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SEGUIR CONTANDO HISTÓRIAS: O GESTO ANTROPOFÁGICO E O SIGNIFICADO EXISTENCIAL DA HISTÓRIA NA OBRA DE AILTON KRENAK1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Artigo originado de tese de doutorado defendida, em 2020, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, e que contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – processo: 88882.459657/2019-01.

TO KEEP TELLING (HI) STORIES: THE ANTHROPOPHAGIC GESTURE AND THE EXISTENTIAL MEANING OF HISTORY IN AILTON KRENAK’S WORK

Resumo

Na tradição intelectual brasileira, vários autores se questionaram sobre certa dificuldade perene no país em relação ao enfrentamento da sua própria história. Buscando, por vezes, evadir-se dela ou superar essa história a partir da ficção de um outro a ser alcançado, esse tema ganhou particular atenção quando, no modernismo, Oswald de Andrade abordou essa dificuldade e viu no gesto antropofágico uma potente imagem para reinventar nossa relação com a história e com o que nos seria próprio e outro. No artigo, propomos revisitar o gesto antropofágico em sua relação com a história e desdobrá-lo juntamente a uma perspectiva mais recente, aquela de Ailton Krenak, quando este propõe, por intermédio de um entendimento da história enquanto força existencial, refazer o encontro entre a sociedade moderna brasileira e a experiência de comunidades tradicionais.

Palavras-chave
Antropofagia; História; Tempo; Krenak; Dupla consciência

Abstract

In the Brazilian intellectual tradition, several authors have questioned themselves about any perennial difficulty of the country concerning its history. People sometimes seek to evade or overcome this history from the fiction of a difference to be reached, and this theme gained particular attention when, in the Modernist movement, Oswald de Andrade approached this difficulty and saw in the anthropophagic aspect a powerful image to reinvent our relationship to history and with what would be particular and different in our experience. In this article, we propose to review the anthropophagic aspect related to history and explore it along with a more contemporary perspective from Ailton Krenak, when he proposes, through an understanding of history as an existential force, to redo the encounter between modern Brazilian society and the traditional communities experience.

Keywords
Anthropophagy; History; Time; Krenak; Double Consciousness

Sentimentos de incompletude, inadequação e atraso parecem ter sido uma tópica no interior da experiência do tempo e da história que vigoraram em contextos pós-coloniais.3 3 Algo semelhante foi notado por Dipesh Chakrabarty quando, a partir do caso indiano, observa que, a depender da espécie de narrativa histórica que se adota, o resultado observado é a “tendencia a interpretar la historia india a partir de conceptos como carencia, falta o incompletud que se convierte en ‘inadecuación’”. CHAKRABARTY, 2008, p. 63. A decorrência mais fundamental desse quadro parece ser a vivência de uma dualidade marcada por fazer, mas não integralmente, parte de uma determinada história, narrativa ou trajetória temporal. Tendo, simultânea e esquizofrenicamente, um caminho ditado (incentivado, louvado) e interditado, afinal, esses contextos jamais serão capazes de alcançar integralmente as virtudes que são definidas por entes com histórias e percursos temporais próprios e diferentes daqueles que ambicionam se desenvolver.

No Brasil, decididamente este não é um tema qualquer. Embora possa aparecer com as mais diversas situações e definições, há muito tempo esse tema move intelectuais e personagens públicos. Como no caso em que Carlos Drummond de Andrade, recordando passagens de Minha formação (1900), nas quais Joaquim Nabuco se queixa de que “o Novo Mundo, para tudo que o que é imaginação estética ou histórica, é uma verdadeira solidão”, alega para Mário de Andrade:

não sou ainda suficientemente brasileiro. Mas às vezes me pergunto se vale a pena sê-lo. [...] O Brasil não tem atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis e velhacos. [...] Sou hereditariamente europeu, ou antes: francês.

Ao que Mário contestava:

você fala na “tragédia de Nabuco, que todos sofremos!”. Engraçado! Eu há dias escrevia numa carta justamente isso, só de que maneira mais engraçada de quem não sofre com isso. Dizia mais ou menos: ‘O doutor [Carlos] Chagas descobriu que grassava no país uma doença [transmitida por barbeiros] que foi chamada moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença, mais grave, de que todos nós estamos infeccionados: a “moléstia de Nabuco”. É preciso começar esse trabalho de abrasileiramento do Brasil (ANDRADE, Mário de. apud BOTELHO, 2012, p. 15BOTELHO, Andre. De olho em Mário de Andrade: uma descoberta intelectual e sentimental do Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2012.).

Se a brasilidade de Mário de Andrade não é aqui, segundo André Botelho, “sinônimo de nacionalismo ingênuo e tampouco de patriotismo”, mas, sim, fruto “das tensões e ambiguidades da sua relação com o Brasil, constitutivas de seu pensamento e de sua ação, como muitas delas são constitutivas do próprio Brasil” (BOTELHO, p. 109), então, combater a “moléstia de Nabuco” parece ser uma tarefa fundamental para “tornar o Brasil mais familiar aos brasileiros” (BOTELHO, p. 106). Sem eliminar suas contradições, tal tarefa parece apontar para uma virtude decisiva: aquela de expor, para uma tradição acostumada a classificar sua própria cultura por características como a falta, a incompletude e o atraso, as facetas mais complexas e diversas que foram até ali obscurecidas.

É primordial, assim, compreender as características do percurso de formação dessa postura que, se, por Mário de Andrade, foi chamada de “moléstia de Nabuco”, bem mais recentemente foi conceitualizada, pela psicanalista Maria Rita Kehl, como o “bovarismo brasileiro”. Com isso, a psicanalista identificava o processo pelo qual o burguês oitocentista já não mais se observava como continuador de uma tradição, mas sim fundador de uma nova linhagem, operando uma verdadeira ruptura com a experiência então vigente. É essa reviravolta subjetiva do burguês moderno, que passa a negar a tradição e ocupar sozinho o lugar do herói mítico, tão detalhado na obra de Flaubert a que se faz alusão, que lança as bases para um desejo de “tornar-se outro”, a despeito de qualquer circunstância histórica, geográfica etc.

O “tornar-se outro” desse novo sujeito prima, sobretudo, pelo rebaixamento da história a mero obstáculo facilmente superável em prol de alcançar o mesmo estatuto de um “outro”, por vezes, idealizado e não observado em toda sua complexidade. Tal gesto dista radicalmente do “tornar-se outro” exigido em certo momento pelo gesto antropofágico de Oswald de Andrade. Pois esse gesto a todos, em suas virtudes, devora; ao contrário da seletividade do gesto moderno que, ao escolher um dado “outro” como sua fonte de desejo e emulação, efetua o apagamento de “outros” que, na antropofagia, seriam fundamentais para a constituição de um sujeito plural, complexo e que se materializa na poética rimbaudiana na qual o “eu é um outro”.

Em palavras mais concretas, decorrências dessa nova subjetividade parecem, segundo Kehl, se materializar

nas sociedades da periferia do capitalismo, que se modernizaram tomando como referência as revoluções industrial e burguesa europeias sem, no entanto, realizar nem uma nem outra, a relação com os ideais passa forçosamente pela fantasia de “tornar-se um outro”. Só que esse outro é, por definição, inatingível, na medida em que o momento histórico que favoreceu a modernização, a expansão e o enriquecimento dos impérios coloniais não se repetirá (KEHL, 2018, p. 30-31KEHL, Maria Rita. O bovarismo brasileiro: ensaios. São Paulo: Boitempo, 2018.).

Assim, o principal efeito da fantasia moderna e periférica de “tornar-se outro”, a despeito das condições objetivas que levaram a isso, é o obscurecimento de caminhos próprios, não entendendo a particularidade e a potência de sua formação histórica. Caminhos “emancipatórios, capazes de resolver as contradições próprias de sua posição no cenário internacional – a começar pela dependência em relação aos países ricos” (KEHL, p. 31). Oswald de Andrade “brincou” com isso no Manifesto antropófago, nos vários aforismos em que, contra a esquizofrenia de manter os olhos fincados apenas no “outro externo” e em suas histórias, que começam no cabo Finisterra (a Revolução Francesa, o comunismo e outras realizações que, de modo jocoso, aparecem no Manifesto). Afinal, antes dos portugueses chegarem ao Brasil, o Brasil já tinha descoberto a felicidade e, assim, “contra todos os importadores de consciência enlatada”, o Manifesto apresenta “a existência palpável da vida”, além da “mentalidade pré-lógica para o Sr. Levy Bruhl estudar” (ANDRADE, 1978 [1928], p. 14ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.). Aqui, argumentando com Beatriz Azevedo, vemos que a referência irônica ao filósofo francês Lucien Lévy-Bruhl se deve ao fato de suas teses, especialmente aquelas expostas em A mentalidade primitiva (1922) e em L’Âme primitive (1927), qualificarem enquanto pré-lógica a “mentalidade de sociedades inferiores”. As teses de Lévy-Bruhl, que receberam posteriormente severas críticas da disciplina antropológica contemporânea e de Lévi-Strauss, tiveram importante impacto no modernismo brasileiro (AZEVEDO, 2015, p. 123AZEVEDO, Beatriz. Antropofagia: palimpsesto selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2015.).

