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REVOLUÇÃO NO BRASIL, SÉCULOS XVIII A XXI: A HISTÓRIA DE UM CONCEITO, UM CONCEITO NA HISTÓRIA* * Uma versão anterior deste texto foi publicada com o título "Revolución en Brasil: la historia de un con cepto, un concepto en la historia (siglos XVIII-XXI)" no livro organizado por Fabio Wasserman, El mundo en movimiento: el concepto de revolución en Iberoamérica y el Atlántico norte (siglos XVII-XX). Buenos Aires: Niño y Dávila Editores, 2019. Nesta nova versão, ampliamos um pouco mais a análise para o con texto dos anos 50 e 60 do século XX. Incorporamos novas referências bibliográficas atendendo sugestões dos pareceristas da Revista de História, aos quais agradecemos. Além de pequenas correções e revisão de algumas passagens, a parte final do artigo foi reatualizada em razão das transformações da conjuntura política do nosso país após as eleições de 2018. Declaramos que ambos os autores participaram de todas as etapas de elaboração do artigo, tais como levantamento de dados, pesquisa bibliográfica, sustentação teórica e redação. Todas as obras e todos os documentos utilizados na pesquisa e na elaboração do artigo são citados nas notas e na bibliografia. Foram consultados os acervos digitais da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, do grupo Estado e editora Globo.

REVOLUTION IN BRAZIL, 18TH TO 21ST CENTURIES: THE HISTORY OF A CONCEPT, A CONCEPT IN HISTORY

Resumo

Este artigo empreende uma análise do conceito de revolução na história do Brasil, desde o século XVIII até o atual momento político do país. Entende-se que a história de um conceito jamais é bem apreendida em curtos recortes temporais, e por isso este artigo assume a forma de uma síntese interpretativa de longa duração. Tendo por base esclarecimentos teóricos iniciais, sua estratégia consiste em pontuar e articular alguns contextos históricos específicos - e não exaustivos - nos quais "revolução" expressou realidades sociais relevantes, sendo capaz de interagir com essas mesmas realidades. A tese central aqui defendida é que, a partir de certas variáveis estruturantes, o conceito de revolução desempenhou e continua a desempenhar um papel relevante na trajetória política do Brasil.

Palavras-chave:
Revolução; história dos conceitos; história intelectual; história da historiografia; história do Brasil

Abstract

This article analyzes the concept of revolution in the history of Brazil since the 18th century until the country's current political moment. Considering that the history of any concept can never be well understood in short periods of time, this article consists of a long-term interpretative synthesis. After some introductory theoretical remarks, it focuses on some specific - and not exhaustive - historical contexts in which "revolution" has expressed significant social realities, at the same time that it interacts with these realities. The main thesis here is related to the central role that this concept, due to some variable structures, played in the Brazilian past, and still plays in its present.

Keywords:
Revolution; history of concepts; intellectual history; history of historiography; history of Brazil

façamos a revolução

antes que o povo a faça

antes que o povo à praça

antes que o povo a massa

antes que o povo na raça

antes que o povo: A FARSA

Affonso Ávila, Frases-feitas (1963)ÁVILA, Affonso. Código de Minas & poesia anterior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

Introdução

Pode uma palavra desempenhar papel central na história de um país, de uma nação? A resposta afirmativa não será tão difícil quanto sua demonstração, que não seria satisfatória caso se contentasse em tomar a palavra como simples tradução de uma ou de várias realidades sociais. Haveria que se partir do pressuposto de que a palavra, se bem seja capaz de seguir e traduzir os humores históricos de certa sociedade ao longo de parte de sua existência no tempo e no espaço, seja capaz igualmente de modificar algo em dita sociedade, de determinar, ainda que parcialmente, algumas das formas de ser dessa sociedade. Não uma palavra qualquer, mas uma especial, que, assim, seja simultaneamente produto e produtora de uma história.

A palavra que nos interessa aqui é "revolução", e os tempos e espaços a ela relativos são os daquilo que genericamente se poderia chamar de "Brasil" entre os séculos XVIII e XXI, o que impõe, de largada, dois problemas básicos. Em primeiro lugar, o fato de que a palavra "revolução" não é exatamente a mesma ao longo desse largo espectro temporal: embora ela preserve sua morfologia básica - sua carcaça externa, digamos assim -, seus usos variam; também os conteúdos a ela atrelados se modificam, agregando novos teores, transformando articulações internas e engendrando alteridades vocabulares, constituindo, assim, um campo semântico dinâmico e sintético de um conjunto de outras palavras e ideias, e que justamente por isso torna a palavra capaz de (re)produzir algo relevante em uma sociedade. Em suma: trata-se não de uma simples palavra, mas de um conceito (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2006.). Em segundo lugar, o fato de que tampouco a palavra "Brasil" permanece estática: também ela se modifica com o tempo, modificação esta que cria e articula, progressivamente, uma nova noção de espaço. O Brasil do século XVIII é um conjunto de regiões mais ou menos articuladas, por vezes desarticuladas mesmo, constituintes do Império Português; por isso, ele é, para quase todos os efeitos, um Brasil essencialmente distinto daquele do século XXI, que já identifica um Estado, uma nação e um território soberanos que só passaram a existir do século XIX em diante (JANCSÓ; PIMENTA, 2000JANCSÓ, István & PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade nacional brasileira). In: MOTA, Carlos G. (org.). Viagem incompleta: a experiência brasileira: 1500-2000: formação: histórias. São Paulo: Senac, 2000, p. 127-175.).

Perspectivas históricas não acadêmicas baseadas em um senso comum, assim como uma porcentagem não desprezível de autores de obras acadêmicas sobre o Brasil, poderiam objetar à proposta de uma história baseada no conceito de revolução ou entender que o Brasil teria conhecido apenas e no máximo aquilo que Antonio Gramsci chamou de "revoluções passivas" (SECCO, 2006SILVA, António de Morais. Diccionario da lingua portuguesa, 2 v. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.; VIANNA, 1996VILLALTA, Luiz Carlos. O Brasil e a crise do Antigo Regime português (1788-1822). Rio de Janeiro: Editora FGV , 2016.). Em outras narrativas da história do Brasil, "revolução" parece uma palavra desajustada, alienígena, até mesmo caricata, supostamente incapaz de descrever situações concretas (PIMENTA, 2014PINTO, Álvaro Vieira. Consciência e realidade nacional, v. 1. Rio de Janeiro: MEC: Iseb, 1960.). Mas há situações em que a palavra surge com força: seja como ideal, temor ou projeto, efetivado ou não, de homens e mulheres no passado ou no presente, ou como categoria analítica capaz de explicar episódios dessa história (COSTA, 2005COSTA, Wilma Peres. A independência na historiografia brasileira. In: JANCSÓ, István (org.) Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec: Fapesp , 2005, p. 53-118.). Todas essas concepções, bastante atuais, opostas entre si ou não, justificam uma exploração do problema.

Não se trata, como logo se verá, de uma exploração totalmente pioneira, menos ainda exaustiva. Seus objetivos se limitam à busca de uma organização parcial daquilo que já está disponível ao leitor interessado, do preenchimento de algumas lacunas e do apontamento de novas demandas que permanecerão em aberto (NEVES, 2007NEVES, Lúcia Bastos P. das. Revolução: em busca de um conceito no império luso-brasileiro (1789-1822). In: FERES JÚNIOR, João & JASMIN, Marcelo (org.). História dos conceitos: diálogos transatlânticos. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: Loyola: Iuperj, 2007, p. 129-140.; NEVES; NEVES, 2014NEVES, Lucia M. Bastos P. das & NEVES, Guilherme Pereira das. Revolução/Brasil. In: FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano, v. 2, t. 9. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales , 2014, p. 65-80.; PIMENTA, 2009PIMENTA, João Paulo. Tempos e Espaços das Independências: a inserção do Brasil no mundo occidental (1780-1830). São Paulo: Intermeios, 2017.), tudo isso a partir de uma extensão cronológica incomum para uma história do conceito de revolução no Brasil, detendo-se em alguns contextos específicos e especialmente fecundos de observação.

