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GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado. A retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura civil-militar no Brasil (1970-1975). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012.

GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado. A retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura civil-militar no Brasil (1970-1975). 2012. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional

Incômodos aspectos de um incômodo passado

No dia 15 de julho de 1970, a revista Veja estampou em sua capa, sob a manchete "O terror renegado", anúncio de reportagem acerca da retratação procedida por Massafumi Yoshinaga, ex-militante da VPR, grupo liderado por Carlos Lamarca que pegava em armas contra a ditadura civil-militar. Em manifestação pública, "Massa", como era chamado, vinha a público condenar seu passado de oposição armada ao regime e, até mesmo, criticar seus antigos companheiros e exaltar determinados aspectos do governo Médici. Este é apenas um exemplo dos "arrependidos", como vieram a ser chamados, um fenômeno que foi recorrente, ainda que raramente lembrado nos dias de hoje.

A historiadora Alessandra Gasparotto dedicou seu mestrado, merecidamente agraciado com o prêmio de pesquisa "Memórias reveladas" em 2010,1 1 Premiação conferida pelo Ministério da Justiça e pelo Arquivo Nacional para trabalhos meritórios acerca do período da ditadura civil-militar de 1964-1985, e que acarretou na publicação da dissertação. para desenvolver uma reflexão sobre esta temática sensível. Ela tomou o título da reportagem em empréstimo para intitular seu trabalho. Realizou, porém, interessante deslocamento semântico: enquanto a Veja pretendia afirmar que "Massa" havia renegado seu passado de "terrorista", a autora sugere que este militante - tal como outros - renegara a percepção e a denúncia dos porões da ditadura como espaço de "terror". Todavia, a retórica militante não basta a seu texto: trata-se de uma reflexão corajosa, competente, sensível, ética e honesta sobre uma realidade delicada para a memória formada depois da redemocratização a respeito do período 1964-1985.

Segundo Daniel Aarão Reis Filho,2 2 REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: REIS FILHO, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004. a memória coletiva contemporânea tende a minimizar a colaboração da sociedade na implantação e manutenção do regime autoritário. Pelo contrário, todos pretendem ter resistido e esta resistência teria coincidido necessariamente com a luta por ideais democráticos em moldes liberais. A sociedade brasileira, portanto, pretende expurgar de si qualquer relação com a ditadura, representada como um período de trevas e truculência completamente externo aos anseios da sociedade nacional - não obstante o lugar de destaque, na sociedade pós-1988, de Antônio Carlos Magalhães, Delfim Netto, José Sarney, dentre outros antigos arenistas, ou de veículos de comunicação comprometidos com a sustentação do regime ditatorial, como a Rede Globo de Comunicações. De certa forma, ainda é muito difícil assumir e encarar os fundamentos sociais que ampararam o regime, ou ainda as variadas práticas de colaboração civil.

Segundo o mesmo senso comum, os jovens que pegaram em armas teriam se empenhado na defesa dos legítimos valores de uma democracia liberal finalmente atingida na Nova República - e não em uma luta socialista, como de fato se engajaram. Eles são encarados de forma romântica, idealizados em filmes e minisséries como rapazes e moças arrojados que tiveram a coragem de lutar por uma causa justa. A eventual violência, ainda que repudiada pela memória construída a respeito do período, é justificada como um equívoco cometido por bravos, idealistas e inexperientes militantes, vistos sob o viés da dicotomia resistência x vitimização que obstaculiza sua compreensão como sujeitos históricos densos em toda sua complexidade.

O trabalho de Alessandra Gasparotto é corajoso porque a autora toca em uma ferida aguda e se defronta com o referido senso comum. Contradiz a memória que se formou sobre este período depois da redemocratização. Apresenta casos que estão para além da resistência e para além da vitimização. Ela demonstra que a colaboração que se procura encobrir esteve arraigada na sociedade brasileira, ao ponto de atingir mesmo aqueles opositores armados da ditadura militar, os resistentes por excelência. Seu tema causa desconforto porque lembra que nem todos tiveram atuação heróica perante o truculento regime autoritário. A autora contradiz tais lugares comuns apresentando - com sólidas evidências de fontes orais e escritas - o caso dos militantes que renegaram seu passado. Outros foram acusados mesmo de delação ou de provocar a "queda" de seus companheiros. Enfim, Gasparotto teve a coragem de enfrentar nossas mais caras representações a respeito do período em questão através da figura dos "arrependidos". Também devolve a eles um lugar no registro histórico acerca do período: trata-se da emergência de uma memória subterrânea, nos termos de Pollak3 3 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, vol. 2, n. 3, 1989. - uma memória para a qual a sociedade não encontra espaço ou condições de verbalização.

