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A morte e o morrer: contributos para uma prática sustentada em referenciais teóricos de enfermagem

La muerte y el morir: contribuciones para una práctica sostenida en los referenciales teóricos de enfermería

Resumo

OBJETIVO

Identificar a concordância dos enfermeiros sobre as concepções de enfermagem com potencial para sustentar a sua prática no âmbito da morte e dos processos de morrer.

MÉTODO

Estudo quantitativo, exploratório e descritivo, realizado em 36 hospitais de Portugal, de julho de 2015 a março de 2016, com participação de 3451 enfermeiros. Na coleta de dados utilizou-se o questionário e na análise recorreu-se à estatística descritiva e inferencial.

RESULTADOS

Dentre as concepções com potencial para sustentar a prática, os enfermeiros salientam as de Virginia Henderson, Afaf Meleis e Madeleine Leininger. As variáveis que afetam o grau de concordância são: região, serviço, gênero, formação profissional e tempo de exercício profissional.

CONCLUSÃO

Considerando os atuais desafios, de uma prática predominantemente centrada na satisfação das necessidades, emerge a pertinência da intencionalidade da ação dos enfermeiros, no sentido de facilitar a vivência da morte e dos processos de morrer, de formas culturalmente significativas.

Palavras-chave:
Morte; Enfermagem; Teoria de enfermagem; Modelos de enfermagem

Resumen

OBJETIVO

Identificar la concordancia de los enfermeros sobre las concepciones de enfermería con potencial para sostener su práctica en el ámbito de la muerte y de los procesos de morir.

MÉTODO

Estudio cuantitativo, exploratorio y descriptivo que se realizó en 36 hospitales en Portugal, de julio de 2015 a marzo de 2016, con la participación de 3451 enfermeros. En la recogida de los datos se utilizó el cuestionario y en el análisis se recurrió a la estadística descriptiva e inferencial.

RESULTADOS

De las concepciones con potencial para sostener la práctica, los enfermeros ponen de relieve las de Virginia Henderson, Afaf Meleis y Madeleine Leininger. Las variables que afectan el grado de concordancia son: región, servicio, género, formación profesional y tiempo de ejercicio profesional.

CONCLUSIÓN

Teniendo en cuenta los actuales desafíos, de una práctica predominantemente centrada en la satisfacción de las necesidades, emerge la pertinencia de la intencionalidad de la acción de los enfermeros, con el objetivo de facilitar la vivencia de la muerte y los procesos de morir, de formas culturalmente significativas.

Palabras clave:
Muerte; Enfermería; Teoría de enfermería; Modelos de enfermería

Abstract

OBJECTIVE

To identify nurses’ agreement on nursing conceptions with the potential to support their practice in the death and dying process context.

METHOD

An exploratory and descriptive study with a quantitative approach was carried out with 3,451 nurses from 36 hospitals in Portugal, from July 2015 to March 2016. Data collection was carried out with the use of questionnaires and data analysis was carried out by means of descriptive and inferential statistics.

Results:

Among conceptions with the potential to support practice, nurses highlighted those from Virginia Henderson, Afaf Meleis, and Madeleine Leininger. The following variables influenced the degree of agreement: region, service, gender, professional training, and length of professional practice.

Conclusion:

Considering current challenges of a practice that is mostly based on meeting needs, the relevance of nursing practices’ purposes emerges in order to facilitate experiencing death and the dying process in culturally significant ways.

Keywords:
Death; Nursing; Nursing Theory; Models; nursing

Introdução

Na última década, a Enfermagem tem procurado afirmar-se, valendo-se das teorias para fundamentar a prática e sistematizar o cuidado. Para além do referido estar congruente com a evolução da disciplina e da profissão, se considerarmos a complexidade dos seres humanos do ponto de vista físico, mental, emocional e espiritual, é, no mínimo, incoerente falar sobre assistência de enfermagem voltada unicamente para uma abordagem biomédica11. Savieto RM, Leão ER. Nursing assistance and Jean Watson: a reflection on empathy. Esc Anna Nery. 2016 Jan-Mar;20(1):198-202. doi: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160026.
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. Efetivamente, apesar da necessidade da competência dos enfermeiros para a gestão de sinais e sintomas das doenças, as necessidades das pessoas, sejam elas doentes ou famílias, apelam, cada vez mais, à enfermagem evidenciada nos referenciais teóricos22. Fernandes CS, Gomes JA, Martins MM, Gomes BP, Gonçalves LH. The importance of families in nursing care: nurses' attitudes in the hospital environment. Rev Enf Ref. 2015 Oct-Dec;IV(7):21-30. doi: https://doi.org/10.12707/RIV15007.
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3. Paiva A. Prefácio. In: Martins T, Araújo MF, Peixoto MJ, Machado PP, organizadores. A pessoa dependente e o familiar cuidador. Porto: Escola Superior de Enfermagem do Porto; 2016. p. 5-7.
-44. Salviano ME, Nascimento PD, Paula MA, Vieira CS, Frison SS, Maia MA, et al. Epistemology of nursing care: a reflection on its foundations. Rev Bras Enferm. 2016 Nov-Dec;69(6):1172-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0331.
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. Acresce ainda que, fundamentada nos pressupostos teóricos, a enfermagem agrega valor social e científico ao seu saber e ao seu saber fazer, qualificando o cuidado prestado, bem como sua contribuição específica no âmbito multidisciplinar44. Salviano ME, Nascimento PD, Paula MA, Vieira CS, Frison SS, Maia MA, et al. Epistemology of nursing care: a reflection on its foundations. Rev Bras Enferm. 2016 Nov-Dec;69(6):1172-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0331.
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.