A partir do chiste, vê-se que a terapêutica antropofágica não pretende oferecer uma dose de identidade/identificação e um caminho seguro ao qual seguir e copiar àquele sujeito (que pode ser coletivo) que vê os seus desejos de “tornar-se outro” permanentemente negados. Para o sujeito em crise e constantemente frustrado com a interdição de suas possibilidades, não se oferece um paliativo, um conforto identitário que asseguraria o seu lugar ao sol junto aos outros sujeitos emulados. Oferece-se, na verdade, a diferença. A imagem de um “outro” que tensione permanentemente os desejos desse sujeito e questione os próprios caminhos escolhidos por ele, não sendo estes únicos, lineares e predefinidos.

Contra a paralisia e a homogeneização, a terapêutica antropofágica oferece uma história errática, viva e, por longo período, reprimida. Algo semelhante àquilo que outra psicanalista, Suely Rolnik, chamou de “reserva tropical de heterogênese”, ou seja, “uma rica biodiversidade de que o Brasil disporia não só no reino vegetal e animal, mas também no humano, principalmente no campo da subjetividade”, capaz de revitalizar, a partir da diferença, os caminhos de uma civilização que se voltava para a homogeneização4 4 É evidente também que a crítica de Oswald ao processo homogeneizador da modernidade está bastante próxima de certa hipervalorização da mestiçagem, talvez mesmo da “democracia racial”, que, na década de 1940, parecia animar o debate intelectual brasileiro. Assim, vemos em textos, como Aqui foi o sul que venceu, o elogio da cordialidade e de uma “civilização luso-tropical que nos ensinou a igualdade prática das raças”, e em O sol da meia noite, quando, para efetuar a cura da Alemanha pós-nazista, Oswald oferecia a “educação pelo mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no ‘melting-pot’ do futuro. Preciso mulatizar-se” (ANDRADE, 1971, p. 51-62). .

Ao contrário, portanto, de uma simplória positivação do particular, da margem ou da periferia, o que apenas reforçaria a sede por identidades homogêneas, a terapêutica antropofágica propõe a diferença como força ativa na reconfguração da experiência, operando uma alteração não apenas de conteúdo, mas nos próprios termos da identidade:

o que haveria de vital nessa reserva não é uma imagem a mais da subjetividade, nem uma variedade de imagens, para alimentar o mundo em sua ânsia de consumo de fguras que possam servir de identidade. Pelo contrário, essa reserva conteria a fórmula de uma vacina contra a tendência dominante à homogeneização, tanto em sua necessidade de identidades globais quanto em seus efeitos colaterais de reivindicação de identidades locais ou de dissolução no caos: a vacina de heterogênese provocaria nas subjetividades um desinvestimento do modo identitário (ROLNIK, 1996, p. 10ROLNIK, Sueli. Antropofagia e esquizoanálise. Texto apresentado no colóquio Encontros Internacionais Gilles Deleuze. Brasil, 10-14 de junho de 1996.).

O desinvestimento do modo identitário tinha na história um componente fundamental. Esta seria decisiva aqui, nietzschianamente, na medida em que contribuísse para a recriação da vida, apostando na diferença como elemento vitalizador. Reconhecendo a importância do esquecimento, não seria todo e qualquer elemento do passado capaz de produzir um efeito disruptivo sobre a temporalidade. História e diferença atuariam, assim, no tensionamento de um presente que, desprovido dessas forças anti-hegemônicas, se veria entregue à homogeneização que grandes estruturas históricas como o patriarcado e a filosofa messiânica estimulariam.

A conclamada “reabilitação do primitivo” presente no gesto antropofágico, atuava, de tal forma, como força de choque diante de uma dupla consciência5 5 Uma vertente que pode nos ajudar a pensar a noção de dupla consciência (“double consciousness”) está mais próxima da obra de W. E. B. Du Bois, escritor negro norte-americano que, em 1903, publica seu The souls of black folk, com uma pergunta bastante precisa: qual era o significado de ser negro no sul dos Estados Unidos no início do século XX? A constatação de Du Bois vai à raiz da mencionada dinâmica segundo a qual a dupla consciência sempre pressupõe uma ambivalência de difícil resolução que, na maioria das vezes, se concretiza na seguinte pergunta: “¿por qué Dios me hizo un paria y un extraño en mi propia casa?” (DU BOIS, 2001 [1903], p. 7). Tal refexão foi levada adiante mais recentemente por Paul Gilroy, sobre o particular significado da modernidade na experiência da população negra. Gilroy identifica uma dinâmica dupla segundo a qual “la historia recente de los negros [muestra una] población presente en el mundo occidental moderno pero no necessariamente parte de él”. Subjazia, nessa população, uma particular dificuldade em conciliar as afirmações de identidade nacional, tão características da modernidade, e outros tipos diferentes de subjetividade e identificação. Permanecia, sempre segundo Gilroy, um jogo constante de dentro e fora (GILROY, 2014, p. 49). num Brasil incapaz de se auto-observar que não de maneira míope. Ao menos era o que aparecia em pequena carta redigida por Oswald e endereçada ao “Encontro dos Intelectuais”, realizado no Rio de Janeiro, poucos meses antes de sua morte (ANDRADE, 1992 [1954]ANDRADE, Oswald de. Estética e política. São Paulo: Globo, 1992.). Desde os tempos da Revista de Antropofagia (1929), porém, a terapêutica antropofágica já dava sinais de que não lhe interessava essa reabilitação como puro gesto identitário, no sentido de uma imagem fixa do “primitivo” a ser celebrada e cultuada, tal qual a reabilitação do primitivo promovida pelo grupo Verdamarelo. Nas páginas da revista, era possível, assim, ler que:

os verdamarelos querem o grilhão e a escravatura moral, a colonização do europeu arrogante e idiota e no meio disso o Guarani do Alencar dançando valsa. Uma adesão como essa não nos serve de nada, pois o antropófago não é índio de rótulo de garrafa. (ANDRADE, 1928ANDRADE, Oswald de. Uma adesão que não nos interessa. In: Revista de Antropofagia, n. 20, n.p., 1928.)

Quando se tratava do olhar externo, a terapêutica antropofágica para a dupla consciência sugeriria que, em países como o Brasil, se pressuporia que o olhar para a Europa estaria relacionado aos relatos de falência de uma civilização e na medida em que esses relatos terminassem apontando para o “nosso índio” como o mensageiro do futuro, como Oswald já havia escrito em “Mensagem ao antropófago desconhecido”: “o homem europeu falou demais. [...] É preciso ouvir o homem nu”. Em resposta a Tristão de Athayde, pseudônimo do crítico católico Alceu Amoroso Lima, que acusara Oswald de ser demasiado fiel às vanguardas europeias de então, Oswald afirmava:

o que vastamente me interessa nesses homens [Keyserling e Spengler] seja qual for a importância exata deles ou a sua atualidade horária, é a confssão que todos eles trazem da falência de toda cultura artificial humana que, aliás, foi a guerra que pôs em xeque. [...] O que me interessa pois nessa curiosa Europa que para não morrer se recolheu à única trincheira que lhe restara, a do homem “primitivo” a fim de dali partir – você verá – para qualquer construção oposta à lamentável Babel da civilização ocidental católico-puritana. O que me interessa é só a “retirada” dessa civilização ocidental, na direção moral e mental do nosso índio. Isso sim, porque dá razão à única coisa que é nossa – o índio (ANDRADE, 1992 [1929], p. 42-43ANDRADE, Oswald de. Estética e política. São Paulo: Globo, 1992.).

Via-se a história, portanto, mobilizada a partir da “reabilitação do primitivo” com a finalidade da recriação do presente e um futuro que não mais seria apenas aquele de realizar tardiamente um caminho já delineado e com suas possibilidades previamente definidas, como aquele oferecido pela desejada imagem europeia. Menos que apontar para caminhos que, naquela altura, Oswald observava como exauridos, vide a experiência soviética ou aquela do capitalismo burguês ocidental, o futuro apontava para a experiência matriarcal, a “nova idade do ouro” e, com isso, o Brasil era convidado a reavaliar sua experiência histórica e o sentido do seu devir.

Não à toa, no Manifesto Antropófago, emergem determinadas imagens do passado que revelam a natureza do tratamento oferecido por Oswald a fenômenos relativos à historicidade, sempre apontando para uma conexão entre a experiência histórica e a recriação do presente. A mencionada “reabilitação do primitivo”, por exemplo, não expõe um regresso a algumas formas arcaizantes. Trata-se, antes, de escutar um dado passado como fonte de tensionamento e que, mais verdadeiramente, coloque em evidência o elemento ali recalcado e latente, e que vem a aparecer em formas fragmentárias no presente. Uma imagem do passado que parece ainda caminhar em dois sentidos: primeiro, na relação de interdependência temporal com o presente e o futuro por meio da utopia (a Revolução Caraíba) e, segundo, na crítica de um procedimento tão frequente no sistema intelectual brasileiro vivenciado por Oswald, que é a “arqueologia das ausências” (no caso da citação abaixo, as revoluções europeias aqui não realizadas):

queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. [...] Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos (ANDRADE, 1978 [1928], p. 14ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978., grifo do autor).

