Open-access O VATICANO DIANTE DO HOLOCAUSTO: VELHAS CONTROVÉRSIAS E NOVOS DOCUMENTOS

VALBOUSQUET, Nina. Les âmes tièdes. Le Vatican face à la Shoah. Paris: La Découverte, 2024

“Nosso mundo precisa não de almas mornas, mas de corações ardentes”. A frase provocadora que deu origem ao título do novo livro da historiadora francesa Nina Valbousquet é de autoria de Albert Camus. Ele a escreveu em 1944 num editorial da revista Combat que questionava o posicionamento de Pio XII diante dos eventos bélicos que devastavam a Europa. A crítica do escritor mirava o modo ambíguo com que o Vaticano vinha reagindo aos regimes totalitários que disseminavam o caos no velho continente: sem uma condenação explícita do nazismo e do fascismo, o discurso público do pontífice foi repreendido por se camuflar na linguagem fria e calculista da diplomacia. Aquela mesma linguagem cautelosa que, como recordou o papa discursando ao corpo diplomático junto à Santa Sé em 1946, visara a evitar “esta ou aquela expressão que fizesse mais mal do que bem, especialmente para as populações inocentes curvadas sob o chicote do opressor”2. A imputação de negligência moral acentuou-se em 1963 graças ao escritor alemão Rolf Hochhuth, autor da peça Der Stellvertreter, cujo enredo insinuava a cumplicidade do pontífice com o regime nazista. Para afastar as dúvidas quanto ao posicionamento do Vaticano, papa Paulo VI incumbiu mais tarde uma comissão de jesuítas de compilar os documentos diplomáticos da Santa Sé concernentes à segunda guerra mundial. O trabalho resultou na série Actes et documents du Saint-Siège relatifs à la Seconde guerre mondiale, publicada entre 1965 e 1981. De fato, essa compilação permaneceu por muitos anos a principal fonte documental disponível para os estudiosos do tema.

Em 2020, porém, novas perspectivas de estudo despontaram com a abertura dos arquivos do pontificado de Pio XII (1939-1958), por decisão do papa Francisco. Desde então, os pesquisadores vêm aos poucos acrescentando novas peças ao complexo quebra-cabeça histórico do período em questão. É nesse panorama promissor de atualização historiográfica que se insere o livro de Nina Valbousquet, fruto de uma vasta pesquisa no acervo arquivístico do Vaticano conduzida junto à École française de Rome durante quatro anos. Autora de um importante estudo sobre a história do antissemitismo católico (VALBOUSQUET, 2020), a historiadora também organizou para o Memorial da Shoah de Paris a exposição “As igrejas e a shoah” (VALBOUSQUET, 2022), bem como o volume monográfico da Revue d’histoire de la Shoah dedicado à relação entre a igreja o holocausto (VALBOUSQUET, 2023). Articulando uma análise de história política, religiosa e cultural, o livro se afasta das polêmicas inúteis tendentes a colocar Pio XII no banco dos réus, qualificando-o ora como “papa de Hitler” ora como “papa dos judeus”, e faz aquilo que se espera de um estudo criterioso: reconstrói um evento histórico a partir das fontes, examinando-as de maneira crítica à luz do contexto em que foram produzidas. A obra não se concentra na participação do Vaticano nos fatos políticos do ínterim bélico, nem tampouco faz do pontífice o único protagonista do seu enredo. A originalidade do livro consiste justamente na descentralização do enfoque: ao invés de examinar apenas o discurso e a ação do papa, a autora se vale dos detalhes fornecidos pelos novos arquivos para reconstruir o processo de tomada de decisões mobilizador de uma vasta rede de agentes, tendo em vista a natureza burocrática e ramificada da cúria pontifícia.

