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A voz de quem cuida durante a pandemia - um estudo lexicográfico Brasil-Portugal

RESUMO

Objetivo:

Analisar os vocabulários mais frequentes em entrevistas concedidas por enfermeiros durante a pandemia de coronavírus.

Método:

Trata-se de estudo qualitativo, exploratório, descritivo, realizado com 45 entrevistas concedidas por enfermeiros para jornais de grande circulação no Brasil e em Portugal. Os dados foram processados com o auxílio do software ATLAS.ti® e analisados pela ferramenta nuvem de palavras.

Resultados:

Sete léxicos com maior frequência foram: “casa” (respeito ao isolamento), “enfermeiros” (valorização da profissão e problemas estruturais), “pacientes/doentes” e “cuidados” (referente à gravidade da doença), “família” (saudades/estresse emocional) e “medo” (temor pela contaminação de si e dos outros).

Considerações finais:

A nuvem de palavras revelou o quão sofrida tem sido a experiência dos enfermeiros e reforça a urgente necessidade de repensar o trabalho da enfermagem e os riscos enfrentados. Reflexões como esta contribuem para a construção de uma enfermagem mais valorizada e políticas públicas para a proteção dos enfermeiros.

Palavras-chave:
Enfermagem; Condições de trabalho; Meios de comunicação; Infecções por Coronavirus; Estresse ocupacional

ABSTRACT

Objective:

To analyze the most frequent words in interviews given by nurses during the coronavirus pandemic.

Method:

This is a qualitative, exploratory, descriptive study, carried out with 45 interviews granted by nurses to newspapers of great circulation in Brazil and Portugal. The data were processed using the ATLAS.ti® software and analyzed using the word cloud tool.

Results:

The seven most frequent words were: “home” (respect for isolation), “nurses” (valuing of the profession and structural problems), “patients/diseased” and “care” (referring to the severity of the disease), “family” (missing her own family/emotional stress) and “fear” (fear of contamination of oneself and others).

Final considerations:

The word cloud revealed how straining nurses’ experiences have been and reinforced the urgent need to rethink nursing work and the risks faced. Reflections like this contribute to the construction of more valued nursing and public policies for the protection of nurses.

Keywords:
Nursing; Working conditions; Communications media; Coronavirus infections; Occupational stress

RESUMEN

Objetivo:

Analizar los términos más frecuentes en entrevistas dadas por enfermeras durante la pandemia de coronavirus.

Método:

Estudio cualitativo, exploratorio, descriptivo, realizado con 45 entrevistas concedidas por enfermeras a periódicos de gran circulación en Brasil y Portugal. Se procesó los datos con el software ATLAS.ti® y se les analizó con la herramienta de nube de palabras.

Resultados:

Las siete palabras más frecuentes fueron: “hogar” (respeto al aislamiento), “enfermeras” (valoración de la profesión y problemas estructurales), “pacientes/enfermos” y “cuidados” (referido a la gravedad de la enfermedad), “familia” (nostalgia/estrés emocional) y “miedo” (miedo a la contaminación de uno mismo y de los demás).

Consideraciones finales:

La nube de palabras reveló el sufrimiento en la experiencia de las enfermeras y reforzó la urgente necesidad de repensar el trabajo de enfermería y los riesgos que enfrenta. Reflexiones como esta contribuyen a la construcción de políticas públicas y de enfermería más valoradas para la protección del enfermero.

Palabras clave:
Enfermería; Condiciones de trabajo; Medios de comunicación; Infecciones por Coronavirus; Estrés laboral

INTRODUÇÃO

O ano de 2020 começou diferente, o mundo todo se viu diante de uma nova situação alarmante de saúde pública, a COVID-19. O primeiro registro da doença foi no final de 2019 em um paciente do Hospital Wuhan Jinyintan, China, uma pneumonia viral com características dos coronavírus1World Health Organization (WHO). Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Jul 20]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf .
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. A evolução, em termos de disseminação, foi rápida e, em menos de dois meses, mais de 75 mil casos foram relatados na China1World Health Organization (WHO). Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (COVID-19) [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Jul 20]. Available from: https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/who-china-joint-mission-on-covid-19-final-report.pdf .
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.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a situação como pandemia em 11 de março de 2020, com a Itália sendo o novo epicentro de contaminação. Rapidamente, a doença se disseminou para vários países da Europa, destacando-se a Espanha, França e Inglaterra, espalhando-se para outros continentes, sendo os Estados Unidos e o Brasil os mais recentes epicentros da doença, com o maior número de mortes do planeta.

No Brasil, o primeiro caso diagnosticado e registrado pelo Ministério da Saúde foi em 26 de fevereiro de 2020. A seguir, verificou-se forte intensificação da disseminação da doença, sendo que, no dia 10 de agosto de 2020, mais de três milhões de brasileiros estavam contaminados e mais de 100 mil já tinham morrido pela doença2Ministério da Saúde (BR) [Internet]. COVID-19 no Brasil. 2020 [cited 2020 Jul 27]. Available from: https://qsprod.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html .
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. O quadro dramático do Brasil não resulta apenas do potencial de transmissibilidade e letalidade do vírus, mas também é influenciado por uma determinação social complexa. A gravidade da disseminação e mortalidade da doença foi fortemente determinada pela falta de um planejamento claro e articulado entre as esferas de governo para o combate à doença.

