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UMA HISTÓRIA GLOBAL ANTES DA GLOBALIZAÇÃO? CIRCULAÇÃO E ESPAÇOS CONECTADOS NA IDADE MÉDIA1 1 Todas as fontes e toda a bibliografia empregada são referidas no artigo, não publicado previamente em plataforma de preprint. Agradeço aos meus colegas Adrien Bayard, Carolina Gual e Flavia Galli, cujas reflexões sobre espaço e circulação contribuíram para a elaboração deste artigo.

A GLOBAL HISTORY BEFORE GLOBALIZATION? CIRCULATION AND CONNECTED SPACES IN THE MIDDLE AGES

Resumo

A História Global costuma ser definida como a análise da globalização econômica, cultural, tecnológica, bem como dos processos que lhe são associados: a emergência de uma sociedade de consumo planetária, a exploração do espaço, a ameaça nuclear, os riscos tecnológicos, os problemas ambientais etc. É evidente que, nessa acepção, a História Global não se adequa ao estudo das sociedades pré-modernas. Os fenômenos, desafios e ameaças que ocupam aqueles que adotam a História Global no estudo das sociedades anteriores ao século XVII não são os mesmos aos quais se interessam os estudiosos da Globalização. O objetivo deste artigo é discutir as possibilidades e os limites da História Global para o estudo das sociedades anteriores ao processo de Globalização.

Palavras-chave:
História Global; História Conectada; Idade Média; circulação; espaço

Abstract

Global History is usually defined as the analysis of economic, cultural, technological globalization, as well as the processes associated with it, such as the emergence of a planetary consumer society, space exploration, nuclear threat, technological risks, environmental problems, etc. It is evident that, in this sense, Global History is not suitable for the study of pre-modern societies. The phenomena, challenges and threats that occupy those who adopt Global History in the study of societies prior to the 17th century are obviously not the same ones to which the scholars of Globalization are interested. The objective of this article is to discuss the possibilities and limits of Global History for the study of societies prior to the Globalization process.

Keywords:
Global History; Connected History; Middle Ages; circulation; space

A noção de Idade Média carrega uma longa história que remonta ao Humanismo italiano dos séculos XIV e XV. Todavia, foi na segunda metade do século XIX que ela assumiu sua feição atual - a de um campo de conhecimento a respeito das sociedades que se desenvolveram, grosso modo, entre os séculos V e XV, em um espaço que se estendia da Península Ibérica ao Levante e da Escandinávia ao Norte da África. Foi também na segunda metade do século XIX que a História se afirmou como disciplina científica e, sobretudo, como uma narrativa das origens das nações e dos Estados. Essa narrativa, que ultrapassou os limites da Academia e ganhou as opiniões públicas dos velhos e dos novos Estados Nacionais, atribuía um papel crucial ao período medieval. Os séculos de V a XV foram erigidos, por um lado, em teatro dos acontecimentos fundadores das nações europeias - o batismo de Clóvis, a Batalha de Covadonga, a coroação imperial de Carlos Magno, o Tratado de Verdun, a Batalha de Hastings, a Batalha de Kosovo; por outro lado, em berço dos seus principais heróis - Clóvis, Carlos Magno, Joana d’Arc, Dante Alighieri, El-Cid, entre outros. Sob o impacto de dois conflitos mundiais que provocaram mortes e destruições em uma escala nunca antes vista no continente, da crítica ao nacionalismo e da construção da unidade europeia, a segunda metade do século XX assistiu à emergência de uma nova tendência, que consistia em associar os séculos de V a XV à formação da Europa. Quatro anos depois do final da II Guerra Mundial, o historiador alemão Hermann Heimpel, diretor do Max Planck Institut de 1957 a 1971, sustentava que a Idade Média criou a Europa (HEIMPEL, 1949HEIMPEL, Hermann. Europa und seine mittelalterliche Grundlegung. Die Sammlung, n. 4, 1949, p. 13-26. , p. 13-26). Mesmo que essa afirmação fosse uma tentativa de marcar a ruptura com suas tomadas de posição durante o regime nazista (um de seus discursos, proferido em 1933, se intitulava “A Idade Média alemã - O destino da Alemanha”), o fato é que ela anunciou o caminho que a historiografia europeia percorreria nas décadas seguintes. O livro de Lucien Musset sobre as “invasões bárbaras”( MUSSET, 1965MUSSET, Lucien Musset. Les Invasions: les vagues germaniques. Paris: Presses Universitaires de France, 1965.), publicado na França, em 1965, recebeu, quando de sua edição inglesa, de 1975, o subtítulo “The Making of Europe”, ausente na edição francesa - tal acréscimo traduzia a tendência de se enxergar a dissolução do Império Romano não mais como o ponto de partida da formação de identidades nacionais diversas, mas de uma só identidade europeia. A ideia se fortaleceu nas décadas seguintes, sem ter eclipsado totalmente a associação entre a Idade Média e as origens das nações. Que o diga, por exemplo, a edição francesa, de 1989, do livro do historiador norte-americano Patrick Geary, cujo título, escolhido pelo editor, Naissance de la France, estava em flagrante contradição com o título original da obra, Before France and Germany.

O exemplo mais marcante da força que ainda exerce a ideia de nação entre os historiadores foi a recepção do livro Histoire Mondiale de la France, organizado por Patrick Boucheron e publicado em 2017. Esse livro, de mais de 800 páginas, e para o qual contribuíram 122 historiadores, vendeu cerca de 110.000 exemplares. A pedra angular em torno da qual a obra foi construída é a de que a História da França não tem sentido algum se não se inscrever na História Mundial. A obra recebeu duras críticas, dentro e fora da comunidade acadêmica, por exemplo, a de que Boucheron pretendia “dissolver a França”. No entanto, a crítica mais surpreendente, e talvez a mais absurda, veio do historiador Pierre Nova, que acusou os autores de celebrar o combate por uma “humanidade mestiça e migrante”, dos habitantes da gruta de Chauvet à França dos imigrantes clandestinos. Ele também diz que os autores tomaram a disciplina História como refém de um projeto ideológico. O livro organizado por Boucheron é a obra que melhor traduz, até o momento, o esforço da historiografia francesa em direção a uma História Global (ou História Mundial, termo preferido pelos franceses). Tendo como pano de fundo o combate reivindicado contra as “derivas identitárias”, o esforço de Patrick Boucheron é mostrar que a “mundialização” não data de hoje e que a França sempre esteve aberta às influências externas.