Ao longo da formação académica e profissional, espera-se que os enfermeiros desenvolvam competências no sentido de assumir a responsabilidade de assistir aos clientes ao longo de todo o ciclo vital, o que, inevitavelmente, inclui o momento da morte55. Alves MV, Scudeler DN, Luppi CH, Nitsche MJ, Toso LA. Death and dying in pediatric intensive care: the health care professionals. Cogitare Enferm. 2012 July-Sept;17(3):543-8. doi: https://doi.org/10.5380/ce.v17i3.29296.
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. A morte faz parte do cotidiano, como mais uma fase do processo de viver, no entanto, nem sempre os profissionais de enfermagem estão preparados para se deparar com a finitude humana66. Dias MV, Backes DS, Barlem EL, Backes MT, Lunardi VL, Souza MH. Nursing undergraduate education in relation to the death-dying process: perceptions in light of the complex thinking. Rev Gaúcha Enferm. 2014 Dec;35(4):79-85. doi: 10.1590/1983-1447.2014.04.45177.
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-77. Andersson E, Salickiene Z, Rosengren K. To be involved - a qualitative study of nurses' experiences of caring for dying patients. Nurse Educ Today. 2016;38:144-9. doi: 10.1016/j.nedt.2015.11.026.
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, optando frequentemente no âmbito do processo de morrer de um cliente, por se distanciar do mesmo, limitando-se à execução dos procedimentos técnicos necessários88. Salimena AM, Ferreira GC, Melo MC. Feelings of surgical nursing staff in face of death. Arq Ciênc Saúde. 2015 Jan-Mar;22(1):75-8. doi: https://doi.org/10.17696/2318-3691.22.1.2015.33.
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. As reações e os sentimentos são diversos, uns ficam em silêncio, outros isolam-se, choram ou procuram justificativas para a morte, o problema é que em todas essas situações é notório o sofrimento dos clientes e dos profissionais, bem como a repercussão negativa na forma de cuidar durante a vivência do processo de morrer99. Mota MS, Gomes GC, Coelho MF, Lunardi Filho WD, Sousa LD. Reactions and feelings of nursing professionals facing death of patients under their care. Rev Gaúcha Enferm. 2011 Mar;32(1):129-135. doi: 10.1590/S1983-14472011000100017.
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Cada vez mais frequente nos contextos hospitalares, a morte não assume sentido no fazer profissional, culminando numa prática iminentemente tecnicista que favorece o sentimento de fracasso, não tendo, consequentemente, a pessoa que a vivencia, acesso aos cuidados de enfermagem que merecia. Isto porque, cuidar de uma pessoa perante a possibilidade de morte iminente, implica uma atuação congruente com os referenciais teóricos da disciplina, o que efetivamente, não se tem constatado. Neste contexto, torna-se emergente a necessidade de abordagens ampliadas, não fragmentadas, que proporcionarão um olhar atento a todas as dimensões que envolvem a pessoa, entre elas, a morte66. Dias MV, Backes DS, Barlem EL, Backes MT, Lunardi VL, Souza MH. Nursing undergraduate education in relation to the death-dying process: perceptions in light of the complex thinking. Rev Gaúcha Enferm. 2014 Dec;35(4):79-85. doi: 10.1590/1983-1447.2014.04.45177.
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. Para além disso, e tal como defendido pelos autores, o cuidado de enfermagem deve ser assumido e discutido a partir de referenciais que permitam integrar e contextualizar os diferentes eventos que compõem o ciclo vital humano66. Dias MV, Backes DS, Barlem EL, Backes MT, Lunardi VL, Souza MH. Nursing undergraduate education in relation to the death-dying process: perceptions in light of the complex thinking. Rev Gaúcha Enferm. 2014 Dec;35(4):79-85. doi: 10.1590/1983-1447.2014.04.45177.
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.

Ainda que as manifestações sobre a morte e o processo de morrer, não apareçam igualmente evidenciadas nas teorias de enfermagem, existem em alguns referenciais, alusões claras a esse momento. Para Virginia Henderson, a enfermagem caracteriza-se pela assistência à pessoa doente ou saudável, no desempenho das atividades que contribuem para a saúde, para a sua recuperação ou para uma morte tranquila, que ela realizaria sem auxílio se tivesse força, desejo ou conhecimento necessário1010. McEwen M, Wills EM. Bases teóricas de enfermagem. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2016..

Na perspectiva de Imogene King, a enfermagem baseia-se num processo interpessoal de ação, reação, interação e transação, cujo objetivo é ajudar os indivíduos e grupos a atingir, manter e restaurar a saúde. Se isso não for possível, os enfermeiros auxiliam os indivíduos a morrer com dignidade1010. McEwen M, Wills EM. Bases teóricas de enfermagem. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2016..

Para Callista Roy, a enfermagem é uma ciência que se centra nos processos de vida humanos e na promoção da adaptação da pessoa. Nesta perspectiva, o desafio é avaliar os comportamentos e os fatores que influenciam a capacidade de adaptação da pessoa nos quatro modos adaptativos (fisiológico-físico, identidade do autoconceito de grupo, função do papel e interdependência) e intervir para potencializar essas capacidades e melhorar a interação com o meio, contribuindo para a saúde, para a qualidade de vida ou para uma morte com dignidade1111. Pepin J, Ducharme F, Kérouac S. La pensée infirmière. 4th ed. Québec: Chenelière Éducation; 2017..

Na perspectiva de Madeleine Leininger, a enfermagem está centrada nos fenômenos do cuidar humano e nas atividades de assistir, apoiar, facilitar ou capacitar os indivíduos ou grupos a manter ou adquirir o seu bem-estar de formas culturalmente significativas e benéficas, ou para ajudar as pessoas a enfrentar as deficiências ou a morte1010. McEwen M, Wills EM. Bases teóricas de enfermagem. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2016..