Medidas de isolamento social, utilização de máscaras por toda a população, testagem em massa e disponibilidade de recursos para cuidados aos doentes têm grande discrepância entre estados e municípios, dificultando o envolvimento da população com as práticas sanitárias de base científica. O resultado são milhares de mortes evitáveis. O próprio presidente da república desenvolve ações de risco sanitário, provocando aglomerações, negando a gravidade da doença e disseminando orientações sem base científica, o que tem gerado manifestações e denúncias por organizações de trabalhadores, por religiosos, por cientistas e profissionais de saúde, seja na literatura científica3COVID-19 in Brazil: "so what?" [editorial]. Lancet. 2020;395(10235):1461. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3.
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, na imprensa nacional e internacional e em tribunais internacionais.

Em contrapartida, Portugal teve seu primeiro caso confirmado em 2 de março de 2020. Nessa mesma semana, a divulgação por diversos meios de comunicação da complexidade da situação vivenciada em alguns países europeus, em especial na Itália, contribuiu para alertar a sociedade e mobilizar o governo e as instituições de saúde para o planejamento de uma resposta eficaz. Sabendo que os recursos em saúde que o país dispunha eram escassos, foram reunidos esforços, no sentido de se antecipar para o atendimento de algumas necessidades4Direção-Geral da Saúde (PT). Plano nacional de preparação e resposta à doença por novo coronavírus (COVID-19). Lisboa: DGS; 2020 [cited 2020 Jul 06]. Available from: https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/plano-nacional-de-preparacao-e-resposta-para-a-doenca-por-novo-coronavirus-covid-19-pdf.aspx .
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. No momento em que o número de casos ainda permitia uma resposta eficaz do Sistema Nacional de Saúde, já se organizaram hospitais de campanha, cujo objetivo maior era evitar a superlotação dos hospitais com doentes que tinham sintomas leves, o que corresponderia a cerca de 80% dos casos4Direção-Geral da Saúde (PT). Plano nacional de preparação e resposta à doença por novo coronavírus (COVID-19). Lisboa: DGS; 2020 [cited 2020 Jul 06]. Available from: https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/plano-nacional-de-preparacao-e-resposta-para-a-doenca-por-novo-coronavirus-covid-19-pdf.aspx .
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.

Face à rápida evolução da pandemia no mundo e, particularmente, na União Europeia, e perante a consciência de que Portugal não estaria imune a esta realidade, no dia 18 de março, foi declarado, em Portugal, pelo Presidente da República, o estado de emergência nacional5Portugal. Presidência da República. Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março. Declara o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública. Diário da República. 2020 mar 18 [cited 2020 Jul 06];55/2020(3 Supl.):13-(2)-13-(4). Available from: https://dre.pt/application/conteudo/130399862 .
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. Apesar das implicações desta declaração do ponto de vista social e econômico, tendo em vista a priorização da saúde da população, da prevenção e tratamento da COVID-19 e da resposta eficaz do sistema de saúde, o estado de emergência foi renovado mais duas vezes, e, a partir do dia 3 de maio de 2020, foi declarada situação de calamidade que, face ao sucesso das medidas anteriormente implementadas, tem permitido ao governo português elaborar um quadro legislativo capaz de regular o levantamento gradual das medidas de confinamento6Portugal. Presidência do Conselho de Ministros. Decreto-Lei n.º 2020/2020, de 1 de maio. Altera as medidas excecionais e temporárias relativas à pandemia da doença COVID-19. Diário da República. 2020 maio 1 [citado em 2020 jul 06];85-A/2020:2-10. Available from: https://dre.pt/application/conteudo/132883356 .
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.

A par do esforço dos governos e, particularmente, das instituições de saúde, a população portuguesa não demorou a perceber que há semelhança das medidas tomadas em outros países; face à inexistência de uma vacina e/ou de um tratamento eficaz, o enfoque estava na prevenção da contaminação. O isolamento social, a lavagem frequente das mãos e os cuidados inerentes à etiqueta respiratória foram reiteradamente incentivados e apresentados como a única solução. Embora com alguns problemas, a situação da pandemia em Portugal foi dando evidência de algum controle. Até o dia 10 de agosto de 2020, registrou-se um total de 52.825 casos de infeção e 1.759 mortes por COVID-197Direção-Geral da Saúde (PT) [Internet]. Ponto de situação atual em Portugal. Lisboa: DGS; 2020 [cited 2020 Aug 10]. Available from: https://covid19.min-saude.pt/ .
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.

Os enfermeiros estão na linha de frente na prevenção, no tratamento e na recuperação das vítimas do coronavírus em todo o mundo, juntamente com as outras profissões da área da saúde8Miranda FMDA, Santana LL, Pizzolato AC, Saquis LMM. Working conditions and the impact on the health of the nursing profissionals in the context of Covid-19. Cogitare Enferm. 2020;25:e72702. doi: http://doi.org/10.5380/ce.v25i0.72702.
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. Estão sofrendo as consequências da pandemia, além de adoecimentos e mortes. No Brasil, até o dia 10 de agosto, mais de 32 mil profissionais de enfermagem já haviam sido infectados, sendo que 340 já perderam a vida na luta contra o vírus9Conselho Federal de Enfermagem (BR) [Internet]. Observatório da enfermagem. 2020 [cited 2020 Aug 10]. Available from: http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/ .
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. Embora as estatísticas de Portugal sejam significativamente menores, o que pode ser justificado pela forma como o país tem enfrentado a pandemia, os enfermeiros ainda estão sob o risco iminente de contágio.

Essa pandemia deu grande visibilidade à importância da profissão e também evidenciou uma realidade que já existe há muito tempo, os graves déficits nas condições de trabalho da enfermagem. O momento atual, altamente influenciado pela comunicação, em suas diversas formas, em especial pela força das mídias sociais, jornais e televisão em atingir grande parte da população do planeta, os enfermeiros têm utilizado esses recursos para contar sua história, expressar seus sentimentos e denunciar as dificuldades vividas nos cenários de prática. Portanto, com dois países vivendo a mesma pandemia e com situações tão distintas nos danos à população e aos profissionais que cuidam da saúde, o que os enfermeiros têm expressado ao se comunicarem com a sociedade pela imprensa?

