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“UM POLÍTICO NO MUNDO DAS LETRAS”. LITERATURA E POLÍTICA NA TRAJETÓRIA DE ÁLVARO LINS1 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Na escrita do artigo, aproveitou-se imensamente de material pesquisado quando da realização de um projeto de pós-doutoramento desenvolvido junto ao Grupo de Investigação Leitura e Formas de Escrita, do Centro de Humanidades – Universidade Nova de Lisboa (LFE/CHAM-UNL), sob a orientação do Professor Catedrático João Luís Lisboa.

“A POLITICIAN IN THE WORLD OF LETTERS”. LITERATURE AND POLITICS IN ÁLVARO LINS’ TRAJECTORY

Resumo

O propósito deste artigo é explorar algumas dimensões da dupla inserção de Álvaro Lins nos espaços sociais, marcados ora pelos princípios próprios aos circuitos intelectuais/literários, ora subordinados a ditames mais afeitos à lógica do político. Partindo do pressuposto de que se trata de um homem de letras que se formou num momento em que as distinções entre o espaço literário e político ainda estavam muito borradas, este artigo se debruça sobre alguns momentos da trajetória profissional de A. Lins que evidenciam o quanto essa bifrontalidade é definidora do tipo de crítico literário que ele foi. Tendo isso em vista, é dado algum destaque ao período em que ele circulou em Portugal – a partir dos anos 1940, com especial atenção para os anos 1950.

Palavras-chave
Álvaro Lins; literatura; política; crítica literária; Portugal

Abstract

This paper explores some dimensions of Álvaro Lins’ double insertion in social spheres, marked at times by principles proper to the intellectual / literary circuits, and at other times by political interests. Considering that Lins was a man of letters acting at a time when the distinctions between the literary and social spheres were still blurred, this article focuses on certain moments in Lins’ professional trajectory that show how this dual perspective defines his literary critic practice. In this regard, some emphasis is given to the period his work circulated in Portugal – starting in the 1940s, with special attention to the 1950s.

Keywords
Álvaro Lins; Literature; Politics; Literary criticism; Portugal

Um “iniciado escritor de província”

Em 2017, movido por um íntimo dever de prestar homenagem pela passagem dos 46 anos da morte de seu amigo – “o patriota, o cidadão exemplar, o intelectual revolucionário” Álvaro Lins (RODRIGUES, 2017RODRIGUES, Miguel Urbano. Álvaro Lins. Diário Liberdade, [S. l.], 27 mar. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/3I4TvXo>. Acesso em: 29 abr. 2020.
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) –, Miguel Urbano Rodrigues publicou, no Diário Liberdade, um pequeno relato sobre a sua relação com este que teve uma relevante penetração no mundo intelectual e político português de meados do século XX.3 3 Sobre Miguel Urbano Rodrigues e suas vinculações com o Partido Comunista Português, bem como sua prestigiada atuação na imprensa dos dois lados do Atlântico, ver notícia publicada em Portugal Digital (MORREU O JORNALISTA…, 2017). É assim que, em traços largos, Miguel Urbano nos permite ver o profundo envolvimento de A. Lins com as lutas revolucionárias pela deposição de Salazar e sua forte aproximação com o Partido Comunista Português (PCP) e exilados portugueses no Brasil, bem como a referência que ele, Álvaro Lins, se constituiu para Humberto Delgado.4 4 Sobre o caso do asilo ao General Humberto Delgado na sede da embaixada brasileira em Lisboa, ver Chorão (2019), Delgado (2009), e Lins (1960). Para o leitor não familiarizado com o caso, cabe reter que a candidatura do General Humberto Delgado à presidência de Portugal, em 1958, fez despertar, pela primeira vez desde a instauração do regime salazarista, uma mobilização política de oposição verdadeiramente de massas, uma vez que foi, também, a primeira candidatura de oposição que chegou efetivamente a disputar o voto. Todas as iniciativas anteriores de oposição sucumbiram às pressões e manobras do regime, que, na prática, as inviabilizaram. À esperada derrota do candidato, entretanto, seguiram-se articulações e todo um conjunto de ações que colocaram o general como a principal liderança contra tudo que o salazarismo representava, tornando-o, por isso mesmo, vítima de toda sorte de perseguições. Frente às ameaças diversas que vinha sofrendo, sua decisão de recorrer ao asilo na embaixada do Brasil abriu uma nova fase na luta que se agudizava e que ganharia logo em seguida, com as guerras de independência nas colônias africanas, uma dimensão de inusitado descontrole e desmedida violência. Em 1965, Delgado foi assassinado pela polícia política do regime. Registra-se, por fim, que, como evidencia sua alta patente, o General Delgado era, até um período bem próximo do episódio eleitoral, um prestigiado quadro das Forças Armadas portuguesas e, por extensão, do regime. Sua inflexão para a oposição e a aproximação de setores revolucionários de combate ao salazarismo decorreram de sua decisão inicial de se constituir numa opção democrática.

Quanto a este último aspecto, cabe uma pequena digressão. Segundo Miguel Urbano, A. Lins o teria convidado para ir de São Paulo, onde residia, ao Rio de Janeiro para uma importante conversa. Na ocasião, acompanhado de Bidarra da Fonseca, “camarada do [jornal] Portugal Democrático”, Miguel Urbano teria ouvido do “embaixador” a sugestão de “que tomássemos a iniciativa de comunicar ao mundo que Humberto Delgado fora presumivelmente assassinado”, pois, de acordo com a “correspondência que [A. Lins] mantivera com o general desde a sua saída do Brasil, Delgado lhe dissera que, se o contato cessasse de repente a partir de uma data que indicava, ele estaria certamente morto. Álvaro Lins cumpria o que lhe fora pedido” (RODRIGUES, 2017RODRIGUES, Miguel Urbano. Álvaro Lins. Diário Liberdade, [S. l.], 27 mar. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/3I4TvXo>. Acesso em: 29 abr. 2020.
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). O que chama a atenção neste episódio, tal como relatado por um destacado quadro das oposições portuguesas no Brasil, é que, entre tantas pessoas próximas e bem-posicionadas na hierarquia das lutas antisalazaristas que poderiam exercer o papel de contato de segurança, o General Delgado teria escolhido aquele que, anos antes, desempenhara um papel crucial nas longas e tensas negociações que resultaram em seu exílio no Brasil.

Essa projeção e o importante reconhecimento de A. Lins em meio a intelectuais e militantes da causa portuguesa deu-se, evidentemente, em consonância com os desdobramentos do seu envolvimento com o asilo e exílio de Delgado. Visto desse ângulo, nada mais natural. Todavia, quando se historia as relações iniciais deste que foi um dos principais críticos literários brasileiros ao longo dos anos 1940 e 1960 com o mundo intelectual e literário português, o quadro que emerge é muito mais complexo e intrigante e, para bem compreendê-lo, alguns dados biográficos se fazem necessários.

Quando de sua primeira viagem a Portugal, em julho de 1948, seu amigo e editor do Suplemento Literário do Diário de Pernambuco, Mauro Mota, publicou notícia relativa à viagem, informando que o crítico seguia para a Europa “atendendo a convites de associações culturais de Portugal, Espanha, França e Itália, [a fim de] proferir conferências nesses países sobre a nossa literatura” (A CAMINHO DA…, 1948aA CAMINHO da Europa o escritor Álvaro Lins. Diário de Pernambuco, Recife, 18/07/1948a, Suplemento, n. 167, p. 15. Disponível em: <https://bit.ly/3ntGgWA>. Acesso em: 29 jun. 2022.
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, p. 15). Por esta ocasião, A. Lins já havia se firmado no Rio de Janeiro, onde se instalara oito anos antes, como importante crítico e profissional da imprensa escrita carioca. Mauro Mota não perde a oportunidade de rememorar o ocorrido:

Torna-se oportuno lembrar que precisamente há oito anos, neste mesmo mês de julho, Álvaro Lins, como um iniciado escritor de província e mais empurrado pelas hostilidades de província do que pelo desejo de abandonar a terra do seu nascimento, deixava o Recife e seguia para o Rio. (…) Dentro de oito anos, Álvaro Lins realizou uma obra sem precedente em escritor de sua idade, pela extensão e sobretudo pelo espírito de seriedade que a anima em todos os sentidos. (…) É esta, nos rápidos traços de uma notícia de jornal, a categoria do escritor tangido do Recife pela prepotência estadonovista e que agora passa pelo Recife a caminho da Europa (A CAMINHO DA…, 1948aA CAMINHO da Europa o escritor Álvaro Lins. Diário de Pernambuco, Recife, 18/07/1948a, Suplemento, n. 167, p. 15. Disponível em: <https://bit.ly/3ntGgWA>. Acesso em: 29 jun. 2022.
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, p. 1).

O que queria dizer o amigo em sua referência às “hostilidades de província” sofridas por A. Lins que o teriam levado a ser “tangido do Recife pela prepotência estadonovista” (A CAMINHO DA…, 1948aA CAMINHO da Europa o escritor Álvaro Lins. Diário de Pernambuco, Recife, 18/07/1948a, Suplemento, n. 167, p. 15. Disponível em: <https://bit.ly/3ntGgWA>. Acesso em: 29 jun. 2022.
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, p. 15)? Ainda que muitos detalhes estejam à espera de maiores pesquisas, sabe-se o suficiente do caso para esclarecer o que Mauro Mota deixou silenciado nas entrelinhas.

No alvorecer dos anos 1930, com a vitória das forças que haviam se levantado contra o arranjo político e institucional vigente desde a ascensão de Campos Sales à presidência, Álvaro Lins, até então um jovem – nasceu em 1912 – com alguma circulação nos espaços intelectuais e jornalísticos do Recife, é alçado à condição de Chefe de Gabinete do interventor federal de Pernambuco – depois governador eleito –, Carlos de Lima Cavalcanti. Esta é uma relação que se revelou, inicialmente, muito proveitosa para Lins, na medida em que possibilitou a conexão com forças políticas importantes em seu estado natal. Porém, quando em 1937 Getúlio dá seu autogolpe, a coisa muda radicalmente de figura. Carlos de Lima Cavalcanti era um dos apoiadores da candidatura a presidente – que se supunha de situação – de José Américo de Almeida e, em razão disto, passou rápida e radicalmente da condição de aliado de primeira hora para a de obstáculo a ser removido por Getúlio (PANDOLFI, 1984PANDOLFI, Dulce Chaves. Pernambuco de Agamenon Magalhães: consolidação e crise de uma elite política. Recife: Massangana, 1984.), que, para isso, pôde contar com todo o empenho e obstinação próprios dos aprendizes de feiticeiro, que era como se apresentava na ocasião aquele que veio a ser uma das faces mais marcantes do novo regime: Agamenon Magalhães. O que se viu na sequência foi uma tenaz perseguição não apenas a Carlos de Lima Cavalcanti, mas também a todos que o cercavam.

Perdidos os espaços que a política lhe tinha aberto, A. Lins viu-se, nesta nova conjuntura, precisando garantir sua subsistência exclusivamente pelo exercício profissional da atividade de jornalista e, concomitantemente, de professor nas escolas da cidade. Entretanto, em meio aos seus afazeres de jornalista/professor, ele encontra tempo para escrever o que veio a se constituir no seu primeiro ensaio de apreciação crítica de um escritor: História literária de Eça de Queiroz. Não deixa de ser surpreendente, a esse respeito, o fato de o seu primeiro livro com ambições de crítica literária, publicado quando A. Lins não passava de um jovem aspirante a escritor atuante nos meios jornalísticos e intelectuais do Recife, ter sido justamente aquele que infletiu de maneira a mais substantiva sobre toda a sua vida – seja do ponto de vista pessoal, profissional ou até mesmo político. Tendo, neste trabalho inaugural, se debruçado sobre a vida e a obra de Eça de Queiroz, o resultado imediato desta empreitada intelectual foi o lançamento de seu autor no coração de uma acesa polêmica. Se, por um lado, projetou o nome do jovem Álvaro Lins como um (muito) promissor crítico literário, por outro, de maneira mais significativa e pelo menos com implicações mais diretas e expressivas, o colocou no centro de uma acirrada disputa político-religiosa. Tudo porque teria escrito um livro elogioso a um escritor considerado pelos setores conservadores do catolicismo como um mau exemplo para a juventude católica, pois “havia descido a todas as vilanias” (HOLANDA; FRANÇA, 2007HOLANDA, Lourival & FRANÇA, Humberto (org.). Álvaro Lins: ensaios de crítica literária e cultural. Recife: Editora UFPE, 2007., p. 59, grifos do autor).5 5 Conforme entendimento do Pe. António Fernandes, SJ. Segundo o padre, goês de nascimento e, à época, dirigente da Congregação Mariana da Mocidade Acadêmica e do Colégio Nóbrega, onde A. Lins à época lecionava, “não podia ser professor quem procurava justificar obra tão nefasta”. Juízo assim duro da obra e do autor certamente vinha no sentido de justificar a demissão do jovem professor. Mas, graças a sua grande influência na política local, em boa medida decorrente da ascendência que tinha sobre vários dirigentes políticos em Pernambuco, em especial seu nome máximo – Agamenon Magalhães –, e em todos os demais que eram ligados à Congregação Mariana, a sentença condenatória do jesuíta contribuiu enormemente para que a perseguição não se encerrasse nisso. Se a demissão de A. Lins tinha, portanto, essa dupla marca – política e religiosa –, cabe registrar que ambas as faces se somaram: além de demitido do Colégio Nóbrega, viu-se também impedido de participar do concurso público para docente do Ginásio Pernambucano, principal e mais prestigiado estabelecimento de ensino do estado.