O marco inicial dessa história bem poderia ser uma exploração de palavras e conceitos indígenas que, em meio às profundas miscigenações que caracterizaram o processo colonizador português no continente americano desde começos do século XVI, poderiam articular conteúdos de movimento (seja de reiteração, seja de modificação) astronômicos, fisiológicos, religiosos e políticos. Em suma: palavras e conceitos que iriam de encontro àquilo que portugueses, em língua portuguesa, e seguindo o exemplo de outros povos e de outras línguas, desde muito tempo chamavam de revolução. A despeito de formidáveis explorações historiográficas recentes em torno de uma história de traduções conceituais envolvendo línguas europeias e ameríndias (BOIDIN, 2016BOIDIN, Capucine. Pensar la modernidad/colonialidad en guaraní (XVI-XVIII). Cuadernos de Antropología Social, Buenos Aires, n. 44, p. 7-25, 2016. ISSN 1850-275X. Disponível em: <https://bit.ly/30OJhUs>. Acesso em: 12 jan. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.34096%2Fcas.i44.3577.
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; NEUMANN; BOIDIN, 2017NEUMANN Eduardo & BOIDIN Capucine. A escrita política e o pensamento dos Guarani em tempos de autogoverno (c. 1753). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 37, n. 75, p. 97-118, 2017. ISSN 1806-9347. Disponível em: <https://bit.ly/2LaafR1>. Acesso em: 12 jan. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.1590/1806-93472017v37n75-04.
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), não dispomos - ao menos os autores deste texto - de condições para sequer traçar apontamentos preliminares nessa direção (tampouco para aproximá-la de vozes atuantes em línguas de origem africana, trazidas à América pelo tráfico negreiro). Contentamo-nos, portanto, em partir do primeiro registro lexicográfico do termo em língua portuguesa, disponibilizado em começos do século XVIII, e quando revolução já era inclusive um conceito.

Em história dos conceitos, quase nunca o embate absoluto entre uma forma mais antiga e uma mais atual (ou menos antiga) faz sentido (CAPELLÁN DE MIGUEL, 2013CAPELLÁN DE MIGUEL, Gonzalo. Los "momentos conceptuales": una nueva herramienta para el estudio de la semántica histórica. In: FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier & CAPELLÁN DE MIGUEL, Gonzalo (ed.). Conceptos políticos, tiempo e historia. Santander: Editorial de la Universidad de Cantabria; Madrid: McGraw-Hill, 2013, p. 195-233.). Quando observamos trezentos anos de história da definição lexicográfica em português de "revolução" vemos, é verdade, mudanças importantes e significativas; mas vemos também certas estabilidades fundamentais. Isso significa que mudanças e estabilidades devem ser entendidas em uma dialética de reciprocidades, e não em uma lógica de simples exclusão ou sobreposição de umas com as outras. Desde pelo menos o século XVIII, o conceito de revolução é e continua a ser polissêmico e polêmico, emergindo de realidades históricas concretas que, de diversas formas, puderam também ser criadas e recriadas por ele.

A história na lexicografia

O que uma observação de trezentos anos de definições em dicionários nos mostra? Que "revolução" sempre pôde significar - e ao mesmo tempo - um movimento reiterativo e um movimento inovador, adjetivando o previsível e o imprevisível, o velho e o novo (e nisso a língua portuguesa não apresentava nenhuma discrepância digna de nota com relação à língua espanhola) (WASSERMAN, 2014WASSERMAN, Fabio. El mundo en movimiento: el concepto de revolución en Iberoamérica y el Atlántico norte (siglos XVII-XX). Buenos Aires: Niño y Dávila Editores, 2019.; ZERMEÑO PADILLA, 2014PIMENTA, João Paulo. A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 3, p. 53-82, set. 2009. ISSN 1983-9928. Disponível em: <https://bit.ly/2MMEaku>. Acesso em: 12 jan. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.15848/hh.v0i3.69.
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). Também nos mostra que suas áreas de incidência preservaram um núcleo original, formado pela astronomia, a fisiologia e a política, mesmo que os designativos dessas áreas tenham se modificado e eventualmente ensejado certos detalhamentos (nos campos da geometria, medicina, história etc.).

Em termos de novidade, dois pontos merecem destaque. Em primeiro lugar, o fato de que as palavras diretamente derivadas de revolução cresceram: tomando-se por base três importantes dicionários, vemos que em 1720 nenhuma palavra derivada diretamente de "revolução" se encontra lexicografada; em 1813 são três; e em 2004, seis (BLUTEAU, 1720BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez & latino, v. 7. Lisboa: Officina de Pascoal da Sylva, Impressor de Sua Magestade, 1720.; HOUAISS, 2004HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Instituto Antonio Houaiss: Objetiva, 2004.; SILVA, 1813SILVA, António de Morais. Diccionario da lingua portugueza, 2 v. Lisboa: Impressão Régia, 1831.) - ou seja, a palavra foi ganhando importância no vocabulário social. Em segundo lugar, o fato de que, ao longo do tempo, a ênfase da definição deslocou-se claramente da reiteração para a inovação. Não se trata, repitamos, de uma simples substituição, mas de uma inversão de tendências: "revolução" passou a ser, principalmente, uma modificação profunda de determinada situação ou realidade, o que permitiu, inclusive, sua conversão em um substantivo de referência histórica (a "Revolução Francesa", a "Revolução Russa" etc.). Em 1831, pela primeira vez são encontradas definições nessa direção, como "as revoluções d'Évora contra Felipe IV, levantamento, sublevação contra o governo: as Revoluções de Pernambuco contra a tirania Holandesa" (SILVA, 1831, p. 651, grifo do autor). Vê-se que, desse modo, revolução se associou de modo coerente ao desenvolvimento também de um novo conceito de história no mundo ocidental, doravante caraterizado, dentre outras marcas, pela singularização do passado (fechado) em relação ao futuro (aberto) e pela atribuição à história de um duplo entendimento, como conhecimento do passado e como o passado propriamente dito, convertendo, inclusive, a história em objeto de si mesma (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2006.; ZERMEÑO PADILLA, 2004ZERMEÑO PADILLA, Guillermo. Revolución en Iberoamérica (1780-1870): análisis y síntesis de un concepto. FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano, v. 2, t. 9. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales , 2014, p. 15-47.).

Evidentemente, dicionários de línguas, como todo e qualquer texto, são socialmente limitados. Conectam-se de modo apenas parcial e segmentado com as sociedades que os produziram e os consumiram, e seu acesso direto é condicionado pelos níveis de letramento, leitura e oralidade correspondentes àquela sociedade. Mas isso não os diminui como fonte histórica: eles são sempre indicadores de certos usos correntes e recorrentes, traduzem práticas sociais concretas e carregam consigo intenções normativas que devem ser levadas a sério, principalmente quando atuantes em realidades nacionais que estimulam oficialmente essa normatividade (não é o caso do Brasil do século XVIII e de parte do XIX, mas sim de toda a época posterior). Além disso, no caso da língua portuguesa, o primeiro dos dicionários, e que serviu de fonte original aos demais, o Vocabulário de Bluteau, é uma antologia de palavras e significados até então encontrados em textos de autores portugueses modernos (como Camões ou Vieira) ou latinos clássicos (como Cícero ou Plínio), o que legou à posteridade uma profícua herança de usos de palavras. Dicionários são, portanto, fontes histórico-linguísticas parciais e limitadas, mas também profícuas e abrangentes (MUGGLESTONE, 2011MUGGLESTONE, Lynda. Dictionaries: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2011.; PINTO, 2008PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966.).