Perante o exposto, este estudo teve como objetivo analisar os vocabulários mais frequentes em entrevistas concedidas por enfermeiros durante a pandemia de coronavírus.

MÉTODO

Trata-se de pesquisa documental de abordagem qualitativa, exploratória e descritiva, utilizando entrevistas com enfermeiros concedidas a jornais de grande circulação no Brasil e em Portugal, no período de 2 de março a 31 de maio de 2020. Para a escolha dos dois países, considerou-se a vivência da pandemia com distinções nos impactos na sociedade e nos profissionais de enfermagem e o compartilhamento de idioma. O vocabulário do mesmo idioma é necessário para a realização da lexicografia.

Foram incluídas publicações em jornais considerados de grande circulação, com a média de circulação estipulada de acordo com os critérios dos dois países, disponíveis online e de forma gratuita, entrevistas concedidas por enfermeiros e que retratavam o dia a dia de trabalho durante a pandemia de coronavírus. Excluíram-se os jornais pagos por meio de assinatura, as entrevistas de outros participantes da equipe de enfermagem e as de entidades de classe ou de outra ordem.

Para a busca das entrevistas, utilizou-se o buscador do Google® notícias, com as palavras-chave: enfermagem, enfermeiros, covid, pandemia, coronavírus, entrevista. Todas as entrevistas foram salvas em arquivo único e inseridas no software ATLAS.ti (Qualitative Research and Solutions), versão 8.5.6. A coleta de dados foi interrompida a partir do momento que foi considerada a saturação teórica e empírica, mostrando uma amostra satisfatória que atendeu o objetivo proposto.

Para a análise dos dados, utilizou-se a análise lexical através do ATLAS.ti, que possibilita a análise por meio do recurso de nuvem de palavras. A discussão dos dados foi inspirada na teoria do processo de trabalho da enfermagem10Pires D. A enfermagem enquanto disciplina, profissão e trabalho [ensaio]. Rev Bras Enferm. 2009;62(5):739-44. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000500015.
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Os dados foram organizados e preparados para deixar o texto fluído, sem a identificação dos indivíduos e/ou jornais, bem como informações desnecessárias para essa análise, como data, hora, nome do jornalista e propagandas. Na sequência, os dados foram lidos na íntegra para a percepção geral das informações. Por fim, houve o processamento dos dados através da nuvem de palavras em uma análise lexical simples, na qual as palavras são agrupadas e, em função da frequência com que aparecem, quanto maior a frequência, maior o tamanho da fonte.

A partir da nuvem de palavras, foram realizadas a análise e a interpretação do sentido das palavras dentro do texto, recuperando os segmentos de onde os léxicos mais frequentes fizeram maior sentido. Os resultados estão divididos na caracterização dos enfermeiros entrevistados e na organização do que foi exibido nas reportagens, conforme análise lexical da nuvem de palavras.

Para a garantia do anonimato dos jornais e dos enfermeiros, foi utilizada a seguinte codificação: E - Enfermeiro, B - Brasil e P - Portugal, seguido de um número cardinal de ordem de coleta das informações.

Esta pesquisa atendeu aos passos recomendados pelo COREQ (Critérios Consolidados para Relatar uma Pesquisa Qualitativa), respeitando todos os preceitos éticos, conforme a Resolução n. 466/2012 da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde, dispensando a análise e aprovação por Comitê de Ética, haja vista a fonte de coleta de dados ser considerada de domínio público.

RESULTADOS

Foram analisadas 17 entrevistas em Portugal e 28 no Brasil, totalizando 45. Com relação à caracterização dos enfermeiros entrevistados, a grande maioria é do sexo feminino (37-82,2%), a idade variou entre 24 e 58 anos, e o tempo de atuação na enfermagem foi superior a cinco anos em 31 (68,8%) e aqueles que atuam há menos de cinco anos somaram 14 (31%). Quanto à área de atuação, 62,2% (28) atua em Unidades de Terapia Intensiva, 26,6% (12), em emergência e atendimento pré-hospitalar e cinco (11,1%), em unidades de internação.

Por meio da nuvem de palavras, sete léxicos foram identificados com maior frequência: “casa”, 90 vezes, “enfermeiros”, com 58 evocações, “pacientes/doentes” e “cuidados”, 52 vezes cada, “família”, 51 vezes e “medo”, com 44 vezes.

A Figura 1 apresenta a nuvem de palavras gerada pelo ATLAS.ti® 8.5.6 com o posicionamento das palavras de acordo com a frequência em que aparecem (maiores que as demais) e com a cor mais acentuada.

Figura 1 -
Nuvem de palavras gerada no ATLAS.ti®

Ao retomar os textos noticiados em que a palavra “casa” aparece reiteradamente, evidenciaram-se duas vertentes durante a pandemia de coronavírus. Uma se refere aos reiterados pedidos dos enfermeiros para que as pessoas fiquem em casa e respeitem o isolamento social, e a outra é relativa ao próprio afastamento do lar, longe da família e dos amigos para protegê-los.

Então, o que a gente pode pedir para as pessoas é para elas ficarem em casa o máximo que elas puderem, tentar ajudar a gente que está ali na linha de frente. Porque o que eu posso fazer é ir para a UTI e ajudar as pessoas que estão lá. Quem não trabalha com isso, pode fazer sua parte e ficar em casa (EB22).

O enfermeiro apela a toda a gente para ficar em casa (EP4).

O meu problema mesmo é com as crianças, é o medo de trazer coisa para casa (EB13).