Mesmo em seus ensaios tardios, como n’A Crise da filosofa messiânica, Oswald realizou operações reveladoras de sua compreensão da historicidade. Na obra mencionada, Oswald opera através da inversão de um conjunto de categorias das quais o “homem do Ocidente” teria se valido durante uma longa duração temporal. Então, se a historiografia nos fez conhecer os principais acontecimentos e legados da civilização ocidental, da Grécia ao século XX – tendo como vetor da narrativa o longo processo de institucionalização do mundo da vida, a narrativa agora se encaminharia para um olhar inverso, isto é, sobre aquilo que se perdeu ao longo dessa trajetória e se colocaria como o objeto por excelência da Errática, uma ciência criada objetivamente para reunir esses fragmentos dispersos na trajetória histórica. A inversão operada deslocaria de tal modo a atenção da historiografia para um determinado conjunto de fenômenos que poderiam ser chamados de latentes, isto é, em algum grau presentes nessa trajetória, mas que foram assim reprimidos e ocultados de modo a retirar da história seu conteúdo revoltoso, seu inacabamento constitutivo, para afirmar um certo caminho evolutivo a ser mantido e justificado (NETO; GAIO, 2020NETO, Mauro Franco; GAIO, Henrique Pinheiro Costa. Antropofagia em dois tempos: inverter a história, tensionar o presente. In: História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, Ouro Preto, v. 13, n. 32, p. 185–220, 2020.).

Na própria Revista de Antropofagia o procedimento da inversão deu o tom da concepção de história presente no gesto antropofágico. O escritor potiguar Jayme Adour da Câmara provocava, em 1929, com seu artigo “História do Brasil em 10 tomos”, ao afirmar que “o ‘surrealisme’, comunicou ao espírito francês a mais intensa violação, já existia no Caraíba como um estado latente” (CÂMARA, 1929CÂMARA, Jayme Adour da. História do Brasil em 10 tomos. In: Revista de antropofagia, 2º ano, nº4, 1929.). Câmara iria ainda além, criando uma longa cadeia temporal na qual a América teria revelado à Europa o homem natural, livre e simples, capaz de impressionar Montaigne, inspirar a escrita da Enciclopédia e do “contrato social”, por Rousseau. No mesmo ano, mas em algumas edições anteriores, Oswald Costa afirmava, em sua “Revisão necessária”, que “a nossa história tem sido mal contada. Exige uma revisão”. Remetia-se à escolha, equivocada na sua visão, de se estudar a cultura brasileira a partir da “falsa cultura e falsa moral do ocidente”. Urgia, segundo Costa, que a terapêutica antropofágica entrasse em cena com sua revisão histórica a fim de reverter o processo iniciado quando “nas mãos do índio puseram um terço e o catecismo [...] e na inocência dele viram o fantasma do pecado sexual” (COSTA, 1929COSTA, Oswaldo. Revisão necessária. In: Revista de antropofagia, 2º ano, nº1, 1929.).

No interior da noite colonizadora, “nossa noite sem lua e que dela precisamos sair”, um papel decisivo estaria reservado não só ao Brasil, mas à América Latina, de “história rica, dramática, colorida e coriscada de gestos libertários” (ANDRADE, 1971, p. 63ANDRADE, Oswald de. Ponta de lança: polêmica. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1971.). A nova “idade do ouro” anunciada pela antropofagia pede, de espaços que experimentaram a situação colonial, uma mudança de foco que Oswald resumiu nas seguintes palavras:

não podemos esperar da Europa europeia, para onde vivemos por tanto tempo voltados, com a luz de Paris em nossos espíritos. Foi uma época que terminou. Tínhamos pelo latino americano um desprezo que participava do conhecimento de nós mesmos, de nossos pobres recursos civilizados, perdidos no esmagamento de uma fiança torpe ligada à fome dos imperialismos (ANDRADE, p. 63-64).

Como metáfora da cerimônia guerreira da imolação dos inimigos pelos tupis, como diagnóstico de uma sociedade traumatizada pela repressão colonizadora e incapaz de olhar, que não de maneira míope, para o “outro interno”6 6 Nos casos dos conceitos de “outro interno” e “outro externo”, nos apropriamos aqui de João Cézar de Castro Rocha, que identifica que o século XIX latino-americano é marcado por um duplo vínculo em cada projeto nacional. A situação, um tanto quanto esquizofrênica, é definida pela impossibilidade de executar uma tarefa e, por sua vez, pela necessidade imperiosa de fazê-la. Para ir direto ao ponto, Castro Rocha alude aqui à situação mediadora da Europa para a América Latina neste contexto de nascimento dos países no qual o “velho continente” se coloca como um “outro externo” fundamental, que dita e interdita a trajetória histórica latino-americana. A pergunta central de Castro Rocha assim se coloca: quais seriam as consequências da presença dominante desse tipo de relação no plano da interdividualidade coletiva latino-americana? Fundadas à imagem de um “outro” quase absoluto, a formação social latino-americana teria, na sua raiz, a exploração sistemática e a invisibilização social daquilo que Castro Rocha opta por chamar “outro outro” ou “outro interno”, ou seja, o negro escravizado, o indígena submetido, o mestiço condenado à impureza. Cf. CASTRO ROCHA, 2017. , a antropofagia se completava, então, como terapêutica que se propunha a desafiar a dupla consciência, sempre a partir da provocativa apresentação de histórias obscurecidas, e de maneira a intensificar uma reavaliação integral da experiência histórica de espaços como aqueles, brasileiro e latino-americano, em consonância com o seu devir.

“É preciso ouvir o homem nu”

Talvez seja a possibilidade de se seguir contando histórias uma das variáveis possíveis para que se desafem as dinâmicas inerentes à dupla consciência. Como já observado, a dupla consciência estaria na origem de alguns fenômenos particularmente presentes em espaços advindos de situações coloniais, como aquele da invisibilização social de um “outro interno” diante de uma inclinação favorável a um “outro externo”, consag rado por sua associação intrínseca a um caminho evolutivo e irrefreável do tempo. Além disso, e como decorrência de tal fenômeno, a dupla consciência e a percepção de um caminho único e de uma história única em direção ao progresso traziam, na sua antessala, o ocultamento e a repressão de uma história que não parecia particularmente atraente na composição do mosaico que levaria nações advindas de contextos coloniais rumo à modernidade. História (ou histórias) que, colocada numa perspectiva temporal, trazia a marca indelével do “atraso” e da diferença que se queria ocultar a fim de não se desestabilizar identidades e imagens de mundo.

Seguir contando história, portanto, e seguir contando a história da diferença, acaba por atuar na contramão dos pretensos desejos de um tempo “chapado”, linear e de uma história única. No diagnóstico de alguém para o qual negação e apagamento formam, na história brasileira, uma experiência bastante viva, “nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. [...] Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos”. Um antídoto contra esse tempo, que busca neutralizar toda força que o distende e, assim, caminhar para o imobilismo, poderia ser contar mais uma história e seguir promovendo um tipo de abertura e tensão indesejadas: “e a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim do mundo” (KRENAK, 2019, p. 26KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.).

Cumpre notar, porém, que adiar o fim do mundo, nesse caso, não se trata de “acenar com uma utopia de mundo recomposto” (KRENAK, 2015, p. 28KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.), como se ainda houvesse saída dentro das formas contemporâneas e a partir de algo “sustentável”. Trata-se, sim, de adiar o fim do mundo com a garantia da possibilidade de existência da diferença diante de um tempo que não se interessa por ser incomodado pelo seu avesso e suas margens. E, para isso, contar mais uma história parece fundamental. Mas não a mesma história. Aquela que, mais do que abrir a historicidade, parece aprisioná-la à “camisa de força” de uma narrativa já predefinida. Uma história que “insistimos tanto e durante tanto tempo em participar [...], [sendo] que na maioria das vezes só limita a nossa capacidade de invenção, criação, existência e liberdade” (KRENAK, 2019, p. 13KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.). Uma história que só pode ser ocupada com as regras do jogo já estabelecidas de antemão, como “essa novidade de todo mundo virar cidadão (de forma compulsória) que tira também das pessoas a possibilidade de elas continuarem vivendo de alguma maneira a memória de sua tradição, de sua cultura” (KRENAK, 2015, p. 212KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Para adiar o fim do mundo, pelo contrário, serviriam exatamente aquelas histórias “que vão sendo esquecidas e apagadas em favor de uma narrativa globalizante, superficial” (KRENAK, 2019, p. 19KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), e que, por muito tempo, nos pareceram datadas ou superadas. Talvez seja exatamente seu conteúdo “de outro tempo”, anacrônico, que traz, nesse momento, um potencial irruptivo para um tempo carregado de si mesmo e das suas próprias formas.