A ampliação dos derivados de "revolução" na lexicografia da língua portuguesa no Brasil ao longo da história, bem como de suas possibilidades de uso, mostra como a palavra, na condição de indicativa de movimentos tanto de permanência como de mudança, foi se espraiando quantitativamente e alargando seus alcances sociais, valendo-se inclusive, a partir do século XIX, do brutal crescimento populacional do Brasil, de sua urbanização, da ampliação da imprensa e da montagem de sistemas educativos nacionais - foi se constituindo em um conceito capaz de articular realidades sociais que, sem ele, não existiriam ou não seriam as mesmas. Passemos a observar algumas dessas realidades.

O Brasil português: preparação e disponibilização do conceito

Em meados do século XVIII, estadistas portugueses elaboraram e parcialmente implementaram projetos reformistas de gestão, economia, política e assuntos militares do Império português (iniciativa semelhante à de outros impérios europeus, como o espanhol, o austríaco e o russo). O objetivo final desses projetos, já esboçados em fins do século XVII e inícios do XVIII, era colocar Portugal e seus territórios ultramarinos em melhor posição no cenário de competição mundial, e acabou por promover considerável agitação intelectual e cultural que atribuía aos territórios do Brasil uma posição estratégica. Fincados em uma idealização do passado imperial português, visto como outrora glorioso, e direcionados a um futuro tido como possível por uma lógica racionalista, esses projetos evitaram ao máximo o emprego da palavra "revolução", uma das muitas disponíveis em língua portuguesa para indicar alterações de ordem política, que em suas poucas ocorrências é usada como um substantivo referente a situações históricas concretas. É o caso do nono item da Lei da Boa Razão, de 1769 (as "revoluções da República, e do Império Romano"), ou do "Prefácio" às Memórias políticas sobre as verdadeiras bases da grandeza das nações, de autoria de João Joaquim José Rodrigues de Brito, escrito entre 1802 e 1805 (em alusão à "história geral das revoluções políticas") (PAULINO, 2017PAULINO, Mariana Ferraz. Tempo e mudança nas Américas Ibéricas: vocábulos e conceitos no discurso de reformistas ilustrados portugueses e espanhóis (c. 1750-c. 1807). Projeto de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.). Nos discursos reformistas, "revolução" é termo preterido em favor de outros como "reforma", "adiantamento", "melhoramento" e "progresso" (Ibidem). Por que isso?

Muito provavelmente porque os elaboradores desses projetos reformistas, sensíveis a certas tendências do mundo em que viviam, enxergavam em "revolução" uma ênfase inovadora incompatível com o caráter ajustado de seus projetos, que visavam em última instância a preservação e o fortalecimento do poder monárquico, mas jamais sua supressão. Uma dessas tendências era justamente o aprofundamento da carga política do conceito revolução e sua crescente ênfase em movimentos não mais reiterativos, mas essencialmente inovadores. A Revolução Francesa não inventou essa ênfase, mas ofereceu considerável contribuição para sua expansão ao redor do mundo (ARENDT, 1963ARENDT, Hanna. On revolution. London: Faber and Faber, 1963.; GODECHOT, 1956GODECHOT, Jacques. La grande nation: l'expansion révolutionnaire de la France dans le monde de 1789 à 1799. Paris: Aubier, 1956.; PALMER, 1959PALMER, Robert R. The age of the democratic revolution: a political history of Europe and America: 1760-1800, v. 1. New Jersey: Princeton University Press, 1959.). A chamada "era das revoluções" continuaria a atribuir significados a conceitos em sentidos tradicionais, porém colocando-os em tensão com sentidos novos ou, como é o caso de revolução, com sentidos antigos, mas até então simplesmente minoritários. O combustível de toda essa dinâmica seria, evidentemente, a história das sociedades e de seus indivíduos.

No mundo luso-americano, os ensaios sediciosos do final do século XVIII, também conhecidos como Inconfidência Mineira (1789) e Conjuração Baiana (1798), oferecem exemplos notáveis de lutas sociais ressignificando o conceito de revolução e, ao mesmo tempo, sendo ressignificadas por ele. No primeiro dos episódios, tanto os supostos conspiradores quanto seus acusadores e interrogadores empregam "revolução" de modo residual, preterindo-o, mas articulando-o a outros termos, como "sublevação", "motim", "sedição", "levante", "rebelião" e "revolta". No caso dos acusadores, todos eles agentes do poder monárquico português afinados com o discurso político do Reformismo Ilustrado, esses termos assumiam conotação negativa de afronta ao poder real. No caso dos acusados, não sabemos se sempre foi assim; porém, uma vez descobertos seus planos, e diante de seus interrogadores, não hesitaram em empregá-los da mesma maneira e, consequentemente, a limitar o radicalismo de sua ação política. Tomás Antônio Gonzaga, por exemplo, argumentou não ser "rebelde" e não estar comprometido com os conjurados por ser ele "filho de Portugal" e não possuir préstimos militares, sendo, portanto, improvável que fosse convidado pelos "mesmos da terra" (das Minas) para a sedição. Além disso, estaria para assumir o cargo de "Desembargador da Bahia, e não ser[ia] de presumir que quisesse perder este emprego útil e certo por coisa incerta, e menos útil, que se lhe pudesse oferecer". Por fim, afirmava que temendo "alguma revolução no povo", procurou alertar o Intendente de Vila Rica a não cobrar os impostos atrasados sobre o ouro - o que motivara a conspiração - demonstrando, assim, não se interessar pelo "motim do povo" (AUTOS..., 1982AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira, v. 5. 2ª edição. Brasília: Câmara dos Deputados ; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais , 1982., p. 208-210).

Gonzaga, magistrado e poeta, era um hábil manipulador das palavras. Assim como ele, a maioria dos partícipes do movimento advinha de estratos elevados da sociedade mineira, ocupavam cargos públicos nas esferas civil, eclesiástica e militar, estavam envolvidos com a contratação de impostos e contrabandos e possuíam laços de clientela uns com os outros. O movimento foi esboçado a partir das insatisfações com a pesada política fiscal da metrópole e encontrava inspiração em um mal definido ideário republicano de autonomia dos membros da comunidade política na condução dos negócios públicos; ideário esse parcialmente conectado com a experiência histórica da Independência das Treze Colônias inglesas da América do Norte (MAXWELL, 1978MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808. 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1978.; STARLING; LYNCH, 2009TOLEDO, Caio Navarro de. Intelectuais do Iseb, esquerda e marxismo. In: MORAES, João Q. de (org.). História do marxismo no Brasil, v. 3. 2ª edição. Campinas: Editora Unicamp , 2007, p. 299-336.; VILLALTA, 2016WASSERMAN, Fabio. Argentina/Río de la Plata. In: FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano, v. 2, t. 9. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales , 2014, p. 49-63.), cujo "exemplo" os inconfidentes mostravam ter "bem fresco" na memória (AUTOS..., 1976AUTOS de Devassa da Inconfidência Mineira, 10 v. 2ª edição. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1976-1983., p. 184). E a despeito de seu fracasso, a conspiração contribuía para que revolução se associasse, inclusive, a república e povo, constituindo sistemas conceituais de referência negativa e subversiva, sendo por isso mesmo politicamente profícuos: era assim que outros dois implicados procuravam circunscrever a culpa pelo episódio ao militar Joaquim José da Silva Xavier - o "Tiradentes" -, afirmando que na visão deste último a Europa parecia uma "esponja" que reduzia "à maior miséria (...) uns países tão ricos como este" (Idem, 1982, p. 118) que, sem Portugal, "bem podia ser uma república livre e florescente" (Idem, 1976, p. 156).

