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MEDRADO, JOANA. TERRA DE VAQUEIROS: RELAÇÕES DE TRABALHO E CULTURA POLÍTICA NO SERTÃO DA BAHIA, 1880-1900. CAMPINAS: EDITORA DA UNICAMP, 2012.

MEDRADO, JOANA. TERRA DE VAQUEIROS: RELAÇÕES DE TRABALHO E CULTURA POLÍTICA NO SERTÃO DA BAHIA, 1880-1900. CAMPINAS: EDITORA DA UNICAMP, 2012

As pesquisas feitas na área de história social vêm produzindo, a cada ano que passa, estudos sobre diversas localidades, deslindando a complexidade social, política e econômica do Brasil. O livro de Joana Medrado, Terra de vaqueiros: relações de trabalho e cultura política no sertão da Bahia, 1880-1900, é mais um exemplo disso porque se insere no vasto campo de estudos que investiga uma determinada localidade. Procurando realizar uma reavaliação da figura do vaqueiro, desmistificando a figuração romantizada desse sujeito, a autora busca "entender os mecanismos de controle social praticados pelos fazendeiros em Jeremoabo, especialmente aqueles associados aos significados da liberdade e da autonomia laboral" (p. 35). Partindo dos inventários post mortem e dos processos criminais, documentos que delimitam seu tempo histórico, além de fontes epistolares vinculadas ao barão de Jeremoabo e de diversos textos e entrevistas relacionados ao folclore do "boi encantado" (um boi ardiloso, que fugia e era difícil de ser pego segundo o folclore), a autora investiga os conflitos que perpassaram a vida de vaqueiros e fazendeiros nessa localidade do nordeste da província/estado da Bahia.

O período estudado pela autora foi marcado por diversas crises e constitui-se como um turning point para a história do Brasil. O fato de procurar entender as relações sociais e de poder em um momento de transição e mudança constitui-se como um dado que merece destaque. Isso porque a tendência de diversos pesquisadores em investigar os assuntos vinculados à escravidão faz com que o ano de 1888 seja o ponto final de seus trabalhos. Analisar a transição, portanto, é algo que pode reorientar os olhares. Contudo, um assunto que poderia abrir uma perspectiva mais ampla de compreensão dessa localidade foi trabalhado de modo tangencial pela autora. A questão das disputas políticas entre famílias, o perigo que representou o movimento de Antônio Conselheiro para as elites locais e o uso do conselheirismo como ferramenta política para atacar adversários abrem um leque de pesquisa muito promissor, permitindo inserir a localidade estudada num contexto político mais amplo (p. 69). Destrinçar essas rivalidades partidárias e/ou familiares – e parece que elas existiram em Jeremoabo – constitui-se como um dos elementos fundamentais para se entender o funcionamento do poder político no Império do Brasil e na República. Além disso, sabese que essas cruentas disputas partidárias e familiares foram componentes fundamentais da vida política brasileira neste momento de transição.1 1 Sobre os conflitos políticos nas décadas finais do Império do Brasil, potencializados pelo movimento abolicionista, ver QUEIROZ, Jonas Marçal de. Da senzala à República: tensões sociais e disputas partidárias em São Paulo (1869-1889). Dissertação de mestrado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1995. VITORINO, Artur José Renda & SOUSA, Eliana Cristina Batista de. "O pássaro e a sombra": instrumentalização das revoltas escravas pelos partidos políticos na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 42, jul.-dez. de 2008, p. 303-322. SANTOS, Marco Aurélio dos. Geografia da escravidão na crise do Império: Bananal, 1850-1888. Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014, 281f. Especialmente o capítulo IV, "Lutas políticas, abolicionismo e a desagregação da ordem escravista: o espaço de atuação dos proprietários rurais". Qual a dimensão que se revelaria se esse uso político do "conselheirismo" conduzisse ao conhecimento de rivalidades políticas mais amplas entre as classes dominantes? Sobre a indicação do conselheirismo e a questão das rivalidades políticas em Jeremoabo, ver MEDRADO, Joana, esta op. resenhada, p. 69. Em Jeremoabo, a pecuária teve um papel fundamental na composição da riqueza e na economia. Isso porque "para além dos grandes senhores de terra e gado, havia uma cultura de criação de animais bastante difundida". Assim, considerando todo o período estudado e os inventários rurais e urbanos, verifica-se que "61% dos inventariados eram possuidores de gado vacum e 86,5% criavam todo tipo de animal, além do vacum" (p. 70). Apesar dessa predominância, Joana Medrado observou que, nessa localidade, desenvolveram-se outras atividades econômicas, especialmente a agricultura.

