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Ordem de não reanimação em tempos da COVID-19: bioética e ética profissional

RESUMO

Objetivo:

Refletir sobre ordem de não reanimação na COVID-19 no Brasil, sob foco bioético e da ética profissional médica e de enfermagem.

Método:

Estudo de reflexão embasado na bioética principialista de Beauchamps e Childress e na ética profissional, problematizando ações e decisões de não reanimação na pandemia.

Resultados:

Importa considerar a clínica do paciente, apropriação das metas dos tratamentos de pessoas com comorbidades, idosas, com menores chances de sobreviver à reanimação, ou menor qualidade de vida, junto à equipe de cuidados paliativos, para evitar distanásia, uso dos recursos escassos e maior exposição dos profissionais à contaminação.

Conclusão:

A COVID-19 ampliou as vulnerabilidades de profissionais e pacientes, impactando nas decisões e condutas profissionais mais amplamente do que nos valores importantes como a restrição da liberdade. Impulsionou a população em geral a repensar valores éticos e bioéticos referentes à vida e à morte, interferindo nas decisões sobre elas, respaldas na dignidade humana.

Palavras-chave:
Infecções por coronavirus; Ética; Bioética; Reanimação cardiopulmonar; Cuidados críticos; Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To reflect about the do-not-resuscitation order at COVID-19 in Brazil, under bioethical focus and medical and nursing professional ethics.

Method:

Reflection study based on the principlist bioethics of Beauchamps and Childress and in professional ethics, problematizing actions, and decisions of non-resuscitation in the pandemic.

Results:

It is important to consider the patient's clinic, appropriation of treatment goals for people with comorbidities, elderly people, with less chance of surviving to resuscitation, or less quality of life, with the palliative care team, to avoid dysthanasia, use of scarce resources and greater exposure of professionals to contamination.

Conclusion:

COVID-19 increased the vulnerabilities of professionals and patients, impacting professional decisions and conduct more widely than important values ​​such as the restriction of freedom. It propelled the population in general to rethink ethical and bioethical values ​​regarding life and death, interfering in decisions about them, supported by human dignity.

Keywords:
Coronavirus infections; Ethics; Bioethics; Cardiopulmonary resuscitation; Critical care; Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Reflexionar sobre el orden de no reanimación en COVID-19 en Brasil, bajo enfoque bioético y ética profesional médica y de enfermería.

Método:

Estudio de reflexión basado en la bioética principialista de Beauchamps y Childress y ética profesional, acciones problemáticas y decisiones de no reanimación en la pandemia.

Resultados:

Considerar la clínica del paciente, con un esquema apropiado de los objetivos del tratamiento, especialmente en los ancianos y las personas con comorbilidades y contar con el apoyo del equipo de cuidados paliativos, para evitar la distanasia, así como el mal uso de los recursos y la exposición de los profesionales a la contaminación.

Conclusión:

COVID-19 aumentó las vulnerabilidades de profesionales y pacientes, impactando decisiones profesionales y conductas más amplias que valores importantes como la restricción de la libertad, pero especialmente haciendo que la población en general reconsidere los valores éticos y bioéticos con respecto a la vida y la muerte, interferir en las decisiones sobre ellos apoyadas por la dignidad humana.

Palabras clave:
Infecciones por coronavirus; Ética; Bioética; Reanimación cardiopulmonar; Cuidados críticos; Enfermería

INTRODUÇÃO

A doença do Coronavírus (COVID-19), causada pelo novo vírus SARS-COV-2, iniciou-se em 2019 na China, na cidade de Wuhan e atingiu o nível de pandemia no início de 2020. Desastres biológicos deste nível trazem inúmeros desafios aos sistemas de saúde, à sociedade e aos profissionais diretamente responsáveis pela assistência. Nesta pandemia, esforços vem sendo canalizados para o desenvolvimento e implementação de estratégias de enfrentamento, inclusive a reorganização da própria dinâmica da sociedade para instituição do distanciamento social, como medida preventiva à infecção e para ampliação do tempo de preparação dos serviços de saúde1Fausto J, Hirano L, Lam D, Mehta A, Mills B, Owens D, et al. Creating a palliative care inpatient response plan for COVID-19: the UW medicine experience. J Pain Symptom Manage. 2020;60(1):e21-e26. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.03.025
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Ainda assim, uma sobrecarga de atendimento nas unidades hospitalares pôde ser notada. Em curto prazo, a demanda por leitos de enfermaria e de terapia intensiva, com disponibilidade de tecnologia para manutenção da vida, elevou-se rapidamente. Isto ocorreu devido à evolução para graves síndromes do desconforto respiratório agudo, em virtude da insuficiência respiratória hipoxêmica, além de lesão miocárdica, arritmias ventriculares e outras complicações cardíacas, que geram situações de Parada Cardiorrespiratória (PCR) e demandam, portanto, cuidados assistenciais de Reanimação Cardiopulmonar (RCP)2Shao F, Xu S, Ma X, Xu Z, Lyu J, Ng M, et al. In-hospital cardiac arrest outcomes among patients with COVID-19 pneumonia in Wuhan, China. Resuscitation. 2020;151:18-23. doi: https://doi.org/10.1016/j.resuscitation.2020.04.005
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-3Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BR). Nota Técnica nº 04/2020. Orientações para serviços de saúde: medidas de prevenção e controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Brasília, DF : Anvisa; 2020 [cited 2020 Apr 30]. Available from: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04_2020-25-02-para-o-site.pdf
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Na RCP, a equipe de saúde realiza manobras para garantir a oxigenação pulmonar e circulação sanguínea, de forma colaborativa e coordenada. O procedimento inclui checagem da responsividade, verificação da respiração e pulso, início de compressões torácicas, ventilação e análise do ritmo cardíaco4Resuscitation Council UK. Guidance for the resuscitation of COVID-19 patients in hospital. London: RCUK; 2020. p. 18-19.. No entanto, em situações de pacientes em fase terminal de vida, com perda irreversível de consciência ou que possam apresentar parada cardíaca não tratável, a Ordem de Não Reanimar (ONR), que consiste na deliberação de não realizar tentativa de RCP, pode ser instituída5Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7 ed. New York: Oxford University Press; 2013..