Se, por muito tempo, por exemplo, “éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados de ruptura ou da extinção dos sentidos das nossas vidas, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda” (KRENAK, 2019, p. 45KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.). A experiência do fim do mundo e, por consequência, as diversas histórias que emergem de povos que vivenciaram o que, para a “civilização”, só agora parece ser uma crise, parecem se colocar como momentos propícios para pensar se o fim do mundo já não existiu outras vezes, quando, por exemplo, a história e o tempo foram capturados, colonizados e traduzidos hierarquicamente em termos de progresso e atraso.

Caberia perguntar, na esteira de Ailton Krenak, se, diante do “atual fim do mundo”, a potência de transformação não viria justamente daquilo que fora negado pela coluna temporal moderna e que, justamente por isso, isto é, por não trazer a imagem e a semelhança, mas sim a diferença, de um mundo refém de sua própria autoconsciência, poderia tensionar esse mundo nas suas próprias determinações. Renunciar, por exemplo, à ideia de que “sonhar é abdicar da realidade, renunciar ao sentido prático da vida” (KRENAK, 2019, p. 52KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.). Sob tal baliza, o “tempo do mito, tempo em que é possível tudo, em que é possível que os mundos se intercambiem” (KRENAK, 2017, p. 73KRENAK, Ailton. Alianças vivas. Coleção Tembetá. Rio de Janeiro: Azougue, 2017.), não se colocaria como uma falsificação da realidade, mas mais propriamente como “uma janela” (KRENAK, 2017, p. 74KRENAK, Ailton. Alianças vivas. Coleção Tembetá. Rio de Janeiro: Azougue, 2017.), algo que Oswald de Andrade chegou a chamar de “esquinas da história”. Lá nas esquinas onde determinadas compreensões se perderam para favorecer um tronco que se sedimentou e se alongou historicamente, obscurecendo outras trajetórias, mas que sempre permaneceram ali na espera de serem (re)tematizadas. Assim, “quando nós narramos as histórias antigas nós criamos o mundo de novo, limpamos o mundo” (KRENAK, 1992, p. 204KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.).

Reencontrar o tempo do mito traria, no seu seio, a necessidade de também discutir as políticas temporais modernas que, arbitrariamente, tentaram escalonar o que pertenceria a um passado, aquilo que já foi e não volta mais, e o que seria contemporâneo e digno de se carregar para o futuro. Discutir tais políticas tornaria possível considerar que, para “reencontrar o tempo do mito, não é preciso partir em busca do passado, porque o tempo mítico não é algo que já se foi. Para encontrar o tempo mítico, é preciso exercitar-se na abertura para o presente, para a atualidade real e completa [...]” (SANTOS, 1992, p. 199SANTOS, Laymert, Garcia dos. O tempo mítico hoje. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.).

Redefinir as estanques fronteiras temporais modernas e discutir as categorias de contemporaneidade parece ser uma preocupação seminal da obra de Ailton Krenak. Com isso, busca uma abertura para distintas formas de se relacionar com o tempo e a história que não apenas aquela que modernamente produziu em série fenômenos, como a dupla consciência, impossibilitando a percepção das dinâmicas temporais próprias que compunham o interior do território brasileiro, para afirmar um olhar ao “outro externo”, enquanto, ao “outro interno”, caberia ser traduzido em categorias temporais do atraso e do “passado”. Por isso, e não à toa, Krenak observa como “os maiores confitos da nação brasileira não são com os de fora, mas com ela mesma” (KRENAK, 2015, p. 95KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Incapaz de tratar o Brasil a partir da diversidade que lhe constitui e com a qual os projetos de futuro pretenderam romper e localizar temporalmente no passado, a nação brasileira estaria condenada a repetir algo que já vem fazendo há bastante tempo: se descobrir. Afinal, sintetiza Krenak: “o Brasil está sempre se descobrindo. Descobre, descobre, descobre, pela segunda, terceira, quinta vez” (KRENAK, 2015, p. 178KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

A trajetória de Ailton Krenak se confunde com a de um Brasil recente, o da Nova República, gestado a partir da Constituição de 1988, em que sua atuação7 7 Para uma visão detalhada acerca da atuação de Ailton Krenak na constituinte de 1988, Cf. CAMPOS, 2018. na defesa da garantia da proteção dos direitos indígenas é bastante lembrada, chegando até ao ano de 2015, quando sua etnia, os Krenak, ficou nacionalmente conhecida por habitar a margem esquerda do rio Doce, que possuía papel central na sua subsistência, e foi severamente castigado pelo rompimento de uma barragem com rejeitos de minério. Ao longo dessas décadas, além de se dedicar com outras lideranças indígenas às causas políticas que, muitas vezes, envolveram confitos com projetos de expansão do Estado brasileiro e de corporações sobre territórios dos povos originários, Krenak também foi construindo um legado de várias entrevistas que hoje já se encontram publicadas em livros e refetem a postura de um “intelectual situado”, por sempre reforçar que “um intelectual, na tradição indígena, tem uma responsabilidade permanente que é estar no meio do seu povo” (KRENAK, 1992, p. 201KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.), mas também sempre atento às dinâmicas históricas que o excedem.

Reconhece Ailton Krenak que seu povo descende dos antigos “botocudos” (assim nomeado nas fontes oficiais), que, desde o período colonial e com o agravamento da situação no início do século XIX, pela decretação da “Guerra Justa” autorizada pelo governo português por meio das Cartas Régias, em 1808, fora inimigo declarado do governo português8 8 Se tornou bastante difusa, a partir de documentos do governo português e brasileiro e de relatos de viajantes, como Spix e Martius, a imagem de certa “periculosidade” envolvendo o trato com os “botocudos”. A instalação de postos militares mantidos pelos governos da época servia, assim, para colocar os grupos indígenas “em trato com os portugueses”, além de auxiliar no “fomento da navegação do Rio Doce e para domesticar os índios ali (Junta da Conquista e Civilização dos Índios, do Comércio e Navegação do Rio Doce)”. Ainda segundo o relato dos viajantes naturalistas alemães, “os mais irrequietos e perigosos índios de Minas são os antropófagos Botocudos, que se ocupam particularmente a margem do baixo Rio Doce”. SPIX; MARTIUS, 1981, p. 212-214. Para mais detalhes, Cf. PARAÍSO, 1992, p. 413-430. . No século XX, como Krenak, as primeiras notícias estão associadas à construção da estrada de ferro ligando Vitória, no Espírito Santo, à atual cidade de Governador Valadares, em Minas Gerais. Além disso, também há relatos sobre, desde 1968, índios Krenak serem mantidos no “Centro de Reeducação Indígena Krenak”, para onde eram enviados os indígenas que “opunham resistência aos ditames dos administradores de suas aldeias ou eram considerados como desajustados socialmente”. Ali, “eram mantidos em regime de cárcere, sofrendo repressões, como o confinamento em solitária e castigos físicos em casos de insubordinação”9 9 Cf.:https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak. Acesso em: 20 dez. 2019. .

Diante do problema aqui colocado, nos interessa observar como, no âmago da refexão de Krenak, se encontra um questionamento acerca das justificativas temporais que conformaram a nação brasileira e sua particular relação com os povos indígenas. Mais exatamente, como esse “outro interno” à nação estava marcado pelas dinâmicas da dupla consciência, que tinha, na sua raiz, uma relação de ruptura e negação com um passado indesejado10 10 Cf. dois estudos: de Rodrigo Turin e Kaori Kodama. Turin observa que, por meio do desejo de gestação de um passado nacional, o que o discurso histórico e etnográfico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) acaba por promover é uma temporalização da história a partir da mobilização de conceitos antinômicos, como “civilizado” e “selvagem”. Na história nacional do IHGB estaria uma das origens do discurso que só reconhecia legitimidade de uma história indígena se inserida no interior de uma história maior que a desse sentido, a saber, aquela nacional (TURIN, 2009); Kodama relata que, no mesmo instituto, o discurso sobre o “outro” indígena só era possível como o refexo invertido da civilização, jamais como uma alteridade positiva. Assim, “os índios contemporâneos eram somente as cinzas de “raças” do passado e já descaracterizados de sua primitiva existência”. Fica evidente como a dimensão temporal foi peça fundamental, ao menos desde o século XIX, na caracterização da alteridade indígena no Brasil (KODAMA, 2010, p. 258). . Atento a esse movimento, Krenak aponta para toda a debilidade de um projeto que acredita ser possível superar a história, tendo dela uma compreensão objetificada e museificada, e não a compreendendo como a condição de possibilidade do próprio ser.

Tal incompreensão estaria, segundo Ailton Krenak, no cerne da tentativa moderna de promover uma ruptura com a experiência para se criar algo ex nihilo. Ou melhor, mais do que uma ruptura, talvez se trata de uma relação objetificada com a experiência que acaba por ser traduzida em grandes realizações do progresso, como “quando os homens botam torres, prédios e essas máquinas barulhentas por todo lado, não fazendo nada mais do que berrar pra dizer que ele está aqui” (KRENAK, 2015, p. 49KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Grita tanto a sua existência que, de tal maneira, já se evidencia o seu próprio descolamento desse mundo.