Até onde se sabe, deve-se a esse episódio, em que à perseguição política se estendeu ao garroteamento das possibilidades de atuação profissional, sua decisão de se mudar para o Rio de Janeiro. Munido de uns escassos mil réis que conseguira acumular, mas, por outro lado, podendo contar com importantes capitais sociais e culturais (BOURDIEU, 1996BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996., 2007BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp, 2007.) que havia logrado reunir, sua inserção nos meios jornalísticos cariocas não foi algo que tenha requerido esforços inauditos. De fato, além da expressiva rede de relações – notadamente, e em primeiro lugar, Gilberto Freyre, José Lins do Rego e os irmãos Condé, que tinham ampla circulação e respeitabilidade no Rio de Janeiro – de que podia lançar mão para fazer-se conhecido e obter uma colocação inicial no muito concorrido meio jornalístico/intelectual da capital federal, A. Lins também tinha a seu favor, nesse primeiro momento, toda uma prática de escrita/reflexão, resultante de seus anos de formação no Recife. Apesar de jovem, não se tratava de um noviço – pelo contrário, como registrou Mauro Mota na notícia citada anteriormente, tratava-se de “um iniciado escritor de província” (A CAMINHO DA…, 1948A CAMINHO da Europa o escritor Álvaro Lins. Diário de Pernambuco, Recife, 18/07/1948a, Suplemento, n. 167, p. 15. Disponível em: <https://bit.ly/3ntGgWA>. Acesso em: 29 jun. 2022.
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, p. 15).

Com efeito, sua desenvoltura e cabedal intelectual foram cruciais para projetá-lo rapidamente no cenário intelectual do Rio de Janeiro. Atuando num dos principais jornais cariocas da época, Correio da Manhã, ele assumiu uma coluna semanal de crítica literária e granjeou, um tanto rapidamente, invejáveis reconhecimento e respeitabilidade. É preciso, quanto a isto, ainda que apenas a traços largos, ter em consideração dois aspectos relevantes para entender a personalidade literária e política de A. Lins. De um lado, ponderar sobre o campo dos possíveis da crítica literária, tal como então era praticada nos anos 1940, seus pressupostos e fundamentos intelectuais/conceituais, principais nomes e veículos etc.; de outro, situar neste campo o nosso personagem com suas lealdades e convicções de toda ordem, seus valores ético-estéticos, enfim, algumas das referências maiores em conformidade com as quais poderemos compreender melhor sua atuação profissional.

Em relação ao primeiro aspecto, cabe reter que, nos anos 1940, era nos jornais diários, e não nas universidades, revistas especializadas ou academias de Letras, que se exercia a crítica literária. Se praticamente todos os jornais, ou pelo menos aqueles que tinham certo porte e aspiração de exercer algum papel relevante nos debates públicos, tinham um ou mais críticos literários, e se era neles que se dava o embate das concepções críticas, então cumpriria reconhecer que à hierarquia dos jornais, em termos de respeitabilidade, corresponderia uma hierarquia dos críticos. De certo modo, sim, mas a coisa não era exatamente assim. É sabido que a crítica literária ainda guardava alguns traços de um passado recente, em que era exercida por escritores polígrafos que assumiam funções variadas de escrita e crítica – com alguma frequência, variando da crítica literária para a crítica teatral, às vezes cinema, artes plásticas etc. Mas nos anos 1940 talvez já se pudesse falar de crítica especializada. Especializada, contudo, num sentido bem específico. A prática de Álvaro Lins nesses anos ilustra bem o que se está aqui querendo dizer (BOLLE, 1979BOLLE, Adélia Bezerra de Meneses. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979.; HOLANDA, 2019HOLANDA, Lourival. Álvaro Lins: o crítico necessário. In: HOLANDA, Lourival. Realidade inominada: ensaios e aproximações. Recife: Cepe, 2019, p. 149-164.; NINA, 2007NINA, Claudia. Literatura nos jornais: a crítica literária dos rodapés às resenhas. São Paulo: Summus, 2007.; PEREIRA, 2011PEREIRA, Fábio. Jornalistas-intelectuais no Brasil. São Paulo: Summus, 2011.; RAMASSOTE, 2011RAMASSOTE, Rodrigo Martins. Inquietudes da crítica literária militante de Antonio Candido. Tempo Social, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 41-70, 2011.; ROCHA, 2011ROCHA, João Cezar de Castro. Crítica literária: em busca do tempo perdido? Chapecó: Argos, 2011.; SÜSSEKIND, 2002SÜSSEKIND, Flora. Rodapés, tratados e ensaios: a formação da crítica brasileira moderna. In: SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, p. 13-33.).

No início dos anos 1940, A. Lins assume a titularidade de um espaço de destaque no mundo intelectual de então num momento em que o conceito de literatura, ou, mais propriamente, de homem de letras, está ainda preservado das concepções mais “técnicas” e mais acadêmicas (universitárias) que já na década seguinte começariam a se infiltrar de forma bastante expressiva nos jornais e suplementos literários brasileiros, redefinindo seus parâmetros de legitimidade. Sobretudo, para o que aqui importa, é preciso ter em conta que nos termos vigentes nos anos 1940, a noção de literatura ainda guardava certas noções de práticas letradas caras a todos aqueles que se enxergavam como remanescentes de uma imaginada república das letras, com seus escritos sendo concebidos e percebidos como representação mimética do real (LIMA, 1980LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Graal, 1980.) em que, não obstante aspirarem o estatuto de objetos de fruição eminentemente estética, não perdiam a ambição de serem simultaneamente uma modalidade de investigação da essência das coisas – entre as quais, a mais preciosa: a condição humana e seus mundos vividos. Em outras palavras, a literatura era melhor compreendida quando compaginada com o entendimento de que se tratava igualmente de um discurso sobre as formas específicas em que a vida social se desdobrava, que perscrutava as almas dos povos, das nações, que elucidava suas démarches e complexidades e que se constituía, por isto mesmo, numa forma privilegiada por meio da qual esse debate tinha vazão. E seus autores, bem como os homens de letras em geral (críticos etc.), eram percebidos como homens públicos, a quem, por extensão, correspondia determinado ethos, determinado código de valores que, como sentenciou Carpeaux a respeito do próprio A. Lins, os compromissavam e vinculavam a este debate público.

Num cenário como este, era absolutamente corriqueiro que as páginas de crítica literária se dedicassem a discorrer sobre temáticas e obras de teor acentuadamente político ou cujo acento histórico-social não passava desapercebido. A. Lins, de maneira inequívoca, vivia com todas as suas implicações nessa zona de interseção na qual se mostrava completamente à vontade.6 6 Na apreciação de Lourival Holanda (2019, p. 149-150, grifos do autor): “Álvaro Lins é um crítico à part entière: aquele que tenta discernir, ver claro, nas coisas da cultura literária. (…) Uma aguda consciência crítica, vendo a literatura como sistema enraizado na vida e na história da sociedade. Não sem um grão de sal de heresia. A concepção de um crítico plural, alargando a literatura a planos diversos – sociológico, antropológico, histórico –, assim a concebe Álvaro Lins: ciência autotélica, mas de modo algum isolada, como quer Afrânio Coutinho, seguindo Blackmur (crítica e críticos)”. Quem, talvez, tenha melhor e mais precocemente percebido esse traço marcante de sua personalidade literária/intelectual foi Otto Maria Carpeaux, quando, em artigo, chamou a atenção para o que designou como sua “vocação de tribuno”:

Um tribuno não é um demagogo barulhento. Um tribuno é um defensor intrépido de homens ameaçados e de valores ameaçados que lhe são sagrados, como a vida de cada homem, a vida humana e a humanidade lhe são valores sagrados. (…) As suas soluções, às vezes violentas, subordinam-se à vontade de arrumar a casa para restabelecer a ordem. É um arrumador nas nossas cabeças e nas nossas letras. Institui, enfim, uma ordem, um código de valores. (CARPEAUX, 1943, apud HOLANDA; FRANÇA, 2007HOLANDA, Lourival & FRANÇA, Humberto (org.). Álvaro Lins: ensaios de crítica literária e cultural. Recife: Editora UFPE, 2007., p. 94)

Diferente, portanto, do que posteriormente passou a ser a tônica dos estudos sobre fatos e feitos literários, dissociar as dimensões políticas daquelas outras tomadas estritamente como literárias, quando se trata de autores aos moldes do que foi A. Lins, afigura-se como procedimento indevido ou, no mínimo, inadequado. Eis o porquê de, no que concerne a preocupações dessa ordem – não dissociar literatura e política –, ter em consideração as experiências vividas por A. Lins em diferentes momentos de sua carreira pode vir a ser especialmente frutífero.

Para que se avance um pouco mais no delineamento das concepções mais marcantes subjacentes à sua atuação como crítico, alguma atenção deve ser dada ao episódio que o levou a deixar sua província natal – especificamente, a perseguição de que foi vítima por parte de um regime ditatorial –, uma vez que se deve a ele, em grande medida, não só a mudança para o Rio de Janeiro, em 1940, como também seu radical afastamento e recusa dos princípios autoritários que permeavam e davam o Norte a parcelas expressivas do pensamento católico. Aliado à experiência da guerra, que lhe despertou um profundo choque em relação à cumplicidade do pensamento autoritário católico com os horrores nazistas, é nesse início dos anos 1940 que ele redefine sua visão de mundo e seus valores mais profundos. Sem abjurar ao catolicismo, passa a recusar a postura de se atribuir a ele um princípio ordenador da vida social. Para que seja mais bem apreciada esta mudança de posicionamento ideológico de A. Lins, é preciso que se tenha em conta seu anterior envolvimento com o Integralismo. Como muitos de sua geração, também A. Lins se viu, em algum momento, atraído pela crítica ao liberalismo de cariz fascista – ou protofascista – que vicejou nos anos 1930. Também como muitos de seus contemporâneos, uma vez despertado para os perigos inerentes a todas as variantes de pensamento autoritário, iniciou um deslocamento em direção a uma postura de esquerda, assumindo, mesmo, um posicionamento de defensor de certa modalidade de socialismo democrático, o que, já nesses anos 1940, o fez transitar da Esquerda Democrática para o Partido Socialista Brasileiro (PSB), em 1947, do qual foi um dos fundadores. Ao longo dos anos 1960, antes de morrer, em 1970, estava a assumir posturas ainda mais radicais – entre outros exemplos possíveis de serem evocados, evidencia-se a sua ligação com a esquerda revolucionária de oposição a Salazar.

Ainda que inserido nos meios intelectuais e literários do Rio de Janeiro, com foros de autoridade e direitos de senhorio, A. Lins não perdeu seu vezo político. Pelo contrário, sua carreira no mundo das letras foi repleta de episódios e situações que explicitam como esses espaços da vida social – intelectual/literário e político – se retroalimentavam.