A inserção da História da França no âmbito de uma História da Europa parece mais consensual do que a sua inserção numa História Global. Em 2003, Jacques Le Goff publicava, na Coleção “Faire l’Europe”, um livro com o título no formato de uma questão, L’Europe est-elle née au Moyen Âge?, à qual dava uma resposta afirmativa, por meio da identificação de um conjunto bastante heteróclito de fenômenos que o autor não diz claramente se são ou não exclusivos da Europa: as capitais e as cidades, as universidades e a cultura urbana, as contestações e a repressão, a burocracia, as monarquias nacionais, a memória e a história etc. A lista é longa; tanto a amplitude dos fenômenos descritos por Le Goff como “europeus” quanto a ausência de uma perspectiva comparatista foram criticadas quando da publicação do livro L’Europe est-elle née au Moyen Âge? (PAULY, 2005PAULY, Michel. Quelle Europe est née au Moyen Âge?. Francia, vol. 32, n. 1, 2005, p. 157-166. , p. 157-166). No entanto, nada que se comparasse à polêmica suscitada pela História Mundial da França. Claro, os tempos eram outros e a França de 2003 ainda não havia começado a enfrentar o debate em torno da “identidade nacional”, que caracterizaria o mandato de Nicolas Sarkozy. Veio da antropologia a crítica à ideia de Le Goff que define a modernidade como uma criação da Europa medieval. No entanto, a crítica mais contundente a essa ideia veio da Antropologia, mais precisamente da obra do inglês Jack Goody (também autor de um volume na Coleção “Faire l’Europe”, intitulado La famille em Europe). Em O roubo da história, Goody pretendeu denunciar aquilo que chamou de “esforço coordenado de acadêmicos europeus [entre os quais ele inclui Jacques Le Goff] para manter uma posição altamente eurocêntrica mesmo diante das evidências que exigem interpretação distinta” (GOODY, 2008GOODY, Jack. O roubo da história. Como os europeus se apropriaram das ideias e das invenções do Oriente. São Paulo: Contexto, 2008.). Em que pese a polêmica suscitada pela sua denúncia do “roubo” perpetrado pela Europa, é inegável que a obra de Goody é um dos marcos da crise das teorias da modernização e das narrativas históricas que lhes davam sustentação. Suas reflexões sobre as relações entre Ocidente e Oriente, sua crítica ao eurocentrismo, bem como seu recurso sistemático à análise comparativa o situam na corrente que se convencionou chamar de “Global History”. Ao longo dos anos, a História Global surgiu como uma alternativa à História Nacional, na medida em que soube salientar os fenômenos de interdependência e os processos de integração em escala planetária. Em uma obra coletiva, publicada em 1993 e intitulada Conceptualizing Global History, o historiador Bruce Mazlish definiu a História Global como a análise do nascimento e da evolução do fenômeno recente da globalização econômica, cultural, tecnológica, bem como dos processos que lhe são associados, como a emergência de uma sociedade de consumo planetária, a exploração do espaço, a ameaça nuclear, os riscos tecnológicos, os problemas ambientais etc. Segundo ele, a História Global, além de ser a melhor maneira de se estudar a sociedade globalizada - fruto de um mundo cada vez mais interconectado e interdependente - deveria tornar-se, inclusive, um novo período da História, situado após a História Moderna e a História Contemporânea. Nessas duas acepções, seja como campo de estudo da globalização, seja como período histórico correspondente à sociedade globalizada, a História Global não se adequaria ao estudo das sociedades que não conheceram o processo de Globalização. Nesse sentido, a questão que se coloca neste dossiê é a seguinte: quais os limites e quais as possibilidades de uma História Global antes da Globalização?

É preciso reconhecer que, apesar do otimismo de alguns de seus defensores, a História Global não se tornou um campo de estudos consolidado, menos ainda um marco cronológico. Uma das razões disso é que os historiadores se equivocaram no diagnóstico de que os Estados Nacionais estavam em um inelutável declínio e de que, por conseguinte, a História Global substituiria a História Nacional. Jill Lepore, em artigo publicado na revista Foreign Affairs, no primeiro trimestre de 2019LEPORE, Jill. A New Americanism. Why a Nation Needs a National History. Foreign Affairs, v. 98, n. 2, 2019, p. 10-19., lamenta-se de que os historiadores tenham abandonado a História Nacional, deixando-a nas mãos de “charlatões, fantoches e tiranos”. Seu diagnóstico parece excessivo, pois há de se reconhecer que a demanda por Histórias Nacionais por parte da opinião pública foi também atendida por historiadores não profissionais, jornalistas ou ensaístas que produzem textos acessíveis e que se baseiam em uma boa pesquisa documental. No entanto, ela tem razão ao afirmar que, quando os historiadores abandonam o estudo da nação ou quando os acadêmicos param de tentar escrever uma história comum para um povo, o nacionalismo não morre. Eis o dilema dos historiadores, segundo uma fórmula da autora: escrever História Nacional cria uma série de problemas; no entanto, recusar-se a escrevê-la cria mais problemas ainda, e esses problemas são piores (LEPORE, 2019LEPORE, Jill. A New Americanism. Why a Nation Needs a National History. Foreign Affairs, v. 98, n. 2, 2019, p. 10-19., p. 10-19).