Para Jean Watson, a enfermagem é uma arte e uma ciência humana do cuidar, cujos processos transpessoais estão dirigidos à promoção da harmonia “corpo-alma-espírito”. A partir do desenvolvimento da Teoria do Cuidado Humano, Jean Watson tem-se dedicado constantemente ao aperfeiçoamento da mesma. O Clinical Caritas, tal como designado pela autora, inclui 10 elementos característicos do cuidado, um dos quais (elemento 10) se refere particularmente aos aspectos relacionados à espiritualidade, à vida e à morte11. Savieto RM, Leão ER. Nursing assistance and Jean Watson: a reflection on empathy. Esc Anna Nery. 2016 Jan-Mar;20(1):198-202. doi: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160026.
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,1212. Lindolpho MC, Caldas CP, Sá SP, Santos ND. Nursing care of the elderly in the end of life. Ciênc Cuidado Saúde. 2016 Apr-June;15(2):383-9. doi: https://doi.org/10.4025/cienccuidsaude.v15i2.23904.
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.

Segundo Afaf Meleis, a enfermagem centra-se nas experiências humanas de transição. Nesta perspectiva, constituem desafios para os enfermeiros entender os processos de transição, abordar os problemas vivenciados durante as experiências transitórias, de que é exemplo a morte, e desenvolver terapêuticas que proporcionem apoio às pessoas nessas ocasiões1313. Meleis AI, Sawyer LM, Im EO, Messias DK, Schumacher K. Experiencing transitions: an emerging middle-range theory. Adv Nurs Sci. 2000;23(1):12-28. doi: 10.1097/00012272-200009000-00006.
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-1414. Meleis AI. Theoretical nursing: development & progress. 5th ed. London: Lippincott Williams & Wilkins; 2012..

Ainda que os referenciais teóricos promovam a qualidade do exercício profissional, na prática assistencial têm sido perceptíveis as dificuldades entre muitos enfermeiros em alinhar o sentido e a intencionalidade dos cuidados com as teorias de enfermagem11. Savieto RM, Leão ER. Nursing assistance and Jean Watson: a reflection on empathy. Esc Anna Nery. 2016 Jan-Mar;20(1):198-202. doi: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160026.
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. Se o referido se verifica em todas as tipologias de cuidados, adquire especial relevância no âmbito da morte e dos processos de morrer. Assim, integrado numa investigação mais ampla desenvolvida a nível nacional “Contextos da prática hospitalar e concepções dos enfermeiros”, delineamos este estudo no qual procuramos responder à seguinte questão: Quais as concepções de enfermagem, com potencial para sustentar a prática no âmbito da morte e dos processos de morrer, que são mais consensuais entre os enfermeiros? Neste sentido, foi definido como objetivo: identificar a concordância dos enfermeiros, sobre as concepções de enfermagem com potencial para sustentar a sua prática no âmbito da morte e dos processos de morrer.

Método

Trata-se de um estudo quantitativo, exploratório e descritivo. Embora estivesse prevista a sua concretização em todas as instituições hospitalares, enquadradas no modelo de gestão de Entidade Pública Empresarial (EPE), que à data da coleta de dados eram 38, pelo fato de dois hospitais não aceitarem participar, o estudo foi realizado em 36 instituições hospitalares EPE de Portugal continental. Dada a impossibilidade de estudar a totalidade da população, foi constituída uma amostra. A técnica de amostragem usada foi não probabilística por conveniência. Foram definidos como critérios de inclusão: exercer a atividade profissional na instituição hospitalar num período de tempo igual ou superior a seis meses, nos departamentos de medicina e especialidades médicas, cirurgia e especialidades cirúrgicas ou medicina intensiva e urgência. Foram excluídos os enfermeiros que se encontravam de licença ou de férias, bem como, os que tinham menos de seis meses de trabalho efetivo. Tendo em consideração os serviços de cada instituição hospitalar, em que o estudo foi autorizado, a partir de uma população acessível de 10013 enfermeiros, obteve-se uma amostra de 3451 enfermeiros.

Apesar do processo inerente às autorizações ter variado entre as instituições, o estudo foi aprovado pelos comitês de ética e conselhos de administração das 36 instituições hospitalares envolvidas. Os enfermeiros que exerciam funções nos departamentos onde se concretizou o estudo foram esclarecidos sobre os objetivos, bem como sobre os procedimentos inerentes à investigação. Aos enfermeiros que aceitaram participar foi solicitado que assinassem o consentimento informado, tendo sido garantida a confidencialidade e o anonimato na utilização e divulgação dos dados coletados. Como instrumento para coleta de dados, foi utilizado um questionário constituído por duas partes: Parte I - Caracterização do respondente; Parte II - Concepções de Enfermagem. Para a construção do questionário, usado na investigação mais ampla ao nível nacional1515. Ribeiro OM. Contextos da prática hospitalar e conceções de enfermagem: olhares sobre o real da qualidade e o ideal da excelência no exercício profissional dos enfermeiros [tese]. Porto (PT): Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto; 2017 citado 2018 maio 25]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10216/105835.-1616. Ribeiro OM, Martins MM, Tronchin DM, Forte EC. The perspective of Portuguese nurses on nursing metaparadigmatic concepts. Texto Contexto Enferm. 2018 May;27(2):e3970016. doi: 10.1590/0104-070720180003970016.
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, no momento da revisão da literatura, focamos a nossa atenção em 13 teóricas de enfermagem: Florence Nightingale, Virginia Henderson, Dorothea Orem, Hildegard Peplau, Imogene King, Callista Roy, Betty Neuman, Moyra Allen, Martha Rogers, Rosemarie Parse, Madaleine Leininger, Jean Watson e Afaf Meleis. A opção por estas teóricas está relacionada com o fato de no contexto português serem as abordadas ao longo dos cursos de graduação e pós-graduação na área de enfermagem sendo, para além disso, as mais frequentemente usadas pelos enfermeiros, no âmbito de processos de investigação. Posteriormente, o fato de algumas teóricas abordarem com mais clareza a questão da morte, determinou que neste estudo, a nossa atenção estivesse focada nas concepções de enfermagem de 6 teóricas: Virginia Henderson, Imogene King, Callista Roy, Madeleine Leininger, Jean Watson e Afaf Meleis. No momento do preenchimento do questionário, foi pedido aos enfermeiros que expressassem a sua opinião sobre as seis concepções de enfermagem. A escala de respostas do tipo Likert variou entre 1 e 5, sendo que 1 se referia a “está totalmente em desacordo com a minha prática”, 2 “está em desacordo com a minha prática”, 3 “não tenho opinião”, 4 “está de acordo com a minha prática” e 5 “está totalmente de acordo com a minha prática”. A coleta de dados foi realizada entre os meses de julho de 2015 a março de 2016. Para o tratamento dos dados, utilizamos o Statistical Package for the Social Sciences, versão 22.0, e recorremos à estatística descritiva e inferencial. Considerando que a resposta (o grau de concordância com as concepções) é uma variável qualitativa ordinal, com o intuito de identificar que atributos de caracterização sociodemográfica e profissional afetavam o grau de concordância, foram utilizados modelos de regressão logística acumulados para respostas ordinais.