Muito interessantes, a esse respeito, são algumas das cartas enviadas pelo escritor brasileiro Cyro dos Anjos para Ruben A. Leitão, escritor português que trabalhava para a embaixada brasileira em Lisboa exercendo funções análogas às de um adido cultural. Intermediando uma demanda de Ruben A. por aumento de seus vencimentos, dizia Cyro, em carta de novembro de 1955, já passadas, portanto, umas tantas semanas da eleição de Juscelino Kubistchek: “Nosso Álvaro continua ocupando uma área considerável no coração do presidente eleito. Será ou Chefe da Casa Civil ou futuro Embaixador em Portugal. (…) E quando venha Juscelino, cuidaremos, com Álvaro, daquele seu problema aí”. Em fevereiro do ano seguinte, voltava Cyro dos Anjos a escrever e a tratar do mesmo assunto, tentando tranquilizar o aflito confrade português: “Como o Álvaro está com grande prestígio no governo (o chefe do gabinete civil tem, entre nós, atribuições muito amplas. É quase um superministro. E o Álvaro tem sabido impor-se), estou certo de que sem dificuldade obterá do Itamaraty a melhora da gratificação do caro Ruben”.7 7 ANJOS, Cyro dos. Cartas a Ruben A. Leitão, novembro de 1955 e fevereiro de 1956. Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio E35, Ruben A., pasta 5592. Ainda nessa linha, em que as relações intelectuais eram atravessadas por outras cujas naturezas sociais e políticas sobrelevavam-se, Cyro faz menção, nesta mesma carta, ao que ele designa como “affair Gaspar Simões”. Comentando a recusa do renomado crítico português em assumir, naquele ano de 1956, uma cadeira para a qual fora convidado na Faculdade de Filosofia, da Universidade do Brasil, Cyro deixa entrever o possível arco de influência que Álvaro Lins desfrutava, neste momento, nos meios intelectuais:

Foi pena que aquele nosso amigo haja perdido tal oportunidade. Achando-se Álvaro no gabinete civil da presidência, as coisas correriam aqui com mais facilidade que imaginávamos quando estivemos em casa dele, no bairro das Janelas Verdes, a tratar do assunto. Não só pequenos encargos de serviços culturais do governo lhe poderiam ser cometidos, mas também uma posição permanente no “Correio da Manhã”. Se, de fato, pretendia vir para aqui, a ocasião não poderia ter sido mais propícia.8 8 ANJOS, Cyro dos. Cartas a Ruben A. Leitão, novembro de 1955 e fevereiro de 1956. Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio E35, Ruben A., pasta 5592.

Ainda quanto a isto, convém não perder de vista sua notória aproximação com instituições do Estado brasileiro quando ainda se encontrava sob o jugo do Estado Novo, como bem evidenciam tanto os trabalhos que fez para o Itamaraty como, de maneira significativa, sua boa circulação pelos corredores do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que, como se verá, teve papel relevante na projeção de seu nome em mais de uma iniciativa de promoção cultural do Brasil no exterior, mormente em Portugal.9 9 Para bem se entender isto, é preciso considerar a relevância das instituições públicas na conformação de um mercado cultural nesses anos 1940. Conforme parecer de Sérgio Miceli (2001, p. 197-198): “no que diz respeito às relações entre intelectuais e o Estado, o regime Vargas se diferencia porque define e constitui o domínio da cultura como um ‘negócio oficial’, implicando um orçamento próprio, a criação de uma ‘intelligentzia’ e a intervenção em todos os setores de produção, difusão e conservação do trabalho intelectual e artístico”.

No que diz respeito ao Itamaraty, cumpre registrar a muito elogiada e premiada biografia que A. Lins escreveu de seu patrono – Rio Branco –, mas também os constantes serviços que prestou ao Ministério das Relações Exteriores, onde exerceu, por bons anos, a função de consultor técnico da Divisão Cultural do Itamaraty e, sucessivamente, de delegado governamental, secretário e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC), agência especializada da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) no Brasil. Ademais, foi o primeiro docente responsável pela cadeira sobre História e Cultura Brasileira, criada junto à Universidade de Lisboa, em convênio com o Itamaraty (1952-1954). Tudo isso culminou com o posto de chefe da missão diplomática brasileira em Portugal entre 1956 e 1959.

Não é de todo casual o fato de Portugal ocupar um lugar especial na confluência dessas relações de Álvaro Lins com o Itamaraty e o DIP, assim como não é desimportante, para os propósitos deste artigo, acompanhar mais de perto as experiências vividas pelo nosso personagem em terras lusitanas. O que segue procura, precisamente em razão deste entendimento, examinar um pouco mais de perto as diferentes relações constituídas, momento a momento, por A. Lins em Portugal.

Um crítico, um mestre

Em maio de 1942 veio a público o primeiro número da revista Atlântico, um dos frutos do Acordo Cultural firmado em setembro do ano anterior pelos dirigentes do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e DIP, António Ferro e Lourival Fontes, respectivamente. A revista propunha-se a “(…) mostrar os dois países, um ao outro, tal como se revelam, e manifestam, pela cultura, pelo pensamento, pela emoção poética, pela criação literária, pela arte e pela crítica, pelas obras do espírito, enfim”.10 10 Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 1, p. 170. A revista contava com o seguinte expediente: António Ferro e Lourival Fontes – Diretores; José Osório de Oliveira – Secretário de Redação; Manuel Lapa – Direção Artística. Sobre o Acordo Cultural e sua importância para as relações luso-brasileira, ver, entre outros, Assunção (2015) e Paulo (1992). Neste número inaugural, Atlântico traz Álvaro Lins entre seus colaboradores brasileiros. Passados poucos meses, em outubro do mesmo ano, sai o segundo número da revista, mais uma vez com uma contribuição de A. Lins. Neste meio tempo, em junho de 1942, outro periódico lisboeta, Acção – Semanário da vida portuguesa, publica um artigo do brasileiro a respeito de Antero de Quental, cujo centenário foi comemorado naquele ano.11 11 Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 1, p. 177; Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 2, p. 369; Acção: Semanário da Vida Portuguesa. Lisboa, 1942, n. 62, p. 1-5. Até onde se sabe, foi naquele ano e por meio dessas publicações que, pela primeira vez, o nome de Álvaro Lins circulou entre leitores portugueses. Ainda que de naturezas distintas, ambas as publicações guardavam grande proximidade com o regime salazarista. A primeira, Atlântico, como já dito, era mesmo uma revista de caráter oficial, mantida por instâncias da burocracia dos Estados Novos brasileiro e português. Em relação à segunda, Acção, não cabe a designação de oficial, isto é, de periódico diretamente subordinado à estrutura burocrática do Estado ou por ele financiado, mas nem por isso se deve desconsiderar que se tratava de publicação estreita e fortemente comprometida com o establishment. Sua adesão aos ditames e orientações do regime era total e absoluta. Seu diretor à época, Manuel Múrias, era um antigo militante de uma das variantes da extrema-direita portuguesa, aquela sobre a qual a literatura especializada não hesita em categorizar de fascista.12 12 O verbete a respeito de Manuel Múrias no Dicionário de História do Estado Novo assim o define: “Foi integralista e membro do Movimento Nacional-Sindicalista, fazendo parte de seu Grande Conselho. Aqui foi um dos mais destacados membros do grupo que protagonizou a cisão pró-salazarista dentro dos ‘Camisas Azuis’ (…)” (ROSAS; BRITO, 1996). Sobre o debate em torno do caráter fascista ou não do salazarismo, ver, entre outros, Pinto (1990) e Torgal (2008).

Na sequência dessas primeiras aparições em veículos tão fortemente marcados pelo timbre do regime salazarista, o nome e os escritos de A. Lins começaram a obter um grau de respeitabilidade e autoridade algo similar ao que o autor estava, nessa mesma altura, a conquistar no Brasil.13 13 De certo modo, não deixa de ser intrigante ver Álvaro Lins ombrear-se com alguns dos mais prestigiados nomes das letras brasileiras de então: Mário de Andrade, Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, entre outros que, assim como ele, haviam sido selecionados por Lourival Fontes para “representar” a cultura brasileira na Atlântico. A seu favor, contavam não só o prestígio inicial que havia conquistado com sua crítica de rodapé, mas o próprio livro sobre Eça de Queiroz, que o qualificava de maneira especial para este tipo de embaixada cultural que a Atlântico procurou desempenhar. E não apenas entre escritores e leitores simpáticos ao regime. Por aproximadamente uma década e meia, até a ocasião em que assume a chefia da missão diplomática do Brasil em Portugal, em 1956, é possível identificar abundantes referências a Lins, quando não artigos de sua autoria na imprensa e em revistas literárias portuguesas. Talvez não seja um disparate, quanto a isto, considerar que, para além de sua presença meramente intelectual, as duas estadias em terras portuguesas que antecederam o período em que atuou como embaixador tenham repercutido positivamente na projeção de seu nome, na medida em que foram momentos em que relações pessoais puderam ser tecidas e laços de amizade foram constituídos.14 14 Como já foi referido, em 1948, Álvaro Lins fez uma longa viagem à Europa, permanecendo em Portugal por uns tantos meses. Depois, entre o final de 1952 e começo de 1954, foi titular da cadeira de Literatura e História do Brasil junto à Universidade de Lisboa. Essa segunda estadia, em particular, revestiu-se de uma importância substantiva no que diz respeito ao estabelecimento de suas relações com literatos e intelectuais locais, dada a sua condição de docente em uma instituição de singular destaque no espaço intelectual português.

Dado o que será argumentado na sequência, em que essa dimensão das relações constituídas ganhará relevo, conviria, previamente, explorar um pouco mais a presença e circulação de Álvaro Lins nos espaços literários e culturais portugueses e, por extensão, algumas das diferentes maneiras como sua obra foi lida, apreendida, assimilada, que usos suscitou, que ruídos provocou, que comentários e que tipo de atenção obra e autor obtiveram dos literatos portugueses.15 15 Esclarece-se desde já que, menos que os temas em si dos artigos e escritos críticos de Álvaro Lins, ou os ângulos de abordagem (tratamento) dos mesmos – o que demandaria uma imersão na prática de crítica literária da época –, lendo uns à luz dos outros, segundo seus pressupostos e princípios de análise, o que se procura aqui é, tanto quanto possível, tão somente delinear os modos como eles (e seu autor) foram recebidos, os usos e apropriações que despertaram nos meios literários portugueses, bem como as relações a partir daí constituídas.

De início, ainda que fuja aos propósitos deste artigo uma análise mais detida do campo intelectual/literário português no recorte temporal aqui abarcado, cumpre situar o leitor com algumas referências mínimas a esse respeito (Ó, 1999Ó, Jorge Ramos do. Os anos de ferro: o dispositivo cultural durante a “política do espírito”, 1933-1949: ideologia, instituições, agentes e práticas. Lisboa: Estampa, 1999.; GEORGE, 2002GEORGE, João Pedro. O meio literário português (1960/1998). Oeiras: Difel, 2002.; MEDEIROS, 2010MEDEIROS, Nuno Miguel Ribeiro de. Edição e editores portugueses: o mundo do livro em Portugal 1940-1970. Lisboa: ICS, 2010.; TORGAL, 1999TORGAL, Luís Reis. “Literatura oficial” no Estado Novo: os prémios literários do SPN/SNI. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 20, p. 401-420, 1999., 2009TORGAL, Luís Reis. Estados novos, estado novo: ensaios de história política e cultural. 2. ed. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009. v. 2.). Nesse sentido, seria preciso considerar que o empenho do Estado Novo português para constituir um sistema de mecenato às letras e artes, com vários organismos oficiais a conceder bolsas e subsídios e a organizar congressos e exposições, visava explicitamente municiar o governo de recursos que lhe permitiriam aspirar, se não a adesão dos escritores, artistas etc., pelo menos sua simpatia ou algum indiferentismo ante o cenário político. Bem avaliar, entretanto, os significados de iniciativas como essas implica compreendê-las vis a vis o quadro de fragilidade do mercado de letras naquela época. De um lado, há que se considerar que se tratava de uma sociedade cujos índices de analfabetismo eram significativamente superiores aos de seus pares europeus16 16 Quanto à morfologia do campo intelectual português de então, o resumo a seguir é bem ilustrativo: “Durante o Estado Novo, o número de pessoas diplomadas por liceus e universidades subiu. (…) No entanto, a explosão escolar até à década de 1960 não foi tão dramática que afetasse o valor das credenciais acadêmicas. Num país analfabeto, a instrução garantia uma certa preeminência social e os diplomados tendiam a comportar-se como uma ordem nobiliárquica. A maior parte usava títulos, como o de Doutor, decoração académica que se vulgarizou entre políticos e literatos durante a República, precisamente quando acabou o uso oficial de títulos de nobreza. (…) O censo de 1940, classificava 59.897 pessoas nas ‘profissões de carácter predominantemente intelectual’. Representavam 1% da população ativa. (…) O estado empregava 37%. (…) A literatura e as artes faziam parte das atividades e consumos que definiam esta elite instruída. Em 1950, segundo o recenseamento da população, havia 260 escritores, 255 ‘pintores de arte’, 324 escultores e 72 realizadores e técnicos cinematográficos” (OS INTELECTUAIS E…, 2018). ; de outro, a par da existência de certo ecossistema letrado, com casas editoras, revistas e jornais diversos, a possibilidade de viver exclusivamente do ofício de escritor permanecia algo incerto, sendo os empregos públicos – ainda que, em muitos casos, na área do ensino – uma solução assaz comum.