As crianças foram viver temporariamente na casa do pai, e as saudades são combatidas com conversas via FaceTime ou WhatsApp (EP7).

A palavra “enfermeiros” está vinculada a duas questões: à valorização da profissão e aos problemas enfrentados diante da estrutura dos serviços de saúde. De maneira geral, em ambos os países, foi mostrada uma realidade de péssimas condições de trabalho nos serviços de saúde, incluindo déficits nos Equipamentos de Proteção Individual e falta de materiais, equipamentos e insumos para o atendimento das vítimas do coronavírus.

A profissão não é valorizada. Quando voltei ao trabalho, sabia que ia encontrar um cenário bem ruim e chocante. Mas o mercado está cada vez pior, cruel com o profissional e ainda querem contratar com salários inferiores e até enfermeiros como voluntários. Me senti muito injustiçada e tratada com um certo desprezo. Você se sente um zero à esquerda e realmente não há valorização (EB17).

Sabemos que nossa profissão exige isso, de não podermos cumprir o isolamento social igual ao resto das pessoas. Mais valorização para nós enfermeiros! (EB9).

Esta pandemia, neste momento, só serviu para se compreender a necessidade urgente de definir a profissão dos enfermeiros como profissão de desgaste rápido e alto risco (EP1).

Sei de colegas de hospitais aqui da região que estão tendo que reutilizar materiais de proteção individual, além de faltar muita gente para trabalhar, mas sempre foi assim [...] condições péssimas que nos põe em risco maior ainda (EB19).

As armas dos enfermeiros são os Equipamentos de Proteção Individual, não nos retirem também estas, por favor! (EP2).

Nós enfermeiros estamos habituados a ver “de tudo” e a trabalhar em condições que as pessoas “normais” nem sonham (EP5).

Relativo aos “pacientes/doentes” e aos “cuidados”, os enfermeiros se referem à gravidade do quadro que o coronavírus lhes impõe, especialmente por não se tratar de uma infecção respiratória qualquer já conhecida, é algo totalmente novo e assustador.

São plantões terríveis, pois os pacientes eram graves e a melhora era lenta, a maioria dos pacientes está entubada e inconsciente (EB8).

Os pacientes estão gravíssimos a equipe toda está dando o máximo 24 horas por dia e a melhora que a gente vê é muito pouca, às vezes, é tão lenta que parece que não está acontecendo nada e os pacientes estão demandando demais por estarem gravíssimos, então é um cansaço físico e mental enorme (EB26).

As pessoas chegam feito peixe fora do aquário, morrendo sem ar. Vi um rapaz de 35 anos que não tinha nenhum antecedente, sem comorbidades, um menino lindo, morrer da noite para o dia. Eu levei ele pra UTI e ele morreu (EB25).

Estava habituada a lidar com doentes em estado grave, mas não com tantos de uma vez e a precisarem de tantos cuidados(EP11).

Estes doentes são um desafio. Nós queremos salvar toda a gente (EP14).

Tenho 15 anos de cuidados intensivos, mas não estava preparada para a exigência de cuidados que o novo coronavírus trouxe (EP6).

A “família” teve uma conotação de tristeza e saudade, juntamente com os aspectos de proteção. Os enfermeiros destacaram a ausência dos familiares e de bons momentos junto aos seus.

Estou longe dos meus pais e da minha família, que estão isolados em outra cidade. Meu pai fechou a empresa dele e foi embora, chorando. Foi difícil ver isso. Minha irmã, que também é enfermeira, 'jogou a toalha'. Não estamos tendo condições de lidar com tudo isso (EB10).

O que todo mundo tem que ver é que o profissional, para cuidar das pessoas, está expondo sua própria vida e a vida da sua família (EB5).

Eu durmo dentro do carro há quase dois meses para proteger a família. A nossa maior preocupação não é ficar doente, mas de levar a doença para a nossa família, para as pessoas que a gente ama (EB16).

Estou assustada porque não sei quando vou ver os meus filhos. Ontem, quando vi a declaração do Presidente da República, só me apetecia chorar. Isto mal começou e não sei quando é que isto vai acabar (EP13).

Não estar com a família e os amigos custa-me muito, porque eu sou feita de pessoas (EP15).

Este medo fez-me tomar uma opção dura e difícil: deixar a minha família e ficar alojado num hotel disponibilizado para profissionais de saúde, muito próximo do Hospital (EP8).

O “medo” permeia a vivência dos enfermeiros durante esse período de pandemia e se manifesta de maneiras distintas. Os enfermeiros temem pela vida de seus familiares e amigos, pela vida dos colegas de profissão e pela própria vida, já que estão muito mais expostos ao vírus.

Sim, tenho medo. Mas neste momento encaro o medo como um combustível para me manter alerta e vigilante, para assegurar que tenho capacidade de reação e resposta adequada ao que me é exigido e expectável. Este medo que sinto faz com que seja meticuloso e me assegure sempre, mas sempre, que não corro nem ponho os outros em risco (EP17).

Medo de ficar infetado e, sobretudo, de funcionar como um meio de disseminação da doença, de contagiar os meus colegas, os doentes e a minha família (EP8).

O medo impera a maioria das horas infindáveis do turno e depois dele, mas vamo-nos agarrando às pequenas vitórias do dia a dia para enfrentar cada dia, um de cada vez (EP12).

O sentimento que fica é o de medo e ansiedade mesmo, pois somos o primeiro contato do usuário quando ele chega na unidade. Fazemos toda essa triagem (EB3).

Acho que é um consenso da equipe que o pior ainda está por vir, e aí vem o medo, se hoje está ruim desse jeito. Eu acho que, todo mundo lá na UTI ainda acha que o pior ainda não chegou, que ainda está por vir (EB24).