Resultados

Em relação ao perfil sociodemográfico e profissional dos participantes, verificamos que dos 3451 enfermeiros, a maioria é do gênero feminino (77,1%). A idade varia entre os 22 e os 62 anos, sendo a idade média 36,4 anos (desvio padrão de 8,3). O estado civil predominante é o de casado/união de fato (61,1%), seguindo-se o de solteiro (33,8%), o de divorciado (4,7%) e o de viúvo (0,3%). Relativamente ao grau acadêmico, a licenciatura é amplamente majoritária (88,0%), seguindo-se o mestrado (10,7%), o bacharelado (1,1%) e o doutorado (0,2%). No que se refere à condição em que exercem a profissão, a maioria foi composta por enfermeiros (76,3%), seguindo-se por enfermeiros especialistas (19,9%) e por enfermeiros gestores (3,8%). No que concerne à distribuição regional dos enfermeiros predomina o Norte (43,2%), seguindo-se Lisboa e Vale do Tejo (24,0%), o Centro (22,3%), o Alentejo (6,2%) e o Algarve (4,2%).

Previamente à análise da concordância relativamente às concepções de enfermagem, as instituições hospitalares foram distribuídas pelas regiões das respectivas Administrações Regionais de Saúde, procedendo-se, posteriormente, à comparação regional da distribuição das respostas. Para efeito de apresentação dos resultados, mediu-se o grau de concordância, através do conjunto das respostas “Está de acordo com a minha prática” e “Está totalmente de acordo com a minha prática”, salientando-se no final da análise as concepções que os enfermeiros qualificaram como “totalmente de acordo” com a sua prática.

No Norte, a concepção de enfermagem com maior grau de concordância foi a de Virginia Henderson (89,2% responderam “Está de acordo com a minha prática” ou “Está totalmente de acordo com a minha prática”), seguindo-se a de Madeleine Leininger (85,0%), a de Callista Roy (83,5%), a de Afaf Meleis (80,7%), a de Imogene King (58,9%) e a de Jean Watson (55,7%). Como se pode observar na Tabela 1, as concepções de enfermagem que estão totalmente de acordo com a prática dos enfermeiros são as de Virginia Henderson (34,6%) e Afaf Meleis (31,8%).

Tabela 1:
Distribuição numérica e percentual da concordância com as concepções de enfermagem na região Norte. Portugal, 2017

Em relação ao Centro, a concepção de enfermagem com maior grau de concordância foi a de Virginia Henderson (92,4%), seguindo-se a de Madeleine Leininger (82,0%), a de Afaf Meleis (81,2%), a de Callista Roy (80,5%), a de Imogene King (54,7%) e a de Jean Watson (54,0%). Como se pode constatar na Tabela 2, as concepções de enfermagem que estão totalmente de acordo com a prática dos enfermeiros são as de Afaf Meleis (35,0%) e Virginia Henderson (33,9%).

Tabela 2:
Distribuição numérica e percentual da concordância com as concepções de enfermagem na região Centro. Portugal, 2017

Em Lisboa e Vale do Tejo, a concepção com maior grau de concordância foi a de Virginia Henderson (93,4%), seguindo-se a de Callista Roy (86,9%), a de Madeleine Leininger (84,1%), a de Afaf Meleis (79,7%), a de Imogene King (64,3%) e a de Jean Watson (63,2%). Como se pode observar na Tabela 3, as concepções de enfermagem que estão totalmente de acordo com a prática dos enfermeiros são as de Virginia Henderson (40,2%) e Madeleine Leininger (31,6%).

Tabela 3:
Distribuição numérica e percentual da concordância com as concepções de enfermagem na região de Lisboa e Vale do Tejo. Portugal, 2017

No Alentejo, a concepção de enfermagem com maior grau de concordância foi a de Virginia Henderson (86,4%), seguindo-se a de Madeleine Leininger (82,2%), a de Callista Roy (79,3%), a de Afaf Meleis (77,5%), a de Imogene King (64,8%) e a de Jean Watson (56,8%). Como se pode constatar na Tabela 4, as concepções de enfermagem que estão totalmente de acordo com a prática dos enfermeiros são as de Virginia Henderson (36,2%) e Madeleine Leininger (26,8%). Por fim, no Algarve, a concepção de enfermagem com maior grau de concordância foi a de Afaf Meleis (95,3%), seguindo-se a de Virginia Henderson (91,8%), a de Callista Roy (91,1%), a de Madeleine Leininger (89,1%), a de Jean Watson (60,9%) e a de Imogene King (35,6%). Como se pode observar também na Tabela 4, as concepções de enfermagem que estão totalmente de acordo com a prática dos enfermeiros são as de Virginia Henderson (38,4%) e Madeleine Leininger (37,0%).