Já no caso do movimento ocorrido na Bahia, em 1798, as demonstrações de inconformismo e insatisfação emergiram com um teor mais explícito e radical inclusive no plano discursivo (JANCSÓ, 1996JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec: Edufba, 1996.). Nessa ocasião, foram espalhados por várias partes da cidade de Salvador aquilo que funcionários reais chamaram de "papéis sediciosos e Libertinos" (AUTOS..., 1998aAUTOS da Devassa da Conspiração dos Alfaiates, v. 1. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo: Arquivo Público do Estado da Bahia, 1998a., p. 46), "atrevidos" (p. 48) e "infames" (p. 51), que versavam "sobre liberdade e revoluções" (p. 49). Diferentemente do que ocorrera dez anos antes em Minas Gerais, o episódio da Bahia, influenciado pela Revolução Francesa, rompia o limite da publicidade das ações políticas transgressoras e aventava a integração do conjunto da população, agora misturando indivíduos de origem social ampla que incluíam homens livres e escravos - a América portuguesa do século XVIII era essencialmente uma sociedade escravista - em um mesmo projeto de luta política (JANCSÓ, 1996JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec: Edufba, 1996.). Em uma das manifestações públicas dos conspiradores, um papel intitulado Aviso ao Povo Bahiense conclamava "os Povos", "abandonados pelo Rei, pelos seus despotismos [e] por seus ministros", a seguir o exemplo da França, na qual os olhos das nações do mundo estariam fixados: "é tempo povo, povo o tempo é chegado para vós defendereis a vossa Liberdade: o dia da nossa revolução da nossa Liberdade, e da nossa felicidade está para chegar, animai-vos, que sereis feliz[es] para sempre" (AUTOS..., 1998a, p. 33-34). E se em Minas Gerais revolução se associava a república e povo em conotação negativa, agora associava-se também a liberdade, e em conotação positiva.

Mas em fins do século XVIII, revolução não costumava ser coisa boa nem no Brasil nem em Portugal; no entanto, agora esse consenso já conhecia fraturas. Como vimos, o conceito não era novo, nem seu sentido de inovação, mas agora havia a possibilidade de que fosse associado, em uma sociedade escravista, a outros, como república, povo e liberdade, convertendo-se, portanto, em um conceito antimonárquico, antieuropeu e anticolonialista, embora não em um conceito nacional (MOTA, 1979MOTA, Carlos G. Ideia de Revolução no Brasil (1789-1801): estudo das formas de pensamento. Petrópolis: Vozes, 1979.). Isso justificava que fosse prudentemente evitado ou abertamente usado como ferramenta de luta política. Da mesma forma, seu emprego podia ser entendido em uma inversão da ênfase tradicionalmente atribuída a revolução, não mais descrevendo uma situação de recondução política, mas uma situação fundamentalmente nova. E assim essa inversão avançava, não apenas traduzindo, mas também moldando parte da vida política tanto na Europa quanto na América.

O peso do conceito no surgimento e na dinâmica de um Brasil nacional

Em 1817, na capitania luso-americana de Pernambuco, um movimento político contrário ao governo português do Rio de Janeiro - onde a Corte se instalara em 1808, fugindo dos exércitos franceses que tinham invadido Portugal - instaurou uma república que logrou sobreviver por cerca de três meses (BERNARDES, 2006BERNARDES, Denis. O patriotismo constitucional: Pernambuco, 1820-1822. São Paulo: Hucitec: Fapesp; Recife: Editora UFPE, 2006.; SILVA, 2006SODRÉ, Nelson Werneck. Introdução à revolução brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.). Na ocasião, "revolução" voltou a ser termo empregado tanto pelos partícipes e defensores do movimento quanto por seus opositores. Com o aprofundamento das tensões políticas a envolverem o Império português - agora transformado em Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve -, o conceito continuava a desempenhar seu duplo papel, de indicador de dinâmicas políticas em curso e de promotor dessas mesmas dinâmicas. Aqui, é relevante observar que revolução e revolucionários já podiam, de acordo com os usos semânticos da época, referir-se não apenas às experiências históricas dos Estados Unidos (onde, aliás, os republicanos de Pernambuco buscaram apoio, se autodenominando revolucionários), da França e do Haiti, mas também da América espanhola. Isso, claro, pari passu a usos mais antigos e convencionais. Assim, em um acúmulo de experiências políticas que formavam o que poderíamos chamar de um "espaço de experiência revolucionário moderno" a envolver espaços e tempos históricos variados e articulados, o conceito de revolução mostrava-se não apenas mais politicamente inovador do que antes, mas também mais claramente transnacional (PIMENTA, 2017PIMENTA, João Paulo et al. A independência e uma cultura de história no Brasil. Almanack, Guarulhos, n. 8, p. 5-36, 2º sem. 2014. ISSN 2236-4633. Disponível em: <https://bit.ly/30O5IJE>. Acesso em: 12 jan. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2236-463320140801.
https://bit.ly/30O5IJE...
, p. 9).

Foi assim que, comentando os acontecimentos de Pernambuco de 1817, o influente publicista Hipólito José da Costa, que editava o Correio Braziliense em Londres, de início defenderia o movimento, tomando-o em um sentido tradicional, supostamente indicativo de necessidades de reforma que o Império português vinha demonstrando desde tempos, fruto da incapacidade de seus principais estadistas em perceber uma situação que, segundo ele, conhecia paralelo nas "revoluções" ainda em curso na América espanhola. Porém, uma vez estabelecido um debate a esse respeito entre o Correio Braziliense e outro importante jornal, o Correo del Orinoco, porta-voz das lutas republicanas na Venezuela, Hipólito da Costa - que, afinal, não era republicano, mas monarquista - se veria na necessidade de mudar parcial e significativamente sua posição original (FERNANDES, 2010FERNANDES, Ana Cláudia. Revolução em pauta: o debate Correo del Orinoco-Correio Braziliense (1817-1820). Dissertação de mestrado em História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.). Observando o que chamava de "Revolução da América" ou "Revolução de Caracas", passaria a advogar "o absurdo de quem supõe que as revoluções são o meio de melhorar a nação", sendo a pernambucana "obra do momento, parto da inconsideração, e nunca sustentada por plano combinado", levada a cabo por "demagogos", que "produzirá contudo um efeito benéfico; [o de] demonstrar ao povo do Brasil que as reformas nunca se devem procurar por meios injustos, quais são os da oposição de força ao Governo, e efusão de sangue" (CORREIO..., 1817CORREIO Braziliense, ou Armazém Literário. Londres: [s.n.], 1817-1820., p. 105). A tradicional polissemia do conceito, apontada anteriormente, não poderia ser mais claramente operativa:

não queremos uma revolução e uma revolução será se se mudarem as bases de todo o edifício administrativo e social da monarquia; e uma revolução tal e repentina não se pode fazer sem convulsões desastrosas, e é por isso que não a desejamos. (CORREIO..., 1820CORREIO Braziliense, ou Armazém Literário. Londres: [s.n.], v. 24, n. 143, 04/1820., p. 421)

Nisso, Hipólito da Costa se distanciava de seus interlocutores hispano-americanos, associava definitivamente revolução a termos negativos como "comoção", "anarquia" e "guerra civil", e mostrava-se em plena sintonia com uma tendência política que era tanto europeia quanto americana, e bem representada pelo Congresso de Viena e pela Santa Aliança: a de uma Europa, com suas colônias americanas, monárquica, legitimista e conservadora, e que não deveria tolerar aquilo que cada vez mais se entendia por revolução.