Ao evidenciar as diversas peças que compõem a engrenagem da Santa Sé, a autora estabelece duas premissas importantes: por um lado, a igreja não é um bloco homogêneo no qual todos os indivíduos pensam da mesma maneira e agem com os mesmos objetivos; por outro, entre o discurso público de um pontífice e as discussões internas que nele resultaram há espaço suficiente para dissensos, hesitações e ambivalências. Por consequência, o livro demonstra de maneira convincente que a caridade não exclui o preconceito e que este não elimina necessariamente aquela. Foi sobre essa base metodológica que a historiadora construiu a obra, estruturando-a em três partes: a primeira é dedicada ao tratamento dispensado pela igreja aos judeus vítimas da perseguição nazifascista; a segunda examina o posicionamento do Vaticano diante das deportações de judeus e das notícias de genocídio que chegavam a Roma; a terceira propõe uma reflexão sobre o exame de consciência do papado no pós-guerra face à tragédia humana representada pelo holocausto. Conquanto o fio condutor do livro seja a diplomacia pontifícia, depreende-se com clareza no desenvolvimento do tema a interseção entre cultura, política e religião enquanto fenômenos que integram o mesmo objeto de estudo.

Particularmente interessante para os leitores brasileiros é a primeira parte da obra, cujo terceiro capítulo discorre com minúcias sobre o acordo entre o governo de Getúlio Vargas e a Santa Sé visando à concessão de três mil vistos aos chamados “católicos não-arianos” (judeus convertidos ao catolicismo) que tencionassem emigrar para o Brasil. Embora o tema já tenha sido afrontado pela historiografia brasileira, o livro de Nina Valbousquet acrescenta elementos importantes à discussão. O primeiro concerne a insólita etiqueta utilizada nas fontes vaticanas para qualificar os judeus que aderiam à religião católica: “católicos não-arianos”. De fato, a terminologia derivava das leis raciais promulgadas na Itália a partir de 1938 que definiam judeu o indivíduo cujos pais fossem judeus, independentemente da religião professada. Além disso, a legislação fascista proibia também o casamento entre uma pessoa de “raça ariana” e uma pessoa “não-ariana”, ainda que esta fosse católica. Tratava-se, portanto, de uma categoria que antepunha a “raça” à religião, repristinando antigos estigmas que desde a idade média pesavam sobre os judeus na Europa, a ponto de questionar a eficácia do batismo recebido por membros da comunidade mosaica.

De resto, a reflexão acerca do peso e da permanência do antijudaísmo em alguns setores do catolicismo é outro elemento com o qual obra enriquece o debate. Não se trata de estabelecer um determinismo histórico que busca nas perseguições sofridas por judeus de séculos remotos a causa direta das tragédias ocorridas no século XX. O que a autora tenta desvendar, na verdade, é o universo mental – com os valores e preconceitos dele decorrentes – dos eclesiásticos que dentro da Cidade do Vaticano eram solicitados por centenas de judeus desejosos de escapar à opressão totalitária. Embora o comportamento de um grupo, seja ele numeroso ou restrito, não baste para sintetizar o posicionamento da igreja, essa abordagem insere os fatos examinados numa perspectiva de história cultural que ajuda a compreender os condicionamentos de determinados agentes. É eloquente o exemplo dado pela historiadora com um documento de monsenhor Armando Lombardi, funcionário da secretaria de estado da Santa Sé. Num relatório de 1940 acerca dos “católicos não-arianos”, o sacerdote se lamentava das falsas conversões de judeus que visavam ao visto brasileiro, bem como da ingratidão de alguns daqueles que foram ajudados pelo Vaticano. A conclusão desconcertante de Lombardi a propósito dos judeus era a seguinte: “Vê-se que em dezenove séculos a raça piorou. A igreja tem razão em descrevê-los como o faz na sexta-feira santa [pérfidos]” (p. 23).

É digna de nota a prudência com que a autora construiu seu raciocínio, procedendo sem extrapolar os limites das fontes e sem generalizar opiniões que, conquanto significativas, exprimiam juízos subjetivos que não refletiam necessariamente o posicionamento da Santa Sé. De fato, a nova documentação vaticana permitiu que a historiadora fixasse o olhar nos escritórios do Vaticano: analisando e comparando diferentes rascunhos de relatórios, cartas, memorandos e despachos, o livro propõe um exame consistente dos preconceitos mais ou menos velados, das perplexidades e das prioridades dos agentes diplomáticos do pontífice. Essa abordagem demonstra de modo persuasivo como a mentalidade dos membros da cúria romana naquele período era fortemente condicionada ora pelo temor de um partidarismo que ameaçasse a neutralidade do papado, ora por antigos mecanismos de desconfiança em relação aos judeus, como sugere o exemplo de monsenhor Lombardi, evocado há pouco.