Desprovida de suas pretensões de substituir a História Nacional, ou ainda de se converter em sucessora temporal da História Contemporânea, o que resta da História Global? Ela se converte em um método. E é nesse método que reside o principal interesse para aqueles que pretendem estudar as “sociedades antigas” - o termo parece mais adequado do que “pré-moderno” para definir as sociedades que não experimentaram um processo de globalização. Esse método busca, por meio do vaivém incessante entre os diversos níveis (temporais e especiais), identificar analogias, paralelismos, bem como as conexões que não se poderiam identificar em uma abordagem mais fechada e estática. A História Global permite, assim, trazer à luz interpretações gerais que, de outra forma, permaneceriam invisíveis, ocultas (MAUREL, 2009MAUREL, Chloé. La World/Global History. Questions et débats. Vingtième Siècle. Revue d’histoire, v. 4, n. 104, 2009, p. 153-166., p. 153-166.).

Não podemos, contudo, desprezar a “escala nacional”, ainda que seja difícil defini-la com precisão territorial antes do advento dos Estados Nacionais. O desafio está precisamente em evitar a perspectiva genealógica, projetando no passado as construções nacionais contemporâneas, seu Estado, suas fronteiras, sua burocracia e mesmo suas rivalidades - tal perspectiva foi exaustivamente criticada nas últimas décadas. O desafio da História Global antes da Globalização é o de identificar os diversos níveis e escalas nos quais as comunidades se constroem, se modificam, interagem entre si. Seria, aliás, um equívoco resumir essas comunidades a sua escala macro (a “cristandade”, o “islã”) ou a sua escala micro (o “vilarejo”, a “aldeia”), desprezando as comunidades políticas que se construíram paulatinamente em torno de um mito fundador, de uma batalha, de um herói ou de particularidades geográficas. Essas comunidades não são uma invenção pura da historiografia do século XIX - é possível encontrá-las nas leis, nas correspondências e nas obras dos historiadores que, na Antiguidade e na Idade Média, refletiram sobre as origens e as identidades dos povos que habitavam as margens do Mediterrâneo e além. Ao mesmo tempo, é necessário diferenciá-las das construções nacionais do século XIX, que projetam sobre toda a comunidade territorial uma homogeneidade cultural e linguística e uma origem comum que são amplamente fabricadas. A História Global e suas abordagens comparatistas em várias escalas espaciais e temporais, quando aplicadas às sociedades antigas, podem lançar uma nova luz sobre os processos de emergência, de resiliência e de transformação das comunidades antes da fabricação dos Estados Nacionais (CURTIS, 2016CURTIS, Daniel R. Coping with Crisis: The Resilience and Vulnerability of Pre-Industrial Settlements. Londres/New York: Routledge, 2016..).

A História Nacional centrou-se unicamente nas noções de território e de fronteira, deixando em segundo plano outras formas de espacialização da vida social. Território e fronteira são noções institucionais e, ainda hoje, marcam o “inconsciente científico” da maioria dos pesquisadores. Um de seus maiores expoentes é a Geografia Histórica do final do século XIX e do início do século XX, que considerava os espaços como quadros pré-definidos sem grande descontinuidade entre si, podendo ser medidos, cartografados e delimitados e nos quais se encaixaria a história das sociedades (cidades, diocese, senhorias paroquiais, departamentos…) (CHOUQUER, 2008CHOUQUER, Gérard. Traité d’archéogéographie. La crise des récits géohistoriques. Paris: Editions Errance, 2008.). Nos anos 1950-1970, a École des Annales atribuiu importância ao espaço, a ponto de Ferdinand Braudel definir sua abordagem como “géohistoire” - mas o estudo da dinâmica das formas espaciais em uma “longa duração” acabou não se concretizando. Nos três volumes sobre a “Nova História” (LE GOFF, NORA, 1974LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Orgs.). Faire de l’histoire. Paris: Gallimard, 1974, 3 vols.), organizados por Jacques Le Goff e por Pierre Nora, 1974, o espaço não aparecia como objeto de pesquisa. Isso só ocorreu a partir do início dos anos 1990, quando os medievalistas passam a se interessar pela capacidade de as sociedades construírem espaços e espacialidades simbólicas (COHEN, MADELINE, IOGNA-PRAT, 2016COHEN, Meredith; MADELINE, Fanny; IOGNA-PRAT, Dominique. Introduction. In: COHEN, Meredith; MADELINE, Fanny. Space in the Medieval West. Places, Territories, and Imagined Geographies. Londres/New York: Routledge, 2016, p. 1-19., p. 1-19). É nítida a influência do “spatial turn”, obra de geógrafos e de sociólogos que advogavam tanto a capacidades de as comunidades fabricarem o espaço quanto o fato de este último possuir também uma dimensão simbólica. Assistimos, entre os medievalistas, à emergência de novos objetos: a espacialização do social, que tomou a forma dos conceitos de “Incastellamento” (TOUBERT, 1973TOUBERT, Pierre. Les structures du Larium medieval: Le Latium méridional et la Sabine du IXe siècle à la fin du XIIe siècle. Roma: École Française de Rome, 1973.), “Encellullement” (FOSSIER, 1982FOSSIER, Robert. Enfance de l’Europe, Xe-XIIe siècles: aspects économiques et sociaux. Paris: Presses Universitaires de France, 1982.) ou “Inecclesiamento” (LAUWERS, 2013LAUWERS, Michel. De l’incastellamento à l’inecclesiamento. Monachisme et logiques spatiales du féodalisme. In: IOGNA-PRAT, Dominique; LAUWERS, Michel; MAZEL, Florian; ROSÉ, Isabelle (Orgs.). Cluny. Les moines et la société au premier âge féodal. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2013, p. 315-338., p. 315-338); o estudo de lugares e espaços sagrados e santificados (VAUCHEZ, 2000), dos espaços eclesiológicos (IOGNA-PRAT, 2006; LAUWERS, 2015), dos loci da afirmação de poder da Igreja sobre os homens, os itinerários processionais como uma afirmação do poder do príncipe e da comunidade no ambiente urbano (LECUPPRE-DESJARDIN, 2016LECUPPRE-DESJARDIN, Élodie. Le royaume inachevé des ducs de Bourgogne (XIVe-XVe siècles). Paris: Belin, 2016. ; RICHARD, 2009RICHARD, Olivier. Mémoires bourgeoises: Memoria et identité urbaine à Ratisbonne à la fin du Moyen Âge. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.). Todas essas novas perspectivas, às quais os medievalistas são profundamente sensíveis, apontam para a profunda imbricação do físico e do social nas realidades socioespaciais (NOIZIET, 2012NOIZIET, Hélène. De l’usage de l’espace en Histoire médiévale. Ménestrel, 18 jan. 2012. Disponível em: <www.menestrel.fr/?De-l-usage-de-l-espace-en-Histoire-medievale>. Acesso em: 15 jul. 2019.
www.menestrel.fr/?De-l-usage-de-l-espace...
).