A Independência do Brasil, formalizada em 1822, se fez a partir das condições criadas pela transferência da Corte à América, em 1808 e, de modo mais contundente, pela conjuntura política específica inaugurada pelo movimento constitucionalista português de 1820, cujos protagonistas também evitaram chamá-lo de "revolução", preferindo termos como "regeneração" e "reforma" (FANNI, 2015FANNI, Rafael. Temporalização dos discursos políticos no processo de independência do Brasil (1820-1822). Dissertação de mestrado em História, Universidade de São Paulo, 2015.). Nas poucas vezes que "revolução" é usada, o é tanto para indicar, negativamente, "mares tempestuosos de uma revolução" como, positivamente, uma revolução moderada. Um panfleto da época afirmava: "Nossa conduta pode servir de exemplo e modelo aos Povos do Universo que quiserem regenerar-se; porque em nossa revolução não separamos ainda, nem as ideias morais das ideias liberais, nem a Justiça da Política" (CARTA..., 1821CARTA segunda do Compadre de Belém ao redator do Astro da Lusitânia dada à luz pelo Compadre de Lisboa. Reimpresso no Rio de Janeiro: Tip. Real, 1821., p. 7). Assim, no liberalismo português da década de 1820, que foi transplantado e reelaborado no Brasil às vésperas da Independência, revolução surge de modo tímido, mas muito significativo: como revolução conservadora, moderada, logo positiva. A dinâmica conceitual parece clara: como o uso de revolução cada vez mais poderia trazer consigo o sentido de uma mudança radical da ordem política, seu uso demandava um controle, estabelecido pela mobilização de outros conceitos como acessórios - como povos e liberdade - ou mesmo sinônimos contrários. Foi exatamente o que ocorreu em meio ao processo de constituição do Império do Brasil, a partir de 1822. A Independência como projeto vencedor sempre esteve politicamente distante dos princípios políticos de movimentos anteriores como os de Minas Gerais, Bahia e Pernambuco, sendo ela monárquica e escravista (OLIVEIRA, 1999OLIVEIRA, Cecília Helena. A astúcia liberal: relações de mercado e projetos políticos no Rio de Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista: Edusf: Ícone, 1999.). Daí o triunfo de uma solução conceitual a bem expressar essa situação, adotada por vários dos protagonistas desse processo (dentre os quais José da Silva Lisboa, tradutor, comentador e divulgador, no Brasil, de escritos de Edmund Burke): a Independência como uma revolução desenvolvida, moderada e conservadora, por isso virtuosa, e capaz tanto de integrar o Brasil nacional que surgia no contexto revolucionário ibero-americano do século XIX quanto de supostamente distingui-lo de seus vizinhos continentais (a mesma solução conceitual era utilizada em vários desses países, pela mesma época). Foi desse modo que a definiu o jornal oficial do novo Império:

um fato poucas vezes acontecido, uma revolução desenvolvida, um Povo que reassume os direitos inalienáveis da sua independência, quebra os vergonhosos ferros do seu vitupério, e entra, sem ter passado pelos horrores da guerra civil e da anarquia, no círculo das Nações livres do Universo. (DIÁRIO..., 1823DIÁRIO DO GOVERNO . Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, n. 28, 05/02/1823., p. 113)

Nesse estágio de sua existência, o conceito de revolução se encontrava pronto para adentrar com força na história do novo país, onde fincaria raízes profundas nos modos pelos quais a nova nação representaria seu passado e a si mesma, condicionando até mesmo tradições intelectuais eruditas e acadêmicas que, de muitos modos, passariam a tentar entender passados, presentes e futuros desse país e dessa nação. Ao longo do século XIX, novas ocasiões surgiriam para consolidar e difundir essa associação entre ideias de Brasil e de revolução.

Em 1831, D. Pedro I abdicou do trono e, enquanto seu filho não assumia seu lugar como D. Pedro II (em 1840), o Império seria governado por uma regência. A queda de D. Pedro I resultou de um processo conflituoso relacionado a temas políticos, econômicos, militares, institucionais e de identidade nacional, envolvendo amplos e diferentes atores sociais, inclusive apoiado em intensa pressão popular (BASILE, 2009BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (org.) O Brasil Imperial: 1831-1870, v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2009, p. 53-119.; MATTOS, 2009MATTOS, Ilmar R. O gigante e o espelho. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (org.). O Brasil Imperial: 1831-1870, v. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2009, p. 13-51.; MOREL, 2003MOREL, Marco. O período das Regências: (1831-1840). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.; RIBEIRO; PEREIRA, 2014RODRIGUES, José Honório. Conciliação e reforma no Brasil: um desafio histórico-político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 1965.). Concebido por muitos de seus partícipes como uma "revolução gloriosa", o evento representava, segundo O Tribuno do Povo (1831a, p. 125), "a glória de uma Regeneração não ensanguentada" ao afastar da pátria a tirania do "monstro mais abominável" (Idem, 1831b, p. 134). Desde então, a discussão e os conflitos acerca dos ritmos e direções dessa nova revolução se impuseram como um dos eixos fundamentais do debate político brasileiro do século XIX. Assim, outro periódico, Astréa, afirmaria, quase um ano depois, que "a Revolução de 7 de Abril" não teria tido por fim "colocar nas mãos do Povo a administração; mas sim mudá-la das mãos despóticas de D. Pedro I para mãos mais livres, e Nacionais" (ASTRÉA, 1832ASTRÉA. Rio de Janeiro: [s.n.], n. 805, 01/03/1832., p. 2784); defendia o governo da Regência e atacava seus opositores, "anarquistas" descontentes com a "revolução que deitou por terra o antigo edifício" (ASTRÉA, 1831ASTRÉA. Rio de Janeiro: [s.n.], n. 768, 10/11/1831., p. 2636). Já a voz desses opositores acusava o governo regencial de não marchar "de acordo com as ideias Populares" e alterar "o curso da Revolução" (O TRIBUNO..., 1832O TRIBUNO DO POVO. Rio de Janeiro: Typographia de T. B. Hunt & C., 1830-1832., p. 235). Se ambos concordavam com a positividade da revolução de 1831, divergiam sobre outros conceitos, associados a ela ou não, como povo e soberania.

Bem se definia o que seria outra marca duradoura da história do conceito no Brasil: seus graus de convergência ou divergência em relação a ideias relativas ao que seria uma nação brasileira, popular ou não, e a conflitos em torno de questões como liberdade, soberania e representação - sempre, claro, em função de outros quadrantes da realidade histórica, sem os quais a história de um conceito não faria sentido. Entre 1835 e 1845 ocorreram sérias lutas armadas em várias províncias do Império do Brasil, conhecidas como "Revoltas Regenciais", muitas das quais com forte participação popular. Episódios como a "Cabanagem" (no Pará), a "Sabinada" (na Bahia), a "Cabanada" (em Alagoas), a "Balaiada" (no Maranhão) e a "Farroupilha" (no Rio Grande do Sul) e as enormes tensões por eles provocadas no centro político imperial testaram essas relações entre o conceito de revolução e outras dimensões da vida social brasileira. A esse respeito, o periódico O Sete d'Abril (1838, p. 1) afirmou: "É preciso estar bem certo que não pode existir por muito tempo este temporal de revoluções: ou nós sucumbiremos nelas, ou um mundo novo tem de aparecer no Brasil". Mais tarde, em 1839, em discurso no Senado, o político Bernardo Pereira de Vasconcelos - outrora um Liberal, agora convertido em Conservador, e uma das muitas vozes que agora atualizava a associação historicamente anterior entre revolução, anarquia e guerra civil - julgava que já era tempo de frear a revolução de 1831. Para ele, após o Ato Adicional de 1834, que reformou a Constituição do Brasil e definiu as províncias do Brasil como unidades político-administrativas,

se devia fazer alto no movimento, que se dizia revolucionário, de 7 de Abril: julguei que nem mais um passo adiante devia ir, ao menos enquanto uma experiência bem calculada não mostrasse que algumas alterações deviam ser feitas; eu quis, portanto, parar o carro revolucionário; atirei-me diante dele; sofri e tenho sofrido, porque quem se atira diante do carro revolucionário ordinário sempre sofre. (ANAIS..., 1912ANAIS do Senado do Império do Brasil. Segunda Sessão da Primeira Legislatura de 4 de maio a 17 de junho de 1839, Rio de Janeiro, Tomo I, 1912., p. 251)