Cabe, ainda, referir que, a despeito disto – ao que se deve acrescer os intuitos de controle/censura do regime –, é de se notar o expressivo contingente de escritores, intelectuais etc. que reivindicaram uma postura de oposição ao salazarismo e suas iniciativas. Um bom exemplo disso pode ser visto no caso de um grupo representativo de intelectuais, professores e escritores que firmaram seus nomes em uma lista de apoio ao recém-constituído Movimento de Unidade Democrática, em outubro de 1945:

A 16 de Outubro de 1945, 29 professores da Universidade de Coimbra decidiam apoiar publicamente a oposição. A 20 de Outubro, o MUD publicava uma lista de 100 escritores alinhados pelo programa de democratização. Eram apenas 10% dos cerca de 1000 autores recenseados no Anuário dos Escritores de 1941. Mas entre eles estavam autores célebres, como Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro, jornalistas famosos, como Norberto Lopes e Artur Portela, e alguns dos mais influentes mestres-pensadores da década de 1930, como António Sérgio e José Régio. Apareciam ainda os professores que iriam dominar o ensino universitário da literatura nas décadas seguintes: Hernani Cidade, Vitorino Nemésio e Jacinto do Prado Coelho. Ao nível dos mais novos, a lista de apoiantes do MUD lê-se como uma espécie de “Quem vai ser Quem na Literatura Portuguesa”: Eugénio de Andrade, Eduardo Lourenço, Virgílio Ferreira, Fernando Namora, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira, etc. (OS INTELECTUAIS E…, 2018OS INTELECTUAIS e o Estado Novo. Ciber Kiosk, [S. l.], 31 mar. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/3a2Ezwi>. Acesso em: 28 mai. 2020.
https://bit.ly/3a2Ezwi...
).17 17 Jorge Ramos do Ó (1999) e Luís Torgal (1999) expõem outra faceta deste mesmo fenômeno de reserva dos escritores ante as iniciativas de “cooptação” via sistema de prêmios literários. O próprio António Ferro teria admitido isto no balanço que fez dos dez primeiros anos de existência dos prêmios instituídos por sua política do espírito, ao constatar que “autores de orientação discutível mas de inegável talento”, “por desdenhosa atitude olímpica ou falsa posição ideológica, se revelaram, se impuseram sem nunca terem concorrido aos nossos prémios ou até a quaisquer outros” (FERRO, 1950, p. 140, apud Ó, 1999, p. 129).

Tendo esse panorama por referência, em que se sobressai uma proeminente inclinação dos meios intelectualizados para uma posição de oposição ou resistência ao regime, vê-se bem o porquê de o neorrealismo ter obtido tamanha expressividade nos meios literários portugueses. De inequívocas ligações com o Partido Comunista Português, os escritores neorrealistas dispunham não apenas de uma ambiência intelectual favorável – no sentido de expectativas positivas quanto aos posicionamentos que radicalizavam a oposição ao regime pelo viés de uma retórica de forte crítica social –, como também de uma possibilidade de inserção nas iniciativas editoriais ligadas aos comunistas, a exemplo das revistas O Sol Nascente e Diabo, ou mesmo o espaço que a Biblioteca Cosmos, orientada por Bento de Jesus Caraça, abria a essas hostes. O importante a se assinalar aqui, nesta primeira referência ao neorrealismo, é sua indiscutível relevância para se dimensionar adequadamente as demarcações do campo literário português desses anos: é em relação às posições assumidas frente a ele, seja de aceitação ou recusa aos seus princípios ético-estéticos, que melhor se pode compreender os móveis em torno dos quais este campo se organizava.

Isto posto, convém tecer alguns comentários que permitam qualificar melhor as primeiras publicações que lançaram o nome de Álvaro Lins nos ambientes literários e intelectuais portugueses.

Ainda que Atlântico e Acção, como referido, fossem de naturezas distintas, eram periódicos com forte ligação com o salazarismo. A Atlântico obedecia a interesses bem definidos dos regimes autoritários vigentes nos dois lados do oceano, que concebiam a revista como uma espécie de vitrine do que “de melhor” havia em nossas letras e, por essa via, vislumbravam poder dar um sentido mais preciso àquilo que António Ferro designava como “política do espírito” do novo regime. Ainda que pensada para o caso português, o que essa expressão refere – conjunto de iniciativas voltadas a reforçar os elementos constitutivos e conformadores de certa identidade cultural necessária ao surgimento do homem novo, pilar, por sua vez, da nova ordem – pode bem ser aplicado para delinear o escopo da política cultural do Estado Novo brasileiro. Visto assim, pode parecer que Atlântico veio responder tão somente a um programa doutrinário. Mas não foi esse o caso. Produzida nas repartições encarregadas de censura e controle da circulação de discursos dissonantes e/ou críticos às ditaduras estadonovistas, a revista, todavia, se afirmava justamente por sua abertura aos mais diversos autores, muitos dos quais de sabida posição política contrária aos regimes. A despeito de não ter nenhum vínculo com instâncias do Poder Público, a mesma postura de abertura a escritores/intelectuais não assimilados pode ser atribuída ao semanário Acção, não obstante sua inconfundível lealdade ao salazarismo.

Nesse sentido, o que a análise dessas publicações parece indicar é o frequente recurso, para dizer o mínimo, a nomes como os de Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Hernani Cidade, João Gaspar Simões e Maria Archer – que, em graus diversos, costumavam ser tidos como notórios críticos do salazarismo –, ou mesmo, num outro registro, Sophia de Mello Breyner Andresen, Jorge de Sena, José Blanc de Portugal, Tomaz Kim, Ruy Cinatti, que nos anos subsequentes iriam compor algumas das frentes de renovação literária portuguesa, aliando-se, mais de um deles, com posições agudamente críticas ao regime. Quanto aos escritores brasileiros, o cenário que emerge não é de maneira alguma distinto. Sem esquecer daqueles que tinham patentes ligações com posições à esquerda do espectro político nacional, coube, amiúde, à geração saída das hostes modernistas compor a linha de frente dessas publicações – especialmente no que concerne à Atlântico, como se pode aferir pelos nomes elencados na nota de rodapé nº 13.

O que se sobressai do exposto nos parágrafos precedentes é quão enganoso, ou no mínimo inadequado, seria estabelecer uma associação direta entre essas publicações e a condição de intelectual, escritor, assimilado, aderente, apoiador ou mesmo simpatizante do salazarismo. Por certo que para muitos tal categorização não seria imprópria, nem mesmo ofensiva, mas apenas em casos específicos e não de maneira geral. De qualquer forma, por mais recomendável que seja cercar-se de cuidados analíticos de igual jaez, não restam dúvidas de que essas publicações eram preferencialmente consumidas por um público de perfil mais inclinado à direita do espectro político-ideológico. Por isso mesmo, faz-se importante considerar a penetração/circulação de A. Lins em outros circuitos e publicações, pois só assim se torna possível compreender sua franca recepção entre os mais diferentes grupos de escritores/intelectuais – quer sejam considerados sob o ponto de vista etário, de suas escolhas estéticas ou mesmo de suas afinidades político-ideológicas.

Se é possível dizer que o jovem crítico brasileiro, até há pouco desconhecido e sem algo digno de nota a lhe servir de recomendação, passou um tanto rapidamente a ser tomado pelas camadas letradas portuguesas como uma incontestável autoridade em assuntos literários, é porque suas obras começaram a ser qualificadas como judiciosas – “melhor estudo da obra de Eça de Queiroz” – e marcantes – “seu Jornal de Crítica representa um verdadeiro acontecimento na crítica literária do Brasil”18 18 Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 2, p. 369. –, mas também porque sua obra de crítico logo passou a ser tomada como uma régua a aferir a excelência ou propriedade com que a própria crítica literária portuguesa, nos termos em que era praticada naqueles anos, deveria passar a ser medida.

Quem primeiro lançou mão do nome e reconhecimento que Álvaro Lins havia logrado alcançar entre seus pares portugueses, com fins de se prover de recursos de autoridade para as disputas literárias locais, foi António Quadros – filho de António Ferro e, à época, titular da seção “Livraria” do semanário Acção. Para Quadros, as análises desenvolvidas por A. Lins, em seu recém-publicado Notas de um diário de crítica, autorizavam um raid contra o neorrealismo que, segundo ele, ao ser pautado por interesses políticos, estaria aquém da “grande revolução da poesia moderna” e de seu esforço por “despregar-se das suas contingências: enredo, drama, teatro, moral, política, etc.”.19 19 Acção: Semanário da Vida Portuguesa. Lisboa, 09/11/1944, n. 186, p. 4-6.

O que é ressaltado neste uso peculiar que Quadros faz da obra crítica de Álvaro Lins é menos a pertinência ou não dos argumentos com que procura desmerecer a forte presença neorrealista nas letras portuguesas do que o fato de ele ter ido buscar em Lins a referência a partir da qual procurava conferir legitimidade à determinada tomada de posição na contenda literária a que se dedicava – o argumento de que o que caracterizava a literatura moderna – sua revolução – era o “despregar-se das suas contingências: enredo, drama, teatro, moral, política, etc.”, foi retirado diretamente de A. Lins; na verdade, apenas o transcreve ipsis litteris.

Dez anos após essa interessada apropriação empreendida por A. Quadros, fazendo uso de argumento cuja lógica estruturadora em nada se distinguia da anterior, Álvaro Salema publica um longo e, sob mais de um aspecto, significativo artigo em um dos – se não o único – jornal diário abertamente contrário ao regime: República. Nome estreitamente ligado aos meios literários neorrealistas, em que já havia alcançado alguma projeção e respeito, A. Salema pode, por isso mesmo, no que diz respeito ao campo intelectual daqueles anos, ser tomado como situado no polo simetricamente oposto ao de António Quadros. Nesta exata medida, o que seu artigo sinaliza é o alcance da obra de A. Lins em meio à paisagem cultural portuguesa – que, virtualmente, teria logrado abranger todo o seu arco político-literário.

Salema começa seu artigo, intitulado Despedida tardia a Álvaro Lins, lastimando a “partida prematura do professor Álvaro Lins”, que, a seu ver, não viria a ser

(…) lamentada somente pelos que puderam conhecer e apreciar de perto a sua rica e insinuante personalidade intelectual. Hão-de lamentá-la também os que esperavam da sua influência mais direta a sugestão benéfica de novos rumos para a crítica literária em Portugal.20 20 República. Lisboa, 07/03/1954, n. 8.341, p. 7.

Se é certo, diz Salema, que sua influência poderia ter continuidade a partir da leitura de seus livros, que chegavam, a essa altura, sem dificuldades em Portugal, ainda assim uma perda era insanável. Caso não tivesse retornado ao Brasil21 21 Este artigo, é bom registrar, ecoa o momento em que A. Lins volta ao Brasil depois da experiência de professor junto à Universidade de Lisboa. , seria o caso de admitir que a “(…) sua presença, as suas lições, a sua colaboração na Imprensa”, que, afirma Salema, “seria lícito desejar”, “(…) constituiriam, todavia, uma força talvez mais atuante na valorização da crítica, que é hoje em Portugal uma triste caricatura ou mesmo um desprezível arremedo da que se pratica em países seriamente civilizados”.22 22 República. Lisboa, 07/03/1954, n. 8.341, p. 7.

Fazendo uso da mesma estratégia argumentativa que A. Quadros havia se servido anteriormente, Salema não visava outra coisa senão reforçar seu arsenal para atacar os adversários em sua guerra literária. Só que, no caso de Salema, os adversários estavam situados na extremidade oposta do espectro estético-ideológico, justamente aqueles cujo “espiritualismo” e idealismo – aos modos de A. Quadros – os impediam de enxergar a enorme contribuição que o neorrealismo teria trazido para as letras portuguesas.

Há, ainda – e, quem sabe, mais significativos –, um ou dois usos da obra de A. Lins pautados por lógica bastante similar, que a tomam como modelo a partir da qual, agora, não somente a crítica literária portuguesa deveria ser aquilatada, mas também que sugerem que o próprio autor foi lido como referência formativa por aqueles que se iniciavam na faina de escritor. É nessa linha que podem ser lidas as menções a Lins e à sua obra em periódicos cujos perfis eram muito mais afeitos às disputas literárias do que a quaisquer outras preocupações: as revistas Aventura e Graal, ambas resultantes do investimento de alguns dos jovens escritores e poetas que por essa época começavam a aparecer nos meios literários portugueses, ressoaram seu trabalho e contribuíram para tornar o crítico brasileiro uma personalidade de prestígio entre escritores e intelectuais emergentes no campo literário.