Mas o livro não se limita aos confins da Cidade do Vaticano. Com efeito, outra pista oportuna seguida pelo estudo é a perspectiva transnacional que permite ao leitor acompanhar a ação da igreja católica na sua complexa ramificação. Essa dimensão é explorada na segunda parte da obra, na qual a historiadora investiga as redes de informação de que dispunha o Vaticano, em particular a partir do início da guerra em 1939, para tomar conhecimento dos fatos bélicos e das notícias de deportações e massacres que circulavam no leste europeu. Foi também nesse período que a “política do silêncio” se transformou na linha diplomática de Pio XII: condenar abertamente o nazismo equivaleria a tomar partido no conflito geopolítico, ameaçando a posição super partes da Santa Sé, e expondo os católicos tanto a possíveis represálias do regime quanto a divisões ideológicas internas. De fato, esse pressuposto da diplomacia pontifícia nos anos da segunda guerra mundial é indispensável para compreender a ação da igreja, especialmente no que diz respeito à assistência aos judeus. Embora dispusesse de informações fidedignas acerca das deportações, dos pogroms, das perseguições e até mesmo do extermínio de judeus, como bem documenta o livro, o Vaticano optou por evitar um confronto direto com o totalitarismo, preferindo antes agir na penumbra dos canais diplomáticos. Aliás, esse é o motivo pelo qual as autoridades eclesiásticas privilegiaram o auxílio aos judeus convertidos ao catolicismo, como modo de legitimar no plano internacional a intervenção do Vaticano em prol de indivíduos provenientes de diferentes nações.

A falta de uma condenação clara das ideologias que incendiavam a Itália e a Alemanha, por um lado, e os questionamentos suscitados por uma política assistencial de cunho diplomático e dirigida prioritariamente para os próprios adeptos, por outro, custará à igreja no pós-guerra as acusações de silêncio e de conivência que continuam a criar polêmicas entre os historiadores. Não porque o Vaticano tivesse o poder de interferir nos rumos da guerra; mas porque do papa, investido de uma autoridade sobretudo moral, esperava-se talvez um posicionamento mais resoluto e severo contra os desvarios totalitários. Apesar disso, como demonstra a última parte do livro, os anos subsequentes à catástrofe bélica foram marcados por um escasso exame de consciência do mundo eclesiástico que se limitou a exaltar a ação humanitária desempenhada pelo papado, argumentando que o Vaticano fizera o possível dentro dos limites estreitos da sua soberania. Pode-se dizer, em suma, que o difícil equilíbrio entre a diplomacia e a caridade, entre as ambiguidades políticas e os imperativos morais, entre o discurso público e a ação velada constitui o fio condutor da pesquisa de Nina Valbousquet. O resultado demonstra que a historiografia, parafraseando Camus, não precisa nem de corações ardentes nem de almas mornas, mas de cabeças frias e de olhares críticos.

Referências bibliográficas

  • VALBOUSQUET, Nina. Catholique et antisémite. Le réseau de Mgr Benigni. Rome, Europe, États-Unis, 1918-1934 Paris: CNRS, 2020.
  • VALBOUSQUET, Nina (org.). «À la grâce de Dieu», les Églises et la Shoah Paris: Publications du Mémorial de la Shoah, 2022.
  • VALBOUSQUET, Nina (org.). Le Vatican, l’Église catholique et la Shoah. Renouveau historiographique autour des archives Pie XII. In: Revue d’histoire de la Shoah, n. 218, 2023.

Editado por

  • Editores Responsáveis
    Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2025
  • Data do Fascículo
    2025

Histórico

  • Recebido
    16 Jul 2024
  • Aceito
    30 Out 2024
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