A constatação de que o espaço é fabricado e, ao mesmo tempo, objeto de representações, colocou para os historiadores o problema da identificação dos agentes dessa fabricação e dessas representações. As comunidades constituem, nesse sentido, a melhor ferramenta para a compreensão da espacialização do social, pois o que as define, no âmbito da sociologia, é a ação - seja ela fundada em expectativas, em valores ou em crenças comuns. As comunidades existem porque elas desenvolvem as práticas comuns de ocupação, de apropriação, de produção e de reprodução do espaço. Nesse sentido, elas constituem categorias mais adequadas para uma História Global das sociedades antigas do que “estamento”, “classe social” ou “etnia”. Essa abordagem, fundada nas comunidades, possibilita orientar a reflexão não para a “essência” dos grupos sociais, mas para as modalidades de suas ações (o espaço produzido, a construção da memória etc.) e avaliar se a expressão de sua identidade é consciente ou criada por um agente externo (por exemplo, a obrigação do pagamento de um imposto ou o engajamento forçado no exército). Embora as comunidades não representem pessoas jurídicas até o século XII, alguns historiadores não hesitam em falar de “comunidades” no início da Idade Média. Wendy Davies, por exemplo, usa o conceito de “community territory” para enfatizar que a propriedade camponesa não é uma série de espaços isolados, mas uma rede de inter-relações. Temos, portanto, a possibilidade de pensar as diversas escalas do espaço antigo, sem o recurso ao Estado como categoria explicativa, em uma perspectiva que une o local, o regional e o supra regional. A História Nacional é estreitamente dependente do Estado como mecanismo de espacialização do social, tanto no que se refere à definição de fronteiras quanto por meio do processo de socialização. A noção de “comunidade de prática”, elaborada por Étienne Wenger, por exemplo, constitui um meio pelo qual podemos analisar o fenômeno da socialização em sociedades anteriores à emergência do Estado Moderno. Os membros de uma comunidade são gradualmente treinados por meio de sua participação cada vez mais completa nas atividades do grupo. Suas interações com membros experientes os transformam, gradualmente, em membros de pleno direito (que, por sua vez, podem treinar novos membros) (WENGER, 1999WENGER, Étienne. Communities of Practice. Learning, Meaning and Identity. Cambridge: University of Cambridge Press, 1999.). É importante também levar em conta a complexa questão das comunidades de ideias. O estudo dos discursos que legitimam a comunidade e seus modos de ocupar e de fabricar um espaço ajuda na compreensão das maneiras pelas quais essa comunidade se representa, se reproduz, transmite sua própria memória e orienta a construção das identidades dos sujeitos que a compõem. No entanto, não podemos restringir a nossa análise aos procedimentos de construção das comunidades. O conflito externo, as disputas internas, a exclusão, a perseguição, o estabelecimento de hierarquias, as epidemias, os desastres naturais, são todos meios por meio dos quais as comunidades podem se deslocar ou se dissolver (GREEN, 2017GREEN, Monica H. The Globalisations of Disease. In: BOIVIN, Nicole; PETRAGLIA (ed.). Human Dispersal and Species Movement: From Prehistory to the Present. Cambridge: Cambridge University Press, 2017, p. 494-520. , p. 494-520).

As comunidades e seus espaços não constituem, de forma alguma, categorias estanques, pois, mesmo quando nunca tiveram contato entre si, podem ser objeto de comparação. E a História Global constitui uma ferramenta eficaz nesse sentido. Marcelo Detienne, em seu livro “Comparer l’incomparable”, mostrou que o comparatismo não deve e não pode se restringir a sociedades que estabeleceram contato entre si. Ele apresenta uma defesa marcante do comparatismo, contra aquilo que designa de “tirania do nacional” nas Ciências Sociais. Detienne propõe um método baseado em uma transcendência disciplinar (de forma a integrar a História e a Antropologia) e geográfica, que consiste em submeter a um mesmo questionamento sociedades que não possuem, a priori, nada em comum, ou que pertencem a épocas distintas, de forma a identificar um aspecto até então desapercebido ou então revelar lógicas parciais de pensamento (DETIENNE, 2000DETIENNE, Marcel. Comparer l’incomparable. Paris: Seuil, 2000.). Quanto às comunidades que estabelecem contato entre si, tal contato se dá por meio da circulação de homens, de ideias, de notícias, de bens e de objetos em geral. A comunicação é um aspecto importante desses contatos e uma característica essencial de todas as formas de vida social. Além disso, toda ação social possui, necessariamente, aspectos comunicativos.