Tabela 4:
Distribuição numérica e percentual da concordância com as concepções de enfermagem nas regiões do Alentejo e do Algarve. Portugal, 2017

Com o objetivo de determinar quais os atributos de caracterização que afetam significativamente o grau de concordância, ajustou-se para cada concepção um modelo regressão logística acumulado para respostas ordinais, uma vez que a resposta (o grau de concordância) é uma variável qualitativa ordinal. Estes modelos permitiram concluir quais os atributos de caracterização que efetivamente influenciam o grau de concordância com cada concepção e em que sentido. Em todas as concepções, para a seleção das variáveis explicativas a reter no modelo, procedeu-se à eliminação do modelo das variáveis cujo parâmetro estimado não era estatisticamente significativo, tendo-se feito uma seleção “backward” baseada no teste de Wald.

Assim, na concepção de enfermagem de Virginia Henderson, os resultados da estimação mostraram que as variáveis explicativas a reter no modelo, ou seja, aquelas que efetivamente determinaram maior concordância nesta concepção foram a região e a condição em que exerce a profissão. Na concepção de enfermagem de Imogene King, os resultados da estimação indicaram que as variáveis explicativas que determinaram maior concordância nesta concepção foram a região, o serviço, a condição em que exerce a profissão e o tempo de exercício profissional. Na concepção de enfermagem de Callista Roy, os resultados da estimação mostraram que as variáveis que determinaram maior concordância nesta concepção foram a região, o serviço, o gênero, a condição em que exerce a profissão e o tempo de exercício profissional. Na concepção de enfermagem de Madeleine Leininger, os resultados da estimação mostraram que as variáveis explicativas a reter no modelo, ou seja, aquelas que efetivamente determinaram maior concordância nesta concepção foram a região, o serviço, o gênero e a condição em que exerce a profissão. Na concepção de enfermagem de Jean Watson, os resultados da estimação apontaram que as variáveis explicativas que de fato determinaram maior concordância nesta concepção foram a região, o gênero e a condição em que exerce a profissão. Na concepção de enfermagem de Afaf Meleis, os resultados da estimação mostraram que as variáveis que determinaram maior concordância nesta concepção foram a região, o serviço, a condição em que exerce a profissão, o tempo de exercício profissional e o grau acadêmico.

A Figura 1 sintetiza as características sociodemográficas e profissionais dos enfermeiros que determinaram maior concordância com as concepções de enfermagem em análise.

Figura 1:
As características sociodemográficas e profissionais dos enfermeiros e a concordância com as concepções de enfermagem

Discussão

Decorrente da análise das variáveis sociodemográficas, e em consonância com o perfil dos profissionais de enfermagem no contexto nacional, verificamos que a maioria dos enfermeiros que participou no estudo era do gênero feminino (77,1%) e apresentava uma idade média de 36,4 anos. Relativamente à condição em que exercem a profissão, a maioria dos participantes eram enfermeiros (76,3%), seguindo-se os enfermeiros especialistas (19,9%) e, por fim, os enfermeiros gestores (3,8%). Quanto à concordância expressa pelos enfermeiros relativamente às concepções de enfermagem, ficou evidente que aquelas que apresentam potencial para sustentar a prática, no âmbito da morte e dos processos de morrer, são as de Virginia Henderson, Afaf Meleis e Madeleine Leininger. Assim, em relação à temática em estudo, os enfermeiros centram o seu papel na assistência à pessoa, no desempenho das atividades que contribuem para uma morte tranquila; na facilitação dos processos e das experiências humanas transitórias, de que é exemplo a morte; bem como, nas atividades de assistir, apoiar e capacitar as pessoas a enfrentar as deficiências ou a morte, de formas culturalmente significativas.

Ainda que os enfermeiros evidenciem dificuldade em sustentar a sua prática nos referenciais teóricos de enfermagem, os resultados deste estudo constituem um desafio para a mudança de paradigma. De fato, é emergente que os enfermeiros conheçam e se apropriem dos referenciais teóricos da disciplina, de modo a participarem ativamente nos cuidados prestados às pessoas durante o processo de morrer11. Savieto RM, Leão ER. Nursing assistance and Jean Watson: a reflection on empathy. Esc Anna Nery. 2016 Jan-Mar;20(1):198-202. doi: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160026.
https://doi.org/10.5935/1414-8145.201600...
,1717. Rosa W, Estes T, Watson J. Nurs Sci Q. 2017;30(1):58-64. doi: 10.1177/0894318416680538.
https://doi.org/10.1177/0894318416680538...
. Na iminência da proximidade da morte, a possibilidade da pessoa ter a ajuda profissional do enfermeiro, que para além da gestão dos sinais e sintomas, escuta, compreende e atende às suas necessidades, é crucial para que a pessoa consiga, com mais tranquilidade vivenciar o processo de morrer77. Andersson E, Salickiene Z, Rosengren K. To be involved - a qualitative study of nurses' experiences of caring for dying patients. Nurse Educ Today. 2016;38:144-9. doi: 10.1016/j.nedt.2015.11.026.
https://doi.org/10.1016/j.nedt.2015.11.0...
.

Diferentes teorias têm diferentes perspectivas e significados, no entanto, na prática de enfermagem estas desempenham um papel fundamental na intencionalidade dos cuidados prestados1818. Shah M. Compare and Contrast of Grand Theories: Orem's Self-Care Deficit Theory and Roy's Adaptation Model. Int J Nurs Didactics. 2015;5(1):39-42.. Para além disso, a profissão de enfermagem, sem as suas bases disciplinares, pode ser facilmente guiada pela cultura hospitalar e pressão para sujeitar-se a uma visão medicalizada e clinicalização1919. Watson J. Clarifying the discipline of nursing as foundational to development of professional nursing. Texto Contexto Enferm. 2017;26(4):editorial. doi: 10.1590/0104-07072017002017editorial4.
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, que dificultarão a vivência da morte e dos processos de morrer.