Em julho de 1943, ele publicou um pequeno ensaio na revista Aventura – Ensaístas portugueses –, no qual, pela primeira vez em uma publicação portuguesa, discorreu sobre a crítica literária tal como ela era praticada por autores portugueses contemporâneos. É nessa ocasião, ao se debruçar sobre críticos atuantes nos periódicos e espaços acadêmicos portugueses, que ele traz os primeiros sinais de que suas relações com escritores e intelectuais locais não caíram prisioneiras das lógicas ditadas por burocracias estatais, que, inversamente, pautavam-se por preocupações que muito diretamente diziam respeito a interesses próprios ao campo literário; sinais de que havia uma verdadeira interlocução e trocas intelectuais em curso.23 23 Aventura. Lisboa, julho 1943, n. 3, p. 131-133. A revista Aventura era uma iniciativa de um grupo de jovens escritores que estavam conquistando níveis consideráveis de respeitabilidade no meio literário local. Além de A. Lins, os únicos brasileiros publicados pela Aventura são: Cecília Meireles (poemas), Ribeiro Couto (poemas) – na época, o primeiro secretário da embaixada do Brasil em Lisboa – e Cícero Dias (desenho). Entre os autores portugueses, destacam-se: Sofia de Mello Breyner Andresen, Adolfo Casais Monteiro, Tomaz Kim, Vitorino Nemésio, Luís Forjaz Trigueiros e Diogo de Macedo.

Já na Graal24 24 Lançada em abril/maio de 1956, a revista Graal: Poesia, Teatro, Ficção, Ensaio, Crítica, foi uma iniciativa de jovens escritores, dentre os quais David Mourão-Ferreira foi o que obteve maior longevidade e reconhecimento literário como poeta, como professor e como crítico. A despeito de certa proximidade com o entorno salazarista, cujo núcleo duro, com raríssimas exceções (António Ferro), era avesso a empreendimentos vanguardistas, a revista tinha uma inequívoca preocupação com o rigor formal na renovação artística e literária. Foi, por exemplo, a primeira a abrir espaço para o grupo de concretistas brasileiros, a partir da publicação de um depoimento de Décio Pignatari sobre o movimento, seus integrantes, referências literárias etc. As artes plásticas, em especial sua vertente abstracionista, também encontraram na revista espaço receptivo. , a presença de Álvaro Lins é de outra ordem. Comentando sua recém-nomeação para assumir a função de embaixador do Brasil em Lisboa, David Mourão-Ferreira publica um texto em que fixa o significado da obra do crítico brasileiro para os jovens de sua geração:

Foi aí por 1943 que apareceram, em Portugal, os primeiros volumes do Jornal de Crítica, de Álvaro Lins: os que eram então adolescentes tiveram a enorme surpresa de saber que havia, no Brasil, um grande crítico literário. (…) Assim, e decerto sem o saber, Álvaro Lins representou, para toda uma incipiente geração literária portuguesa, o papel de um mestre espontaneamente eleito.25 25 Graal: poesia, teatro, ficção, ensaio, crítica. Lisboa, outubro/novembro 1956, n. 3, p. 325.

O que David Mourão-Ferreira deixa entrever em seu depoimento é precisamente o grau de penetração do nome de Álvaro Lins entre esses jovens interessados nas coisas literárias, jovens que o tomavam como uma referência a ser considerada em suas respectivas formações e que, de certa maneira, os ensinava a ler e apreciar alguns dos poetas e romancistas canônicos de então. Afinal, não teria sido outro, senão aquele crítico, que, “serena e profundamente”, vinha falando aos imberbes poetas e escritores portugueses de Manuel Bandeira, André Gide, Graciliano Ramos, Antero de Quental, Jorge de Lima, Mallarmé, Proust “e tantos outros nomes que principiávamos então confusamente a idolatrar”.26 26 Graal: poesia, teatro, ficção, ensaio, crítica. Lisboa, outubro/novembro 1956, n. 3, p. 325.

Bem consideradas essas aparições e usos da obra e do nome de A. Lins em publicações portuguesas de perfis diversos, o que parece ser digno de nota é sua franca penetração e aceitação nos meios literários e intelectuais lusitanos. De mais a mais, quando recordamos que foi por meio de veículos e indivíduos intrinsecamente associados ou contíguos ao regime que se deu suas primeiras inserções em Portugal e, não obstante, constatamos que, de um extremo ao outro, os escritores e críticos literários portugueses estão se apropriando de Álvaro Lins e de sua obra para firmarem suas posições e tomadas de posições – nos termos de Bourdieu – estéticas e políticas, bem como para demarcarem seus espaços de atuação e referendarem suas escolhas, então podemos ver, em toda sua intensidade, sua anexação a esse território e sua assimilação a um campo literário-intelectual. Não mais como um forasteiro, sôfrego por fazer-se conhecido, mas sim como alguém a quem se passou a atribuir uma incontestável autoridade e uma refinada cultura e saber. Um crítico hábil e diferenciado. Um mestre.

Um “camarada de letras”

Os termos com que Salema finaliza seu artigo permitem, quem sabe, avançar um outro aspecto relevante dessas primeiras apreensões acerca de Álvaro Lins:

(…) a obra crítica de Álvaro Lins é, realmente, uma obra de genuína arte literária. Mas, para além de tudo isso, vibra nela, fortemente, uma personalidade intelectual e moral em que se desvenda o homem de eminente nobreza e requintada civilização de espírito e de caráter que é o escritor Álvaro Lins.27 27 República. Lisboa. 07/03/1954, n. 8.341, p. 7.

Há, aqui, referências à integridade moral e ao caráter de Lins, alguns dos sinais – mais velados que explicitados – que se encontravam um pouco aqui e acolá na imprensa portuguesa de que o crítico literário era também um homem de compromissos firmes com os princípios democráticos e cujas afinidades eletivas iam muito além das passíveis de serem depreendidas, caso nos cingíssemos exclusivamente ao seu círculo inicial de relações – mais adstrito ao regime.

Se foi por intermédio de periódicos com incontestes vínculos com o salazarismo que A. Lins primeiro se fez conhecer em Portugal – e, a partir dos quais, teceu suas relações iniciais nos meios literários –, agora, passados alguns anos, sobretudo depois de ter tido a oportunidade de passar uma temporada como professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, o quadro mostra-se muito mais rico e até mesmo quase que invertido. As sólidas relações que construiu com os grupos que faziam o jornal República, mas também, durante sua curta existência, o LER parecem ser bons indicativos de uma rede que se estendia a muitos dos intelectuais e figuras de projeção na vida social e política, porém abertamente contrários ao status quo.28 28 Para o escopo do República, ver Lemos (2006). Acerca do LER, ver Rocha (1985), Pires (2000), George (2002) e Medeiros (2010).

Lançado em abril de 1952, o LER – Jornal de Letras, Artes e Ciências foi uma iniciativa dos irmãos Lyon de Castro, da editora Europa-América, e propunha-se a ser um “meio de expressão e comunicação aberto a todas as correntes literárias e estéticas”29 29 LER. Lisboa, abril 1952, n. 01, p. 03. , a serviço da cultura nacional e da atividade editorial portuguesa. Se seu empenho pelo negócio do livro foi inconteste, perpassando todos os números, a abertura para “todas as correntes literárias e estéticas”, contudo, parece não ter sido convincente para os dirigentes do regime responsáveis pelo controle e censura nos meios de comunicação que, em outubro de 1953, impediram a continuação do projeto. Seu fechamento, por suposto, deve ter reverberado significativamente entre escritores e letrados em geral, uma vez que há robustas indicações de que a publicação teve, enquanto durou, uma entusiástica receptividade nos meios intelectuais: o periódico não só atingiu rapidamente uma tiragem mensal inusual para publicações dessa natureza – em torno de 6 mil exemplares –, como também, em razão desta boa aceitação, cedo cogitou se tornar um jornal de circulação quinzenal, o que, no fim das contas, acabou não ocorrendo, permanecendo mensal até seu precoce encerramento.

Há boas indicações de que eram bastante cordiais as relações de A. Lins com o grupo que fazia e gravitava em torno do LER. Por exemplo, ao fazer questão de noticiar a chegada do crítico brasileiro para ministrar o curso na Faculdade de Letras, o jornal registra este fato como uma iniciativa de valor para o panorama cultural local, bem como aproveita a oportunidade para publicar a transcrição de uma pequena correspondência enviada pouco antes por A. Lins, na qual agradece aos editores pela manifesta atenção em lhe enviar regularmente o periódico e atesta a importância do jornal para sua melhor compreensão dos “valores portugueses de ordem cultural”.30 30 LER. Lisboa, dezembro 1952, n. 09, p. 14.

Uma aproximação com o grupo que fazia o LER significava, efetivamente, conforme registrou Daniel Pires (2000)PIRES, Daniel. Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974). Lisboa: Grifo, 2000. v. 1-2. ao tratar dos colaboradores do periódico, um acercar-se de escritores presencistas e neorrealistas, além de outros tantos intelectuais que tinham sabidas aproximações com as oposições de esquerda. Com efeito, no que diz respeito aos primeiros – presencistas e neorrealistas –, um levantamento não exaustivo dos colaboradores do mensário revela alguns nomes recorrentes: Fernando Piteira Santos, António Sérgio, Ferreira de Castro, Álvaro Salema, João Gaspar Simões, José Régio, Branquinho da Fonseca, José Gomes Ferreira, João José Cochofel etc.31 31 Pires (2000), no verbete referente a LER, traz a relação completa de colaboradores. A revista Presença, por sua vez, havia sido uma publicação central para a afirmação do modernismo literário em Portugal. No número em que se encontra um artigo de A. Lins sobre Graciliano Ramos, falecido há pouco tempo, é possível encontrar também uma entrevista com um dos expoentes do neorrealismo português, Fernando Namora.32 32 LER. Lisboa, maio 1952, n. 02, p. 7. Mais que uma troca de gentilezas ou a evidência de uma interlocução que se mostrava interessante de parte a parte, o que temos aqui é a constituição de uma rede de relações que, como sói acontecer, fortalecia a posição de cada elo dessa cadeia.

Quando se acompanha a presença de Álvaro Lins no jornal República, essa percepção se fortalece. Entre novembro de 1952, quando é noticiada sua chegada para assumir a regência do curso promovido pelo Itamaraty junto à Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e dezembro de 1956, quando é informada, em longa e detalhada matéria, a entrega de suas credenciais como embaixador ao Presidente da República, ao longo de quatro anos, portanto, são encontráveis pelo menos uma dúzia e meia de matérias e notas referentes a A. Lins no República.33 33 Dado o objetivo deste artigo, foi propositalmente deixado de fora dessa contabilidade o período em que ele serviu como embaixador brasileiro em Lisboa. Porém, menos que a quantidade, importa considerar como Lins é tratado e que indícios esse tratamento traz das relações entre o brasileiro e seus colegas portugueses. É assim que se informa ao público leitor português acerca de vários acontecimentos da vida do crítico em terras brasileiras: sua eleição –unânime, como fizeram questão de registrar – para a Academia Brasileira de Letras, sua anterior aprovação para catedrático de literatura do Colégio Pedro II – posição para a qual concorreu com Afrânio Coutinho, seu grande desafeto nas disputas quanto à prática de crítica literária –, a publicação da tese com que concorreu a esta cátedra, sobre a técnica do romance em Proust, sua nomeação, pelo presidente Juscelino Kubitschek, para Chefe da Casa Civil… Acentua-se: nada que dissesse respeito à cultura ou à literatura portuguesa. Nada que, a princípio, pudesse ser tomado como de interesse do seu público leitor, a não ser que se considere que A. Lins já se tratava de uma personalidade que, a juízo dos editores do República, dado o grau de penetração e aceitação pelas camadas cultas portuguesas, era alguém cuja carreira e realizações despertavam, por si só e a despeito de tudo o mais, interesse e alguma curiosidade entre os leitores.

Evidentemente, este tipo de tratamento só reforçava uma relação já estabelecida. Não se tratava de um gesto cortês que se faz por polidez, mas de algo que se situa num outro plano, em que o tratamento amável não seria mais que a face visível de uma troca simbólica comum àqueles que se reconhecem como companheiros de jornada, com os quais se partilha concepções, valores e pontos de vistas que tanto mais fortes e legítimos serão quanto mais insignes e notáveis forem aqueles que os comungam. É nessa direção, talvez, que deve ser lida a recorrente adjetivação com que o nome de A. Lins aparece no jornal: “querido e ilustre amigo”, “um dos críticos literários mais qualificados da língua portuguesa”, “um dos novos intelectuais brasileiros de mais sólida cultura, de mais brilhante atuação e de mais vasta obra publicada”, “brilhante escritor”, “ilustre professor”, “figura proeminente no panorama intelectual do Brasil e escritor de larga audiência no mundo da língua portuguesa” etc. Nunca apenas um nome em si mesmo, um puro substantivo a designar um sujeito particular em todos os mundos possíveis em que esse particular exista34 34 No sentido em que Bourdieu (2011) se apropria do conceito de designador rígido, de S. Kripke. ; inversamente, sempre um cujos atributos e propriedades excepcionais são adrede e propositalmente referidos.