A alta mortalidade, principalmente em grupos de risco como idade elevada e presença de comorbidades; a potencial aerossolização das gotículas, aumentando o risco de contaminação dos profissionais de saúde envolvidos3Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BR). Nota Técnica nº 04/2020. Orientações para serviços de saúde: medidas de prevenção e controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Brasília, DF : Anvisa; 2020 [cited 2020 Apr 30]. Available from: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04_2020-25-02-para-o-site.pdf
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e a escassez dos recursos materiais, como Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e ventiladores mecânicos, são fatores que parecem influenciar a tomada de decisão para a não reanimação no atual contexto pandêmico.

Em defesa da vida, é no campo da assistência à saúde, que são enfrentados os maiores dilemas éticos, entretanto, as novas sistematizações dos serviços e as tomadas de decisões, devem ser realizadas com responsabilidade e reflexão que considere aspectos éticos, bioéticos, socioculturais, legais e normativos, com enfoque na dignidade humana.

Recomendações e diretrizes sobre RCP apontam para a importância de garantir a comunicação efetiva entre a equipe a respeito da ONR, que deve ser estabelecida junto aos pacientes e familiares e com adequada documentação4Resuscitation Council UK. Guidance for the resuscitation of COVID-19 patients in hospital. London: RCUK; 2020. p. 18-19.. Da mesma maneira, é fundamental seguir políticas institucionais para manter cuidados paliativos, objetivando melhorar a qualidade de vida dos pacientes, e seus familiares, com problemas associados a doenças potencialmente fatais6Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução Nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial União. 2018 nov 1 [cited 2020 May 10];155(211 Seção 1):179-82. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=01/11/2018&jornal=515&pagina=179&totalArquivos=186
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, como tem se apresentado a COVID-197Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Recomendações da Associação de Medicina Intensiva Brasileira para abordagem do COVID-19 em medicina intensiva. São Paulo: AMIB; 2020. p. 77.. Esses cuidados mantem-se até o final do processo natural de vida, para a ortotanásia, sem intervenções obstinadas que firam os princípios éticos da não maleficência, beneficência, autonomia e justiça.

De acordo com a teoria da “moralidade comum” de Beuchampas e Childress5Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7 ed. New York: Oxford University Press; 2013., modelo mais utilizado na bioética clínica, os princípios éticos são classificados como deontológicos e teleológicos. Os teleológicos, que dizem respeito às finalidades das ações, são autonomia e beneficência. A autonomia pode ser explicitada como estabelecer escolhas intencionais, de sujeitos cônscios das decisões e livres de influências. Nessa perspectiva, a beneficência está na obrigação moral dos profissionais agirem de acordo com a vontade dos pacientes e não tomadas de decisões sem consulta aos pacientes e familiares.

Os princípios deontológicos referem-se à não-maleficência e justiça, em que a não-maleficência está em não causar dano e não causar dor desnecessária, em que se inclui o encerramento de tratamento fútil ou obstinado. A justiça, na perspectiva da saúde, está na ética de tratar cada um conforme o que é moralmente correto, trabalhando de forma a não deixar interferir nas decisões as questões sociais, religiosas, econômicas, entre outras, de forma a distribuir os recursos para o maior número de pessoas, de forma equilibrada5Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7 ed. New York: Oxford University Press; 2013..

Isto posto, torna-se premente a reflexão de como a ONR, na perspectiva bioética e da ética profissional médica e de enfermagem, tem se estruturado no contexto pandêmico brasileiro, sendo este o objetivo deste artigo.