Por mais que nós sejamos treinados para fazer isso, dá um medo muito grande de pegar a doença, já que não sabemos o que vem pela frente. A gente fica muito exposto, quase que o tempo todo, e como eu estava trabalhando diretamente com a COVID-19 era ainda mais arriscado (EB28).

DISCUSSÃO

A Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 (SARS-CoV-2), mais conhecida por COVID-19, surgiu de forma inesperada, e, enquanto nova entidade nosológica, representa atualmente um dos maiores desafios com que o mundo se depara8Miranda FMDA, Santana LL, Pizzolato AC, Saquis LMM. Working conditions and the impact on the health of the nursing profissionals in the context of Covid-19. Cogitare Enferm. 2020;25:e72702. doi: http://doi.org/10.5380/ce.v25i0.72702.
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, exigindo uma resposta coordenada e responsável. Sistemas de saúde, governos e diversas instâncias da sociedade precisam pactuar caminhos de enfrentamento da crise orientados por um valor fundamental, a defesa da vida.

O contexto imposto pela pandemia da COVID-19 vem revelando uma nova face da atenção à saúde, em especial, porque, mais do que nunca, a prevenção é o único “remédio” identificado até o momento. Tecnologias de ponta, em especial as do tipo material, têm sido utilizadas para manter e salvar vidas, contudo técnicas e atitudes simples (lavar as mãos, usar máscara, limpeza de materiais e ficar em casa) são as verdadeiras responsáveis pela redução da disseminação do novo coronavírus, evitando sobrecarga das instituições de saúde e mortes.

Trata-se de um problema de saúde coletiva impossível de ser tratado somente com tecnologias pautadas no olhar da biomedicina. É preciso articular conhecimentos das profissões da saúde, em especial da enfermagem sobre a complexidade e múltiplas dimensões do cuidado humano, assim como conhecimentos acumulados pela epidemiologia, antropologia da saúde, matemática, economia e sociologia. Os conceitos de determinação social do processo saúde doença, interdisciplinaridade, interprofissionalidade e intersetorialidade, mais do que nunca, mostram-se necessários para enfrentamento da pandemia11Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Salud Pública. 2013 [cited 2020 Aug 10];31(Supl 1):S13-S27. Available from: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-386X2013000400002&lng=en .
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).

A experiência mundial adverte para a necessidade de controlar a velocidade de progressão da curva epidêmica12Rafael RMR, Neto M, Carvalho MMB, David HMSL, Acioli S, Faria MGA. Epidemiology, public policies and Covid-19 pandemics in Brazil: what can we expect? Rev Enferm UERJ. 2020;28:e49570. doi: https://doi.org/10.12957/reuerj.2020.49570.
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e, entre as medidas mais eficazes, já demonstrada em diversos países, destacou-se o isolamento físico social. No entanto, enquanto se pedia e pede à população para manter esse isolamento, ficando em casa, os profissionais de saúde, especialmente os da enfermagem, continuam na linha da frente no combate à COVID-19.

Neste cenário, a pesquisa focou na “voz de quem cuida”; para isso, tratou de identificar o que os enfermeiros tem comunicado à sociedade através da imprensa. Os resultados evidenciaram a relevância e a natureza do trabalho profissional de enfermagem, a importância das condições de trabalho, assim como as implicações desse trabalho em quem o realiza.

O léxico “casa” foi o que mais se destacou nas entrevistas dos enfermeiros, mostrando-se um termo multivocal. Expressa que esses profissionais fundamentam a sua prática no conhecimento científico disponível, ao defender que a população “fique em casa”, para autoproteção e salvar vidas, expressa, também, responsabilidade profissional, ao reconhecer a importância de estar presente nos serviços de saúde para cuidar e aliviar o sofrimento das pessoas, mas que isso os impede de “ficar em casa”, limitando as possibilidades de cuidado de si. Os profissionais de enfermagem têm medo de retornarem à suas casas e acabam, por vezes, abrindo mão do convívio pela segurança da família.

Nas entrevistas publicadas na mídia, verificaram-se vários apelos realizados pelos profissionais de enfermagem para que as pessoas fiquem em casa, o que também foi identificado em outro estudo13Forte ECN, Pires DEP. Nursing appeals on social media in times of coronavirus. Rev Bras Enferm. 2020;73(Supl 2):e20200225. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0225.
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. O isolamento físico permite o controle da curva epidêmica, assim como a redução do número de casos de infecção e do número de doentes internados, diminuindo também a probabilidade de contágios entre os profissionais de enfermagem, o que, consequentemente, atenua a sua ansiedade e o receio de adquirir a doença e de contaminar seus familiares14Bezerra ACV, Silva CEM, Soares FRG, Silva JAM. Factors associated with people’s behavior in social isolation during the COVID-19 pandemic. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(Supl 1):2411-21. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.1.10792020.
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.

Na mesma vertente interpretativa, destacam-se os trechos das entrevistas relacionados ao objeto de trabalho da enfermagem, articulados nas palavras “casa, pacientes/doentes e cuidados”. Enfermeiros, ao falar da profissão e de seu fazer, sempre ressaltam a preocupação com aqueles que são seu objeto de trabalho, pacientes/doente/pessoas que necessitam dos cuidados profissionais de enfermagem, considerando suas individualidades, relações familiares e padrões culturais15Moreira DA, Ferraz CMLC, Costa IP, Amaral JM, Lima TT, Brito MJM. Professional practice of nurses and influences on moral sensitivity. Rev Gaúcha Enferm. 2020;41:e20190080. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20190080.
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. Reconhecem a gravidade da doença e demonstram sensibilidade e empatia em relação ao sofrimento das pessoas hospitalizadas e à vulnerabilidade da população aos danos causados pelo coronavírus. Desde o início da pandemia, prevendo a possibilidade de ampliação do número de casos e perda de capacidade dos sistemas de saúde4Direção-Geral da Saúde (PT). Plano nacional de preparação e resposta à doença por novo coronavírus (COVID-19). Lisboa: DGS; 2020 [cited 2020 Jul 06]. Available from: https://www.dgs.pt/documentos-e-publicacoes/plano-nacional-de-preparacao-e-resposta-para-a-doenca-por-novo-coronavirus-covid-19-pdf.aspx .
https://www.dgs.pt/documentos-e-publicac...
, os profissionais de saúde, nomeadamente da área de Enfermagem, foram incansáveis na divulgação das medidas preventivas, o que, de fato, foi visível nos achados das entrevistas.