Da análise dos referenciais com potencial para sustentar a prática dos enfermeiros, no âmbito da morte e do processo de morrer no contexto hospitalar, os resultados obtidos nas diferentes regiões do país, deixam clara a existência de dois grupos. Um grupo composto pelo Norte e Centro, cujos referenciais teóricos com potencial para sustentar a prática são os de Virginia Henderson e Afaf Meleis e outro grupo constituído por Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve, cujos referenciais teóricos que mais se adequam à prática são os de Virginia Henderson e Madeleine Leininger. As abordagens sobre os referenciais teóricos da disciplina nas diferentes Escolas de Enfermagem, tem vindo a revelar-se um fator determinante na opção dos enfermeiros, justificando potencialmente as diferenças encontradas1515. Ribeiro OM. Contextos da prática hospitalar e conceções de enfermagem: olhares sobre o real da qualidade e o ideal da excelência no exercício profissional dos enfermeiros [tese]. Porto (PT): Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto; 2017 citado 2018 maio 25]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10216/105835..

Certo é que, a concordância dos enfermeiros relativamente às concepções de enfermagem evidencia que para além de atuarem no sentido de assistir a pessoa na satisfação das suas necessidades humanas fundamentais, os enfermeiros reconhecem a pertinência de agir com o intuito de entender e facilitar as transições que as pessoas vivenciam1515. Ribeiro OM. Contextos da prática hospitalar e conceções de enfermagem: olhares sobre o real da qualidade e o ideal da excelência no exercício profissional dos enfermeiros [tese]. Porto (PT): Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto; 2017 citado 2018 maio 25]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10216/105835.. A singularidade do ser humano faz com que o processo de morte também seja uma experiência individual, que pode ser vivida de maneiras diferentes por cada pessoa, dependendo do contexto social, histórico e cultural em que ela está inserida2020. Arrieira IC, Thofehrn MB, Milbrath VM, Schwonke CR, Cardoso DH, Fripp JC. The meaning of spirituality in the transience of life. Esc Anna Nery. 2017 Jan;21(1):e20170012. doi: http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20170012.
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. Na visão de Madeleine Leininger, o enfoque da enfermagem está no reconhecimento e no entendimento das similaridades e das diferenças culturais e no uso dessa informação para proporcionar cuidados de enfermagem culturalmente congruentes para pessoas de culturas diferentes1010. McEwen M, Wills EM. Bases teóricas de enfermagem. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2016., aspecto que deverá ser valorizado pelos enfermeiros no âmbito dos processos de morrer.

Ainda que, na sequência dos resultados obtidos neste estudo e na investigação mais ampla1515. Ribeiro OM. Contextos da prática hospitalar e conceções de enfermagem: olhares sobre o real da qualidade e o ideal da excelência no exercício profissional dos enfermeiros [tese]. Porto (PT): Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, Universidade do Porto; 2017 citado 2018 maio 25]. Disponível em: http://hdl.handle.net/10216/105835.-1616. Ribeiro OM, Martins MM, Tronchin DM, Forte EC. The perspective of Portuguese nurses on nursing metaparadigmatic concepts. Texto Contexto Enferm. 2018 May;27(2):e3970016. doi: 10.1590/0104-070720180003970016.
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, os enfermeiros evidenciem em diferentes áreas uma atuação predominantemente centrada no pressuposto de “fazer pelo cliente o que ele não pode fazer”, à luz da perspectiva de Virginia Henderson, decorrente da pertinência de uma prática centrada no pressuposto de “fazer com o cliente”, no âmbito dos seus processos de transição, emerge a necessidade dos enfermeiros desenvolverem, de forma mais consistente, terapêuticas que ajudem as pessoas a vivenciar as experiências em situações de fim de vida.

O fato das principais características das experiências de transição se centrarem na possibilidade dos clientes tomarem consciência da mudança e da diferença do que vivenciam1313. Meleis AI, Sawyer LM, Im EO, Messias DK, Schumacher K. Experiencing transitions: an emerging middle-range theory. Adv Nurs Sci. 2000;23(1):12-28. doi: 10.1097/00012272-200009000-00006.
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-1414. Meleis AI. Theoretical nursing: development & progress. 5th ed. London: Lippincott Williams & Wilkins; 2012., justifica que o grau de concordância com a concepção de Afaf Meleis seja mais elevado nos enfermeiros que trabalham nos serviços de medicina e especialidades médicas e cirurgia e especialidades cirúrgicas, quando comparados com os que trabalham na medicina intensiva e urgência, contextos em que a condição dos clientes impede mais frequentemente a conscientização da transição.

Em relação à concepção de Madeleine Leininger, a concordância é também mais elevada nos enfermeiros que trabalham em serviços de medicina e especialidades médicas e cirurgia e especialidades cirúrgicas. A ênfase de uma prática centrada no cuidado transcultural, exige uma ajuda profissional sistematizada e muito centrada na valorização das diferenças culturais no âmbito dos processos de morrer, infelizmente frequentes nos serviços mencionados88. Salimena AM, Ferreira GC, Melo MC. Feelings of surgical nursing staff in face of death. Arq Ciênc Saúde. 2015 Jan-Mar;22(1):75-8. doi: https://doi.org/10.17696/2318-3691.22.1.2015.33.
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.