Ao trabalhar com inventários, a autora consegue desvendar uma realidade marcada pela desigualdade social, característica de diversos municípios em diferentes partes do Brasil. Em Jeremoabo, o "extrato mais rico da sociedade, embora representasse apenas 4,3% da população dos inventariados, era possuidor de quase 35% dos animais em geral e de 48% do rebanho, especialmente gado vacum da região" (p. 73).

Para conhecer essa realidade, a autora construiu duas tabelas: a primeira denominada "Proporção dos animais inventariados por faixa de riqueza"; a segunda, "Proporção dos animais inventariados por nível de criador". Mas uma ressalva importante deve ser feita. A autora deveria trabalhar de modo mais preciso, no corpo do texto, os dados referentes às tabelas 1 e 2. Por exemplo, à página 73, informa que os "inventariados possuidores de mais de 301 animais e com monte-mor superior aos 10 contos de réis eram detentores individuais de mais de 500 animais em média". Esta informação referese aos números da tabela 1 ou da tabela 2? Esta confusão pode acontecer porque a primeira coluna da tabela 2 apresenta os "criadores" pelo número de animais ("acima de 301 animais", "entre 101 e 300" etc.) o que leva o leitor para a observação dessa tabela. Na frase seguinte, no entanto, a autora apresenta os dados sobre os mais ricos da sociedade, o que conduz o leitor para a observação da tabela 1. No parágrafo seguinte, Medrado informa sobre os sujeitos que estão "abaixo dessa faixa mais abastada", o que continuaria levando o leitor aos dados referentes à tabela 1. Esta tabela apresenta os sujeitos de Jeremoabo divididos em cinco faixas de riqueza. A autora combina duas informações para dividir os proprietários nessas faixas: aquelas baseadas no monte-mor e as relacionadas com o número total de animais inventariados (p. 53). Mas as diferenças e as relações entre as tabelas 1 e 2 não ficam estabelecidas de modo preciso para o leitor. De qualquer modo, suas conclusões levam ao conhecimento de que, apesar da "grande concentração de riquezas e rebanhos", em Jeremoabo "ainda é possível afirmar que a posse de animais era difundida e gozava de muita importância econômica mesmo para os mais pobres" (p. 73).

Trabalhos que perscrutam uma determinada localidade não se desvinculam totalmente dos preceitos teóricos e metodológicos da micro-história. Se pensarmos na consideração que estudos como o de Joana Medrado dispensam aos indivíduos, na atenção dada ao nome próprio, no enriquecimento do real que se propõe com trabalhos desse tipo, na procura do mesmo indivíduo em diferentes contextos, na valorização das estratégias sociais dos sujeitos "em função de sua posição e de seus recursos respectivos, individuais, familiares, de grupo etc.", na construção de redes de relacionamentos, na multiplicidade de experiências, observa-se, com tudo isso, a existência de componentes da microanálise. Talvez, muitos "historiadores das localidades" não concordem com essa classificação, mas a micro-história está sem dúvida presente em seus estudos. No caso do livro em questão, é possível verificar muitos desses elementos nas opções do vaqueiro Miguel Vítor de Jesus e na sua fidelidade ao fazendeiro. Sua história é um bom exemplo das articulações e das redes de relacionamentos que diversos sujeitos procuravam construir na sociedade oitocentista brasileira. O foco no comportamento, na experiência social, na formação de identidades de grupo e a atenção dispensada aos indivíduos em relação com outros indivíduos são elementos que constituem uma análise enriquecedora da realidade.2 2 Sobre a história do vaqueiro Miguel Vítor, ver MEDRADO, Joana, esta op. resenhada, p. 91-94. Sobre as considerações teóricas e metodológicas da micro-história presentes neste parágrafo, ver REVEL, Jacques. Microanálise e a construção do social. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 21-28. A citação encontra-se à página 22.