No plano das relações possíveis de serem deduzidas entre o República e A. Lins, nos termos assinalados acima, vale chamar a atenção para um episódio em particular, na medida em que ele abre a possibilidade de se perceber, em toda sua amplitude, o arco de personalidades conexas e de figuras outras da vida social, política e cultural de Portugal com as quais A. Lins desenvolveu algum nível de convivência – seja direta, seja por associação.

Em junho de 1953 celebrou-se os 25 anos da publicação do romance Emigrantes, de Ferreira de Castro. Considerado à época como o escritor português de maior projeção internacional, Ferreira de Castro foi homenageado por um expressivo número de intelectuais, jornalistas, políticos, personalidades de destaque da sociedade portuguesa e mesmo alguns brasileiros de prestígio nos meios intelectuais locais.35 35 Na longa reportagem que dedica a esta efeméride, o República relaciona mais de seis dezenas de nomes. República. Lisboa, 20/06/53, n. 8.087, p. 1-2. Álvaro Lins estava entre os que se juntaram a esta homenagem. Ao lado dele, todos aqueles escritores já mencionados que gravitaram em torno do LER e alguns outros, semelhantes em suas escolhas e posições ocupadas no campo intelectual, mas não só. Diferentemente do que se podia inferir a partir da leitura do LER e da constituição de uma determinada rede de relações cujo princípio ordenador podia ser facilmente correlacionado com o campo intelectual português, agora o que se vê é uma rede mais ampla e diversificada com marcante presença de políticos e/ou de pessoas com atuação na vida política do país – especialmente, mas não exclusivamente, entre articulações e agrupamentos políticos sabidamente contrários ao regime.

Evidentemente, dizer que A. Lins esteve entre os que prestaram homenagens a Ferreira de Castro não pode ser confundido com uma integração – se mais ou menos efetiva, pouco importa – dele a esse grupo alargado de pessoas. Primeiro, porque nem mesmo se pode falar, com propriedade, de um grupo de pessoas articuladas entre si com propósitos comuns – sob esse ponto de vista, seria preciso, no mínimo, considerar a existência de vários grupos distintos, ou mesmo a presença de muitos que sequer poderiam ser associados a qualquer grupo que fosse. Depois, porque, considerada isoladamente, sua presença de maneira nenhuma poderia ser tomada como indício do estabelecimento de uma sociabilidade mais intensa e sistemática – isoladamente não, mas quando tomada em conjunto com outros registros, relativos a outros episódios, parece ser bastante razoável afirmar que alguma coisa dessa ordem estava em curso. Veja-se, a esse respeito, um outro evento de natureza literária que, entretanto, foi revestido de fortes conotações políticas.

Em fevereiro de 1959 – por conseguinte, durante o período em que o General Delgado já se encontrava asilado na embaixada do Brasil –, o escritor Érico Veríssimo fez, pela primeira vez, uma visita a Portugal. Considerado, àquela altura, um dos principais escritores brasileiros e tendo grande trânsito entre os literatos portugueses, sua estadia foi um acontecimento que provocou inúmeros encontros, palestras, solenidades etc. sempre muito concorridos e, na sua maior parte, organizados pelo promotor de sua viagem a Portugal, o editor António de Sousa Pinto, da Livros do Brasil. O escritor e sua família ficaram hospedados na embaixada do Brasil, a convite de seu amigo, o embaixador Álvaro Lins. Entre os eventos, estava prevista a realização de uma recepção na embaixada para convidados. O República, que deu ampla cobertura a essa visita de Veríssimo, noticiou a recepção na embaixada como sendo um convescote para escritores e interessados pelo mundo das letras.36 36 A página 6 da edição do dia 20/02/1959 dizia o seguinte: “Na Embaixada do Brasil o embaixador do Brasil e a sra. de Álvaro Lins oferecem amanhã, às 19 horas, uma recepção em honra do grande romancista. Estão convidadas dezenas de personalidades da nossa vida intelectual e social”. Quando, porém, verificamos a forma como a polícia política do regime – Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) – registrou em seus relatórios tal evento, o quadro muda um tanto de figura. Em relatório datado 23/02/1959 – a recepção teria ocorrido dois dias antes –, o agente encarregado de acompanhar as atividades na embaixada brasileira começa por afirmar que a noite foi “bastante concorrida”, avaliando em “mais ou menos” 150 o número de presentes. E prossegue:

A maioria dos convidados, pelo menos do sexo masculino, (…) era constituída por inimigos das Instituições, na qual não faltou a representação comunista. De notar, também, que parte dos convidados eram indivíduos que habitualmente não são assinalados em recepções desta natureza. Entre eles, conhecidos comunistas e cripto-comunistas:

Manuel Joaquim Mendes – escritor

Dr. Álvaro Salema – advogado

Dr. António José Saraiva – professor e escritor

Fernando Namora – escritor

António Alves Redol – escritor

Dr. João José de Melo Cochofel Aires de Campos – poeta, crítico e escritor

Julião Quintinha – escritor e jornalista

João Gaspar Simões – escritor e jornalista

Dr. João Ramos de Almeida – advogado e escritor

Manuela de Azevedo – jornalista

Luís da Câmara Reys – publicista e diretor da revista Seara Nova

Raul da Assunção Pimenta Rego – jornalista.37 37 PT-TT-AOS-D-M, PC-77B, Caixa 591, capilha 19, Informação, 23/02/59. Arquivo Nacional Torre do Tombo. Grifo nosso. Na sequência do relatório, encontramos uma relação de mais 65 nomes. É de se notar que, segundo o escrutínio do agente da PIDE, escritores e intelectuais, desde que comunistas, constituíam uma categoria de indivíduos não talhados para o evento de recepção a um escritor.

Ao se sobrepor a lista de convidados para a recepção na embaixada com aquela dos presentes na homenagem a Ferreira de Castro, ocorrida seis anos antes, é possível verificar uma significativa coincidência de nomes. Algo como 25% dos que prestaram sua homenagem a Castro estavam listados entre os convidados pela embaixada do Brasil.38 38 Nomeadamente: Álvaro Salema, Alves Redol, António Navarro, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Assis Esperança, Cardoso Pires Francisco da Cunha Leão, Fernando Namora, Ferreira de Castro, João Ramos de Almeida, Joaquim Paço d’Arcos, Julião Quintinha, Luís da Câmara Reys e Manuel da Fonseca.

Ainda que se argumente que a lista de convidados para a recepção na embaixada não pode ser integralmente atribuída a uma escolha pessoal do embaixador – afinal, tratou-se de um evento que envolveu um explícito objetivo de promoção cultural, no qual não passou despercebido o interesse do editor de Érico Veríssimo em terras lusitanas –, seria ingenuidade desconhecer que ele desempenhou papel de relevo nessa seleção de personalidades.39 39 Em seu livro Missão em Portugal, A. Lins diz que coube exclusivamente a ele a seleção dos convidados (LINS, 1960). As autoridades portuguesas, por exemplo, estavam convencidas que se tratou de uma iniciativa que ia ao encontro do interesse do embaixador em fortalecer sua posição na quebra-de-braço que travava com Salazar e seu ministro dos negócios estrangeiros, Marcello Mathias, por conta do asilo concedido ao General Humberto Delgado.

É assim, também, que cumpre ler determinado relatório de imprensa enviado pela embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. Em 18 de fevereiro de 1959, o encarregado pelos serviços de imprensa da embaixada portuguesa no Brasil elaborou seu Boletim nº 34, todo ele dedicado a tratar da notícia divulgada em vários jornais do Rio de Janeiro no dia anterior, a partir de telegramas de agências internacionais de notícias – France-Presse e United Press International (UPI). Segundo a notícia, um grupo de 62 intelectuais portugueses havia entregue ao embaixador Álvaro Lins, a título de agradecimento pelo asilo concedido ao General Delgado, um exemplar de Os Lusíadas, no qual constava dedicatória dos “escritores e jornalistas democratas portugueses”, gravada em letras douradas.

Aproveitando a passagem da data em que se completava um mês (12/02/59) do “seguro abrigo dado ao homem público [Delgado] que foi o intérprete das aspirações do povo português para a reconquista das suas liberdades cívicas e métodos democráticos de governo”, uma delegação de quatro dos signatários entregou o exemplar do livro acompanhado de uma mensagem em que saudavam A. Lins como um “camarada de letras e de jornalismo, o lídimo embaixador da alma generosa e grande do Brasil irmão”.40 40 Boletim nº 34, de 18/02/1959, do Serviço de Imprensa da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. Ministério dos Negócios Estrangeiros. MNE S9-E9-P2-63651. Os trechos entre aspas correspondem à notícia, tal como publicada no Jornal do Brasil, de 17/02/1959, conforme recorte anexado ao referido Boletim. Dentre os 62 signatários da mensagem, a matéria reproduzida nos jornais cariocas nominava 15 deles, dos quais, apenas um, Fernando Lopes Garcia, não comparecia em uma das listas referidas.41 41 Os demais 14 nomes seriam: Alves Redol, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Artur Portela, Câmara Reys, Fernando Namora, Ferreira de Castro, Hernani Cidade, João de Barros, João Gaspar Simões, Leão Penedo, Manuel Mendes, Raul Rêgo e Vieira de Almeida.governa

Mais que os nomes em si, foram os termos da mensagem e a repercussão que ela encontrou na opinião pública do Brasil42 42 Em seu Boletim, o adido encarregado do serviço de imprensa registrou sua profunda preocupação com o fato de que “O aparecimento de escritores – alguns muito lidos e estimados intelectualmente neste país – em manifestações da oposição, principalmente no caso Delgado, tem impressionado pessoas do alto jornalismo e do mundo literário, que se escudam neste fato para concluir que, quando falamos literatos, fala toda a nação”. Boletim nº 34, de 18/02/1959, do Serviço de Imprensa da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. Ministério dos Negócios Estrangeiros. MNE S9-E9-P2-63651. que pareceram aos encarregados do serviço diplomático português não somente indevida, mas uma evidência adicional do parcialismo do embaixador brasileiro, tomado como confrade desses intelectuais oposicionistas. Não era à toa – assim era compreendido nos círculos governamentais portugueses – que o “lídimo embaixador” era tratado como “camarada de letras” por aqueles notórios inimigos das instituições: ele era um deles.

Ao próprio embaixador Álvaro Lins não passava despercebida essa desconfiança manifestamente partilhada entre as autoridades portuguesas. Tanto que, em uma das primeiras reuniões que manteve com o ministro Marcello Mathias para tratar do asilo concedido ao General Delgado, teria feito questão de aproveitar a oportunidade para, segundo registrou o ministro em instruções enviadas ao embaixador de Portugal no Rio de Janeiro,

(…) afirmar que versão corrente em Lisboa, de que o asilo a Delgado fora previamente combinado e preparado entre Dr. Jaime Cortesão e ele, Lins, carecia absolutamente de fundamento porque Dr. Cortesão apenas o fora visitar para lhe agradecer cartões que a título pessoal Embaixador e Embaixatriz lhe tinham deixado quando ele foi solto há semanas depois de ter estado detido quatro ou cinco dias.43 43 Aerograma AC-1 expedido para a Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro, em 29/01/1959. Ministério dos Negócios Estrangeiros. MNE S9-E9-P2-63651. Ainda que, eventualmente, o embaixador brasileiro possa ter sido bem sucedido em afastar a desconfiança de acerto prévio para a concessão de asilo – o que de certa forma é comprovado pela ausência de outras referências a este suposto acordo no restante da correspondência trocada entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a embaixada de Portugal no Rio de Janeiro –, remanescia a clara evidência de que mantinha cordiais relações pessoais com um dos próceres da oposição, mesmo quando estava no exercício de suas funções de chefe da representação diplomática do Brasil. Ao comentar esse episódio em seu livro Missão em Portugal, Álvaro Lins (1960) menciona que recebeu visita de cortesia não apenas de Jaime Cortesão, mas também de Antônio Sérgio pela mesma razão: agradecer a solidariedade prestada pelo embaixador brasileiro e sua esposa após ambos terem sido libertados de prisão motivada por envolvimento no convite a Aneurin Bevan, líder do Partido Trabalhista inglês, para ir a Portugal. Registra-se que, ao contrário do que informa Marcello Mathias em seu Aerograma, o tempo de cárcere dos dois renomados escritores se estendeu por umas boas cinco semanas.

Este artigo não tem por propósito avançar qualquer discussão em torno do episódio do asilo conferido ao General Humberto Delgado, menos ainda da atuação do embaixador Álvaro Lins na condução das negociações, uma vez que isto demandaria uma série de desdobramentos não cabíveis em um artigo com os intuitos e dimensões deste. Todavia, não há como desconsiderar que, do confronto de eventos aqui aludidos com a homenagem a Ferreira de Castro, emerge um padrão de relações que talvez não seja temerário atribuir a Álvaro Lins.