MÉTODO

Trata-se de um estudo teórico reflexivo8Minayo, MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 13. ed. São Paulo: Hucitec; 2013 pautado na bioética e na ética profissional médica e de enfermagem a luz da ética principialista de Beauchamps e Childress5Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7 ed. New York: Oxford University Press; 2013.. A reflexão foi alicerçada nas bases legais, como as Resoluções da área da saúde: Resolução do Conselho Federal de Medicina no 2.217/20186Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução Nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial União. 2018 nov 1 [cited 2020 May 10];155(211 Seção 1):179-82. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=01/11/2018&jornal=515&pagina=179&totalArquivos=186
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, motivada pela necessidade de decidir sobre a não reanimação cardiopulmonar e que respalda a ortotanásia com base na dignidade humana; e Resolução do Conselho Federal de Enfermagem nº 564/179Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução Nº 564, de 6 de novembro de 2017. Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Diário Oficial da União. 2017 dez 6 [cited 2020 May 10];154(233 Seção 1):157. Available from: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2017/12/Resolução-564-17.pdf
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, referente ao Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Também baseou-se em estudos sobre o tema e nas orientações publicadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária3Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BR). Nota Técnica nº 04/2020. Orientações para serviços de saúde: medidas de prevenção e controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Brasília, DF : Anvisa; 2020 [cited 2020 Apr 30]. Available from: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04_2020-25-02-para-o-site.pdf
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, Associação de Medicina Intensiva Brasileira7Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Recomendações da Associação de Medicina Intensiva Brasileira para abordagem do COVID-19 em medicina intensiva. São Paulo: AMIB; 2020. p. 77., Sociedade Brasileira de Cardiologia10Bernoche C, Timerman S, Polastri TF, Giannetti NS, Siqueira AWS, Piscopo A, et al. Atualização da Diretriz de Ressuscitação Cardiopulmonar e Cuidados de Emergência da Sociedade Brasileira de Cardiologia - 2019. Arq Bras Cardiol. 2019;113(3):449-663. doi: https://doi.org/10.5935/abc.20190203
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e Resuscitation Council UK4Resuscitation Council UK. Guidance for the resuscitation of COVID-19 patients in hospital. London: RCUK; 2020. p. 18-19., todas no contexto da pandemia da COVID-19.

Este estudo foi desenvolvido por docentes com experiência nas áreas de bioética e ética profissional, cuidados paliativos, cuidados fundamentais de enfermagem e terapia intensiva, no âmbito do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, e discentes de mestrado e doutorado que trabalham objetos que tangenciam o conteúdo desta reflexão.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Perspectiva bioética e ética profissional na ordem de não-reanimar durante a COVID-19

A alta demanda por serviços especializados de saúde no contexto pandêmico pode levar a uma situação crítica em que os recursos (leitos de terapia intensiva, ventiladores mecânicos e profissionais habilitados) são insuficientes para atender a demanda de pacientes graves, comprometendo a oferta e a qualidade de cuidados tanto a pacientes portadores de COVID-19 quanto a pacientes portadores de doenças não pandêmicas.

Considerando que os cuidados de suporte são a base do tratamento entre pacientes críticos com COVID-19, a indisponibilidade de leitos de terapia intensiva confere um desfecho que fere o direito à vida, pois o cenário onde a PCR acontece influencia o resultado da RCP. Pacientes com COVID-19 reanimados na enfermaria geral comparados àqueles que receberam RCP em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) apresentam piores desfechos2Shao F, Xu S, Ma X, Xu Z, Lyu J, Ng M, et al. In-hospital cardiac arrest outcomes among patients with COVID-19 pneumonia in Wuhan, China. Resuscitation. 2020;151:18-23. doi: https://doi.org/10.1016/j.resuscitation.2020.04.005
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. Esta realidade leva à reflexão e ao entendimento de que a tomada de decisão de não reanimação deve se pautar na possibilidade de beneficiar o indivíduo, com base nos recursos disponíveis.

Em contrapartida, outra reflexão necessária, com imposta parcimônia e emprego ponderado dos recursos, versa sobre decisões que encaminhem para a futilidade terapêutica. O maior dilema bioético diz respeito à linha tênue entre futilidade e dano. Para tomada de decisão a reanimar ou não reanimar, o profissional deve avaliar a futilidade do ato, ou seja, ação que não pode atingir os objetivos, independente da frequência com que é repetida11Putzel E, Hilleshein K, Bonamigo E. Terminally ill patients’ do not resuscitate orders from the doctors’ perspective. Rev Bioét. 2016;24(3):596-602. doi: http://doi.org/10.1590/1983-80422016243159
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.

