2...
.

Os entrevistados acreditam ser importante conhecer e identificar as crenças e valores espirituais do usuário, para prestar assistência mais qualificada. Além disso, demonstram ter cuidado para não impor suas crenças religiosas, respeitando a singularidade da pessoa que está buscando o tratamento. Destaca-se que o cuidado espiritual vai além de conhecer e abordar as crenças dos usuários, mas também o trabalhador deve descobrir junto com o usuário, de que maneira a espiritualidade pode ser incluída no seu cuidado em saúde.

Encontro trabalhador de saúde-usuário

Dentre os vários dispositivos que se podem utilizar durante a internação em adição, os profissionais destacaram que estimulam os usuários a refletirem sobre o seu modo de viver, e os orientam a realizarem técnicas de relaxamento e práticas de oração, conforme o desejo e a tolerância deles.

Estimulo as práticas de relaxamento eles ficam muito mais tranquilos, calmos. (E2)

Direciono ele para aquilo que ele está precisando, que faça uma técnica de relaxamento. (E8)

Tu me dissestes que te alivia muito quando reza, tu rezastes hoje? Precisa de um tempo para rezar? (E3)

A técnica do relaxamento respiratório consiste no exercício de controle da respiração através da musculatura diafragmática, realizada em três fases distintas de inspiração e expiração. Essa técnica provoca sensação de bem-estar. Isso porque, em estado de relaxamento, é menos provável que uma pessoa atue impulsivamente e o aprendizado dessa técnica pode ser utilizado no manejo do craving (fissura) e dos sintomas de ansiedade1717. Brasileiro TOZ, Prado AAO, Assis BB, Nogueira DA, Lima RS, Chaves ECL. Effects of prayer on the vital signs of patients with chronic kidney disease: randomized controlled trial. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03236. doi: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2016024603236
https://doi.org/10.1590/S1980-220X201602...
.

A oração é uma das práticas espirituais mais utilizadas pelos usuários para enfrentar uma doença crônica. Observa-se que o ato de orar é frequente e pode promover bem-estar, facilitando o enfrentamento do processo de saúde/doença, a diminuição da mortalidade em pessoas com infecções da corrente sanguínea1818. Braga JEF, Chaves Neto G, Lima AB, Oliveira RQ, Alves RS, Farias JA. Jogos cooperativos e relaxamento respiratório: efeito sobre craving e ansiedade. Rev Bras Med Esporte. 2016;22(5):403-7. doi: https://doi.org/10.1590/1517-869220162205153151
https://doi.org/10.1590/1517-86922016220...
.

Na unidade de internação em adição, ocorre diariamente esse encontro entre trabalhador de saúde e usuário. E é importante que o trabalhador, ao se aproximar e conversar com ele, possa tentar descobrir junto com a pessoa o que faz sentido na sua vida, muito além de apenas parar de usar drogas. Nesse contexto, em uma das falas dos entrevistados, fica evidente essa busca em exercitar a reflexão sobre sua vida, a sua existência.

Motivar os pacientes para o tratamento, não porque parar de usar substância é bom, mas, motivá-los para pensar sobre a sua vida. Eles nunca tiveram essa oportunidade de pensar sobre a sua própria vida, sobre seu valor, sobre sua existência e sobre seu papel no mundo (E3).

Logo, quando o trabalhador estimula o usuário para a reflexão sobre a sua vida, ele proporciona que a pessoa pense em alternativas para viver melhor e de maneira mais saudável. Uma das tarefas do profissional é tentar ampliar junto com a pessoa que é cuidada, a sua percepção sobre a vida, auxiliando no aprimoramento da consciência para a descoberta dos valores existenciais, para a busca de sentido na vida e a proteção da sua saúde1919. Kabat-Zinn J. Full catastrophe living: how to cope with stress, pain and illness using mindfulness meditation. Revised ed. London: Piatkus; 2013..