Com significados bastante próximos nas falas de Ailton Krenak, história, experiência e tradição aparecem como a própria condição do ser e da existência. Se um dos traços marcantes do horizonte moderno é o próprio esfacelamento da experiência, Krenak provoca com uma experiência que se confunde com a própria existência, na qual a primeira não é externalizada ao próprio ser, assim como a história ou a tradição. Algo do qual podemos nos remeter como se já não nos pertencesse mais e pudéssemos tratar com distanciamento diante do próprio ser. Algo como a experiência religiosa na qual, por exemplo, “uma religião está vinculada a um conjunto de normas e condutas. Para nós isso não existe. Eu não tenho que ir a um templo, não tenho que ir a uma missa. Eu me relaciono com a natureza e com os fundamentos da tradição do meu povo” (KRENAK, 2015, p. 83KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

Ter a história em suas próprias mãos, pretender moldá-la como um objeto inteiramente disponível, seriam compreensões particularmente características de uma sociedade que vive a “angústia da certeza”. Uma sociedade que “divide os povos que têm história e os que passariam a ter mito” (KRENAK, 2017, p. 71KRENAK, Ailton. Alianças vivas. Coleção Tembetá. Rio de Janeiro: Azougue, 2017.). Mas não só. O que se observa é

uma ideia de civilização que começa a viver a angústia de ter certeza de alguma coisa. De ter certeza de que vão poder controlar aquele lugar onde estão vivendo, aquela paisagem, que vão conseguir através do conhecimento, da ciência, da experimentação, controlar a passagem do tempo (KRENAK, 2017, p. 71-72KRENAK, Ailton. Alianças vivas. Coleção Tembetá. Rio de Janeiro: Azougue, 2017.).

As políticas temporais modernas objetificam e externalizam o tempo em relação ao ser de tal forma que o tempo pode ser tratado como uma espécie de commodity, um recurso, que se controla e com o qual se torna possível efetuar classificações e categorizações. O tempo passa a ser desinvestido de seu conteúdo existencial e despolitizado de forma a aparentar uma pretensa neutralidade nessas mesmas categorizações. Coloniza-se o tempo de tal forma a delimitar, então, o que é passado, presente e futuro, tornando incompreensível, num certo sentido, outros possíveis arranjos temporais que não partem de pressupostos assim estanques11 11 Nessa linha, vale mencionar o estudo de Guilherme Bianchi sobre os limites da forma temporal escolhida pela historiografia, em sua versão moderna, para lidar com representações do passado, como de algumas sociedades indígenas amazônicas. O desafo, nesse caso, seria validar “a coexistência de outras formas de conceber e explicar o cosmos, de organizar hierarquias simbólicas, outras formas de conhecer e de habitar o tempo e o espaço, de comunidades que insistem em não separar a humanidade do que é o ‘outro’ e que, assim, não concebem sua existência a partir de pares conceituais de oposição como natureza/história, histórico/mitológico, material/espiritual, sujeito/objeto, animado/ inanimado” (BIANCHI, 2019, p. 287-288). .

Sob tal dinâmica, “um dos seus efeitos é justamente a sensação de uma indisponibilidade da história, como se não restasse alternativa senão a adaptação contínua”. Na contramão disso, “politizar o tempo, em sua dimensão linguística, ecológica, cotidiana, talvez permita elaborar, sobre novas bases, outra concepção de disponibilidade da história”, sem que isso, naturalmente, reforce a dimensão de um “fm final” que nos justificaria, tão característico da “dimensão redentora e singularizante da modernidade clássica” (TURIN, 2019, p. 49TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019.).

Retomar a disponibilidade da história e promover certa politização do tempo significaria, “acima de tudo, entender que o tempo não pode ser descolado do seu caráter performático”, como as políticas temporais modernas pretenderam ocultar ao mesmo tempo em que a executavam, e, com isso, abrir espaço para uma compreensão segundo a qual “formas de experiências distintas requerem formas temporais distintas” (TURIN, 2019, p. 47TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019.).

Ainda sobre o tratamento do tempo como um recurso e, portanto, como algo a ser manuseado, é na ideia de futuro que jaz uma de suas fgurações mais características e sintomáticas desse processo. Fala-se do futuro como algo que pode ser moldado e desenhado ao gosto humano e a partir de projeções. A história brasileira é, segundo Krenak, prenhe dessas projeções/projetos de futuro. Na maioria das vezes, porém, são projetos que não condizem com projetos de futuro de comunidades tradicionais e indígenas distribuídas pelo país. Não só no conteúdo, mas especialmente na forma. É a forma de um existir temporal que não aparta o futuro das outras dimensões que revela a diferença mais substancial, afinal, “o projeto de futuro dessas populações não é aquilo que eles estão vivendo hoje ou que viveram no passado, o que vivem hoje e o que vão viver no futuro, é o projeto de futuro dessas populações” (KRENAK, 2015, p. 61KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

O fato de tais populações enredarem a existência numa dinâmica temporal orgânica e interdependente, não se justificando majoritariamente no futuro, produz, por decorrência, uma relação de choque com os projetos de futuro do Estado e da sociedade brasileira. No conteúdo e na forma, tais projetos de futuro se distanciam radicalmente daqueles futuros aludidos por Ailton Krenak que, então, se pergunta: “que progresso é esse? Parece que nós tínhamos muito mais progresso e muito mais desenvolvimento quando a gente podia beber na água de todos os rios daqui, que podíamos respirar todos os ares daqui [...]” (KRENAK, 2015, p. 167KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

A crítica do prog resso e sua colonização temporal pelo f uturo, fator, como já afirmamos, decisivo na constituição da dupla consciência, aparece continuamente na obra de Ailton Krenak, revelando seu estranhamento ao habitar o interior de uma sociedade que age “como se a gente estivesse numa corrida maluca onde ninguém tem lugar para chegar, mas todo mundo está correndo. [...] essa pressa toda com que vocês estão andando está levando vocês exatamente para onde?” (KRENAK, 2015, p. 241KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

A vivência do choque que o contato entre a sociedade moderna brasileira e a experiência de comunidades tradicionais torna evidente uma demanda por refazer o encontro. Um certo Brasil que vai descobrindo sua antessala negada por um longo período pela primeira, segunda, quinta vez, com casos, na maior parte das vezes, de choque, exibe a possibilidade de se refazer o encontro sob novas balizas temporais críticas a uma história única e temporalmente colonizada. Refazer o encontro por intermédio de uma história na qual as políticas temporais não estejam tão sedimentadas e míopes, possibilitando certa permeabilidade, afinal, a história não está caminhando linearmente para um fim preciso, mas é também prenhe de contradições, vida e potência: “nós sabemos que toda catástrofe era o prenúncio de um novo tempo” (KRENAK, 2015, p. 91KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

Expor a nu as dinâmicas da dupla consciência poderia ter como condição, portanto, abrir espaço para uma compreensão que não mortifque a história. Abrir a história, assim, seria também reorganizar estes espaços do “outro interno” e do “outro externo”, e reconhecer que os papéis e as posições esperados a serem ocupadas já não estão dados de antemão. Abrir a história, assim, significaria ainda que, por sua intimidade com a existência, essa história que traz o mesmo e o avesso, seria a própria condição da mudança e da transformação. A história externalizada à própria existência, por sua vez, fica passível de tábula rasa, como se fosse algo que pudéssemos escolher ter ou não, superar ou não, apagar ou não.

A pretensão modernizadora e seu particular desejo em arquivar, superar ou mesmo museificar certo passado, em particular aquele que pudesse remeter a um “outro interno” invisibilizado, como no caso da modernização brasileira, já acaba por revelar, nas palavras de Krenak, uma humanidade “que não sabe sonhar mais”, confusa num certo tratamento externalizado da história que é registrada em “milhões de toneladas de livros, arquivos, acervos, museus guardando uma chamada memória da humanidade. E que humanidade é essa que precisa depositar sua memória nos museus, nos caixotes?” (KRENAK, 1992, p. 204KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.). Imaginar a possibilidade de superar a história, portanto, em particular quando traduzida na ideia de superar uma história numa face tão viva, como aquela da experiência indígena no Brasil, levou Krenak a profetizar, ainda nos anos 1990, que “quando não houver mais lugar para os índios na Terra, não haverá lugar para mais ninguém”12 12 Entrevista realizada pelo jornal O Globo. Disponível em:<https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/para-os-indigenas-pior-momento-agora-16092060>. Acesso em: 7 jan. 2020. .