Tudo isso é feito no livro de Joana Medrado. Em seus quatro capítulos, conhecemos os códigos da pecuária do sertão baiano e as condenações àqueles que, por meio do furto, burlavam "os símbolos de pertencimento do gado" (p. 95); aprendemos sobre o momento festivo de se ferrar o gado, tornando mais pública e visível a propriedade dos animais; o hábito de se resolver os conflitos sem a necessidade de se recorrer insistentemente à Justiça; a necessidade de se processar alguém quando o desgaste das relações sociais impedia que o problema fosse resolvido entre os querelados; o modo como se descobriam os ladrões de animais; o problema e os conflitos advindos do furto de animais; as redes de relacionamentos desenvolvidas pelos diversos sujeitos; a questão sempre problemática da relação do vaqueiro com o fazendeiro e os conflitos e cobranças que poderiam daí advir; a importância da vestimenta de couro e os significados sociais de seu uso; etc. Histórias de vida se revelam e descortinam o dinamismo dessa sociedade marcada principalmente pela pecuária e pela pobreza. Apesar disso, a pesquisa revela um subaproveitamento dos processos criminais. Uma exploração mais detalhada dos depoimentos das testemunhas e dos réus poderia ampliar ainda mais as nuances das relações sociais e de poder.

O livro de Joana Medrado procura trabalhar a figura dos vaqueiros, analisando as diversas situações vividas por esses sujeitos, desde as dificuldades econômicas e a precariedade da vida material até o contato direto com o fazendeiro. Em seus termos, "o fato de haver valorização social e prazer pessoal no exercício da atividade de vaqueiro é uma peculiaridade importante no estudo desse trabalhador e não deve ser confundida com adoração ao dono da fazenda" (p. 188). Ao procurar analisar as diversas situações vivenciadas por esses sujeitos, bem como pelo fazendeiro, que mantinha em muitas situações uma relação dúbia com seus subordinados, Medrado abre a possibilidade para se desvendar um mundo maior, marcado pela ação dos coronéis, pelas disputas familiares e partidárias, pelo domínio político de famílias, pelo perigo despertado com as ações de Antônio Conselheiro, enfim por todas as vicissitudes que a passagem do Império para a República poderia despertar em uma determinada localidade do Nordeste do Brasil.

Referências bibliográficas

  • QUEIROZ, Jonas Marçal de. Da senzala à República: tensões sociais e disputas partidárias em São Paulo (1869-1889) Dissertação de mestrado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1995.
  • REVEL, Jacques. Microanálise e a construção do social. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.
  • REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996.
  • SANTOS, Marco Aurélio dos. Geografia da escravidão na crise do Império: Bananal, 1850-1888 281 f. Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.
  • VITORINO, Artur José Renda & SOUSA, Eliana Cristina Batista de. “O pássaro e a sombra”: instrumentalização das revoltas escravas pelos partidos políticos na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 42, p. 303-322, jul.-dez. de 2008.
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    Sobre os conflitos políticos nas décadas finais do Império do Brasil, potencializados pelo movimento abolicionista, ver QUEIROZ, Jonas Marçal de. Da senzala à República: tensões sociais e disputas partidárias em São Paulo (1869-1889). Dissertação de mestrado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1995. VITORINO, Artur José Renda & SOUSA, Eliana Cristina Batista de. "O pássaro e a sombra": instrumentalização das revoltas escravas pelos partidos políticos na província de São Paulo nas últimas décadas da escravidão. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 21, n. 42, jul.-dez. de 2008, p. 303-322. SANTOS, Marco Aurélio dos. Geografia da escravidão na crise do Império: Bananal, 1850-1888. Tese de doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014, 281f. Especialmente o capítulo IV, "Lutas políticas, abolicionismo e a desagregação da ordem escravista: o espaço de atuação dos proprietários rurais". Qual a dimensão que se revelaria se esse uso político do "conselheirismo" conduzisse ao conhecimento de rivalidades políticas mais amplas entre as classes dominantes? Sobre a indicação do conselheirismo e a questão das rivalidades políticas em Jeremoabo, ver MEDRADO, Joana, esta op. resenhada, p. 69.
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    Sobre a história do vaqueiro Miguel Vítor, ver MEDRADO, Joana, esta op. resenhada, p. 91-94. Sobre as considerações teóricas e metodológicas da micro-história presentes neste parágrafo, ver REVEL, Jacques. Microanálise e a construção do social. In: REVEL, Jacques (org.). Jogos de escala: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1996, p. 21-28. A citação encontra-se à página 22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    22 Maio 2014
  • Aceito
    02 Jul 2014
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