Relações constituídas no curso dos anos em que sua pessoa e, antes dela, seus trabalhos circularam nos cafés e rodas literárias, nas redações de jornais e revistas culturais, nos recintos dos cursos universitários, nos átrios das casas editoras, nos remansos das bibliotecas e salas de leitura, nos burburinhos das conferências, bem como nos espaços institucionais de exercício do poder, com seus gabinetes aparatosos, seus jantares feéricos, suas recepções suntuosas, suas audiências solenes… Que possibilitaram a sua elevação do anonimato para uma posição de respeito e prestígio, incólume a maiores questionamentos ou críticas mais sérias – exceptuadas aquelas de cunho político, despertadas pela sua atuação no caso Delgado. Relações, neste sentido, que se estenderam por virtualmente todo o espectro de dispersão ou distribuição de valores ético-estético-literários, tal como se apresentava na sociedade portuguesa de meados do século XX.

Da constituição dessas relações e das apropriações e dos impactos que sua obra exerceu sobre parcelas expressivas da intelectualidade portuguesa é que, provavelmente, se devem extrair as razões de Álvaro Lins ter logrado alcançar, nos anos 1940 e 1950, a invejável condição de um dos intelectuais brasileiros mais conceituados e benquistos entre seus pares portugueses. E não deixa de ser uma grande ironia que, em boa parte, é possível imputar a essa singular receptividade seu manifesto interesse por vir a se atribuir a posição que foi, simultaneamente, sua maior ambição, sua glória e, sob muitos aspectos, sua ruína como homem público. Com a embaixada do Brasil em Portugal, Álvaro Lins assumiu um outro protagonismo na sociedade portuguesa. Sem deixar de ser o intelectual com fraternas, extensas e respeitosas relações neste meio, será, mais que tudo, como político, que ele pontificará. Um político no mundo das letras.44 44 Em artigo para a Folha de São Paulo, Sérgio Augusto (1995) lembra: “Pessoalmente, Lins se dizia ‘um político no mundo das letras’, não porque exigisse delas enquadramentos ideológicos, mas porque se sentia um político deslocado na seara literária”.

Se antes já lhe era difícil caber no figurino do crítico literário “técnico” – tipo de especialista desenhado em conformidade com uma ou outra das teorias em voga nas universidades europeias e norte americanas –, depois de sua atuação na embaixada brasileira em Portugal, mas, nomeadamente, depois da concessão de asilo ao General Delgado, Álvaro Lins não cabia em outra persona se não a de ser aquilo que, anos antes, ele reconhecera em James Joyce, quando de sua morte: o revelador do caos num mundo em desordem (LINS, 1964LINS, Álvaro. O relógio e o quadrante. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964., p. 17).