A partir da Segunda Guerra Mundial, observamos o desenvolvimento das Teorias de Comunicação a partir das obras de Harold Laswell (LASWELL, 1948LASWELL, Harold. The structure and function of communication in society. In: Lyman Bryson (Org.). The communication of ideas. New York: Harper and Row, 1948, p. 37-51., p. 37-51). No entanto, foi graças à teoria matemática da comunicação de Claude Shannon (SHANNON, 1948SHANNON, Claude. A Mathematical Theory of Communication. The Bell System Technical Journal, vol. 27, n. 623-656, jul-out., 1948, p. 379-423. , p. 379-423) que a comunicação se tornou um tema frequente das pesquisas em Ciências Humanas, influenciando também os estudos medievais, principalmente a partir dos anos 1970. Entendemos hoje que todas as formas de comunicação são parcialmente ou completamente políticas e sociais em seus significados e envolvem, portanto, relações desiguais de distribuição de poder. O interesse pela comunicação nos estudos medievais, como indica Jan Dumolyn, tem contribuído com pesquisas sobre as redes e a circulação de notícias e mensagens, sobre os mensageiros e os receptores, sobre a linguagem e os espaços de comunicação oral, escrita e gestual, por exemplo (DUMOLYN, 2012DUMOLYN, Jan. Political communication and political power in the middle ages. Edad Media. Rev. Hist., n. 13, 2012, p. 33-55. , p. 33-55). Os usos iniciais do conceito de comunicação em trabalhos de medievalistas, como no trabalho de Michael Richter, tendiam a utilizar a palavra para designar formas de comunicação não escrita (RICHTER, 1995RICHTER, Michael. Studies in Medieval Language and Culture. Dublin: Four Courts Press, 1995.). A partir dos trabalhos de Gerd Althoff, em meados dos anos 1990, ganhou importância a noção de comunicação política e simbólica com foco na comunicação oral e na comunicação não verbal (ALTHOFF, 1997ALTHOFF, Gerd. Spielregeln der Politik im Mittelalter. Kommunikation in Frieden und Fehde. Darmstadt: Primus-Verlag, 1997.). A comunicação política pode confirmar e espalhar certas ideias fundamentais, valores e normas sociais, trazendo à tona padrões de comportamento que são compartilhados por membros do corpo político e da comunidade. É esse o tema do artigo deste dossiê, intitulado A Comunicação política entre angevinos e aragoneses em Palermo, na Crônica da Sicília (séculos XIII e XIV): um exercício de história conectada, de Igor Salomão Teixeira. O autor utiliza as noções de mediação e de comunicação política em sua análise da Crônica da Sicília, para mostrar como esse texto anônimo do século XIV serviu como uma ferramenta na disputa entre aragoneses e angevinos sobre o território e através do território siciliano.

O contato entre as comunidades não se restringe à comunicação. Noções de movimento e mobilidade são centrais para a compreensão de vários aspectos da sociedade. Em sua essência, “movimento” inclui conexões no tempo e no espaço por meio de pessoas, de objetos e de ideias. É importante investigar como a circulação, os movimentos e a mobilidade das pessoas, dos hábitos, das mercadorias e das ideias influenciam a construção das próprias comunidades e de seus espaços. É essa reflexão sobre o papel construtivo da circulação e da comunicação que vemos no artigo de Adriana Vidotte, intitulado Das Artes e da Natureza: articulação de saberes no pensamento científico do século XIII e publicado neste dossiê. A autora busca analisar, na construção do pensamento científico ocidental do século XIII, a influência dos conhecimentos produzidos no na Grécia Antiga e no mundo árabe. Para tanto, utiliza a obra Image du Monde, escrita por Gossouin de Metz, por volta de 1245, para mostrar o quanto a percepção da natureza nos meios letrados do século XIII foi influenciada pelas conexões com o espaço árabo-muçulmano.

A discussão sobre circulação ganhou relevo, principalmente, na esfera da História da Arte. As primeiras reflexões nesse sentido surgem na Revue de l’Art, em 1998, com o editorial de Roland Recht (RECHT, 1998RECHT, Roland. La circulation des artistes des ouvres, des modèles dans Europe médiévale. Revue de l’Art, v. 120, n. 2, p. 5-10, 1998., p. 5-10). Os estudos dedicados às circulações e mobilidades, principalmente artísticas, deveriam tratar da interculturalidade, da interação cultural ou da história cruzada, dos deslocamentos, das trocas ou das transferências. A intenção de Recht, portanto, era ressaltar a amplitude e a intensidade das trocas em um período que havia permanecido ainda na sombra e buscar caracterizar as “modalidades segundo as quais essa circulação operava”. No campo da História da Arte, como indica Jean-Marie Guillouët, pensar sobre essa questão significa colocar em evidência a circulação dos artistas, dos conhecimentos, das formas, das obras e dos modelos e compreender o papel dessa mobilidade nas evoluções artísticas (GUILLOUËT, 2009GUILLOUËT, Jean-Marie. Les transferts artistiques: une notion opératoire pour l’histoire de l’art médiévale?. Histoire de l’Art, n. 64, p. 17-25, abr. 2009., p. 17-25). Com isso, ressalta-se o fato de que, por exemplo, o saber-fazer “importado” e o local se interpenetram, às vezes são recusados e outras vezes são mestiçados. Há resistências e disputas, há incorporações intencionais. Muda-se a escala para não mais se pensar exclusivamente em termos de “influências” ou de visões nacionalistas (como no caso dos trabalhos de Georg Troescher no início do século XX), mas sim das causas e consequências dessas mobilidades na produção em escala europeia e até global. O artigo de Flavia Galli Tatsch, intitulado Mobilidades, conexões, novos contornos. A circulação de artefatos em marfim nos séculos X-XIII, pretende analisar como a circulação de artefatos em marfim contribuiu para a constituição para aquilo que a autora chama de uma “cultura visual comum” no Mediterrâneo entre os séculos X-XIII.