Seu trabalho é, ainda, competente na medida em que não se contenta com as evidências mais óbvias. Gasparotto tem a curiosidade intelectual e a paixão daqueles que se empenham o máximo possível na descoberta de fontes escritas, audiovisuais ou orais, indícios de qualquer natureza sobre o problema que se propôs a enfrentar. Tudo isto não é tomado de uma maneira simplista. A autora pensa seu objeto através de referenciais teóricos sofisticados - sobretudo reflexões acerca da memória e processos mnemônicos - que, contudo, não aparecem como um apêndice inadequado em seu texto. A autora seduz os leitores a acompanhá-la nas referências teóricas discutidas, dado que integradas em um texto atraente e apaixonante - seu livro pode, tranquilamente, ser lido em uma sentada, se o leitor tiver tempo para tal.

O trabalho também é de uma sensibilidade ímpar, já que investiga as motivações dos próprios "arrependidos". Se a autora não abre mão de expor - de forma sutil, porém firme - suas próprias convicções acerca da ditadura - algo que não se deve repetir -, ela escapa à escorregadia tentação de demonizar os sujeitos sociais com os quais se defrontou. Nada disso. Gasparotto investiga suas motivações, seus projetos políticos, as razões que os levaram à retratação pública, procura penetrar em sua lógica. Não os aplaina: antes, a autora enfrenta a complexidade e a heterogeneidade de situações que levaram às retratações: desde o "fraquejar" ao "francamente colaborar"; da maior à menor "sinceridade" dos arrependimentos (que a autora não se propõe a mensurar, antes, se debruça sobre a percepção dos próprios sujeitos sociais sobre a questão); das diferentes consequências da tortura física e psicológica às opções conscientes - ainda assim, marcadas pelo sofrimento; dos que, nos dias de hoje assumem, reafirmam, minimizam, negam ou se arrependem do "arrependimento". Era restrito o leque de possibilidades de atuação social. No entanto, a autora verifica de forma convincente como eles se movimentaram dentro deste leque, tirando a ênfase da vitimização. Não nega, por outro lado, os efeitos de suas retratações em prol da investida psicológica promovida pelo governo Médici contra seus opositores, armados ou não.

Os "arrependidos", de toda forma, são tratados como seres humanos como todos nós, frutos das contradições de seu tempo - e que tempos difíceis e atribulados! Seus jogos, investimentos, opções, lhes levaram a becos sem saída: não há espaço para eles na sociedade de fins do século XX e inícios do XXI; em 1970, porém, ninguém sabia disso. A autora investigou a trajetória pregressa dos militantes tendo em vista situar a gênese de seus grupos e das divergências políticas que implicaram nas retratações. A fim de entender aonde chegaram, percorreu suas origens e seus caminhos, historicizando, pois, suas opções políticas, em lugar de simplesmente avaliá-las conforme critérios extemporâneos. Segundo as palavras de seu ex-orientador, professor Benito Bisso Schmidt, signatário da apresentação do livro (p. 13), "não se trata, é óbvio, de absolvê-los - não é isso que se espera de uma pesquisa histórica -, mas de compreendê-los como sujeitos de seu próprio tempo, como parte de um processo mais amplo, dos quais foram agentes e produtos". Alessandra Gasparotto não julga. Não absolve. Não condena. Tem a sensibilidade e a seriedade de compreender.

Esse é o grande mérito que me leva a destacar a ética do trabalho. As convicções da autora acerca da legitimidade da luta contra o regime ditatorial transparecem ao longo do texto e delas não abre mão; todavia, isso não interfere em sua capacidade de diálogo com os personagens que entrevista. Mesmo discordando de seus atos, a autora não assumiu uma postura inquisitorial. De certa forma, isso pode ser visto como uma lição de história oral - quiçá de história de uma maneira mais ampla. É muito fácil criar uma empatia com personagens cuja atuação social é socialmente reconhecida como legítima - ao menos por parte da sociedade, ou por aquela a que pretendemos pertencer. Estabelecê-la diante daqueles que ocupam um não lugar na memória coletiva, de cujos atos se discorda de forma frontal, é que são elas ("A esquerda me olhava como um leproso e a direita já sabia o suficiente sobre mim para querer distância", lhe disse um entrevistado) (p. 220).