Para evitar o tratamento desproporcional, consequentemente, a morte, corre-se o risco de realizar a distanásia, considerada prolongamento do processo de morte, estendendo, assim, a vida biológica do paciente de forma penosa e com maior sofrimento1Fausto J, Hirano L, Lam D, Mehta A, Mills B, Owens D, et al. Creating a palliative care inpatient response plan for COVID-19: the UW medicine experience. J Pain Symptom Manage. 2020;60(1):e21-e26. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.03.025
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2Shao F, Xu S, Ma X, Xu Z, Lyu J, Ng M, et al. In-hospital cardiac arrest outcomes among patients with COVID-19 pneumonia in Wuhan, China. Resuscitation. 2020;151:18-23. doi: https://doi.org/10.1016/j.resuscitation.2020.04.005
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. Na ortotanásia, por sua vez, se propõe que o paciente tenha a morte de forma digna, sem abreviá-la ou prolongá-la, reconhecendo-a como um processo que faz parte da vida5Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7 ed. New York: Oxford University Press; 2013.. Nesta perspectiva, a justa medida entre ortotanásia e distanásia, com foco na dignidade humana, é de difícil consenso.

Primando-se pela dignidade humana propõe-se que a prática acompanhe a mudança no equilíbrio entre o risco e o benefício na situação da pandemia pela COVID-19, em prol da segurança coletiva e não apenas individual13Fritz Z, Perkins GD. Cardiopulmonary resuscitation after hospital admission with covid-19 [editorial]. BMJ. 2020;369:m1387. doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1387
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. Compreende-se que a execução das manobras de RCP geram aerossóis e expõe os profissionais envolvidos no procedimento3Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BR). Nota Técnica nº 04/2020. Orientações para serviços de saúde: medidas de prevenção e controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Brasília, DF : Anvisa; 2020 [cited 2020 Apr 30]. Available from: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04_2020-25-02-para-o-site.pdf
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-4Resuscitation Council UK. Guidance for the resuscitation of COVID-19 patients in hospital. London: RCUK; 2020. p. 18-19.,7Associação de Medicina Intensiva Brasileira. Recomendações da Associação de Medicina Intensiva Brasileira para abordagem do COVID-19 em medicina intensiva. São Paulo: AMIB; 2020. p. 77.,10Bernoche C, Timerman S, Polastri TF, Giannetti NS, Siqueira AWS, Piscopo A, et al. Atualização da Diretriz de Ressuscitação Cardiopulmonar e Cuidados de Emergência da Sociedade Brasileira de Cardiologia - 2019. Arq Bras Cardiol. 2019;113(3):449-663. doi: https://doi.org/10.5935/abc.20190203
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. Dessa forma, um comportamento ético e responsável também está alinhado com a proteção individual e coletiva, além da percepção de vulnerabilidade própria, uma vez que as mortes de profissionais e as quarentenas pela contaminação assolam os sistemas de saúde e impactam na saúde mental dos profissionais.

A decisão de reanimação do paciente no contexto da COVID-19 diante de uma PCR exige discernimento dos profissionais envolvidos que engloba fatores como o uso dos recursos já contingentes e critérios preditivos de sobrevida. Salienta-se que no cenário da UTI seja mais facilitada a reunião de todos esses fatores, de modo a contribuir para o entendimento da proporcionalidade terapêutica e, assim, melhor conduzir o raciocínio clínico pautado nos princípios de não maleficência e beneficência. Ratifica-se que a não maleficência consiste na obrigação do profissional de não causar dano ao paciente. Já a beneficência está fundamentada nas ações que forneçam benefícios ao paciente após ponderar riscos5Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7 ed. New York: Oxford University Press; 2013..

Dados da avaliação clínica auxiliam os profissionais na discussão dos casos com a equipe de saúde, pacientes e familiares, e ajudam a definir o prognóstico e os objetivos da assistência, se curativos ou paliativos exclusivos. O ideal e plausível de acontecer é acompanhar a evolução clínica, a fim de identificar possíveis benefícios e condições de sobrevida a partir da reanimação. Os casos de maior gravidade pela COVID-19 são caracterizados pelo recrutamento de células imunológicas em diversos sítios resultando em uma disseminação da disfunção endotelial e inflamatória dos pulmões, coração, rins, fígado e cérebro2Shao F, Xu S, Ma X, Xu Z, Lyu J, Ng M, et al. In-hospital cardiac arrest outcomes among patients with COVID-19 pneumonia in Wuhan, China. Resuscitation. 2020;151:18-23. doi: https://doi.org/10.1016/j.resuscitation.2020.04.005
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. Nesta avaliação clínica, quando os benefícios são superados pelo risco de insucesso na reanimação, a ordem deve ser de não reanimar. Isto precisa estar alinhado com todos os envolvidos nesse processo. Desta forma, a comunicação com a família é facilitada, diante da possibilidade de compreensão gradativa da gravidade do caso e garantia de que serão asseguradas as medidas de conforto.