Cuidado espiritual em grupo

Ao longo das últimas décadas, o trabalho em grupo vem sendo utilizado como instrumento valioso no tratamento das adições. Isso porque, auxilia a pessoa a criar alternativas para o seu isolamento e solidão, além de oferece um meio para que o indivíduo usuário de drogas se perceba como parte integrante do grupo, sendo assim parte de uma sociedade2020. Sobell LC, Sobell MB. Terapia de Grupo para transtorno por abuso de substâncias: abordagem cognitivo-comportamental motivacional. Porto Alegre: Artmed; 2013. .

Os entrevistados relataram que estimulam a participação dos indivíduos nos grupos de meditação, de espiritualidade e de 12 passos. No grupo de meditação utilizam-se meditação mindfulness (meditação guiada com vistas à atenção plena/consciente do mundo interno e externo do indivíduo) associada com os exercícios de relaxamento respiratório. Após a meditação sempre é realizada uma reflexão com os participantes, os quais espontaneamente falam sobre os sentimentos experienciados durante essa prática meditativa. Este grupo é uma atividade opcional no tratamento, em que os usuários escolhem se desejam participar desta atividade.

Estimulo a participar do grupo da meditação (E2).

Estimulamos muito a meditação, os pacientes que tiveram alta e continuam esta prática. Ela é uma forma de prevenção à recaída, a meditação então eu sou muito fã e adepta (E6).

Eu participo da meditação e contribuo para a espiritualidade, com autoconhecimento, uma reflexão, que tu consiga entrar em contato consigo próprio (E7).

É importante que os trabalhadores de saúde tenham consciência da importância de estimular a pessoa para fazer a meditação, pois muitos deles nunca fizeram ou conhecem essa prática, nem os seus benefícios documentados na literatura. Então, a equipe pode apresentar essa técnica para o usuário expondo-os a essa experiência, conforme o seu desejo, oferecendo mais alternativas de escolhas para o paciente no seu tratamento e aumentando assim o seu repertório para o autoconhecimento.

Dentre as abordagens meditativas, a meditação mindfulness é a mais estudada e praticada atualmente no mundo ocidental. O termo mindfulness refere-se a capacidade de estar atento ao momento presente nas sensações físicas, nas percepções, nos pensamentos e afetos, sem julgamento1919. Kabat-Zinn J. Full catastrophe living: how to cope with stress, pain and illness using mindfulness meditation. Revised ed. London: Piatkus; 2013.. Com suas raízes em tradições como o budismo, a yoga e o taoísmo, a sua prática foi integrada à medicina comportamental, principalmente em programas de redução de estresse, e atualmente vem sendo praticada no tratamento das adições2121. Tang YY, Tang R, Posner IM. Mindfulness meditation improves emotion regulation and reduces drug abuse. Drug Alcohol Depend. 2016;163(Suppl 1):S13-8. doi: https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2015.11.041
https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.201...
.

A utilização da meditação mindfulness, num contexto não religioso, possibilita que qualquer pessoa possa se beneficiar com a sua prática2121. Tang YY, Tang R, Posner IM. Mindfulness meditation improves emotion regulation and reduces drug abuse. Drug Alcohol Depend. 2016;163(Suppl 1):S13-8. doi: https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2015.11.041
https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.201...
. Talvez por este motivo esta seja uma das práticas de meditação mais estudadas e adotadas nos últimos tempos por trabalhadores da saúde.

Após um grupo de meditação, os pacientes saem muito tranquilos (E1).

Quando tem grupo de meditação, os pacientes vêm de outra maneira, mais tranquilos (E10).

Ao encontro das falas, que apontam a diminuição da ansiedade como um dos efeitos após a meditação, um estudo evidenciou que a prática de meditação mindfulness pode ajudar a pessoa a ganhar habilidade de lidar com as suas emoções, auxiliando a enfrentar suas ansiedades e fissura pela droga2121. Tang YY, Tang R, Posner IM. Mindfulness meditation improves emotion regulation and reduces drug abuse. Drug Alcohol Depend. 2016;163(Suppl 1):S13-8. doi: https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2015.11.041
https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.201...
.