Em terceiro lugar, perceptível em trechos das entrevistas articulados nas palavras “enfermeiro, paciente/doente, cuidados” e também nas palavras “proteção e máscara”, dois aspectos se destacam: a relevância e a necessidade de valorização social dessa profissão que é essencial para a vida humana e que, mesmo vivenciando cenários político institucionais distintos, ambientes de prática adequados e seguros são fundamentais para proteger quem trabalha e quem é cuidado pela enfermagem.

Durante a fase crítica da pandemia por COVID-19, a sociedade civil tem evidenciado o reconhecimento pelo trabalho efetuado pelos profissionais de enfermagem, no entanto a profissão teme que se trate apenas de uma valorização transitória, sustentada na situação dramática que o mundo vivencia e não no real valor dessa profissão.

O trabalho profissional de enfermagem requer trabalhadores qualificados especificamente formados para esse fim, produção permanente de conhecimentos que sustentem a prática em cenários de mudanças permanentes, além de condições de trabalho adequadas, legislação protetora e normativas éticas orientadoras do processo decisório8Miranda FMDA, Santana LL, Pizzolato AC, Saquis LMM. Working conditions and the impact on the health of the nursing profissionals in the context of Covid-19. Cogitare Enferm. 2020;25:e72702. doi: http://doi.org/10.5380/ce.v25i0.72702.
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,10Pires D. A enfermagem enquanto disciplina, profissão e trabalho [ensaio]. Rev Bras Enferm. 2009;62(5):739-44. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000500015.
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,15Moreira DA, Ferraz CMLC, Costa IP, Amaral JM, Lima TT, Brito MJM. Professional practice of nurses and influences on moral sensitivity. Rev Gaúcha Enferm. 2020;41:e20190080. doi: https://doi.org/10.1590/1983-1447.2019.20190080.
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). Valorização implica investir na profissão.

Ao vivenciar momentos sem precedentes, os profissionais de enfermagem têm mostrado ao mundo que conhecimentos e vocação são orientadores das suas ações profissionais. Competência, resiliência e espírito de missão têm sido determinantes no combate ao novo coronavírus.

Esse resultado reforça o que está amplamente registrado na literatura, de que, na saúde, a força de trabalho é fundamental, com destaque para a enfermagem, pelo seu contingente numérico, pela presença nos serviços e pela centralidade de seu trabalho dedicado ao cuidado humano10Pires D. A enfermagem enquanto disciplina, profissão e trabalho [ensaio]. Rev Bras Enferm. 2009;62(5):739-44. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000500015.
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. Ou seja, mesmo em uma situação dramática como a da pandemia da COVID-19, em um mundo movido pelo desenvolvimento tecnológico, em especial pela tecnologia 4.0, que permite interconexão de dados tanto para monitoramento do andamento da pandemia quanto para impulsionar o trabalho dos cientistas em vários locais do planeta em busca de vacina e medicamentos, na prática, os cuidados à beira do leito e aos familiares e as ações de educação em saúde são fundamentais para a prevenção, limitação de danos e preservação da vida.

No âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), discute-se a importância da saúde como um direito universal incluindo questionamentos do que e como fazer para conquistar o acesso universal. Neste cenário, o valor fundamental do trabalho da enfermagem tem sido reconhecido, destacando-se, em especial, a Campanha “Nursing Now” formulada pelo International Council of Nurses (ICN) em aliança com o Parlamento inglês e a OMS16Cassiani SHB, Lira Neto JCG. Nursing perspectives and the “nursing now” campaign. Rev Bras Enferm. 2018;71(5):2351-2. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167.2018710501.
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. A OMS17International Council of Nurses [Internet]. WHO and partners call for urgent investment in nurses. Geneva: ICN; 2020 [cited 2020 Jul 25]. Available from: https://www.icn.ch/news/who-and-partners-call-urgent-investment-nurses?fbclid=IwAR2gRxgs6OMnMoqHZAF7IkrT6xZOsfsd5HPgpgOwbK3wFksYZBzY7PFRjeo .
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adverte os governos de diversos países acerca da necessidade de investirem na enfermagem, sob pena de verem agravados os problemas de saúde atuais. A Campanha “Nursing Now” (2018-2020) reconheceu a importância da enfermagem para a saúde da população, o que se confirmou de modo trágico e exemplar nesta pandemia.

Apesar das recomendações internacionais em investir na enfermagem como forma de qualificar os serviços de saúde, percebe-se, nas entrevistas, o quanto esta questão precisa ainda ser operacionalizada no âmbito das políticas de saúde. A Enfermagem representa 59% da força de trabalho no setor saúde18World Health Organization (WHO). State of the world's nursing 2020: investing in education, jobs and leadership [Internet]. Geneva: WHO; 2020 [cited 2020 Jul 25]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/331677/9789240003279-eng.pdf?sequence=1&isAllowed=y .
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e está na linha de frente do enfrentamento da pandemia, contudo a profissão ainda precisa lutar arduamente para que garantir condições de trabalho dignas.