  • 1
    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. Na escrita do artigo, aproveitou-se imensamente de material pesquisado quando da realização de um projeto de pós-doutoramento desenvolvido junto ao Grupo de Investigação Leitura e Formas de Escrita, do Centro de Humanidades – Universidade Nova de Lisboa (LFE/CHAM-UNL), sob a orientação do Professor Catedrático João Luís Lisboa.
  • 3
    Sobre Miguel Urbano Rodrigues e suas vinculações com o Partido Comunista Português, bem como sua prestigiada atuação na imprensa dos dois lados do Atlântico, ver notícia publicada em Portugal Digital (MORREU O JORNALISTA…, 2017MORREU o jornalista Miguel Urbano Rodrigues. Portugal Digital, [S. l.], n. 14, 27 mai. 2017. Disponível em: <https://bit.ly/3R0runR>. Acesso em 6 mai. 2021.
    https://bit.ly/3R0runR...
    ).
  • 4
    Sobre o caso do asilo ao General Humberto Delgado na sede da embaixada brasileira em Lisboa, ver Chorão (2019)CHORÃO, Luís Brigotte. Asilo político em tempos de Salazar: os casos de Humberto Delgado e Henrique Galvão. Lisboa: Edições 70, 2019., Delgado (2009)DELGADO, Humberto. Memórias de Humberto Delgado. Lisboa: Dom Quixote, 2009., e Lins (1960)LINS, Álvaro. Missão em Portugal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.. Para o leitor não familiarizado com o caso, cabe reter que a candidatura do General Humberto Delgado à presidência de Portugal, em 1958, fez despertar, pela primeira vez desde a instauração do regime salazarista, uma mobilização política de oposição verdadeiramente de massas, uma vez que foi, também, a primeira candidatura de oposição que chegou efetivamente a disputar o voto. Todas as iniciativas anteriores de oposição sucumbiram às pressões e manobras do regime, que, na prática, as inviabilizaram. À esperada derrota do candidato, entretanto, seguiram-se articulações e todo um conjunto de ações que colocaram o general como a principal liderança contra tudo que o salazarismo representava, tornando-o, por isso mesmo, vítima de toda sorte de perseguições. Frente às ameaças diversas que vinha sofrendo, sua decisão de recorrer ao asilo na embaixada do Brasil abriu uma nova fase na luta que se agudizava e que ganharia logo em seguida, com as guerras de independência nas colônias africanas, uma dimensão de inusitado descontrole e desmedida violência. Em 1965, Delgado foi assassinado pela polícia política do regime. Registra-se, por fim, que, como evidencia sua alta patente, o General Delgado era, até um período bem próximo do episódio eleitoral, um prestigiado quadro das Forças Armadas portuguesas e, por extensão, do regime. Sua inflexão para a oposição e a aproximação de setores revolucionários de combate ao salazarismo decorreram de sua decisão inicial de se constituir numa opção democrática.
  • 5
    Conforme entendimento do Pe. António Fernandes, SJ. Segundo o padre, goês de nascimento e, à época, dirigente da Congregação Mariana da Mocidade Acadêmica e do Colégio Nóbrega, onde A. Lins à época lecionava, “não podia ser professor quem procurava justificar obra tão nefasta”. Juízo assim duro da obra e do autor certamente vinha no sentido de justificar a demissão do jovem professor. Mas, graças a sua grande influência na política local, em boa medida decorrente da ascendência que tinha sobre vários dirigentes políticos em Pernambuco, em especial seu nome máximo – Agamenon Magalhães –, e em todos os demais que eram ligados à Congregação Mariana, a sentença condenatória do jesuíta contribuiu enormemente para que a perseguição não se encerrasse nisso. Se a demissão de A. Lins tinha, portanto, essa dupla marca – política e religiosa –, cabe registrar que ambas as faces se somaram: além de demitido do Colégio Nóbrega, viu-se também impedido de participar do concurso público para docente do Ginásio Pernambucano, principal e mais prestigiado estabelecimento de ensino do estado.
  • 6
    Na apreciação de Lourival Holanda (2019, p. 149-150HOLANDA, Lourival. Álvaro Lins: o crítico necessário. In: HOLANDA, Lourival. Realidade inominada: ensaios e aproximações. Recife: Cepe, 2019, p. 149-164., grifos do autor): “Álvaro Lins é um crítico à part entière: aquele que tenta discernir, ver claro, nas coisas da cultura literária. (…) Uma aguda consciência crítica, vendo a literatura como sistema enraizado na vida e na história da sociedade. Não sem um grão de sal de heresia. A concepção de um crítico plural, alargando a literatura a planos diversos – sociológico, antropológico, histórico –, assim a concebe Álvaro Lins: ciência autotélica, mas de modo algum isolada, como quer Afrânio Coutinho, seguindo Blackmur (crítica e críticos)”.
  • 7
    ANJOS, Cyro dos. Cartas a Ruben A. Leitão, novembro de 1955 e fevereiro de 1956. Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio E35, Ruben A., pasta 5592.
  • 8
    ANJOS, Cyro dos. Cartas a Ruben A. Leitão, novembro de 1955 e fevereiro de 1956. Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio E35, Ruben A., pasta 5592.
  • 9
    Para bem se entender isto, é preciso considerar a relevância das instituições públicas na conformação de um mercado cultural nesses anos 1940. Conforme parecer de Sérgio Miceli (2001, p. 197-198)MICELI, Sérgio. Os intelectuais e o Estado. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 195-237.: “no que diz respeito às relações entre intelectuais e o Estado, o regime Vargas se diferencia porque define e constitui o domínio da cultura como um ‘negócio oficial’, implicando um orçamento próprio, a criação de uma ‘intelligentzia’ e a intervenção em todos os setores de produção, difusão e conservação do trabalho intelectual e artístico”.
  • 10
    Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 1, p. 170. A revista contava com o seguinte expediente: António Ferro e Lourival Fontes – Diretores; José Osório de Oliveira – Secretário de Redação; Manuel Lapa – Direção Artística. Sobre o Acordo Cultural e sua importância para as relações luso-brasileira, ver, entre outros, Assunção (2015)ASSUNÇÃO, Marcello Felisberto M. As relações culturais luso-brasileiras em perspectiva: da gênese do ideário de comunidade à fundação da Revista Brasília (1822-1942). Revista Portuguesa de História, Coimbra, n. 46, p. 281-300, 2015. e Paulo (1992)PAULO, Heloisa Helena de Jesus. A questão do Brasil na propaganda do Estado Novo. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 14, p. 425-438, 1992..
  • 11
    Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 1, p. 177; Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 2, p. 369; Acção: Semanário da Vida Portuguesa. Lisboa, 1942, n. 62, p. 1-5.
  • 12
    O verbete a respeito de Manuel Múrias no Dicionário de História do Estado Novo assim o define: “Foi integralista e membro do Movimento Nacional-Sindicalista, fazendo parte de seu Grande Conselho. Aqui foi um dos mais destacados membros do grupo que protagonizou a cisão pró-salazarista dentro dos ‘Camisas Azuis’ (…)” (ROSAS; BRITO, 1996ROSAS, Fernando & BRITO, J. M. Brandão de (dir.). Dicionário de história do Estado Novo. Lisboa: Bertrand, 1996. v. 2.). Sobre o debate em torno do caráter fascista ou não do salazarismo, ver, entre outros, Pinto (1990)PINTO, António Costa. O salazarismo na investigação sobre o fascismo europeu – velhos problemas, velhas respostas? Análise Social, Lisboa, v. 25, n. 108/109, p. 695-713, 1990. e Torgal (2008)TORGAL, Luís Reis. “O fascismo nunca existiu…”: reflexões sobre as representações de Salazar. In: TORGAL, Luís Reis & PAULO, Heloísa (coord.). Estados autoritários e totalitários e suas representações. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008, p. 17-29..
  • 13
    De certo modo, não deixa de ser intrigante ver Álvaro Lins ombrear-se com alguns dos mais prestigiados nomes das letras brasileiras de então: Mário de Andrade, Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, José Lins do Rego, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinícius de Moraes, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, entre outros que, assim como ele, haviam sido selecionados por Lourival Fontes para “representar” a cultura brasileira na Atlântico. A seu favor, contavam não só o prestígio inicial que havia conquistado com sua crítica de rodapé, mas o próprio livro sobre Eça de Queiroz, que o qualificava de maneira especial para este tipo de embaixada cultural que a Atlântico procurou desempenhar.
  • 14
    Como já foi referido, em 1948, Álvaro Lins fez uma longa viagem à Europa, permanecendo em Portugal por uns tantos meses. Depois, entre o final de 1952 e começo de 1954, foi titular da cadeira de Literatura e História do Brasil junto à Universidade de Lisboa. Essa segunda estadia, em particular, revestiu-se de uma importância substantiva no que diz respeito ao estabelecimento de suas relações com literatos e intelectuais locais, dada a sua condição de docente em uma instituição de singular destaque no espaço intelectual português.
  • 15
    Esclarece-se desde já que, menos que os temas em si dos artigos e escritos críticos de Álvaro Lins, ou os ângulos de abordagem (tratamento) dos mesmos – o que demandaria uma imersão na prática de crítica literária da época –, lendo uns à luz dos outros, segundo seus pressupostos e princípios de análise, o que se procura aqui é, tanto quanto possível, tão somente delinear os modos como eles (e seu autor) foram recebidos, os usos e apropriações que despertaram nos meios literários portugueses, bem como as relações a partir daí constituídas.
  • 16
    Quanto à morfologia do campo intelectual português de então, o resumo a seguir é bem ilustrativo: “Durante o Estado Novo, o número de pessoas diplomadas por liceus e universidades subiu. (…) No entanto, a explosão escolar até à década de 1960 não foi tão dramática que afetasse o valor das credenciais acadêmicas. Num país analfabeto, a instrução garantia uma certa preeminência social e os diplomados tendiam a comportar-se como uma ordem nobiliárquica. A maior parte usava títulos, como o de Doutor, decoração académica que se vulgarizou entre políticos e literatos durante a República, precisamente quando acabou o uso oficial de títulos de nobreza. (…) O censo de 1940, classificava 59.897 pessoas nas ‘profissões de carácter predominantemente intelectual’. Representavam 1% da população ativa. (…) O estado empregava 37%. (…) A literatura e as artes faziam parte das atividades e consumos que definiam esta elite instruída. Em 1950, segundo o recenseamento da população, havia 260 escritores, 255 ‘pintores de arte’, 324 escultores e 72 realizadores e técnicos cinematográficos” (OS INTELECTUAIS E…, 2018OS INTELECTUAIS e o Estado Novo. Ciber Kiosk, [S. l.], 31 mar. 2018. Disponível em: <https://bit.ly/3a2Ezwi>. Acesso em: 28 mai. 2020.
    https://bit.ly/3a2Ezwi...
    ).
  • 17
    Jorge Ramos do Ó (1999)Ó, Jorge Ramos do. Os anos de ferro: o dispositivo cultural durante a “política do espírito”, 1933-1949: ideologia, instituições, agentes e práticas. Lisboa: Estampa, 1999. e Luís Torgal (1999)TORGAL, Luís Reis. “Literatura oficial” no Estado Novo: os prémios literários do SPN/SNI. Revista de História das Ideias, Coimbra, v. 20, p. 401-420, 1999. expõem outra faceta deste mesmo fenômeno de reserva dos escritores ante as iniciativas de “cooptação” via sistema de prêmios literários. O próprio António Ferro teria admitido isto no balanço que fez dos dez primeiros anos de existência dos prêmios instituídos por sua política do espírito, ao constatar que “autores de orientação discutível mas de inegável talento”, “por desdenhosa atitude olímpica ou falsa posição ideológica, se revelaram, se impuseram sem nunca terem concorrido aos nossos prémios ou até a quaisquer outros” (FERRO, 1950, p. 140, apud Ó, 1999Ó, Jorge Ramos do. Os anos de ferro: o dispositivo cultural durante a “política do espírito”, 1933-1949: ideologia, instituições, agentes e práticas. Lisboa: Estampa, 1999., p. 129).
  • 18
    Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 2, p. 369.
  • 19
    Acção: Semanário da Vida Portuguesa. Lisboa, 09/11/1944, n. 186, p. 4-6.
  • 20
    República. Lisboa, 07/03/1954, n. 8.341, p. 7.
  • 21
    Este artigo, é bom registrar, ecoa o momento em que A. Lins volta ao Brasil depois da experiência de professor junto à Universidade de Lisboa.
  • 22
    República. Lisboa, 07/03/1954, n. 8.341, p. 7.
  • 23
    Aventura. Lisboa, julho 1943, n. 3, p. 131-133. A revista Aventura era uma iniciativa de um grupo de jovens escritores que estavam conquistando níveis consideráveis de respeitabilidade no meio literário local. Além de A. Lins, os únicos brasileiros publicados pela Aventura são: Cecília Meireles (poemas), Ribeiro Couto (poemas) – na época, o primeiro secretário da embaixada do Brasil em Lisboa – e Cícero Dias (desenho). Entre os autores portugueses, destacam-se: Sofia de Mello Breyner Andresen, Adolfo Casais Monteiro, Tomaz Kim, Vitorino Nemésio, Luís Forjaz Trigueiros e Diogo de Macedo.
  • 24
    Lançada em abril/maio de 1956, a revista Graal: Poesia, Teatro, Ficção, Ensaio, Crítica, foi uma iniciativa de jovens escritores, dentre os quais David Mourão-Ferreira foi o que obteve maior longevidade e reconhecimento literário como poeta, como professor e como crítico. A despeito de certa proximidade com o entorno salazarista, cujo núcleo duro, com raríssimas exceções (António Ferro), era avesso a empreendimentos vanguardistas, a revista tinha uma inequívoca preocupação com o rigor formal na renovação artística e literária. Foi, por exemplo, a primeira a abrir espaço para o grupo de concretistas brasileiros, a partir da publicação de um depoimento de Décio Pignatari sobre o movimento, seus integrantes, referências literárias etc. As artes plásticas, em especial sua vertente abstracionista, também encontraram na revista espaço receptivo.
  • 25
    Graal: poesia, teatro, ficção, ensaio, crítica. Lisboa, outubro/novembro 1956, n. 3, p. 325.
  • 26
    Graal: poesia, teatro, ficção, ensaio, crítica. Lisboa, outubro/novembro 1956, n. 3, p. 325.
  • 27
    República. Lisboa. 07/03/1954, n. 8.341, p. 7.
  • 28
    Para o escopo do República, ver Lemos (2006)LEMOS, Mário Matos e. Jornais diários portugueses do século XX: um dicionário. Coimbra: Ariadne, 2006.. Acerca do LER, ver Rocha (1985)ROCHA, Clara Crabbé. Revistas literárias do século XX em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985., Pires (2000)PIRES, Daniel. Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974). Lisboa: Grifo, 2000. v. 1-2., George (2002)GEORGE, João Pedro. O meio literário português (1960/1998). Oeiras: Difel, 2002. e Medeiros (2010)MEDEIROS, Nuno Miguel Ribeiro de. Edição e editores portugueses: o mundo do livro em Portugal 1940-1970. Lisboa: ICS, 2010..
  • 29
    LER. Lisboa, abril 1952, n. 01, p. 03.
  • 30
    LER. Lisboa, dezembro 1952, n. 09, p. 14.
  • 31
    Pires (2000)PIRES, Daniel. Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974). Lisboa: Grifo, 2000. v. 1-2., no verbete referente a LER, traz a relação completa de colaboradores. A revista Presença, por sua vez, havia sido uma publicação central para a afirmação do modernismo literário em Portugal.
  • 32
    LER. Lisboa, maio 1952, n. 02, p. 7.
  • 33
    Dado o objetivo deste artigo, foi propositalmente deixado de fora dessa contabilidade o período em que ele serviu como embaixador brasileiro em Lisboa.
  • 34
    No sentido em que Bourdieu (2011)BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 2011. se apropria do conceito de designador rígido, de S. Kripke.
  • 35
    Na longa reportagem que dedica a esta efeméride, o República relaciona mais de seis dezenas de nomes. República. Lisboa, 20/06/53, n. 8.087, p. 1-2.
  • 36
    A página 6 da edição do dia 20/02/1959 dizia o seguinte: “Na Embaixada do Brasil o embaixador do Brasil e a sra. de Álvaro Lins oferecem amanhã, às 19 horas, uma recepção em honra do grande romancista. Estão convidadas dezenas de personalidades da nossa vida intelectual e social”.
  • 37
    PT-TT-AOS-D-M, PC-77B, Caixa 591, capilha 19, Informação, 23/02/59. Arquivo Nacional Torre do Tombo. Grifo nosso. Na sequência do relatório, encontramos uma relação de mais 65 nomes. É de se notar que, segundo o escrutínio do agente da PIDE, escritores e intelectuais, desde que comunistas, constituíam uma categoria de indivíduos não talhados para o evento de recepção a um escritor.
  • 38
    Nomeadamente: Álvaro Salema, Alves Redol, António Navarro, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Assis Esperança, Cardoso Pires Francisco da Cunha Leão, Fernando Namora, Ferreira de Castro, João Ramos de Almeida, Joaquim Paço d’Arcos, Julião Quintinha, Luís da Câmara Reys e Manuel da Fonseca.
  • 39
    Em seu livro Missão em Portugal, A. Lins diz que coube exclusivamente a ele a seleção dos convidados (LINS, 1960LINS, Álvaro. Missão em Portugal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960.).
  • 40
    Boletim nº 34, de 18/02/1959, do Serviço de Imprensa da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. Ministério dos Negócios Estrangeiros. MNE S9-E9-P2-63651. Os trechos entre aspas correspondem à notícia, tal como publicada no Jornal do Brasil, de 17/02/1959, conforme recorte anexado ao referido Boletim.
  • 41
    Os demais 14 nomes seriam: Alves Redol, António Sérgio, Aquilino Ribeiro, Artur Portela, Câmara Reys, Fernando Namora, Ferreira de Castro, Hernani Cidade, João de Barros, João Gaspar Simões, Leão Penedo, Manuel Mendes, Raul Rêgo e Vieira de Almeida.governa
  • 42
    Em seu Boletim, o adido encarregado do serviço de imprensa registrou sua profunda preocupação com o fato de que “O aparecimento de escritores – alguns muito lidos e estimados intelectualmente neste país – em manifestações da oposição, principalmente no caso Delgado, tem impressionado pessoas do alto jornalismo e do mundo literário, que se escudam neste fato para concluir que, quando falamos literatos, fala toda a nação”. Boletim nº 34, de 18/02/1959, do Serviço de Imprensa da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. Ministério dos Negócios Estrangeiros. MNE S9-E9-P2-63651.
  • 43
    Aerograma AC-1 expedido para a Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro, em 29/01/1959. Ministério dos Negócios Estrangeiros. MNE S9-E9-P2-63651. Ainda que, eventualmente, o embaixador brasileiro possa ter sido bem sucedido em afastar a desconfiança de acerto prévio para a concessão de asilo – o que de certa forma é comprovado pela ausência de outras referências a este suposto acordo no restante da correspondência trocada entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e a embaixada de Portugal no Rio de Janeiro –, remanescia a clara evidência de que mantinha cordiais relações pessoais com um dos próceres da oposição, mesmo quando estava no exercício de suas funções de chefe da representação diplomática do Brasil. Ao comentar esse episódio em seu livro Missão em Portugal, Álvaro Lins (1960)LINS, Álvaro. Missão em Portugal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1960. menciona que recebeu visita de cortesia não apenas de Jaime Cortesão, mas também de Antônio Sérgio pela mesma razão: agradecer a solidariedade prestada pelo embaixador brasileiro e sua esposa após ambos terem sido libertados de prisão motivada por envolvimento no convite a Aneurin Bevan, líder do Partido Trabalhista inglês, para ir a Portugal. Registra-se que, ao contrário do que informa Marcello Mathias em seu Aerograma, o tempo de cárcere dos dois renomados escritores se estendeu por umas boas cinco semanas.
  • 44
    Em artigo para a Folha de São Paulo, Sérgio Augusto (1995)AUGUSTO, Sérgio. Um peso-pesado da crítica literária. Folha de S. Paulo, São Paulo, 04/06/1995, Caderno Mais. Disponível em: <https://bit.ly/3ubCipg>. Acesso em: 29 jun. 2022.
    https://bit.ly/3ubCipg...
    lembra: “Pessoalmente, Lins se dizia ‘um político no mundo das letras’, não porque exigisse delas enquadramentos ideológicos, mas porque se sentia um político deslocado na seara literária”.

Referências bibliográficas

Referências bibliográficas
  • Aerograma AC-1 expedido para a Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro, em 29/01/1959. Ministério dos Negócios Estrangeiros. MNE S9-E9-P2-63651.
  • ANJOS, Cyro dos. Cartas a Ruben A. Leitão, novembro de 1955 e fevereiro de 1956. Biblioteca Nacional de Portugal, Espólio E35, Ruben A., pasta 5592.
  • Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 1, p. 170-177. Disponível em: <https://bit.ly/3ynwaeX>. Acesso em: 29 jun. 2022.
    » https://bit.ly/3ynwaeX
  • Atlântico: Revista Luso Brasileira. Rio de Janeiro, 1942, Notas, n. 2, p. 369. Disponível em: <https://bit.ly/3NS4MM3>. Acesso em: 29 jun. 2022.
    » https://bit.ly/3NS4MM3
  • Acção: Semanário da Vida Portuguesa. Lisboa, 1942, n. 62, p. 1-5.
  • Acção: Semanário da Vida Portuguesa. Lisboa, 09/11/1944, n. 186, p. 4-6.
  • Aventura. Lisboa, 1943, n. 3, p. 131-133.
  • Boletim nº 34, de 18/02/59, do Serviço de Imprensa da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro. Ministério dos Negócios Estrangeiros. MNE S9-E9-P2-63651.
  • Graal: poesia, teatro, ficção, ensaio, crítica. Lisboa, outubro/novembro 1956, n. 3, p. 325.
  • LER. Lisboa, dezembro 1952, n. 09, p. 14.
  • LER. Lisboa, maio 1952, n. 02, p. 7.
  • PT-TT-AOS-D-M, PC-77B, Caixa 591, capilha 19, Informação, 23/02/59. Arquivo Nacional Torre do Tombo.
  • República. Lisboa, 07/03/1954, n. 8.341, p. 7.
  • República. Lisboa, 20/06/1953, n. 8.087, p. 1-2.
  • República. Lisboa, 20/02/59, n. 10.110, p. 6.
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    » https://bit.ly/3ntGgWA
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Editado por

Editores Responsáveis
Miriam Dolhnikoff e Miguel Palmeita

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2021
  • Aceito
    09 Fev 2022
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