Outro grupo terapêutico promotor do cuidado espiritual relatados pelos entrevistados foi o da espiritualidade. Relatam que neste grupo pode-se realizar uma reflexão e reorganização da vida, para que a pessoa não tenha como objetivo principal somente parar de usar drogas, mas repensar as suas crenças e valores.

A pessoa sai do grupo de espiritualidade sentido que o tratamento não é só parar de usar a substância. Dizem - Tenho que rever o que estou acreditando, o que tem norteado as minhas decisões! (E3).

No grupo de espiritualidade eu coloco vídeos reflexivos e discuto poesias (E6).

O trabalhador apontou que a proposta do grupo não é que a pessoa tenha como objetivo somente parar de usar drogas, além disso, ele espera e estimula que o usuário amplie a sua visão de mundo para poder fazer suas escolhas e tomar suas decisões. O grupo de espiritualidade tem como objetivo proporcionar momentos de reflexão e diálogo sobre o sentido de vida e a importância da autotranscedência em meio às situações difíceis da vida dos usuários de drogas. Isso porque os usuários que são internados demonstram um vazio existencial e relatam se sentirem sozinhos, pois tiveram muitas perdas de vínculos familiares e afetivos devido aos problemas gerados pelo uso abusivo de drogas.

O grupo de espiritualidade tenta estimular a mudança no estilo de vida das pessoas, por meio de reflexões. As falas a seguir vêm ao encontro a literatura de Viktor Frankl, que concebeu que a questão primordial do ser humano é a busca por sentido na vida2222. Aquino TAAA. Sentido da vida e valores no contexto da educação: uma proposta de intervenção à luz do pensamento de Viktor Frankl. São Paulo: Paulinas; 2015..

A vida é mais complexa, sai do módulo sobrevivência para o módulo existência (E3).

No grupo de espiritualidade discutimos, o que os pacientes entendem sobre a espiritualidade, qual é a crença deles. É um momento reflexão (E5).

Os participantes relataram que estimulam os pacientes a refletirem sobre sua vida durante a internação, e que esse processo de repensar a sua história, pode auxiliar a pessoa a sair do “módulo sobrevivência”, ou seja, de uma vida mais restrita e limitada ao uso abusivo de drogas, para uma reflexão mais abrangente e complexa, que envolva seu estilo de vida e a sua existência no mundo.

Por fim, os entrevistados relataram que estimulam os pacientes a participarem do grupo de 12 passos, o qual tem como proposta orientadora a filosofia do grupo de mútua ajuda dos Alcoólicos Anônimos (AA). Esta organização tem sua origem religiosa, mas ampliou essa abordagem para a perspectiva da espiritualidade, como sendo um dos seus pilares, aceitando participantes de todas as doutrinas religiosas e sem crenças religiosas.

A participação em grupos de AA pode auxiliar a pessoa durante o tratamento de adição das drogas. Nessa perspectiva, ressalta-se a importância do indivíduo praticar ações baseadas na espiritualidade, como a oração, meditação e contato consciente com um poder superior, o qual a pessoa escolhe conforme sua crença2323. Payá, R, coordenadora. Intervenções familiares para o abuso e dependência de álcool e outras drogas. Rio de Janeiro: Roca; 2017..

Os trabalhadores consideram que essa filosofia pode auxiliar os usuários a enfrentarem as dificuldades do período de internação, somando-se a isso, a espiritualidade como mais um dos elementos que auxiliam na manutenção do tratamento de drogas.

Eu gosto de ir ao grupo dos 12 passos, que abrange essa parte da espiritualidade (E1).

O AA [alcóolicos anônimos] participo bastante, eu converso com eles porque é uma fonte que desenvolve a espiritualidade dele (E2).