Questionar as dinâmicas da dupla consciência e da invisibilização do “outro interno” passa, portanto, por uma abertura e pela reconsideração da história sob outros espectros. Pode a história, assim, deixar de ser apenas aquilo que se possui e que se registra a partir de marcas documentais, institucionais etc., para ser remetida também a uma experiência viva, indelével, potencializada e capaz de embaralhar e inviabilizar as prerrogativas de formulações como “povos com história” e “povos sem história”? Tal distinção legitima e retira do espaço de incompreensão formulações, como: “a minha história é a experiência coletiva de meu povo. A minha história de maneira alguma se resume ao conjunto de documentos públicos que o governo me deu” (KRENAK, 2015, p. 84KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

Paradoxalmente, portanto, o que aqui se afirma é que uma das formas possíveis de tensionar a dupla consciência pode mesmo estar numa compreensão de um grupo, o mesmo grupo que fora um dos mais aviltados pelas dinâmicas decorrentes de tal fenômeno. A reconsideração da história como algo “vivo, como é viva a cultura, vivo como é dinâmica e viva qualquer sociedade humana” (KRENAK, 2015, p. 161KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.), abre espaço para uma crítica das pretensões de se varrer a história para um posto silenciado e irrelevante. Mais do que estar registrado na história, num dado momento do tempo, a história compõe a própria existência num sentido vital, como aquele da tradição para “povos tradicionais”, haja vista que “os fundamentos da tradição são como o esteio do universo” (KRENAK, 2015, p. 94KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Claro está que não se trata aqui do sentido de “tradição” como algo a ser perpetuado no tempo, a despeito das mudanças e das contingências históricas, como algo que deve ser mantido mesmo quando seu conteúdo já não vigore. Muito mais próximo se estaria de um sentido da tradição como vida e experiência, como em determinados lugares que transportam, para Krenak, narrativas de povos, de “onde se sai e volta, atualizando tudo, o sentido da tradição, o suporte da vida mesma” (KRENAK, 1992, p. 201KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.).

Não haveria sentido, de tal forma, partir a história entre passado, presente e futuro, como se fosse possível localizar uma experiência apenas num dado compartimento do tempo, pois “vejo nas narrativas, mesmo as narrativas chamadas antigas, do Ocidente, que sempre são datadas” (KRENAK, 1992 p. 202KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.). A fundação do mundo, mais do que um evento que aconteceu no passado e, por isso, pode ser tratado como algo independente de nossa existência no presente, é compreendido, por Krenak, pelo seu exato oposto, isto é, “uma memória puxando o sentido das coisas, relacionando o sentido dessa fundação do mundo com a vida”. Tal compreensão abre a brecha decisiva para uma compreensão da história que a desassocie apenas do “passado”, de momentos fundacionais que lá existiram e por lá ficaram, para tornar possível sua aproximação com a vida, uma vez que “todo instante, a todo momento, o tempo todo é a criação do mundo” (KRENAK, 1992, p. 202-203KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.).

As dificuldades criadas pelas políticas temporais modernas, ao sequencializarem e partirem a história, acabaram tendo na colonialidade e na dupla consciência suas decorrências mais fundamentais em contextos como aqueles aqui mencionados, tendo na invisibilização histórica de certos grupos seu ponto nodal. A história, transformada numa mera contagem e empilhamento de tempo é desinvestida de qualquer relação vital com o presente e permanece próxima do significado de “passado”. Pode parecer natural, portanto, que, entre essa história e a memória, Ailton Krenak escolha ficar com a memória. Esta, menos que sinônimo de algo que passou, aparece de modo energizado e capaz de apontar para o sonho e para a transformação. Diante de tantas demandas insurgentes do nosso tempo, realizar a crítica das políticas temporais da colonialidade, políticas essas alicerce e raiz de diversas outras compreensões, não parece uma questão menor. Ao fm, resta o alerta:

se essa sociedade se reportar a uma memória, nós podemos ter alguma chance. Senão, nós vamos assistir à contagem regressiva dessa memória no planeta, até que só reste a história. E entre a história e a memória, eu quero ficar com a memória (KRENAK, 1992, p. 204KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.).

Considerações finais: o bárbaro tecnizado, uma forma do nosso tempo?

Diante do conjunto de questões tematizadas neste artigo, caberia legitimamente perguntar, portanto, como sociedades advindas de uma experiência colonial e, por isso, involucradas em dinâmicas históricas de negação e apagamento, podem recriar suas formas de imaginação histórica e temporal. Menos que oferecer soluções e fórmulas mágicas que solucionariam questões tão complexas, caberia reconhecer como a história e o tempo são mobilizados em práticas e discursos, e talvez esboçar ao menos uma forma mais atenta às dinâmicas histórico-temporais que permeiam tais contextos do que aquela que a partição moderna permite.

Há uma conhecida expressão de José Ortega y Gasset, em Meditaciones del Quijote, que pode ser traduzida como: “eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela não salvo a mim” (ORTEGA Y GASSET, 1966 [1914], p. 322ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. In: ORTEGA Y GASSET, José. Obras completas de José Ortega y Gasset. 7ª ed., v. 1, Madrid: Revista de Occidente. 1966.. Tradução nossa), que parece despertar o interesse de Ailton Krenak, quando refete acerca da “circunstância de a gente ter sido encontrado aqui nos trópicos, psicotrópicos, e termos sido confundidos pelos portugueses como uma coisa pré-estabelecida que era essa gente que eles chamaram de índio” (KRENAK, 2015, p. 259KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Pensar seriamente e avaliar o alcance de uma formulação como “eu e minhas circunstâncias” apontaria, segundo Krenak, para dois caminhos complementares. O primeiro, e mais evidente, aproxima o significado de circunstância de um espaço vital de partilha que não pode ser separado do conjunto de pessoas e seres vivos que ali habitam, de modo que “a hora que me tiram daqui e me jogam em qualquer canto eu não ouço mais a voz da montanha, eu não escuto mais em que linguagem o rio está falando” (KRENAK, 2015, p. 256KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Essa seria, portanto, uma primeira dinâmica da circunstância, isto é, viver o espaço intensamente, sendo, em alguma medida, impossível dissociar quem o vive da circunstância mesma. Se se dissocia, e “se o seu coletivo não compartilha um espaço que é recriado o tempo todo pela alma, pelo espírito, pela cultura, você está visando uma coisa totalmente miserável, sem sentido nenhum. Você foi jogado em qualquer lugar” (KRENAK, 2015, p. 256KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

Se um primeiro caminho apontaria, assim, para a circunstância como algo a ser assimilado e vivido, a fim de não se viver uma vida “miserável” e perambulante, na qual a comunidade não reconhece mais o seu elã vital, um segundo caminho apontaria, sim, para o não fechamento da circunstância em si mesma, possibilitando que se excedam suas determinações. Não assumir a circunstância como algo fatal e imutável é, para Krenak, um movimento não menos importante que o primeiro. No caso, trata-se, fundamentalmente, em esperar “que esse embrulho que rolou aqui, esse meio milênio de confusão vai ser outra coisa lá na frente” (KRENAK, 2015, p. 259KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.) e o encontro entre “essa gente que eles chamaram de índio” e a empresa colonial possa ser radicalmente refeito. Retomando a sentença de Ortega y Gasset, “essa é a garantia da circunstância: ‘eu e minhas circunstâncias’ não é só uma aposta no vazio, é uma confiança num porvir, em alguma coisa” (KRENAK, 2015, p. 259KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Tal garantia da circunstância manteria aberta, sobretudo, a possibilidade de que o “eu” seja também outra coisa, “porque senão vira uma arrogância, um ‘eu sou eu’, e não tem nada a ver” (KRENAK, 2015, p. 259KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.), afinal, como na clássica formulação de Rimbaud, “eu é um outro”.

Talvez seja esta, então, uma questão decisiva no redesenho do encontro: assumir a circunstância de uma maneira que ela não seja irrelevante, nem, tampouco, fatal e fechada em si mesma. Seria como se recolocássemos a questão da ação na história, nos perguntando se seria efetivo nadar contra a correnteza, ao que Krenak, sempre munido de metáforas, responde: “a lição da água é você acompanhar o movimento dela. Agora, acompanhar o movimento da água como uma tábua é uma coisa, e acompanhar esse movimento como um peixe vivo é outra” (KRENAK, 2015, p. 232KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Emerge, assim, uma interessante forma de se desafiar a circunstância e a história a partir de experiências coloniais nas quais a negação da circunstância (oposto do primeiro caminho mencionado acima) ou sua utilização para fins de naturalização da história (oposto do segundo caminho) foram escolhas, muitas vezes, feitas e cinicamente justificadas.

Indo mais além, seria possível ainda deslocar a atenção para algumas formas provocativas que ajudam a imaginar alternativas às rígidas fronteiras temporais definidas pelas políticas modernas e coloniais do tempo. Formas que Ailton Krenak e Oswald de Andrade lançaram mão e possuem uma força particular de desatualização do hoje e afirmação da diferença. Formas, por exemplo, que Oswald de Andrade chamaria provocativamente de “primitivas” por seu evidente caráter disruptivo em relação ao presente e que ficavam visíveis em imagens como as utopias antropofágica e matriarcal, ou nas “pessoas coletivas” (KRENAK, 2019, p. 28KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.) fartamente aludidas por Ailton Krenak. Imagens cuja força reside justamente no seu conteúdo anacrônico e espantoso.