Embora os meios de comunicação transmitam, em várias situações, o esforço das instituições de saúde em providenciarem uma adequada dotação de recursos humanos e materiais essenciais no combate à pandemia, os contextos com que os profissionais de enfermagem se deparam estão longe de ser considerados ideais. A par das jornadas extensas, dos conflitos interpessoais, dos sentimentos de medo e impotência e da baixa remuneração8Miranda FMDA, Santana LL, Pizzolato AC, Saquis LMM. Working conditions and the impact on the health of the nursing profissionals in the context of Covid-19. Cogitare Enferm. 2020;25:e72702. doi: http://doi.org/10.5380/ce.v25i0.72702.
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,13Forte ECN, Pires DEP. Nursing appeals on social media in times of coronavirus. Rev Bras Enferm. 2020;73(Supl 2):e20200225. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0225.
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, esses profissionais se deparam ainda com a inexistência de Equipamento de Proteção Individual em quantidade e qualidade adequadas, o que pode colocar ainda mais em risco a sua segurança.

No Brasil, o Conselho Federal de Enfermagem criou um canal de apoio à saúde mental dos trabalhadores de enfermagem que estão na linha de frente. Os sentimentos mais declarados durante os atendimentos foram: ansiedade relacionada à falta de EPI; pressão por parte da chefia imediata; e notícias veiculadas na mídia. Estresse foi associado ao grande número de pessoas que chegam ao serviço e ao elevado número de mortes decorrentes da COVID-19, o medo de se infectar e infectar os familiares19Humerez DC, Ohl RIB, Silva MCN. Mental health of Brazilian nursing professionals in the context of the covid-19 pandemic: action of the Nursing Federal Council. Cogitare Enferm. 2020;25:e74115. doi: http://doi.org/10.5380/ce.v25i0.74115.
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A falta de EPI revela a falta de condições de trabalho com as quais os enfermeiros estão convivendo no enfrentamento da pandemia, no mundo inteiro. Para que se possa enfrentar a pandemia, a segurança dos profissionais deve ser garantida, sendo a previsão e a provisão adequadas o primeiro passo nesse enfrentamento13Forte ECN, Pires DEP. Nursing appeals on social media in times of coronavirus. Rev Bras Enferm. 2020;73(Supl 2):e20200225. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0225.
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Em quarto lugar, também com foco na força de trabalho, evidenciaram-se as relações entre vida profissional e pessoal, a importância e dificuldades do cuidado de si e de familiares e o medo do adoecimento e da morte, identificados nos textos articulados nas palavras “casa”, “família”, “medo” e “proteção”.

Trabalhadores de enfermagem e aqueles que são seu objeto de trabalho são da mesma natureza, seres humanos. Assim, a ação transformadora do trabalho envolve relações e trocas entre ambos, o que é absolutamente necessário para um resultado efetivo, seja nos cuidados a doentes hospitalizados, seja nos diversos âmbitos das práticas em saúde, o que já foi mencionado em outro estudo10Pires D. A enfermagem enquanto disciplina, profissão e trabalho [ensaio]. Rev Bras Enferm. 2009;62(5):739-44. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-71672009000500015.
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As dificuldades em efetivar medidas protetivas mostram que o processo saúde-doença tem múltipla e complexa determinação11Breilh J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Salud Pública. 2013 [cited 2020 Aug 10];31(Supl 1):S13-S27. Available from: http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0120-386X2013000400002&lng=en .
http://www.scielo.org.co/scielo.php?scri...
. A questão do respeito ao isolamento social ilustra muito bem a complexidade do fenômeno. Enfermeiros e autoridades sanitárias apelam diariamente mas a efetivação é difícil. Na realidade brasileira, um dos fatores que contribuem com essa dificuldade parece estar relacionado ao grande número de fake news sobre o tema. Estudo14Bezerra ACV, Silva CEM, Soares FRG, Silva JAM. Factors associated with people’s behavior in social isolation during the COVID-19 pandemic. Ciênc Saúde Coletiva. 2020;25(Supl 1):2411-21. doi: https://doi.org/10.1590/1413-81232020256.1.10792020.
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sobre isolamento social revela que, apesar da grande informação sobre a importância do isolamento, um percentual de 7,88% ainda duvida dessa estratégia. Já a decisão de adesão ao isolamento tem relação com o medo de se infectar e de sofrer prejuízos à saúde e financeiros ainda maiores. A quarentena de contatos e medidas de isolamento social (com redução de 60% dos contatos sociais) evidencia sua efetividade na redução da transmissão da doença.

Essa realidade faz com que enfermeiros adquiram, por conta própria, equipamentos de proteção individual, adotem procedimentos diferenciados de higienização em suas residências8Miranda FMDA, Santana LL, Pizzolato AC, Saquis LMM. Working conditions and the impact on the health of the nursing profissionals in the context of Covid-19. Cogitare Enferm. 2020;25:e72702. doi: http://doi.org/10.5380/ce.v25i0.72702.
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,13Forte ECN, Pires DEP. Nursing appeals on social media in times of coronavirus. Rev Bras Enferm. 2020;73(Supl 2):e20200225. doi: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0225.
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e, ainda, tomem decisões difíceis se afastando da família e vivendo nas proximidades das instituições hospitalares, frequentemente em hotéis, residenciais ou habitações, disponibilizadas por governos e/ou sociedade civil.