Alguns países estão desenvolvendo protocolos para facilitar a designação dos insumos através da aplicação de critérios de exclusão, avaliação do risco de mortalidade e avaliações clínicas periódicas14Kretzer L, Berbigier E, Lisboa R, Grumann AC, Andrade J. Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19 [Internet]. São Paulo; 2020. Available from: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/24/VJS01_maio_-_Versa__o_2_-_Protocolo_AMIB_de_alocac__a__o_de_recursos_em_esgotamento_durante_a_pandemia_por_COVID.pdf
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. O objetivo de aplicar critérios de exclusão é identificar pacientes com uma expectativa de vida curta, independentemente de sua idade e da doença aguda atual, a fim de priorizar pacientes mais propensos a sobreviver com terapia de ventilador mecânico. A avaliação do risco de mortalidade é realizada por um sistema de pontuação clínica com o intuito de avaliar a probabilidade de sobrevivência de um paciente. Isto é realizado com base em medidas clínicas de função em seis órgãos e sistemas chave: pulmões, fígado, cérebro, rins, coagulação sanguínea e pressão arterial. Por fim, avaliações clínicas periódicas (48 e 120 horas) são realizadas em um paciente que iniciou a terapia do ventilador para avaliar se continua com o tratamento14Kretzer L, Berbigier E, Lisboa R, Grumann AC, Andrade J. Recomendações da AMIB (Associação de Medicina Intensiva Brasileira), ABRAMEDE (Associação Brasileira de Medicina de Emergência, SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia) e ANCP (Academia Nacional de Cuidados Paliativos) de alocação de recursos em esgotamento durante a pandemia por COVID-19 [Internet]. São Paulo; 2020. Available from: https://www.amib.org.br/fileadmin/user_upload/amib/2020/abril/24/VJS01_maio_-_Versa__o_2_-_Protocolo_AMIB_de_alocac__a__o_de_recursos_em_esgotamento_durante_a_pandemia_por_COVID.pdf
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. Embora esses protocolos variem em termos das considerações clínicas e princípios éticos sobre os quais se baseiam, todos concordam que o objetivo é salvar o maior número possível de vidas.

Um dado importante, que pode conduzir o processo de tomada de decisão do profissional frente à situação de conflito para não reanimação, pode ser observado em pesquisa que investigou 136 casos de pacientes com COVID-19 que sofreram PCR submetidos à manobra de reanimação. Dos 136 casos analisados, apenas quatro pacientes sobreviveram aos 30 dias, a contar da data da parada cardiorrespiratória, o que representou apenas 2,9% da amostra2Shao F, Xu S, Ma X, Xu Z, Lyu J, Ng M, et al. In-hospital cardiac arrest outcomes among patients with COVID-19 pneumonia in Wuhan, China. Resuscitation. 2020;151:18-23. doi: https://doi.org/10.1016/j.resuscitation.2020.04.005
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. Variáveis do perfil da amostra foram apontadas, destacando-se: 66,2% eram homens; 80,9% tinham 60 anos ou mais; 87,5% apresentaram como etiologia da parada problemas no sistema respiratório; 30,2% tinham hipertensão arterial; 19,9% tinham diabetes; e 11% tinham doença coronariana2Shao F, Xu S, Ma X, Xu Z, Lyu J, Ng M, et al. In-hospital cardiac arrest outcomes among patients with COVID-19 pneumonia in Wuhan, China. Resuscitation. 2020;151:18-23. doi: https://doi.org/10.1016/j.resuscitation.2020.04.005
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Vale ressaltar que, nas paradas cardíacas pela COVID-19, 80% apresentam atividade elétrica sem pulso ou assistolia como ritmo inicial de PCR, o que reduz a resposta positiva às manobras de reanimação, com sobrevivência e alta hospitalar de cerca de 15 a 20%13Fritz Z, Perkins GD. Cardiopulmonary resuscitation after hospital admission with covid-19 [editorial]. BMJ. 2020;369:m1387. doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1387
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. Os números que apontam a letalidade pela COVID-19, após manobras de reanimação, devem ser cuidadosamente analisados, pois pacientes com muitas fragilidades e que sofrem a PCR como fase final de um processo irreversível de morte não deveriam ser reanimados13Fritz Z, Perkins GD. Cardiopulmonary resuscitation after hospital admission with covid-19 [editorial]. BMJ. 2020;369:m1387. doi: https://doi.org/10.1136/bmj.m1387
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Desse modo, a forma como vem se configurando a evolução da pandemia pela COVID-19 no mundo, alguns serviços anunciam a necessidade de condução da prática assistencial alinhada aos cuidados paliativos, incluindo a identificação e o atendimento de metas assistenciais, controle de sintomas moderados e graves e apoio à família, inclusive no luto1Fausto J, Hirano L, Lam D, Mehta A, Mills B, Owens D, et al. Creating a palliative care inpatient response plan for COVID-19: the UW medicine experience. J Pain Symptom Manage. 2020;60(1):e21-e26. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.03.025
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Uma resposta a essa conjuntura pode ser elaborada a partir do treinamento da equipe de saúde para prestação de cuidados paliativos para abordar questões chave acerca da piora clínica, da privação de visitas, da necessidade de auto quarentena e da possibilidade de morte, na tentativa de humanizar a assistência e facultar à família a escolha pela não reanimação, facilitando para a equipe a identificação desses casos1Fausto J, Hirano L, Lam D, Mehta A, Mills B, Owens D, et al. Creating a palliative care inpatient response plan for COVID-19: the UW medicine experience. J Pain Symptom Manage. 2020;60(1):e21-e26. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.03.025
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Nesse sentido, além da abordagem da família, a perspectiva dos cuidados paliativos também pode orientar a equipe no direcionamento das metas dos tratamentos, além de oferecer suporte na implementação da ONR, baseada em informações clínicas e na alocação de recursos adequados ou escassos diante da capacidade de contingência e de crise1Fausto J, Hirano L, Lam D, Mehta A, Mills B, Owens D, et al. Creating a palliative care inpatient response plan for COVID-19: the UW medicine experience. J Pain Symptom Manage. 2020;60(1):e21-e26. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.03.025
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. No Brasil, podemos esbarrar na limitação dos nossos serviços/programas de cuidados paliativos que estão em fase inicial de desenvolvimento e ainda escassos.