Aqui, uma nova marca duradoura na história do conceito no Brasil: a interrogação acerca dos alcances desejados, necessários e possíveis de uma revolução positiva que, em razão das circunstâncias históricas, podia se tornar negativa. Assim, o primeiro jornal brasileiro a estampar a palavra no título seria A Revolução Pacífica, de 1862; anos depois, no entanto, A Revolução: folha de propaganda democrata, de 1878, complexificava uma vida política por meio de disputas que continuavam a ser, em parte, conceituais (NEVES; NEVES, 2014NEVES, Lucia M. Bastos P. das & NEVES, Guilherme Pereira das. Revolução/Brasil. In: FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano, v. 2, t. 9. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales , 2014, p. 65-80.).

Essa oscilação entre positividade e negatividade de revolução estará muito presente no Brasil décadas depois, mesmo após o país abolir a escravidão (1888) e substituir o regime monárquico por um republicano (1889), eliminando dois dos pilares de sua história pretérita. No contexto de mais uma autoproclamada revolução, a "Revolução de 1930", a famosa frase "façamos a revolução antes que o povo a faça", atribuída ao então governador de Minas Gerais, Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (FAORO, 2001FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª edição revista. São Paulo: Globo, 2001.; FAUSTO, 1997FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.; NETO, 2012NETO, Lira. Getúlio, 1882-1930: dos anos de formação à conquista do poder. São Paulo: Companhia das Letras , 2012.), parece ecoar e ao mesmo tempo perpetuar uma boa parte da história do conceito revolução até aqui esboçada.

Com os crescentes descontentamentos políticos e sociais com os governos nacionais nas primeiras décadas do regime republicano no Brasil, a criação da Aliança Liberal, em 1929, reconhecia a existência de um estado de fermentação social e política e articulava oligarquias preocupadas em formar um novo eixo de poder, inclusive com o movimento chamado de "tenentista", que gozava de apoio de classes médias urbanas. Desse encontro, uma nova linguagem política começava a ser gestada com o intuito de mobilizar amplos segmentos da sociedade, trazendo para o centro do debate a problemática dos direitos sociais e da construção de um novo programa político para o país (KAREPOVS, 2006KAREPOVS, Dainis. A classe operária vai ao parlamento: o Bloco Operário e Camponês do Brasil, 1924-1930. São Paulo: Alameda, 2006.; SCHWARCZ; STARLING, 2015SECCO, Lincoln. Gramsci e a revolução. São Paulo: Alameda , 2006.).

Não obstante, a condução desse processo evocaria preocupações políticas dos tempos da Independência e do Império, não admitindo, nas palavras do militar Juarez Távora, a "subversão social criada pelo predomínio incontrastável do populacho" (FAUSTO, 1997FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., p. 89). O temor incidia sobre correntes de esquerda no interior do movimento operário, inclusive as encarnadas no ex-líder tenentista convertido ao comunismo, Luiz Carlos Prestes. Em um Manifesto no qual expunha sua visão sobre o "momento revolucionário brasileiro", Prestes afirmava ser o programa da Aliança Liberal "anódino", e que a minoria dirigente apoiada pelos imperialismos estrangeiros somente seria derrotada por meio da "verdadeira insurreição generalizada, pelo levantamento consciente das mais vastas massas das nossas populações do sertão e das cidades" (DIÁRIO..., 1930DIÁRIO DA NOITE. Rio de Janeiro: [s.n.], n. 199, 29/05/1930., p. 1-8).

Deve-se ainda sublinhar que a questão agrária, a autonomia da classe operária e os nexos com as lutas antifascista e anti-imperialista foram alguns problemas prementes para um dos principais articuladores da perspectiva revolucionária marxista em formação na cultura política brasileira, o Partido Comunista Brasileiro (DEL ROIO, 2007DEL ROIO, Marcos. Os comunistas, a luta social e o marxismo. In: RIDENTI, Marcelo & REIS, Daniel A. (org.) História do Marxismo no Brasil, v. 5. Campinas: Editora Unicamp , 2007, p. 11-72.). Aqui, as marcas da Revolução Russa parecem evidentes (Idem, 2003): nessa época, já não era possível ignorar a preponderância da ideia de transformação radical da ordem política trazida pelo conceito de revolução (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Mass e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2006.), embora a eficácia da ação política moldada pela palavra, em circunstâncias históricas específicas, continuasse a impor a necessidade de se esclarecer o que se entendia exatamente por ela. No Brasil, ela poderia ir da esquerda à direita, em muitas modalidades.

Embora nesse período seja possível notar a incorporação de novos estratos semânticos ao conceito de revolução, bem como o reiterado desenvolvimento dos processos anteriores de sua ampliação social e politização, setores importantes da "Revolução de 1930" - que resultaria na derrubada da chamada Primeira República brasileira e a instauração de uma ditadura encabeçada por Getúlio Vargas - atualizaram e reforçaram a ideia oitocentista de que, no Brasil, a via "revolucionária" deveria se encontrar dentro dos quadros da ordem social. Em outras palavras, o uso do conceito de revolução novamente manipulava suas associações semânticas e conceituais e promovia uma ideia de nação vinculada à de ordem, e concederia legitimidade inclusive a futuras - e mesmo muito recentes - ações oligárquicas e golpistas.

Não é de estranhar, portanto, que anos depois da "Revolução de 1930" a União Democrática Nacional do influente político Carlos Lacerda tenha mobilizado o conceito para se voltar contra o próprio Getúlio Vargas, quando da candidatura deste - agora senador - às eleições presidenciais de 1950. Segundo Lacerda, Vargas "não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar" (TRIBUNA..., 1950TRIBUNA DA IMPRENSA. Rio de Janeiro: [s.n.], n. 132, 01/06/1950., p. 4). Postura semelhante se repetiria nas tentativas de impedir a posse dos presidentes Juscelino Kubitschek em 1956 e João Goulart em 1961. Por esses anos, a polarização ideológica da Guerra Fria era intensamente vivenciada em todo o globo, inclusive na América Latina. Se a Revolução Russa parecia ter encerrado a consagração do sentido moderno de revolução, invertendo sua ênfase anterior de um movimento esperado para um inovador, as também "revoluções" chinesa e cubana contribuíram para um balanceamento, em escala global, do termo em direção a um espectro ideológico à esquerda que, como vimos, não era majoritário na história do conceito no Brasil (BRANDÃO, 2003BRANDÃO, Carlos Alberto. A influência da Revolução Cubana sobre a esquerda brasileira nos anos 60. In: MORAES, João Q. de & REIS, Daniel A. (org.). História do Marxismo no Brasil, v. 1. 2ª edição revisada. Campinas: Editora Unicamp, 2003, p. 259-316.; REIS, 2003RIBEIRO, Gladys Sabino & PEREIRA Vantuil . O Primeiro Reinado em revisão. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (org.) O Brasil Imperial: 1808-1831, v. 1. 3ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2014, p. 137-173.). A Revolução Cubana, inclusive, levou os Estados Unidos a redobrar suas atenções ao sul do continente, vindo a influenciar diretamente nos destinos das soberanias nacionais (FICO, 2008FICO, Carlos. O grande irmão: da Operação Brother Sam aos anos de chumbo: o governo dos Estados Unidos e a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira , 2008.; LOUREIRO, 2014LOUREIRO, Felipe Pereira. The alliance for or against progress? US-Brazilian financial relations in the early 1960s. Journal of Latin American Studies, Cambridge, v. 46, n. 2, p. 323-351, maio 2014. ISSN 0022-216X. Disponível em: <https://bit.ly/30KMNzr>. Acesso em: 12 jan. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.1017/S0022216X14000029.
https://bit.ly/30KMNzr...
).