Imagens como a do matriarcado que, aliás, reaparece na obra de Krenak ao ser contraposto às formas patriarcais de depredação e dominação do planeta. Imagens que proliferaram em várias culturas, mas que, como também sugeriu Oswald, se perderam nas “esquinas da história”:

a Terra Mãe, Pachamama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. Veja-se a imagem grega da deusa da prosperidade que tem uma canastra que fica o tempo todo jorrando riqueza sobre o mundo... Noutras tradições, na China e na Índia, nas Américas, em todas as culturas mais antigas, a referência é uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina do pai (KRENAK, 2017, p. 139KRENAK, Ailton. Alianças vivas. Coleção Tembetá. Rio de Janeiro: Azougue, 2017.).

Ao fim e ao cabo, o que se pode depreender é que refexões como aquelas de Ailton Krenak e Oswald de Andrade estavam, sobretudo, preocupadas em compreender as dinâmicas históricas e temporais que os enredavam sem apelar a saídas simplórias, como passadismos ou futurismos, com evidente natureza essencialista. Bem mais que isso, suas preocupações parecem direcionadas a fazer emergir formas tensionadoras e que testassem os limites da representação do tempo em sua forma moderna, privilegiando o que se justapõe e se complementa mais do que busca superar ou essencializar determinadas imagens históricas. Como afirmava Oswald, com a metáfora do “primitivo”, se apostava numa “ida”, não num “regresso”, para, de tal forma, desafiar e embaralhar pretensos escalonamentos e hierarquizações histórico-temporais.

Torna interessante observar que, mesmo separados por mais de meio século, Oswald e Krenak se mostrem absolutamente atentos aos desafos das atualizações tecnológicas e busquem formas de imaginação que deem conta da convergência de fluxos temporais que desaguavam no seu presente. No caso do poeta antropófago, a imagem do “bárbaro tecnizado” que aparece já no manifesto de 1928 e depois, na tese apresentada para a cadeira de filosofa na USP, em 1950, tratava-se de compreender as transformações e as atualizações científicas, industriais e tecnológicas do convulso contexto das décadas de 1920, 1930 e 1940, de modo a imaginar também como a civilização brasileira não se contraporia àquele caldo de cultivo moderno, além de trazer o potencial de revelar os limites e as lacunas daquele “progresso”. O “bárbaro tecnizado” seria, então, uma imagem potente de um novo modelo de cidadão se equilibrando entre as formas históricas revolucionárias, como o matriarcado, a sabedoria ameríndia e as mais avançadas realizações técnicas e científicas do século XX. Um equilíbrio que só seria possível com o enfrentamento das formas patriarcais e messiânicas que insistiam em resistir à força dos novos tempos.

Seria o caso, então, segundo Oswald, de “procurar soluções paralelas ao primitivismo” naquele presente, “como n’A Revolução dos Gerentes, de James Burham13 13 Uma pausa parece, aqui necessária, para refetir acerca do inusitado exemplo citado. Que Oswald, desde o Manifesto Antropófago, observa, na imagem de mundo da cultura norte-americana, o prenúncio de uma nova era, que se via em trechos como “O cinema americano informará” e “A idade de ouro anunciada pela América”, presentes no manifesto. O tema reaparece n’A crise da filosofa messiânica, em 1950, com o exemplo de Burham, no seu The managerial revolution (1941), que, grosso modo, rompe com a teleologia marxista e transfere a força científica e revolucionária do proletariado para os técnicos e dirigentes econômicos. Oswald acreditava que era nos EUA, a despeito dos problemas trazidos pelo capitalismo e pelo imperialismo, onde se criava o “clima do mundo lúdico e o clima do mundo técnico aberto para o futuro” (ANDRADE, 1978, p. 127). Talvez, para além de observar o evidente erro de previsão de Oswald sobre a nada libertadora imagem de mundo de técnicos e dirigentes econômicos, cabe aqui observar como é operada a junção entre o “primitivo” e a “técnica” para manter aberto um determinado horizonte de futuro, impossibilitando o fechamento da história. , no qual a técnica trouxe, é claro, uma nova dimensão ao mundo em mudança” (ANDRADE, 1978 [1950], p. 127ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.). Antes mesmo da publicação da Crise, o então jovem crítico e amigo de Oswald, Antônio Cândido, escrevia, em 1947, e já identificava o gesto de comunhão do poeta e ensaísta em não se fechar às transformações do seu tempo e imaginar soluções que decantassem imagens de mundo tanto “primitivas” como “tecnológicas” para delas, antropofagicamente, extrair o alimento vital:

o sentimento, por ele [Oswald] comunicado, de que o mais importante é decantar, nos produtos complexos da “cultura de servidão”, as partículas inestimáveis de liberdade, ou seja, depurar o movimento revolucionário, indo buscá-lo onde estiver – na sinfonia, na equação ou no gesto – para integrá-lo, livre de ganga, no gráfico ascendente que busca a “cultura da liberdade” (CANDIDO, 2008 [1947], p. 172CANDIDO, Antonio. Antropofagismo. In: ABDALA Jr.; CARA, Salete de Almeida (Org.). Moderno de nascença: fgurações críticas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2008.).

A escolha do exemplo de Burham não é casual. O modus operandi dos managers só fora eligido por Oswald por sua fagrante semelhança com a “gerontocracia da tribo”, por seu projeto de, pouco a pouco, suprimir “o Estado, a propriedade privada e a família indissolúvel, ou seja, as formas essenciais do patriarcado” (ANDRADE, 1978 [1950], p. 129ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.). Assim, o bárbaro tecnizado como imagem-provocação tornaria incompreensível raciocínios que oponham simploriamente progresso e atraso, primitivo e civilizado. Ou mais: para “resolver os problemas do homem e da filosofa, só a restauração tecnizada de uma cultura antropofágica” (ANDRADE, 1978 [1950], p. 129ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.).

Preocupação essa fulcral na obra de Krenak, sempre desafiado a justificar qual o lugar e o estatuto que populações indígenas deveriam ocupar dentro da sociedade capitalista e tecnológica, com as persistentes hierarquizações que essencializavam o índio como imagem de um passado, lá fixado, e inapto para as atualizações tecnológicas do século XXI. Uma junção que, na maioria das vezes, é apresentada como contraditória para a qual Krenak prontamente contesta: “não, não é uma contradição [...]. [as comunidades indígenas] precisam ter tecnologia que consiga aplicar com intensidade o conhecimento tradicional deles”. De tal modo, “essa atualização tecnológica é afirmativa da tradição, não é negativa da tradição. [...]”. Ninguém sendo proprietário do que inventa, “é feito uma espécie assim de aproveitamento seletivo de práticas e de técnicas que a ciência e que os brancos inventaram. Criaram” (KRENAK, 2015, p. 59-60KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

Da mesma maneira seria no sentido oposto, desapropriando o conhecimento e o tornando acervo universal, já que “se houver sensibilidade e respeito, essas populações são capazes de dar resposta a problemas muito sérios que essa civilização moderna não consegue responder” (KRENAK, 2015, p. 61KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.). Emerge, de tal forma, o bárbaro tecnizado como uma imagem-mundo se não suficiente, ao menos mais completa para lidar com as formas temporais múltiplas, complexas, na qual outros arranjos temporais são possíveis e desejados, não havendo uma simplória associação entre “primitivo” e passado, “tecnológico” e futuro.

Tais arranjos primariam, antes de tudo, pela retomada da disponibilidade da história e pela contestação das políticas temporais modernas, abrindo espaço para experiências e formas decididamente soterradas nas esquinas da história moderna. Arranjos que, para serem captados, porém, dada sua natureza de imagens que se apresentam como uma espécie de iluminação, necessitariam de uma sensibilidade distinta, como no exemplo escolhido por Krenak para encerrar sua conversa com o Txai Terri Valle de Aquino, em 1991:

o Caetano Veloso tem uma música bonita, aquela que fala do índio, onde ele canta que um dia um índio descerá com a mais fina das tecnologias. Unindo a tradição indígena com a mais moderna das tecnologias. [...] Quando os Suruí fzeram aquela circunferência em torno do Caetano, naquela hora eu senti que o cientista e o pajé se encontraram e que não precisa esperar o século XXI, não! (KRENAK, 2015, p. 146KRENAK, Ailton. A união das nações indígenas. In: COHN, Sergio (Org.). Encontros / Ailton Krenak. Rio de Janeiro: Azougue, 2015.).