Os profissionais convivem, cotidianamente, com ambivalência dos aplausos pelo reconhecimento da importância social do trabalho e a discriminação por ser considerado um potencial agente de transmissão da COVID-19. Somado a isso, a falta de valorização institucional, a depressão relacionada à solidão e a morte de companheiros de trabalho, assim como o esgotamento emocional decorrente do volume de trabalho, também têm levado os profissionais a buscar apoio emocional17International Council of Nurses [Internet]. WHO and partners call for urgent investment in nurses. Geneva: ICN; 2020 [cited 2020 Jul 25]. Available from: https://www.icn.ch/news/who-and-partners-call-urgent-investment-nurses?fbclid=IwAR2gRxgs6OMnMoqHZAF7IkrT6xZOsfsd5HPgpgOwbK3wFksYZBzY7PFRjeo .
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Infelizmente, em todo o mundo, são já significativos os números que refletem o adoecimento e a morte dos profissionais de enfermagem por COVID-19. De acordo com o noticiado pelo ICN, em 3 de junho de 2020, na sequência dos dados oficiais de um número limitado de países, confirmou-se, até ao momento, 230.000 enfermeiros que contraíram a doença e mais de 600 enfermeiros que morreram pelo coronavírus. Conscientes de que esses dados se afastam do real, o ICN pede aos diversos países que, além de registrarem o número de infecções e mortes dos profissionais de enfermagem, tomem as medidas necessárias para proteger esses profissionais que, em prol da recuperação dos doentes e do bem-estar da população, têm ficado significativamente expostos ao risco de vir a adoecer ou mesmo morrer20International Council Nurses [Internet]. More than 600 nurses die from covid-19 worldwide. Geneva: ICN; 2020 [cited 2020 Jul 29]. Available from: https://www.icn.ch/news/more-600-nurses-die-covid-19-worldwide .
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Em Portugal, embora não se registrem mortes de profissionais de enfermagem no combate à pandemia por COVID-19, o número de profissionais infectados preocupa e exige monitoramento. Já no Brasil (em agosto de 2020), o cenário é muito mais grave e está marcado pelo crescente número de mortes entre profissionais de enfermagem. Dos mais de 32 mil casos reportados, 15.112 casos foram confirmados, 3.145 não confirmados e 13.861 permanecem como suspeitos. A taxa de letalidade entre a enfermagem brasileira é de 1,96%9Conselho Federal de Enfermagem (BR) [Internet]. Observatório da enfermagem. 2020 [cited 2020 Aug 10]. Available from: http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/ .
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Esses dados mostram que os cenários políticos, de prática institucional e condições de trabalho são distintas nos dois países. Em Portugal, verificou-se o reconhecimento imediato da gravidade da situação com que o mundo, e particularmente os países europeus, se deparavam. O governo português, a organização das instituições de saúde e a sensatez do povo, foram determinantes no percurso que esta pandemia tem tido em Portugal, assim como na mortalidade dos profissionais de enfermagem. Em contrapartida, no Brasil, o que se tem presenciado é a discrepância de medidas adotadas pelo governo federal, estaduais e municipais, levando ao descontrole dos índices de contaminação, com consequências para a população em geral e para quem está na linha de frente dos cuidados. O Brasil dispõe de um sistema público universal, o Sistema Único de Saúde (SUS), o que tem sido protetor da população, no entanto os déficits crônicos de financiamento em associação com a desastrosa gestão governamental na pandemia3COVID-19 in Brazil: "so what?" [editorial]. Lancet. 2020;395(10235):1461. doi: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3.
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resultou, no período de 5 meses em mais de 100 mil mortes.

A enfermagem é protagonista nessa história, tanto pela sua atuação incansável e permanente em todos os âmbitos dos serviços de saúde, quanto por ser vítima, sofrendo com alto número de adoecimentos e óbitos. A vivência de enfermeiros na pandemia, em Portugal e no Brasil, mostrou identidade no que diz respeito à natureza do trabalho e às preocupações dos profissionais, mas o adoecimento e morte são profundamente distintos.

As limitações deste estudo estão associadas à dificuldade de acessar o conteúdo completo de algumas notícias que poderiam fazer parte do corpus analisado, e que não o foram pela exigência de assinatura dos jornais em questão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ouvir a voz de quem cuida, seus apelos, orientações e medos frente à pandemia revela a importância social da enfermagem na garantia da saúde da população. Por isso, o vocábulo mais frequente foi “casa”, em um pedido de conscientização da população e também mostrando as dificuldades que estão vivendo. Expõe, também, os desafios que ainda precisam ser enfrentados em relação à garantia de melhores condições de trabalho.

Em contexto de crise pandêmica, no âmbito da reorganização e reestruturação dos serviços de saúde, é fundamental o envolvimento dos profissionais, com especial destaque para os profissionais de enfermagem, que representam mais da metade da força de trabalho na área da saúde.

A pandemia tem mostrado ao mundo a necessidade de se adequar a uma nova realidade, ou, como vem sendo chamado, um novo “normal”. O novo normal impõe cuidados sanitários, isolamento social, investimentos públicos em saúde e revela a face oculta das desigualdades sociais. A garantia dos direitos sociais nunca foi tão premente, demonstrando a importância do Estado na proteção da população.

No ano de 2020, a campanha “Nursing Now” tem sido repetida para além do slogan que clama pela valorização da enfermagem. “Nursing Now”, em tempos de pandemia, demonstra a relevância desta profissão e o compromisso da enfermagem com a vida.

REFERENCES

Editado por

Editor associado:

Dagmar Elaine Kaiser

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Disponibilidade de dados

Citações de dados

Ministério da Saúde (BR) [Internet]. COVID-19 no Brasil. 2020 [cited 2020 Jul 27]. Available from: https://qsprod.saude.gov.br/extensions/covid-19_html/covid-19_html.html

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Ago 2020
  • Aceito
    09 Jul 2021
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