Ao longo da década de 1950 e no começo da de 1960, a teoria da revolução de base marxista passaria por revisões e readequações tanto no âmbito programático da esquerda brasileira quanto num dos meios intelectuais mais proeminentes do período, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Em torno do instituto, respeitado o pluralismo teórico e ideológico de seus membros, havia certo consenso quanto ao papel inconformista do intelectual diante do estado de coisas do país (TOLEDO, 2007TORRES, Luis Fernándes. Un texto fundacional de Reinhart Koselleck: introducción al Diccionario histórico de conceptos políticos-sociales básicos en lengua alemana. Anthropos, Barcelona, n. 223, p. 92-105, 2009.). Nota-se tal postura, por exemplo, em Álvaro Vieira Pinto, preocupado com a construção de um pensamento autônomo original, capaz de compreender os condicionamentos históricos do atraso do Brasil: "Torna-se patente que a consciência crítica da realidade nacional é requisito imprescindível para a revolução que venha arrancar o país do estado de subdesenvolvimento econômico" (PINTO, 1960PINTO, Rolando Morel. Século XVIII. In: SPINA, Segismundo (org.). História da língua portuguesa. Cotia: Ateliê Editorial, 2008, p. 355-398., p. 94). Nesse sentido, o autor enxergava na dominação imperialista sobre o conjunto da economia brasileira o grande entrave para o desenvolvimento. A seu ver, um dos processos fundamentais para uma revolução democrática nacional seria a constituição de uma ideologia do desenvolvimento "que vinculada às massas, por elas compreendida e incorporada" desencadeasse um movimento social "de que o aspecto econômico" seria "apenas um setor", que terminasse por fazer a comunidade "ascender a outro plano de existência histórica. Nisso consiste a sua revolução nacional" (PINTO, loc. cit.).

Nessa época era possível entender que o desenvolvimento econômico não era suficiente para contornar as desigualdades sociais no país. Assim, na visão de uma voz política progressista como a de San Tiago Dantas, era urgente construir estratégias e alianças que possibilitassem as reformas de base no país, entre elas a tributária e a agrária. Em 1962, afirmava:

temos que realizar no nosso País, como em todos os países subdesenvolvidos que têm nossas características políticas, uma autêntica revolução democrática. Esta revolução é que nos salvará de uma revolução extremista e antidemocrática. Ela é que consolidará as nossas instituições. (apud GOMES, 1994GOMES, Ângela de Castro. Trabalhismo e democracia: o PTB sem Vargas. In: GOMES, Ângela de Castro (org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 133-160., p. 149)

A busca de uma "autêntica" (i.e., popular) revolução brasileira encontrava guarida também em importantes elaborações intelectuais militantes que, articulando campos como os da história, da sociologia e da economia, posicionavam conceitos de revolução no cerne de suas preocupações, articulando o conceito a outros como desenvolvimento e democracia. Exemplos marcantes dessas elaborações são obras como as de Nelson Werneck Sodré (1958)STARLING, Heloisa M. & LYNCH, Cristian E. C. República/Brasil. In: FERNÁNDEZ SEBASTIÁN, Javier (dir.). Diccionario político y social del mundo iberoamericano, v. 1. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales , 2009, p. 1282-1292., José Honório Rodrigues (1965)SCHWARCZ, Lilia M. & STARLING, Heloisa M. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras , 2015., Caio Prado Júnior (1966)PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1966. e Florestan Fernandes (1975)FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1975..

Expressando conceitos nem sempre convergentes para uma revolução democrática, popular ou brasileira, tais autores seriam - com a exceção de Rodrigues - combatidos por protagonistas e apoiadores civis e militares do golpe de 1964, que derrubou o governo eleito de João Goulart e instaurou no Brasil uma ditadura que duraria mais de duas décadas. Editoriais de jornais como O Globo defenderam que a ação de 1964 teria se dado dentro da legalidade e que aquilo que passaram a chamar - em uma expressão muito em voga no Brasil atual - de "revolução brasileira de 31 de março" (O ESTADO..., 1966O ESTADO DE S. PAULO. São Paulo: Grupo Estado, n. 28097, 20/11/1966., p. 1) teria sido responsável por livrar o Brasil de um "Governo irresponsável" que estaria arrastando o país "para rumos contrários à sua vocação e tradição", tornando-o "comunista" (O GLOBO, 1964O GLOBO. Rio de Janeiro: Editora Globo, n. 11825, 02/04/1964., p. 1). Um grande número de textos de propaganda oficial, de imprensa e de opinião endossaria essa versão da história, com o ativo apoio dos governos dos Estados Unidos que, por essa época, deram suporte não apenas à instauração da ditadura no Brasil, mas também em outros países latino-americanos. Um exemplar folheto comemorativo elaborado em 1977 pelo Ministério da Defesa afirmaria que o golpe de 1964

era a Revolução Democrática Brasileira. A Revolução pelas armas. Numa visão imediatista, era a contrarrevolução, a guerra contrarrevolucionária. Numa visão histórica mais profunda, a retomada da revolução democrática brasileira, enriquecida pela lição dos tempos e pela mensagem social dos nossos dias (...) Este foi o milagre da vitória em poucos dias, sem derramamento de sangue. O milagre da coesão. O milagre da vontade popular. O milagre que é preciso compreender e respeitar, para assegurar a coesão, já ameaçada, e consolidar a vitória democrática. (apud CARDOSO, 2011CARDOSO, Lucileide Costa. Os discursos de celebração da "Revolução de 1964". Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 31, n. 62, p. 117-140, dez. 2011. ISSN 1806-9347. Disponível em: <https://bit.ly/2UjNeOG>. Acesso em: 12 jan. 2018. doi: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-01882011000200008.
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, p. 124-125)

Mais uma vez, as circunstâncias históricas encarregadas de modificar parcialmente o conceito de revolução no Brasil - circunstâncias estas que se valeram da trajetória anterior do conceito e de sua disponibilidade presente como ferramenta de ação política - reservariam à posteridade um legado.

Conclusão: atualidade do conceito

Em meio à profunda crise política, institucional e econômica atravessada pelo Brasil em 2019, vemos indivíduos e grupos sociais construtores de uma memória positiva do Golpe de 1964 se expressarem publicamente e com desenvoltura, e os partidários de uma nova ditadura no Brasil tornarem-se cada vez menos inexpressivos excêntricos. Muitos brasileiros adeptos dessas posições conquistaram pelo voto direto, nas eleições de 2018, cargos políticos nas casas legislativas estaduais e nacionais, como governadores de Estado e até mesmo como presidente da República, no caso de Jair Bolsonaro. Aqui, em meio à farta utilização política de redes e recursos digitais, como o WhatsApp, e em curiosas combinações com mídias convencionais, a revisão, a manipulação, o esquecimento e a invenção da história desempenharam - e continuam a desempenhar - papel notável. Nesse contexto, não parece haver qualquer instância ativa capaz de obstar um processo aparentemente incontrolável. 1 1 A incapacidade da Justiça Eleitoral de desempenhar tal papel ganhou ampla divulgação nacional a partir da reportagem intitulada "Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp", de Patrícia Campos Mello para a Folha de S.Paulo de 18/10/2018.