Importa ainda referir que a concordância dos enfermeiros gestores relativamente às diferentes perspectivas teóricas, traduz a preocupação dos mesmos em criar condições imprescindíveis à prestação de cuidados de enfermagem coerentes com os referenciais teóricos da disciplina, indo, assim, ao encontro do compromisso de manter a dignidade e a singularidade do ser cuidado44. Salviano ME, Nascimento PD, Paula MA, Vieira CS, Frison SS, Maia MA, et al. Epistemology of nursing care: a reflection on its foundations. Rev Bras Enferm. 2016 Nov-Dec;69(6):1172-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0331.
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. Ainda que a concordância dos enfermeiros seja mais significativa relativamente aos referenciais teóricos de Virginia Henderson, Afaf Meleis e Madeleine Leininger, não devem ser desconsideradas as contribuições das outras perspectivas teóricas. O processo de morrer e a morte do outro despertam sentimentos de tristeza, derrota, medo, raiva, impotência, tornando-os mais frequentemente relacionados à perda e à separação do que a um processo natural da vida, que tal como outros, exige adaptação. É neste contexto que o referencial teórico de Callista Roy poderá ser fundamental, na medida em que potencializará a preparação e a adaptação da pessoa em situações de fim de vida.

Na perspectiva de Imogene King, as percepções, as necessidades, as metas e os valores dos enfermeiros e dos clientes influenciam o processo de interação que os mesmos estabelecem. Para além disso, os clientes têm direito a participar das decisões que influenciam as suas vidas, podendo aceitar ou rejeitar o cuidado, até porque as metas dos profissionais e dos receptores de cuidados podem não ser congruentes1010. McEwen M, Wills EM. Bases teóricas de enfermagem. 4. ed. Porto Alegre: Artmed; 2016., aspecto que deverá ser considerado nas situações de fim de vida.

As necessidades das pessoas em processo de morrer transcendem o físico e relevam frequentemente a dimensão espiritual. Procurar na espiritualidade sentido para a morte é comum numa grande diversidade de religiões. Na sequência do referido e entendendo que no processo de morrer é difícil ignorar as necessidades espirituais das pessoas2020. Arrieira IC, Thofehrn MB, Milbrath VM, Schwonke CR, Cardoso DH, Fripp JC. The meaning of spirituality in the transience of life. Esc Anna Nery. 2017 Jan;21(1):e20170012. doi: http://dx.doi.org/10.5935/1414-8145.20170012.
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, reitera-se a pertinência dos enfermeiros estarem preparados para sustentar a sua prática em referenciais teóricos orientadores da sua ação, tendo como exemplo a perspectiva de Jean Watson1717. Rosa W, Estes T, Watson J. Nurs Sci Q. 2017;30(1):58-64. doi: 10.1177/0894318416680538.
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. Para cumprir o Clinical Caritas é fundamental que o enfermeiro atenda às necessidades prementes da pessoa, sem se desviar para o cuidado unicamente voltado para a dimensão física11. Savieto RM, Leão ER. Nursing assistance and Jean Watson: a reflection on empathy. Esc Anna Nery. 2016 Jan-Mar;20(1):198-202. doi: https://doi.org/10.5935/1414-8145.20160026.
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.

Decorrente da institucionalização da morte, os enfermeiros que trabalham nas instituições hospitalares estão cada vez mais suscetíveis a cuidar de pessoas em processos de morrer e as investigações realizadas nesses contextos evidenciam que nem sempre se sentem preparados55. Alves MV, Scudeler DN, Luppi CH, Nitsche MJ, Toso LA. Death and dying in pediatric intensive care: the health care professionals. Cogitare Enferm. 2012 July-Sept;17(3):543-8. doi: https://doi.org/10.5380/ce.v17i3.29296.
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,77. Andersson E, Salickiene Z, Rosengren K. To be involved - a qualitative study of nurses' experiences of caring for dying patients. Nurse Educ Today. 2016;38:144-9. doi: 10.1016/j.nedt.2015.11.026.
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8. Salimena AM, Ferreira GC, Melo MC. Feelings of surgical nursing staff in face of death. Arq Ciênc Saúde. 2015 Jan-Mar;22(1):75-8. doi: https://doi.org/10.17696/2318-3691.22.1.2015.33.
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-99. Mota MS, Gomes GC, Coelho MF, Lunardi Filho WD, Sousa LD. Reactions and feelings of nursing professionals facing death of patients under their care. Rev Gaúcha Enferm. 2011 Mar;32(1):129-135. doi: 10.1590/S1983-14472011000100017.
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. Acresce ainda que os sentimentos de perda e fracasso vivenciados pelos enfermeiros estão frequentemente exacerbados, uma vez que a academia forma o profissional com suporte teórico e prático para preservar a vida, sendo as questões da morte e do morrer pouco, ou nada, abordadas e/ou discutidas66. Dias MV, Backes DS, Barlem EL, Backes MT, Lunardi VL, Souza MH. Nursing undergraduate education in relation to the death-dying process: perceptions in light of the complex thinking. Rev Gaúcha Enferm. 2014 Dec;35(4):79-85. doi: 10.1590/1983-1447.2014.04.45177.
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,99. Mota MS, Gomes GC, Coelho MF, Lunardi Filho WD, Sousa LD. Reactions and feelings of nursing professionals facing death of patients under their care. Rev Gaúcha Enferm. 2011 Mar;32(1):129-135. doi: 10.1590/S1983-14472011000100017.
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. O problema é que a superficialidade e a banalização das poucas discussões acerca da morte e do processo de morrer não permitem a ampliação do entendimento desse fenômeno como um evento integrante do ciclo vital66. Dias MV, Backes DS, Barlem EL, Backes MT, Lunardi VL, Souza MH. Nursing undergraduate education in relation to the death-dying process: perceptions in light of the complex thinking. Rev Gaúcha Enferm. 2014 Dec;35(4):79-85. doi: 10.1590/1983-1447.2014.04.45177.
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.