  • 3
    Algo semelhante foi notado por Dipesh Chakrabarty quando, a partir do caso indiano, observa que, a depender da espécie de narrativa histórica que se adota, o resultado observado é a “tendencia a interpretar la historia india a partir de conceptos como carencia, falta o incompletud que se convierte en ‘inadecuación’”. CHAKRABARTY, 2008, p. 63CHAKRABARTY, Dipesh. Al margen de Europa: pensamiento poscolonial y diferencia historica. Barcelona: Tusquets, 2008..
  • 4
    É evidente também que a crítica de Oswald ao processo homogeneizador da modernidade está bastante próxima de certa hipervalorização da mestiçagem, talvez mesmo da “democracia racial”, que, na década de 1940, parecia animar o debate intelectual brasileiro. Assim, vemos em textos, como Aqui foi o sul que venceu, o elogio da cordialidade e de uma “civilização luso-tropical que nos ensinou a igualdade prática das raças”, e em O sol da meia noite, quando, para efetuar a cura da Alemanha pós-nazista, Oswald oferecia a “educação pelo mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no ‘melting-pot’ do futuro. Preciso mulatizar-se” (ANDRADE, 1971, p. 51-62ANDRADE, Oswald de. Ponta de lança: polêmica. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1971.).
  • 5
    Uma vertente que pode nos ajudar a pensar a noção de dupla consciência (“double consciousness”) está mais próxima da obra de W. E. B. Du Bois, escritor negro norte-americano que, em 1903, publica seu The souls of black folk, com uma pergunta bastante precisa: qual era o significado de ser negro no sul dos Estados Unidos no início do século XX? A constatação de Du Bois vai à raiz da mencionada dinâmica segundo a qual a dupla consciência sempre pressupõe uma ambivalência de difícil resolução que, na maioria das vezes, se concretiza na seguinte pergunta: “¿por qué Dios me hizo un paria y un extraño en mi propia casa?” (DU BOIS, 2001 [1903], p. 7DU BOIS, W.E.B. Las almas del pueblo negro. La Habana: Fundación Fernando Ortiz, 2001.). Tal refexão foi levada adiante mais recentemente por Paul Gilroy, sobre o particular significado da modernidade na experiência da população negra. Gilroy identifica uma dinâmica dupla segundo a qual “la historia recente de los negros [muestra una] población presente en el mundo occidental moderno pero no necessariamente parte de él”. Subjazia, nessa população, uma particular dificuldade em conciliar as afirmações de identidade nacional, tão características da modernidade, e outros tipos diferentes de subjetividade e identificação. Permanecia, sempre segundo Gilroy, um jogo constante de dentro e fora (GILROY, 2014, p. 49GILROY, Paul. Atlántico negro. Modernidad y doble conciencia. Madrid: Ediciones Akal, 2014.).
  • 6
    Nos casos dos conceitos de “outro interno” e “outro externo”, nos apropriamos aqui de João Cézar de Castro Rocha, que identifica que o século XIX latino-americano é marcado por um duplo vínculo em cada projeto nacional. A situação, um tanto quanto esquizofrênica, é definida pela impossibilidade de executar uma tarefa e, por sua vez, pela necessidade imperiosa de fazê-la. Para ir direto ao ponto, Castro Rocha alude aqui à situação mediadora da Europa para a América Latina neste contexto de nascimento dos países no qual o “velho continente” se coloca como um “outro externo” fundamental, que dita e interdita a trajetória histórica latino-americana. A pergunta central de Castro Rocha assim se coloca: quais seriam as consequências da presença dominante desse tipo de relação no plano da interdividualidade coletiva latino-americana? Fundadas à imagem de um “outro” quase absoluto, a formação social latino-americana teria, na sua raiz, a exploração sistemática e a invisibilização social daquilo que Castro Rocha opta por chamar “outro outro” ou “outro interno”, ou seja, o negro escravizado, o indígena submetido, o mestiço condenado à impureza. Cf. CASTRO ROCHA, 2017CASTRO ROCHA, João Cezar de. Culturas shakespearianas: teoria mimética e os desafos da mímesis em circunstâncias não hegemônicas. São Paulo: É Realizações, 2017..
  • 7
    Para uma visão detalhada acerca da atuação de Ailton Krenak na constituinte de 1988, Cf. CAMPOS, 2018CAMPOS, Youssef. O patrimônio cultural e o protagonismo indígena na Constituinte de 1987/88. Entrevista com Ailton Krenak. In: Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 24, n. 51, p. 371-389, maio/ago. 2018..
  • 8
    Se tornou bastante difusa, a partir de documentos do governo português e brasileiro e de relatos de viajantes, como Spix e Martius, a imagem de certa “periculosidade” envolvendo o trato com os “botocudos”. A instalação de postos militares mantidos pelos governos da época servia, assim, para colocar os grupos indígenas “em trato com os portugueses”, além de auxiliar no “fomento da navegação do Rio Doce e para domesticar os índios ali (Junta da Conquista e Civilização dos Índios, do Comércio e Navegação do Rio Doce)”. Ainda segundo o relato dos viajantes naturalistas alemães, “os mais irrequietos e perigosos índios de Minas são os antropófagos Botocudos, que se ocupam particularmente a margem do baixo Rio Doce”. SPIX; MARTIUS, 1981, p. 212-214SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philip von. Viagem pelo Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Editora Itatiaia Limitada, 1981.. Para mais detalhes, Cf. PARAÍSO, 1992, p. 413-430PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Os botocudos e sua trajetória histórica. In: CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/SMCSP, 1992..
  • 9
    Cf.:https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Krenak. Acesso em: 20 dez. 2019.
  • 10
    Cf. dois estudos: de Rodrigo Turin e Kaori Kodama. Turin observa que, por meio do desejo de gestação de um passado nacional, o que o discurso histórico e etnográfico do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) acaba por promover é uma temporalização da história a partir da mobilização de conceitos antinômicos, como “civilizado” e “selvagem”. Na história nacional do IHGB estaria uma das origens do discurso que só reconhecia legitimidade de uma história indígena se inserida no interior de uma história maior que a desse sentido, a saber, aquela nacional (TURIN, 2009TURIN, Rodrigo. Tempos cruzados: escrita etnográfica e tempo histórico no Brasil oitocentista. 2009. 242f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.); Kodama relata que, no mesmo instituto, o discurso sobre o “outro” indígena só era possível como o refexo invertido da civilização, jamais como uma alteridade positiva. Assim, “os índios contemporâneos eram somente as cinzas de “raças” do passado e já descaracterizados de sua primitiva existência”. Fica evidente como a dimensão temporal foi peça fundamental, ao menos desde o século XIX, na caracterização da alteridade indígena no Brasil (KODAMA, 2010, p. 258KODAMA, Kaori. Os estudos etnográficos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1840-1860): história, viagens e questão indígena. In: Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciênc. hum., Belém, v. 5 n. 2, p. 253-272, maio/ago. 2010).
  • 11
    Nessa linha, vale mencionar o estudo de Guilherme Bianchi sobre os limites da forma temporal escolhida pela historiografia, em sua versão moderna, para lidar com representações do passado, como de algumas sociedades indígenas amazônicas. O desafo, nesse caso, seria validar “a coexistência de outras formas de conceber e explicar o cosmos, de organizar hierarquias simbólicas, outras formas de conhecer e de habitar o tempo e o espaço, de comunidades que insistem em não separar a humanidade do que é o ‘outro’ e que, assim, não concebem sua existência a partir de pares conceituais de oposição como natureza/história, histórico/mitológico, material/espiritual, sujeito/objeto, animado/ inanimado” (BIANCHI, 2019, p. 287-288BIANCHI, Guilherme. Arquivo histórico e diferença indígena: repensando os outros da imaginação histórica ocidental. In: Revista de Teoria da História, v. 22, n. 2, p. 264-296, dez. 2019.).
  • 12
    Entrevista realizada pelo jornal O Globo. Disponível em:<https://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/para-os-indigenas-pior-momento-agora-16092060>. Acesso em: 7 jan. 2020.
  • 13
    Uma pausa parece, aqui necessária, para refetir acerca do inusitado exemplo citado. Que Oswald, desde o Manifesto Antropófago, observa, na imagem de mundo da cultura norte-americana, o prenúncio de uma nova era, que se via em trechos como “O cinema americano informará” e “A idade de ouro anunciada pela América”, presentes no manifesto. O tema reaparece n’A crise da filosofa messiânica, em 1950, com o exemplo de Burham, no seu The managerial revolution (1941), que, grosso modo, rompe com a teleologia marxista e transfere a força científica e revolucionária do proletariado para os técnicos e dirigentes econômicos. Oswald acreditava que era nos EUA, a despeito dos problemas trazidos pelo capitalismo e pelo imperialismo, onde se criava o “clima do mundo lúdico e o clima do mundo técnico aberto para o futuro” (ANDRADE, 1978, p. 127ANDRADE, Oswald de. Do Pau-Brasil à antropofagia e às utopias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.). Talvez, para além de observar o evidente erro de previsão de Oswald sobre a nada libertadora imagem de mundo de técnicos e dirigentes econômicos, cabe aqui observar como é operada a junção entre o “primitivo” e a “técnica” para manter aberto um determinado horizonte de futuro, impossibilitando o fechamento da história.
  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Artigo originado de tese de doutorado defendida, em 2020, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, e que contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – processo: 88882.459657/2019-01.
  • Este artigo integra o Dossiê 1922/2022: o século da Semana – balanços e perspectivas organizadores
    Francisco Cabral Alambert Junior, Marcos Antonio da Silva, Nelson Tomelin
  • Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Artigo originado de tese de doutorado defendida, em 2020, no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, e que contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – processo: 88882.459657/2019-01.

Fontes

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  • TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal Rio de Janeiro: Zazie Edições, 2019.

Editado por

Editores Responsáveis
Miriam Dolhnikof e Miguel Palmeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
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