Igualmente fácil é a condescendência, isto é, não assumir o próprio ponto de vista em nome de uma forma distorcida de "empatia"; todavia, esta é a forma mais enganosa e arrogante de diálogo com os "outros": implica em não considerá-los de igual para igual, como seres humanos com os quais respeitosamente se dialoga e dos quais eventualmente se discorda. A autora é plenamente bem-sucedida ao evitar estas armadilhas e ao transitar no gume da lâmina destas afiadas memórias. Alessandra Gasparotto respeita, assim, seus interlocutores. Respeitar não é assumir sua versão. É tratá-los de igual para igual - não obstante o lugar de poder em que o pesquisador está assentado - e ser capaz de estabelecer um diálogo. É abordar a temática de forma a uma só vez humana e analítica - a última perspectiva, intrínseca ao seu métier. O respeito, eventualmente, implicou em tensioná-los, em confrontá-los até mesmo com o texto de sua retratação quando esta, na ambição de tornar o passado suportável, foi negada ou distorcida. Não para acusá-los, mas para proporcionar a reflexão. A autora soube lidar com o delicado lugar ocupado por seus interlocutores: agentes sociais que fizeram investimentos e apostas que posteriormente não encontraram lugar na memória que a sociedade democrática construiu sobre o período ditatorial. Percebeu o dilaceramento psicológico em que se encontram até hoje - "Massa" suicidou-se em 1976 - e é a partir da constatação desta fragilidade que move seu questionário sem jamais, contudo, abrir mão de seu rigor.

Não se trata, como visto, de absolvê-los. Tampouco de impor uma eventual percepção militante sobre os sujeitos investigados. Não se trata, ainda, de condená-los. Por mais que seja tentador julgá-los - lembrando-se dos horrores do regime pelo qual, como a autora demonstra, seus casos foram utilizados como eficientíssimo instrumento de propaganda anticomunista -, ela se abstém de fazê-lo. A autora compreende e ocupa um lugar de escuta. Mas, já diria o pai da psicanálise, tudo compreender não significa tudo perdoar. Ainda assim, de toda forma, Alessandra Gasparotto não arroga a si a prerrogativa de perdoar ou não. Não é a ela que cabe o perdão.

O trabalho da autora é, além de tudo, franco e honestointelectualmente. Gasparotto não hesita em evidenciar sua ideia inicial a respeito do tema - de que as retratações teriam sido obrigadas a partir das sessões de torturas - e de como voltou atrás a partir dos próprios relatos dos "arrependidos", que lhes forneceram uma gama muito mais complexa de alternativas que iam desde uma consciente discordância em relação à luta armada até constrangimentos mais efetivos; raras negociações de redução de pena ou liberdade provisória; rupturas ideológicas; efetivo resultado de tortura e maus-tratos.

Este belo livro, portanto, apresenta não apenas uma contribuição vigorosa aos estudos sobre ditadura militar; também traz aprendizados e reflexões para o historiador interessado na análise de fontes orais sobre quaisquer temas. Produz, ainda, testemunhos que, mesmo que sofridos e bastante marginais na memória contemporânea acerca da ditadura militar, não devem ser esquecidos. Em tempos em que se fala em dever de memória - não esquecer episódios particularmente abomináveis em nossa história, para que nunca se repitam -, a autora tem a coragem de tirar alguns esqueletos dos armários do nosso recordar. Em tempos de Comissão da Verdade, se devemos nos lembrar dos desmandos do regime militar, é necessário não nos esquecermos, também, da história daqueles cuja situação foi relegada ao silêncio ou ao esquecimento. Em nome, sobretudo, de uma percepção mais adequada e não simplista de um momento histórico repleto de nuances e projetos incômodos que a sociedade brasileira, no afã de reconciliar-se com seu passado, apagou de seus registros. Isso, timidamente, já começou a ser feito em 2004, quando o Estado brasileiro tomou para si a responsabilidade pela morte de Massafumi Yoshinaga. Que o trabalho de Alessandra Gasparotto sirva para fomentar novas e mais aprofundadas incursões sobre incômodos aspectos de um incômodo passado.

Referências bibliográficas

  • GASPAROTTO, Alessandra. O terror renegado. A retratação pública de integrantes de organizações de resistência à ditadura civil-militar no Brasil (1970-1975) . Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012.
  • POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In:Estudos Históricos, Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, vol. 2, n. 3, 1989,.
  • REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
  • _________. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: REIS FILHO, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-2004) . Bauru: Edusc, 2004.
  • 1
    Premiação conferida pelo Ministério da Justiça e pelo Arquivo Nacional para trabalhos meritórios acerca do período da ditadura civil-militar de 1964-1985, e que acarretou na publicação da dissertação.
  • 2
    REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: REIS FILHO, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo e MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc, 2004.
  • 3
    POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Cpdoc/FGV, vol. 2, n. 3, 1989.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2014

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2014
  • Aceito
    18 Mar 2014
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