Acredito que o grupo de AA estimula espiritualidade e pode ajudar no tratamento (E9).

O grupo de 12 passos é uma filosofia de vida que aborda espiritualidade, eles tem que frequentar o AA após alta (E11).

Nas entrevistas coletadas, os profissionais reconhecem que o grupo de 12 passos está associado com a dimensão espiritual do usuário, e que essa forma de abordar a espiritualidade, pode ser mais um dispositivo para auxiliar a pessoa durante o tratamento. Para o Instituto Nacional de Abuso de Drogas Americano2424. National Institute on Drug Abuse. Principles of drug addiction treatment for criminal justice populations: a research based guide. Bethesda: NIH; 2014 [cited 2019 Aug 10]. Available from: https://d14rmgtrwzf5a.cloudfront.net/sites/default/files/txcriminaljustice_0.pdf
https://d14rmgtrwzf5a.cloudfront.net/sit...
a participação em grupos de mútua ajuda semelhantes ao AA, durante e após o tratamento, pode ajudar a manter a abstinência do uso de drogas. Tal exposição ainda na etapa de internação pode servir de fator estimulador para a vinculação e participação em grupos de apoio mútuo após a alta hospitalar.

Enquanto resultado da PCA identificou-se que este referencial possibilitou aos participantes associar a teoria do cuidado espiritual com as práticas realizadas no serviço no transcorrer na pesquisa, sobretudo, nos espaços de rodadas de conversa e de capacitação realizados. Esses momentos os participantes, junto a outros profissionais do serviço, puderam discutir aspectos conceituais do cuidado espiritual associados com os relatos de suas experiências na prática clínica na unidade.

Observou-se que houve um aprimoramento do cuidado espiritual na adição a partir das reflexões realizadas com os participantes da pesquisa, com as recomendações de continuidade das rodadas de conversa sobre o tema, a realização de capacitações e a criação de um espaço laico de expressão da espiritualidade no serviço, já em funcionamento.

Essa pesquisa contribuiu para que os profissionais do serviço refletissem sobre as suas atitudes voltadas para o cuidado espiritual, reconhecendo-as nas diferentes ações realizadas por eles no cotidiano, potencializando ainda mais a abrangência do cuidado espiritual no serviço. Entende-se que os profissionais de enfermagem foram os mais beneficiados nesta discussão uma vez que quase todos os participantes foram desta área. Outra implicação importante para o serviço, enquanto um dos desdobramentos esperados para pesquisas desta natureza (referencial da PCA) foi a incorporação à matriz de capacitação do serviço de enfermagem da instituição o tema da “Espiritualidade e o cuidado de si”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A realização do cuidado espiritual na adição envolve estar junto com o usuário, numa forma de presença afetiva com a intenção de atender, também, às necessidades espirituais desse usuário que sofre com o abuso de drogas. Os trabalhadores buscam respeitar a singularidade dos usuários e procuram encontrar junto com eles estratégias para auxiliar nas dificuldades enfrentadas com o uso de drogas. Dentre essas estratégias, estimulam a reflexão sobre o seu modo de viver a vida por meio da realização de técnica de relaxamento e da oração, conforme o desejo dos usuários. Além disso, os profissionais os orientam a participarem dos grupos terapêuticos de conotação espiritual, como meditação, espiritualidade e 12 passos.

Neste estudo evidenciou-se a preocupação dos profissionais da adição em identificar as necessidades do usuário de drogas, por meio de uma escuta atenta, um diálogo sincero e o estabelecimento de um vínculo afetivo a fim de realizar um cuidado qualificado, singularizando e que valorize a pessoa, inclusive quanto às necessidades espirituais.