Uma vez que os cuidados prestados no âmbito da morte e dos processos de morrer, necessitam de estar ancorados em referenciais teóricos de enfermagem, acreditamos que este estudo é um contributo importante para garantir a qualidade do exercício profissional dos enfermeiros. Atendendo a que, atualmente, a experiência para lidar com a morte e o morrer se adquire durante o percurso profissional55. Alves MV, Scudeler DN, Luppi CH, Nitsche MJ, Toso LA. Death and dying in pediatric intensive care: the health care professionals. Cogitare Enferm. 2012 July-Sept;17(3):543-8. doi: https://doi.org/10.5380/ce.v17i3.29296.
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, muitas vezes por tentativa e erro77. Andersson E, Salickiene Z, Rosengren K. To be involved - a qualitative study of nurses' experiences of caring for dying patients. Nurse Educ Today. 2016;38:144-9. doi: 10.1016/j.nedt.2015.11.026.
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, onde a cada nova vivência perante um episódio de morte, o enfermeiro aprende a lidar com a situação99. Mota MS, Gomes GC, Coelho MF, Lunardi Filho WD, Sousa LD. Reactions and feelings of nursing professionals facing death of patients under their care. Rev Gaúcha Enferm. 2011 Mar;32(1):129-135. doi: 10.1590/S1983-14472011000100017.
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, torna-se emergente a inclusão desta temática no âmbito da formação acadêmica, a fim de promover o desenvolvimento de competências nos futuros enfermeiros, tornando-os mais eficazes na ajuda proporcionada às pessoas na vivência da morte e do morrer88. Salimena AM, Ferreira GC, Melo MC. Feelings of surgical nursing staff in face of death. Arq Ciênc Saúde. 2015 Jan-Mar;22(1):75-8. doi: https://doi.org/10.17696/2318-3691.22.1.2015.33.
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.

Para além da aquisição de conhecimento sobre a morte e o morrer no âmbito do contexto acadêmico, no ambiente profissional a promoção de práticas reflexivas e a supervisão clínica terão um papel fundamental na preparação dos enfermeiros para lidar com clientes em fim de vida, diminuindo, simultaneamente, a probabilidade destes profissionais manifestarem ansiedade, estresse e burnout77. Andersson E, Salickiene Z, Rosengren K. To be involved - a qualitative study of nurses' experiences of caring for dying patients. Nurse Educ Today. 2016;38:144-9. doi: 10.1016/j.nedt.2015.11.026.
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. As discussões em grupo e a sustentação em referenciais que compreendam o fenômeno morte como parte integrante do processo de viver são apontadas como estratégias para se problematizar esta temática, tanto no ambiente teórico, quanto no ambiente prático66. Dias MV, Backes DS, Barlem EL, Backes MT, Lunardi VL, Souza MH. Nursing undergraduate education in relation to the death-dying process: perceptions in light of the complex thinking. Rev Gaúcha Enferm. 2014 Dec;35(4):79-85. doi: 10.1590/1983-1447.2014.04.45177.
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. E ainda que não seja fácil ampliar a compreensão sobre a morte e o processo de morrer, o importante é que se garanta que os enfermeiros sejam capazes de reconhecer, não apenas os aspetos biológicos, mas também as implicações psicossocioespirituais dessa vivência nos doentes e nas famílias sob seu cuidado44. Salviano ME, Nascimento PD, Paula MA, Vieira CS, Frison SS, Maia MA, et al. Epistemology of nursing care: a reflection on its foundations. Rev Bras Enferm. 2016 Nov-Dec;69(6):1172-7. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0331.
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Conclusão

Cada vez mais frequente nos contextos hospitalares, a morte e o processo de morrer exigem dos enfermeiros uma atuação congruente com os referenciais teóricos da disciplina, o que efetivamente nem sempre acontece. Assim, mesmo assumindo como limitação o fato da técnica de amostragem usada ter sido não probabilística, o que determina a possibilidade do perfil de enfermeiros que decidiram participar ter influenciado os resultados, esse estudo proporciona a oportunidade de refletir sobre as concepções de enfermagem com potencial para sustentar a prática. Com isso, configura-se um aspecto importante para o desenvolvimento da disciplina e da profissão, bem como para a qualidade do exercício profissional dos enfermeiros no cuidado às pessoas em todas as suas dimensões e ao longo de todo o seu ciclo vital.

Apesar da inexistência de estudos no âmbito do realizado ter dificultado a discussão dos resultados, da análise efetuada, nas cinco regiões do país, constatámos que os enfermeiros identificaram como totalmente de acordo com a sua prática as concepções de Virginia Henderson, Afaf Meleis e Madeleine Leininger, sendo estes os referenciais teóricos com potencial para sustentar a ação dos enfermeiros perante a morte e os processos de morrer. Neste contexto, ficou claro que, a nível nacional, à luz do referencial teórico de Virginia Henderson, os enfermeiros evidenciam preocupação em atender às necessidades manifestadas pelos clientes. No entanto, atendendo aos atuais desafios, torna-se emergente, descentrar a atenção de uma prática predominantemente focada na satisfação das necessidades humanas básicas, em prol de um cuidado centrado nas experiências vivenciadas pelas pessoas diante da iminência e inevitabilidade da finitude da vida, com potencial para culminar numa morte digna e tranquila. Para tal, no âmbito do ensino, seria importante a adoção de estratégias de ensino-aprendizagem potenciadoras da apropriação dos referenciais teóricos com potencial para sustentar a ação dos enfermeiros perante a morte e os processos de morrer. Na prática, emerge a necessidade de fomentar uma abordagem profissional mais qualificada às pessoas doentes e aos seus familiares, durante a vivência da morte e dos processos de morrer. Na pesquisa, seria interessante a realização de estudos qualitativos com o intuito de identificar os fatores que facilitam ou comprometem uma atuação congruente com os referenciais da disciplina.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2018
  • Aceito
    23 Out 2018
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