A circulação é um conceito que nos ajuda a pensar também em novas articulações, como no caso da discussão das “commodities sagradas”, noção proposta por Patrick Geary (GEARY, 1986GEARY, Patrick. Sacred Commodities: The Circulation of Medieval Relics. In: Arjun Appadurai (Org.). The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective. Cambridge: Cambridge University Press, 1986, p. 169-192., p. 169-192). Em uma acepção mais ampla do sentido de commodity, na qual podem ser consideradas commodities quaisquer pessoas ou objetos que são circulados e trocados e cujos valores e autoridades só se confirmam nessa circulação, Geary ressalta a centralidade desse conceito para a compreensão dos valores atribuídos às relíquias ao longo da Idade Média. Por uma perspectiva de História Econômica, a circulação também é um elemento fundamental, como tem demonstrado Laurent Feller em seus trabalhos dedicados ao valor das coisas (FELLER, 2017FELLER, Laurent. Mesurer la valeur des choses au Moyen Âge. In: BOUCHERON, Patrick; GAFFURI, Laura; GENET, Jean-Pierre (Orgs.). Valeurs et systèmes de valeurs. Moyen Âge et Temps Modernes. Paris: Publications de la Sorbonne, 2017, p. 57-76., p. 57-76). Os estudos realizados recentemente a respeito dos mecanismos de troca (mercantis e não mercantis) chamaram a atenção para as formas de circulação forçada ou voluntária de terras e de objetos, para os valores das diferentes formas de transação, bem como para o papel dos objetos e sua dimensão econômica (FELLER, RODRÍGUEZ, 2013; CÂNDIDO DA SILVA, 2014CÂNDIDO DA SILVA, Marcelo. Bens, normas e construção social no mundo franco. Uma História do Roubo na Idade Média. Belo Horizonte: Fino Traço, 2014.; POTTAGE, 2004POTTAGE, Alain. Introduction: the fabrication of persons and things. In: POTTAGE, Alain; MUNDY, Martha (Orgs.). Law, Anthropology, and the Constitution of the Social: Making Persons and Things. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 1-39., p. 1-39).

Pensar a circulação e a comunicação significa, portanto, afastar-se de uma lógica em que só se analisa o resultado final ou o caminho final percorrido. As circulações são importantes em si e auxiliam na elaboração de uma história conectada. Dessa forma, algumas das consequências de se pensar a partir da noção de comunicação e circulação ficam claras: desenha-se uma outra expansão territorial, uma vez que se pensa em termos de redes, que podem ser ou não contínuas e altera-se as lógicas espaciais (o Mediterrâneo, a Eurásia, a inclusão do mundo africano). Rompe-se com a história nacional ao se propor uma lógica de conexões, criando outras unidades políticas, algo fundamental para a compreensão do período medieval. Ao mesmo tempo propõe-se uma visão pós-estatal, ou seja, uma visão de um mundo não estatal, no qual os agentes não são necessariamente oficiais do governo. Mudam-se os tempos e os recortes cronológicos, uma vez que cronologias tradicionais (como a queda de Roma, a tomada de Constantinopla, a crise do século XIV, para citar apenas alguns marcos clássicos) não dão conta de explicar as dinâmicas de mobilidade dessa sociedade, que se mostra muito mais complexa, fluída e diversa do que se poderia imaginar a partir das datações fechadas. Finalmente, mostra-se a complexidade das identidades, eliminando a substancialização e a essencialidade, para se pensar em termos de identidades mistas, com características compartilhadas com várias identidades.

Assim, os conceitos de “comunicação e circulação” permitem tratar de questões relacionadas à construção da memória e da historiografia, da circulação e das transferências de imagens e de objetos, das redes de comunicação política e social, das trocas comerciais e dos bens, da construção dos conceitos e do conhecimento, dos usos e circulações das imagens políticas, das trocas culturais, sociais e políticas em espaços geográficos diferenciados. Na confluência desses diferentes trabalhos, a comunicação e a circulação se encontram para oferecer a visão de uma história conectada da Idade Média, para além das tradicionais barreiras geográficas e temporais - e, exatamente por isso, são fundamentais para pensarmos a Idade Média como História Conectada. O interesse pelo movimento como um elemento do mundo medieval ajuda a romper a visão estereotipada de uma sociedade fechada e estática. A partir das noções de comunicação e de circulação, os autores deste dossiê analisam a Idade Média como um mundo aberto e diverso, no qual pessoas, ideias e objetos se deslocavam para além das fronteiras nacionais e entre os diversos espaços políticos e culturais.

A circulação não envolve apenas aspectos positivos. Em plena era das migrações, tendemos a enxergar a circulação de homens, de ideias e de mercadorias como um dos principais mecanismos de fortalecimento dos laços sociais. Não temos o hábito de pensar as circulações como algo disruptivo. Assim, esquecemo-nos de que os conflitos militares envolvem, também, a circulação de homens e de materiais. Ou, ainda, as circulações compulsórias de pessoas ou de comunidades, as ondas de perseguição contra judeus ou contra os grupos sobre os quais recaía a acusação de heresia. A Peste é outro exemplo. Além de seu impacto devastador, ela é também um indicador da extensão da circulação de indivíduos e de mercadorias nas sociedades antigas. Tomemos a Grande Peste do século XIV: originária da Ásia - provavelmente da China (SLAVIN, 2019SLAVIN, Philip. Death by the Lake: Mortality Crisis in Early Fourteenth-Century Central Asia. The Journal of Interdisciplinary History, v. 50, n. 1, 2019, p. 59-90., p. 59-90), ela é mencionada na cidade de Caffa (um entreposto genovês), às margens do Mar Negro, durante o cerco mongol, em 1346; os genoveses resistiram ao cerco, mas, em seu retorno à Europa, trouxeram a peste consigo; na primavera de 1347, ela é atestada em Constantinopla; Alexandria, no Egito, foi atingida em setembro de 1347; Messina, na Sicília, em outubro; Marselha, em novembro; Barcelona, em maio de 1348; Almería, Paris e Veneza, em junho. Nenhuma região da Europa foi poupada: a Itália, a França, a Inglaterra, a Irlanda, a Escandinávia, a região báltica, a Polônia, a Península Ibérica, as planícies da Europa Central, os Bálcãs.