Alguns dos mesmos veículos de comunicação que apoiaram a quebra da legalidade política em 1964, como O Estado de S. Paulo e O Globo, agora com o endosso de novas vozes, trataram de justificar diariamente a derrubada de Dilma Rousseff, ocorrida em 2016. Por exemplo, um blog de extrema direita intitulado "Homem Culto", cuja página ostentava em começos de 2018 o título "Não deixe que um professor comunista adote seu filho", exibia uma foto de manifestantes segurando uma faixa com os dizeres "intervenção militar já", e traz um texto intitulado "história da revolução [sic] 1964". Sua cifra de visitantes - não de todo confiável - exibia, em janeiro de 2018, mais de 5 milhões de visualizações. Curiosamente, esse mesmo espectro político é capaz de associar revolução com algo negativo, como ocorre com frequência com a também autoproclamada "revolução bolivariana" da Venezuela. Na página do Facebook do Movimento Brasil Livre - uma organização de direita cada vez mais poderosa no Brasil - podia-se ler, em julho de 2017: "Já passou da hora de líderes mundiais tomarem ações contra a ditadura genocida de [Nicolás] Maduro. A Venezuela sofre com fome, pobreza e a repressão do governo socialista. [Donald] Trump está correto em tomar ações contra a 'revolução bolivariana'" (MBL, 2017).

Em 2019, em meio a uma série de acontecimentos políticos cuja sucessão em ritmo vertiginoso internamente agrava o cenário de crise entre os poderes constituintes da república e externamente indica um abrupto realinhamento de forças conservadoras que provoca tensões na fronteira com a Venezuela, surgiu mais um episódio relacionado à memória da ditadura militar no Brasil: no dia 25 de março, por meio do porta-voz da Presidência da República, Jair Bolsonaro determinou ao Ministério da Defesa que se fizessem "comemorações devidas" no dia 31 de março - aniversário do Golpe de 1964 -, que se avizinhava. Em meio a fortes repercussões negativas em parcelas significativas da opinião pública do país, no dia 31 a Presidência fez circular em seus canais oficiais de comunicação uma peça audiovisual na qual um homem celebrava a data, mas sem fazer uso de conceitos comumente a ela associados, como revolução, contrarrevolução ou golpe, limitando-se a afirmações como as de que, em 1964, o Exército brasileiro havia sido "conclamado por jornais, rádios, TVs e principalmente pelo povo na rua" para salvar o país da ameaça comunista, ou que "não dá para mudar a história" (BOLDRINI, 2019BOLDRINI, Angela. Planalto e Eduardo Bolsonaro divulgam vídeo que celebra golpe de 64. Folha de S.Paulo, São Paulo, 31/03/2019, Poder. Disponível em: <https://bit.ly/2CKOR0g>. Acesso em: 3 abr. 2019.
https://bit.ly/2CKOR0g...
).

Por muitos lados, operações político-discursivas e lutas políticas concretas, agudas e dramáticas se empenham em associar conceitos cuja história não é recente no Brasil. Democracia, povo, soberania, anarquia, reforma, desenvolvimento, república, liberdade, entre outros, continuam a estabelecer combinações prováveis e improváveis, servindo aos mais diferentes propósitos e disputas, e conferindo ao conceito de revolução - por reiteração, ressignificação ou até mesmo exclusão - uma centralidade histórica inequívoca. Nem que seja como uma farsa, uma revolução feita "antes que o povo a faça", como às vésperas da última ditadura escreveu o poeta Affonso Ávila. 2 2 "Frases-feitas" foi apresentado ao público em 1963 como poema-cartaz durante a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda UMG em Belo Horizonte. Posteriormente foi publicado no livro O Código de Minas & Poesia Anterior (1969).

Por fim: o que há de não nacional ou de não particularmente brasileiro nessa história do conceito de revolução no Brasil? Sem dúvida, as breves páginas aqui encerradas oferecem apenas um esboço de uma história muito mais ampla e que continua a demandar investimento em pesquisa e análise, sobretudo no tocante ao século XX, ainda pouco explorado pelos adeptos da abordagem da história dos conceitos. No entanto, percebe-se que, para efeitos da caracterização de uma "modernidade" nos termos propostos por Reinhart Koselleck (TORRES, 2009TRIBUNA DA IMPRENSA. Rio de Janeiro: [s.n.], n. 132, 01/06/1950.) e estendidos ao mundo ibero-americano por Javier Fernández Sebastián (2009b), o conceito de revolução em sua história brasileira apresenta indícios contundentes de haver se democratizado (uma vez que ampliou progressivamente sua incidência quantitativa e seu alcance social), temporalizado (pois passou a se referir tanto a um certo tipo de evento, a um evento específico ou a uma categoria analítica), ideologizado (pois ampliou, também progressivamente, suas cargas e funções ideológicas), politizado (pois constituiu-se em ferramenta de luta política), emocionalizado (porque continua a carregar consigo expectativas depositadas no futuro, integrando-as aos fatores de mobilização coletiva), internacionalizado (afinal, como vimos, sua dinâmica nunca esteve isolada de vetores históricos advindos de outras partes do mundo) e, paradoxalmente, nacionalizado (uma vez que, desde o século XIX, passou a existir em uma lógica nacional brasileira que possibilitou a efetividade política de suas muitas especificidades em contextos simultaneamente locais e globais).

A inserção de um conceito em uma lógica histórica moderna não significará, evidentemente, a descabida presunção de que o Brasil é moderno para todos os efeitos, ou que tenha logrado se modernizar ao longo de sua trajetória, menos ainda que qualquer de suas revoluções tenha feito triunfar a liberdade, o povo, a democracia, a república ou o desenvolvimento. As revoluções do conceito revolução, na história do Brasil, apenas indicam uma história em aberto, ainda em curso. Uma história que, para ser transformada, necessita ser compreendida.

  • *
    Uma versão anterior deste texto foi publicada com o título "Revolución en Brasil: la historia de un con cepto, un concepto en la historia (siglos XVIII-XXI)" no livro organizado por Fabio Wasserman, El mundo en movimiento: el concepto de revolución en Iberoamérica y el Atlántico norte (siglos XVII-XX). Buenos Aires: Niño y Dávila Editores, 2019. Nesta nova versão, ampliamos um pouco mais a análise para o con texto dos anos 50 e 60 do século XX. Incorporamos novas referências bibliográficas atendendo sugestões dos pareceristas da Revista de História, aos quais agradecemos. Além de pequenas correções e revisão de algumas passagens, a parte final do artigo foi reatualizada em razão das transformações da conjuntura política do nosso país após as eleições de 2018. Declaramos que ambos os autores participaram de todas as etapas de elaboração do artigo, tais como levantamento de dados, pesquisa bibliográfica, sustentação teórica e redação. Todas as obras e todos os documentos utilizados na pesquisa e na elaboração do artigo são citados nas notas e na bibliografia. Foram consultados os acervos digitais da Hemeroteca da Biblioteca Nacional, do grupo Estado e editora Globo.
  • 1
    A incapacidade da Justiça Eleitoral de desempenhar tal papel ganhou ampla divulgação nacional a partir da reportagem intitulada "Empresários bancam campanha contra o PT pelo WhatsApp", de Patrícia Campos Mello para a Folha de S.Paulo de 18/10/2018.
  • 2
    "Frases-feitas" foi apresentado ao público em 1963 como poema-cartaz durante a Semana Nacional de Poesia de Vanguarda UMG em Belo Horizonte. Posteriormente foi publicado no livro O Código de Minas & Poesia Anterior (1969).

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Editado por

Editores responsáveis pela publicação: Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2018
  • Aceito
    09 Abr 2019
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