Pelo fato da decisão de não reanimação estar sendo posta em prática de forma desvelada na atualidade, pela situação do desastre biológico causado pela COVID-19, é necessário pautar-se na cultura bioética a fim de evitar decisões unilaterais e impositivas, tanto pelos profissionais de saúde quanto por pacientes e seus familiares, em defesa da autonomia. A autonomia significa, portanto, o autogoverno, o que garante às pessoas tomarem decisões por si mesmas5Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. 7 ed. New York: Oxford University Press; 2013.. Sua garantia está condicionada ao diálogo claro e informativo, a partir da devida orientação do indivíduo acerca das opções disponíveis e suas consequências. Desse modo, terá condições de decidir por si próprio, o que incluem decisões sobre sua vida e própria morte, baseado em suas crenças e valores11Putzel E, Hilleshein K, Bonamigo E. Terminally ill patients’ do not resuscitate orders from the doctors’ perspective. Rev Bioét. 2016;24(3):596-602. doi: http://doi.org/10.1590/1983-80422016243159
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. Destaca-se ainda o direito do paciente de negar o tratamento, sempre com ampla comunicação sobre os riscos e vulnerabilidades a que está exposto10Bernoche C, Timerman S, Polastri TF, Giannetti NS, Siqueira AWS, Piscopo A, et al. Atualização da Diretriz de Ressuscitação Cardiopulmonar e Cuidados de Emergência da Sociedade Brasileira de Cardiologia - 2019. Arq Bras Cardiol. 2019;113(3):449-663. doi: https://doi.org/10.5935/abc.20190203
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Estudo realizado na China identificou que apenas cinco pacientes com COVID-19 de uma amostra de 151 optaram pela ONR2Shao F, Xu S, Ma X, Xu Z, Lyu J, Ng M, et al. In-hospital cardiac arrest outcomes among patients with COVID-19 pneumonia in Wuhan, China. Resuscitation. 2020;151:18-23. doi: https://doi.org/10.1016/j.resuscitation.2020.04.005
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. A esses resultados, deve-se questionar a qualidade da comunicação entre profissionais e pacientes, ou ainda, refletir acerca das decisões que impõem domínio da vontade da família em detrimento da vontade do paciente mais vulnerável, se estiver inconsciente. Se for esse o caso, fere-se a autonomia do paciente na decisão e o coloca em situação de distanásia, prolongando o sofrimento.

Cabe ainda ressaltar a autonomia profissional, que embora a OMS tenha se preocupado em emitir informações preliminares sobre a infecção, controle, triagem, diagnóstico e tratamento nos casos da COVID-19, observa-se que a emergência da situação e seus efeitos deletérios põem em xeque o direito ao exercício pleno da ética profissional, com autonomia. Isso, pois, nos casos de emergências, desastres e pandemias, a avaliação clínica frente à contingência exige dos profissionais a decisão sobre o investimento em vidas que apresentam maior chance de sobreviver. Mas esse fato deve ser compreendido com muita cautela, uma vez que a falta de recursos e a desordem causada pela catástrofe, podem impedi-lo até mesmo de garantir os cuidados para alívio dos sintomas, especialmente por se tratar de uma doença que evolui rapidamente para insuficiência respiratória.