Por fim, a fome e a pobreza. É preciso evitar a tentação de se deduzir, a partir do grande número de referências à fome e aos pobres nas fontes narrativas do período, que as sociedades medievais estavam mergulhadas na escassez crônica. O historiador Pere Benito i Monclús recenseou vinte episódios suprarregionais de fome entre 1090 e 1260. Segundo ele, os fenômenos climáticos desempenharam um papel menos importante nessas crises de grande amplitude geográfica do que os efeitos da expansão dos mercados entre os séculos XI e XIII: rumores, especulação, compras maciças de cereais por parte das cidades italianas teriam provocado alta de preços e fome no Norte da Europa (BENITO I MONCLÚS, 2011BENITO I MONCLÚS, Pere. Famines sans frontières en Occident avant la “conjoncture de 1300”. In: BOURIN, Monique; DRENDEL, John; MENANT, François (Orgs.). Les disettes dans la conjoncture de 1300 en Méditerranée Occidentale. Roma: École Française de Rome, 2011, p. 37-86., p. 37-86). Isso mostra a importância de se considerar as dinâmicas suprarregionais como fator explicativo das crises alimentares, antes mesmo da formação de uma economia em escala europeia. No que se refere à pobreza, Thiago Ribeiro, em seu publicado neste dossiê e intitulado “O cuidado do ‘pobre’ entre os séculos VIII e X: uma questão política global”, mostra que a grande recorrência de termos referentes aos pobres nos textos normativos bizantinos e carolíngios não podem ser avaliados como um testemunho estatístico do empobrecimento e da opressão naquelas sociedades. Essa recorrência seria, sobretudo, o resultado dos interesses dos agentes envolvidos na elaboração desses textos: as cortes bizantina e carolíngia. Também na ótica do léxico da pobreza, Ana Paula Tavares Magalhães desenvolve, neste dossiê, uma reflexão sobre a Ordem Franciscana, na qual mostra que, embora onipresente no texto franciscano, o vocábulo paupertas nunca aparece empregado com o sentido de condição material de existência.

Considerações finais: uma História Conectada da Idade Média

Este artigo introdutório pretendeu discutir as possibilidades da História Global para o estudo das sociedades antigas. Como método de análise, a História Global é mais bem definida por meio da expressão “História Conectada”, que constitui, no final das contas, uma modalidade específica da abordagem Global. Seu objetivo, como afirmam Caroline Douki e Philippe Minard, é quebrar as compartimentações das histórias nacionais e dos espaços culturais, de forma a salientar a interação entre o local e regional e o supra regional (que pode ser chamado, algumas vezes, de global) (DOUKI, MINARD, 2007DOUKI, Caroline; MINARD, Phillipe. Histoire globale, histoires connectées: un changement d’échelle historiogrtaphique?. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, n. 54-4bis, 2007, p. 7-21., p. 7-21). Segundo Sanjay Subrahmanyam, a alternativa à grande narrativa da modernização não é a fragmentação em parcelas como acreditam os pós-modernistas, mas o estudo das interações múltiplas, para além dos recortes estatais (nacionais ou imperiais) e com escalas diversas. Não se trata simplesmente de descer a outra escala, mas fazer um passo para o lado, de olhar de outra forma e identificar conexões mais ou menos obscuras ou que passaram despercebidas (SUBRAHMANYAM, 2015SUBRAHMANYAM, Sanjay. On early modern historiography. In: BENTLEY, Jerry; SUBRAHMANYAM, Sanjay; WIESNER-HANKS, Merry (Orgs.). The Construction of a Global World, 1400-1800 CE. Part 2: Patterns of Change. The Cambridge World History. Cambridge: Cambridge University Press, 2015, vol. VI, p. 425-445., p. 425-445). É preciso lembrar que as fronteiras políticas não são entidades impermeáveis, elas só se tornaram impermeáveis graças à adoção de uma perspectiva de análise centrada nas nações. Nesse sentido, a História Conectada não é global apenas do ponto de vista de seu objeto, mas também pela sua recusa à fragmentação historiográfica e às compartimentações disciplinares: ela pretende mobilizar todas as disciplinas. O interesse pelas questões climáticas e ecológicas e pelos problemas das relações dos homens com os meios em que vivem fez com que os historiadores se voltassem para os geógrafos, os biólogos, os especialistas do clima e da dendrocronologia.

Uma História Conectada da Idade Média não corresponde a uma grande narrativa da história europeia que vai do século IV ao século XVII. O caráter inovador da História Conectada reside no fato de que ela pretende ir além de uma compartimentação nacional da pesquisa histórica, de forma a identificar fenômenos, desafios ou ameaças que ultrapassam as fronteiras dos Estados e que dizem respeito a conjuntos de indivíduos, independentemente de seu pertencimento nacional. Os fenômenos, desafios e ameaças que ocupam aqueles que adotam o método da História Conectada no estudo das sociedades anteriores ao século XVII não são, evidentemente, os mesmos pelos quais se interessam os estudiosos da Globalização, como as ameaças nucleares ou terroristas, os problemas ambientais, as trocas de capitais, as ações das empresas multinacionais etc. (MAUREL, 2009MAUREL, Chloé. La World/Global History. Questions et débats. Vingtième Siècle. Revue d’histoire, v. 4, n. 104, 2009, p. 153-166., p. 153-166). Uma História Conectada da Idade Média também não pode ser conduzida a partir de temáticas ou de eixos de análise que derivam de uma abordagem puramente eurocêntrica do período (por exemplo, a emergência do Estado Moderno ou a expansão da Cristandade), ainda que esses fenômenos continuem a ser objeto de estudo. Assim, os objetos de uma História Conectada da Idade Média são os fenômenos que, entre os séculos IV e XVII, articularam espaços e comunidades na Eurásia e na África: a expansão da Cristandade e do Islã, as rotas comerciais através da África e da Eurásia, os intercâmbios comerciais e culturais, a emergência de uma vaga de produção historiográfica que revela a afirmação de uma ideia de história global, as viagens e as expansões marítimas, o estabelecimento de entrepostos mercantis ao longo da costa africana, os conflitos militares, as crises alimentares e os surtos de peste, entre outros. A História Conectada não pode ser conectada apenas do ponto de vista da combinação de escalas de diversos níveis. A incorporação da climatologia, da arqueologia, da demografia permite estabelecer comparações, relações que ultrapassem os contextos cronológicos e geográficos tradicionais e compreender como as circulações de ideias e de mercadorias (mas também os conflitos, a fome e a peste) conectaram os espaços eurasiano e africano. Seja pelo amplo escopo cronológico, seja pelo escopo geográfico, uma pesquisa que versa sobre Idade Média e História Conectada deve estar atenta ao impacto dos grupos humanos sobre o meio-ambiente, mas também ao impacto do meio-ambiente sobre os grupos humanos - sem, naturalmente, adotar as perspectivas deterministas que marcaram uma primeira etapa do pensamento geográfico.