No âmbito dos serviços de saúde, destaca-se a importância da continuação e manutenção de espaços de educação permanente sobre a espiritualidade no tratamento da adição de drogas aprofundando a sua compreensão e a continuidade do cuidado espiritual. Além disso, chama a atenção que os residentes (uniprofissional e multiprofissional em saúde) que tem grande atuação no serviço não foram citados pela equipe como promotores do cuidado espiritual em adição, cabendo, portanto, um alerta para os gestores de práticas de ensino em serviço sobre a relevância do tema em estudo para a formação de trabalhadores em saúde especializados na área de adição.

A ideia original deste estudo era escutar profissionais de diferentes categorias profissionais do serviço quanto ao cuidado espiritual, contudo, observou-se que os profissionais de enfermagem são os que mais se envolviam e se reconheciam como promotores dessa prática de cuidado, revelando-se enquanto uma limitação deste estudo, uma vez que não se podem transpor os resultados para a equipe multiprofissional. Sugere-se que novos estudos sobre a espiritualidade possam ser realizados em outros serviços de tratamento ao usuário de drogas e que também incluam os usuários como participantes dessas pesquisas, pois são eles os que mais interessados em terem suas necessidades atendidas.

Agradecimento

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

REFERENCES

  • 1. Bastos FIPM,Vasconcellos MTL, De Boni RB, Reis NB, Coutinho CFS, organizadores. III levantamento nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ/ICICT; 2017 [cited 2019 Aug 18]. Available from: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614
    » https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614
  • 2. Presidência da República (BR). Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 2006 ago 24 [cited 2019 Aug 18];150(163 Seção 1):2-6. Available from: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=24/08/2006&jornal=1&pagina=2&totalArquivos=200
    » http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=24/08/2006&jornal=1&pagina=2&totalArquivos=200
  • 3. Shamsalina A, Norouzi K, Fallahi Khoshknab M, Farhoudiyan A. Recovery based on spirituality in substance abusers in Iran. Glob J Health Sci. 2014; 6(6):154-62. doi: https://doi.org/10.5539/gjhs.v6n6p154
    » https://doi.org/10.5539/gjhs.v6n6p154
  • 4. Koenig HG. Espiritualidade no cuidado com o paciente: por quê, como, quando e o quê. 2ª ed. São Paulo: FE; 2012.
  • 5. Puchalski CM, Ferrel B. Making health care hole: integrating spirituality into patient care. Pennsylvania: Templeton; 2010.
  • 6. Koenig HG. Medicina, religião e saúde: o encontro da ciência e da espiritualidade. Porto Alegre: L± 2015.
  • 7. Trentini M, Paim L, Silva DMGV. Pesquisa convergente assistencial (PCA): delineamento provocador de mudanças nas práticas de saúde. Porto Alegre: Moriá; 2014.
  • 8. Flores GE, Oliveira DLL, Zocche DAA. Educação permanente no contexto hospitalar: a experiência que ressignifica o cuidado em enfermagem. Trab Educ Saúde. 2016;14(2):487-504. doi: https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00118
    » https://doi.org/10.1590/1981-7746-sip00118
  • 9. Veloza-Gómez M, Munõz de Rodríguez L, Guevara-Armenta C, Mesa-Rodríguez S. The importance of spiritual care in nursing practice. J Holist Nurs. 2017;35(2):118-31. doi: https://doi.org/10.1177/0898010115626777
    » https://doi.org/10.1177/0898010115626777
  • 10. Caldeira S, Timmins F. Implementing spiritual care interventions. Nurs Stand. 2017;31(34):54-60. doi: https://doi.org/10.7748/ns.2017.e10313
    » https://doi.org/10.7748/ns.2017.e10313
  • 11. Ramezani M, Ahmadi F, Mohammadi E, Kazemnejad A. Spiritual care in nursing: a concept analysis. Int Nurs Rev. 2014;61(2):211-9. doi: https://doi.org/10.1111/inr.12099
    » https://doi.org/10.1111/inr.12099