Assim, embora o profissional de saúde, com base na comunicação clara e transparente para com pacientes e familiares/representantes legais, e que seu ato não seja unilateral, seja autorizado a decidir pela não reanimação em caso de enfermidades graves em fase terminal, as circunstâncias que demarcam uma situação de crise podem interferir no exercício pleno desta decisão por afetar a capacidade de assistência integral e de respeitar a vontade do paciente ou de seus familiares/representantes legais1Fausto J, Hirano L, Lam D, Mehta A, Mills B, Owens D, et al. Creating a palliative care inpatient response plan for COVID-19: the UW medicine experience. J Pain Symptom Manage. 2020;60(1):e21-e26. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.03.025
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1Fausto J, Hirano L, Lam D, Mehta A, Mills B, Owens D, et al. Creating a palliative care inpatient response plan for COVID-19: the UW medicine experience. J Pain Symptom Manage. 2020;60(1):e21-e26. doi: https://doi.org/10.1016/j.jpainsymman.2020.03.025
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Dessa forma, a implementação da ONR em pacientes com COVID-19 pode ser conduzida pelos seguintes caminhos: quando o paciente ou familiar expressa o desejo de não realização de procedimentos invasivos para prolongar a vida; o paciente ou familiar pode seguir a recomendação do profissional de saúde para que essas medidas não sejam instituídas, garantida toda informação necessária para esta decisão; e em situações extremas, quando a reanimação não pode ser eficaz, considerando o risco em detrimento do benefício15Curtis JR, Kross EK, Stapleton RD. The importance of addressing advance care planning and decisions about do-not-resuscitate orders during novel Coronavirus 2019 (COVID-19) [viewpoint]. JAMA. 2020;323(18):1771-2. doi: https://doi.org/10.1001/jama.2020.4894
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Esta pandemia alterou a relação risco benefício na PCR: de ‘não há mal em tentar’ para ‘há pouco benefício para o paciente e danos potencialmente significativos para a equipe’. O que nos remete à vulnerabilidade, tanto de pacientes quanto dos profissionais, como elemento bioético a ser considerado nas reflexões sobre o tema, em que por dignidade humana e direito do paciente a reanimação passa a ser não indicada e, considerando a vulnerabilidade dos profissionais com maior risco por aerossóis, estes passam a ter como prioridade a manutenção da biossegurança para manterem-se vivos e atuantes nos cuidados aos demais acometidos pela COVID-19.

Enfermeiros no enfrentamento da COVID-19 e a ordem de não reanimar

Destaca-se que a RCP, em alguns casos, tem sido iniciada por enfermeiros, mas a tomada de decisão para não reanimação é do médico, que pautado na discussão entre equipe pondera não serem úteis as manobras de RCP6Conselho Federal de Medicina (BR). Resolução Nº 2.217, de 27 de setembro de 2018. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial União. 2018 nov 1 [cited 2020 May 10];155(211 Seção 1):179-82. Available from: https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=01/11/2018&jornal=515&pagina=179&totalArquivos=186
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. Depende do enfermeiro, entre outras ações, a funcionalidade do carrinho de parada, com disponibilidade de materiais necessários a este tipo de assistência; procedimentos técnicos de punção venosa, preparo e administração de medicações; supervisão dos profissionais de nível técnico da equipe de enfermagem e possível revezamento nas manobras de reanimação.

A assistência ao paciente gravemente enfermo deve ser multiprofissional e interdisciplinar. Contudo, em situações de pandemia e de colapso do sistema de saúde, como a que estamos vivendo, algumas frentes de categorias profissionais podem estar deficitárias em número e os episódios simultâneos de gravidade dos casos podem implicar em não atendimento de determinadas necessidades de cuidado, seja do paciente ou de seus familiares.

Entretanto, ratifica-se que é vedado ao enfermeiro deixar de prestar assistência ao paciente, que deve ser realinhada de acordo com a finalidade da assistência naquele momento, como no caso dos cuidados paliativos, que prescrevem conforto e qualidade de vida e, o que deve ser cuidadosamente preservado, como a dignidade e a humanidade9Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução Nº 564, de 6 de novembro de 2017. Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Diário Oficial da União. 2017 dez 6 [cited 2020 May 10];154(233 Seção 1):157. Available from: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2017/12/Resolução-564-17.pdf
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Por ser uma doença recente, com novos conhecimentos a cada dia, a comunicação entre profissionais de enfermagem e equipe multidisciplinar e entre enfermeiros e pacientes, nem sempre é eficiente ou resolutiva. Mesmo reconhecendo que a comunicação apresenta problemas hermenêuticos, a realidade exige reflexão com enfoque ético profissional quanto ao dever de atualização dos profissionais, previsto no Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem9Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução Nº 564, de 6 de novembro de 2017. Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Diário Oficial da União. 2017 dez 6 [cited 2020 May 10];154(233 Seção 1):157. Available from: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2017/12/Resolução-564-17.pdf
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, e que determina ser direito do paciente receber informações corretas, de serem ouvidos nas suas necessidades e de receberem cuidados humanizados resolutivos9Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução Nº 564, de 6 de novembro de 2017. Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Diário Oficial da União. 2017 dez 6 [cited 2020 May 10];154(233 Seção 1):157. Available from: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2017/12/Resolução-564-17.pdf
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Essas determinações remetem à reflexão bioética e ao reconhecimento de que nem todos os profissionais de enfermagem, envolvidos nos cuidados paliativos aos pacientes da COVID-19 com ONR, conseguem oferecer comunicação que apoie essa decisão, seja por atuarem de forma protocolar, ou por prestarem o cuidado de enfermagem sem atualização ou reflexão sobre a ortotanásia. Neste caso, desconsiderar os saberes dos envolvidos ou deixar de ouvir paciente e família, interfere na comunicação efetiva e na sua autonomia, gerando conflitos e dificuldades na gerência dos cuidados de enfermagem.