Robert I. Moore propõe como características unificadoras do “período medieval” a “intensificação” e a “resiliência”. A resiliência decorreria do fato de que, apesar das invasões, da fome, da crise ecológica, dos conflitos sociais e das epidemias que atingiram as sociedades das Eurásia entre os séculos XIII e XIV, essas sociedades não entraram em colapso. Originária das chamadas “ciências duras”, a noção de resiliência substitui a abordagem catastrofista pelo interesse nas formas pelas quais as sociedades lidam com as suas vulnerabilidades e reagem às crises (CURTIS, 2016CURTIS, Daniel R. Coping with Crisis: The Resilience and Vulnerability of Pre-Industrial Settlements. Londres/New York: Routledge, 2016.). Mais importante ainda, teria havido, segundo Moore, uma “intensificação” de diversos aspectos da vida social: das trocas comerciais, da vida urbana e da aplicação de instrumentos de governo; da capacidade desses instrumentos de penetrar pequenas comunidades, invertendo ou apoiando hegemonias locais; da difusão da escrita e das instituições que a sustentam; da criação de comunidades e de novas formas de associação e de representação, de santuários, de redes de peregrinação e de novas formas de associação (MOORE, 2016MOORE, Robert. A Global Middle Ages?. In: BELICH, James; DARWIN, John; FRENZ, Margret; WICKHAM, Chris (Orgs.). The Prospect of Global History. Oxford: Oxford University Press, 2016, p. 80-92., p. 80-92). Essas duas características possuem a vantagem de não estarem associadas a uma história puramente ocidental ou europeia, além de permitirem que se coadunem os diversos níveis de análise, condição essencial para uma História Conectada.

O contexto no qual emerge a História Conectada é o de um profundo pessimismo em relação ao Ocidente e ao seu lugar no mundo globalizado. No que se refere à Idade Média, a posição dos historiadores latino-americanos é privilegiada. Não somos historiadores ou arqueólogos europeus tentando responder à questão do lugar da nossa sociedade no mundo contemporâneo. Não se trata, portanto, de fazer uma espécie de “pré-história” da globalização, tampouco de reencontrar um lugar para a Europa medieval numa narrativa global sobre a história do Ocidente. A Europa medieval não deve ser tratada como um espaço fechado, mas como um conjunto de espaços em conexões com o Oriente, próximo ou mais distante, bem como com a África. A Idade Média deve ser tratada como um marco cronológico em que o eurocentrismo é um sentido entre outros. Como lembra Robert I. Moore, todas as periodizações trazem consigo o risco de disfarçar continuidades e de inibir a análise em conjunto de fenômenos, mas permanecem úteis e vitais na medida em que são capazes de formular grandes questões que alimentam a investigação e a discussão. É importante ressaltar que a noção de Idade Média associada à História Conectada serve para situar cronológica e institucionalmente a pesquisa, as circulações e os espaços conectados entre os séculos IV e XVII. Por outro lado, por meio do uso da expressão “Idade Média”, evoca-se um período situado entre a Antiguidade e a chamada “Primeira Modernidade”, sem, no entanto, inferir daí a existência de uma “civilização medieval”; ou, ainda, sem inferir que essas sociedades, apenas por situar-se nesse período, possuiriam as mesmas características.

  • Coordenação do Dossiê “Uma História Global antes da Globalização? Circulação e espaços conectados na Idade Média” Marcelo Cândido da Silva
  • 1
    Todas as fontes e toda a bibliografia empregada são referidas no artigo, não publicado previamente em plataforma de preprint. Agradeço aos meus colegas Adrien Bayard, Carolina Gual e Flavia Galli, cujas reflexões sobre espaço e circulação contribuíram para a elaboração deste artigo.
  • 3
    Sobre as relações entre Hermann Heimpel e o nazismo, ver BERG, 2015, p. 103-140.
  • 4
    https://www.lefigaro.fr/vox/histoire/2017/01/18/31005-20170118ARTFIG00354-eric-zemmou r-dissoudre-la-france-en-800-pages.php [consultado em 28.10.2019].
  • 5
    https://bibliobs.nouvelobs.com/idees/20170328.OBS7228/histoire-mondiale-de-la-france-pier re-nora-repond-a-patrick-boucheron.html [consultado em 28.10.2019].
  • 6
    MAZLISH, BUULTJENS, 1993. Em The Idea of Humanity in a Global Era, publicado em 2009, Bruce Mazlich propõe um novo passo para a História Global, a ambição de se pensar em termos de uma “identidade global”.
  • 7
    Ver, por exemplo, o conceito de “comunidades imaginadas”, de Benedict Anderson (ANDERSON, 2008).
  • 8
    Sobre a discussão em torno do nascimento do vilarejo e das comunidades aldeãs na Alta Idade Média, ver WATTEAUX, 2003, p. 307-318.

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Editado por

Editores Responsáveis Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2019
  • Aceito
    18 Fev 2020
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