  • 12. Bard ND, Antunes B, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB. Stigma and prejudice: the experience of crack users. Rev Latino-Am Enfermagem. 2016;24:e2680. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.0852.2680
    » https://doi.org/10.1590/1518-8345.0852.2680
  • 13. Lavorato-Neto G. Rodrigues L, Turato ER, Campos CJG. The free spirit: spiritualism meanings by a Nursing team on psychiatry. Rev Bras Enferm. 2018;71(2):280-8. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0428
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0428
  • 14. Figlie NB, Guimarães LP. A entrevista motivacional: conversas sobre mudança. Bol Acad Paul Psicol. 2014 [cited 2019 Aug 18];34(87):472-89. Available from: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2014000200011
    » http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-711X2014000200011
  • 15. Nascimento LC, Santos TFM, Oliveira FCS, Pan R, Flória-Santos M, Rocha SMM. Spirituality and religiosity in the perspectives of nurses. Texto Contexto Enferm. 2013;22(1):52-60. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-07072013000100007
    » https://doi.org/10.1590/S0104-07072013000100007
  • 16. Rusa SG, Peripato GI, Pavarini SCI, Inouye K, Zazzetta MS, Orlandi FS. Quality of life/spirituality, religion and personal beliefs of adult and elderly chronic kidney patients under hemodialysis. Rev Latino-Am Enfermagem. 2014;22(6):911-7. doi: https://doi.org/10.1590/0104-1169.3595.2495
    » https://doi.org/10.1590/0104-1169.3595.2495
  • 17. Brasileiro TOZ, Prado AAO, Assis BB, Nogueira DA, Lima RS, Chaves ECL. Effects of prayer on the vital signs of patients with chronic kidney disease: randomized controlled trial. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03236. doi: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2016024603236
    » https://doi.org/10.1590/S1980-220X2016024603236
  • 18. Braga JEF, Chaves Neto G, Lima AB, Oliveira RQ, Alves RS, Farias JA. Jogos cooperativos e relaxamento respiratório: efeito sobre craving e ansiedade. Rev Bras Med Esporte. 2016;22(5):403-7. doi: https://doi.org/10.1590/1517-869220162205153151
    » https://doi.org/10.1590/1517-869220162205153151
  • 19. Kabat-Zinn J. Full catastrophe living: how to cope with stress, pain and illness using mindfulness meditation. Revised ed. London: Piatkus; 2013.
  • 20. Sobell LC, Sobell MB. Terapia de Grupo para transtorno por abuso de substâncias: abordagem cognitivo-comportamental motivacional. Porto Alegre: Artmed; 2013.
  • 21. Tang YY, Tang R, Posner IM. Mindfulness meditation improves emotion regulation and reduces drug abuse. Drug Alcohol Depend. 2016;163(Suppl 1):S13-8. doi: https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2015.11.041
    » https://doi.org/10.1016/j.drugalcdep.2015.11.041
  • 22. Aquino TAAA. Sentido da vida e valores no contexto da educação: uma proposta de intervenção à luz do pensamento de Viktor Frankl. São Paulo: Paulinas; 2015.
  • 23. Payá, R, coordenadora. Intervenções familiares para o abuso e dependência de álcool e outras drogas. Rio de Janeiro: Roca; 2017.
  • 24. National Institute on Drug Abuse. Principles of drug addiction treatment for criminal justice populations: a research based guide. Bethesda: NIH; 2014 [cited 2019 Aug 10]. Available from: https://d14rmgtrwzf5a.cloudfront.net/sites/default/files/txcriminaljustice_0.pdf
    » https://d14rmgtrwzf5a.cloudfront.net/sites/default/files/txcriminaljustice_0.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2019
  • Aceito
    06 Set 2019
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escola de Enfermagem Rua São Manoel, 963 -Campus da Saúde , 90.620-110 - Porto Alegre - RS - Brasil, Fone: (55 51) 3308-5242 / Fax: (55 51) 3308-5436 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revista@enf.ufrgs.br