Outro fator que interfere na ética do cuidado de enfermagem, também relacionado à falta de insumos, constitui-se na garantia de capacitação e prática adequada referente à biossegurança, devido ao risco de contaminação na retirada de EPI após os cuidados prestados ao paciente com COVID-193Agência Nacional de Vigilância Sanitária (BR). Nota Técnica nº 04/2020. Orientações para serviços de saúde: medidas de prevenção e controle que devem ser adotadas durante a assistência aos casos suspeitos ou confirmados de infecção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). Brasília, DF : Anvisa; 2020 [cited 2020 Apr 30]. Available from: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/centraisdeconteudo/publicacoes/servicosdesaude/notas-tecnicas/nota-tecnica-gvims_ggtes_anvisa-04_2020-25-02-para-o-site.pdf
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. A contaminação leva grande número de profissionais para a quarentena; e quanto maior o absenteísmo e o número de mortes de profissionais de saúde, de modo geral, mais deficientes estarão os recursos humanos para enfrentamento da pandemia.

Com esse pensamento, torna-se prudente e contributivo encaminhar os profissionais para atendimento psicológico e capacitação para atuação em momentos de desastre biológico em saúde, e ampliar a oferta de insumos. Destaca-se que os profissionais de enfermagem têm direito, garantido na Resolução COFEN nº 564/179Conselho Federal de Enfermagem (BR). Resolução Nº 564, de 6 de novembro de 2017. Aprova o novo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Diário Oficial da União. 2017 dez 6 [cited 2020 May 10];154(233 Seção 1):157. Available from: http://www.cofen.gov.br/wp-content/uploads/2017/12/Resolução-564-17.pdf
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, de negar-se a atuação sem paramentos para proteção de sua integridade física, considerando a periclitação da vida e da saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tantas incertezas e complexidades inerentes à pandemia, as reflexões sobre a ONR em tempos da COVID-19 mostraram que esta decisão precisa ser multidisciplinar envolvendo paciente e família, entretanto, não deve ser delegada a eles e, sim, oferecido suporte através da comunicação para garantir a autonomia do paciente. Além disso, deve considerar uma avaliação clínica criteriosa do paciente, especialmente em idosos e pessoas com comorbidades, com delineamento apropriado das metas dos tratamentos na tentativa de refrear a obstinação terapêutica em prol da dignidade humana, garantindo a não maleficência, evitando decisão fútil, maior sofrimento e dor ao paciente pela distanásia.

Encaminha-se a que a decisão de ONR deva ter uma abordagem multidisciplinar na perspectiva dos cuidados paliativos com vistas à ortotanásia, ainda que a situação pandêmica reduza recursos humanos e materiais causando déficit nesses cuidados.

Embora o estudo tenha alcançado seu objetivo, existe limitação no que concerne à complexidade do tema de forma que a decisão pela ONR ainda causa impacto e exige reflexão dificultando o consenso por questões religiosas, culturais ou déficit de conhecimento sobre legislação atual e sobre a evolução da bioética. Além disso, existe uma limitação de estudos que abordem essa temática em pacientes com COVID-19, o que dificulta avançar nas reflexões mais estruturadas no campo da bioética e da ética profissional.

A COVID-19 ampliou as vulnerabilidades de profissionais e pacientes, desta forma esta reflexão pode contribuir para a prática profissional, impactando nas decisões e condutas frente às ordens de não reanimação repensadas com base em valores éticos e bioéticos referentes à vida e à morte, respaldas na dignidade humana.

Agradecimentos:

Ao Programa de Excelência Acadêmica (PROEX) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior / Ministério da Educação (CAPES/MEC).

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Editado por

Editor associado:

Dagmar Elaine Kaiser

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2020
  • Aceito
    26 Mar 2021
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