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DAS “MERCADORIASMOEDAS” AOS EMPRÉSTIMOS PARA O COVID: ÁFRICA E DESIGUALDADE GLOBAL, PASSADO E PRESENTE1

FROM “COMMODITIESCURRENCIES” TO COVID LOANS: AFRICA AND GLOBAL INEQUALITY, PAST AND PRESENT

Resumo

Este artigo enfoca a questão da África e das desigualdades globais, unindo a pesquisa do passado com a experiência do presente. Argumenta que quadros de endividamento e desigualdades crescentes têm caracterizado a relação do continente africano com a globalização em tempos de crise socioeconômica estrutural. Isso já era verdade no início do período moderno e pode ser visto novamente no quadro macroeconômico dos dois anos da pandemia de covid-19. Compreender a resposta à pandemia por meio de uma perspectiva econômica estrutural e de longa duração abre novos caminhos de interpretação e mostra a importância das perspectivas das Ciências Humanas e sociais na formação das respostas à pandemia. Abordagens históricas comparativas, continuidades socioeconômicas e crítica ao poder fornecido por sujeitos situados fora da área de STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) se mostram vitais para moldar uma compreensão mais holística do período da pandemia e de como responder a futuras pandemias.

Palavras-chave
África; Desigualdade; Covid-19; Humanidades; Ciências Sociais; Resposta à pandemia

Abstract

This article focuses on the question of Africa and global inequalities, bridging research in the past with the experience of the present. It argues that frameworks of indebtedness and growing inequalities have characterized the African continent’s relationship with globalization at times of structural socioeconomic crisis. This was true in the early modern period, and can also be seen to characterize the macroeconomic framework of the two years of the covid-19 pandemic. Understanding the pandemic response through a structural and longue durée economic perspective opens up new avenues of interpretation and shows the importance of perspectives from the humanities and social sciences in shaping pandemic responses. Comparative historical approaches, socioeconomic continuities, and the critique of power provided by non-STEM subjects are shown to be vital in shaping a more holistic understanding of the pandemic time, and of how to respond to future pandemics.

Keywords
Africa; Inequality; Covid-19; Humanities; Social sciences; Pandemic response

Introdução

Como tem acontecido em muitas situações em nossos dias, a palestra na qual este artigo se baseia foi adiada. Estava inicialmente agendada para o ano letivo de 2020-2021, mas as restrições sociais em resposta à pandemia de covid-19 tornaram o evento impraticável. Uma das consequências desse atraso é a de que este artigo é muito diferente daquele que eu poderia ter oferecido a esta revista há dois anos. Essa resposta também ajuda a responder à questão sobre a qual alguns leitores já devem estar se perguntando: por que um historiador da África Ocidental pré-colonial está escrevendo e pesquisando sobre o tema da saúde pública global no século XXI?

A resposta curta é a de que agora sou um historiador do covid-19, bem como da África Ocidental pré-colonial. Na verdade, a questão da relação entre a resposta à pandemia de covid-19 e o tema da desigualdade global já vem sendo uma preocupação da minha pesquisa há algum tempo, tendo já publicado um livro (GREEN, 2021aGREEN, Toby. The covid consensus: the new politics of global inequality. London: C. Hurst & Co.; New York: Oxford University Press, 2021a.), três artigos para African Arguments (CARDOSO e GREEN, 2020CARDOSO, Carlos; GREEN, Toby. How Africa can take this moment to end a 500-year-old economic model. African Arguments, 25 jun. 2020. Disponível em: https://africanarguments.org/2020/06/how-africa-can-take-this-moment-to-end-a-500-years-old-economic-model/. Acesso em: 15 out. 2022.
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; GREEN, 2021bGREEN, Toby. Covid, Lockdowns and vaccines: why Africa shouldn’t copy the west. African Arguments, 2021b. Disponível em: https://africanarguments.org/2021/04/covid-lockdowns-and-vaccines-why-africa-shouldnt-copy-the-west/ Acesso em: 15 out. 2022.
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; GREEN, 2021cGREEN, Toby. Medical colonialism: pandemic impacts and vaccine delivery. African Arguments, 2021c. Disponível em: https://africanarguments.org/2021/12/medical-colonialism-pandemic-impacts-and-vaccine-delivery /. Acesso em: 15 out. 2022.
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) e vários ensaios em coautoria para UnHerd (FAZI e GREEN, 2021FAZI, Thomas; GREEN, Toby. The left’s covid failure. UnHerd, 2021. Disponível em: https://unherd.com/2021/11/the-lefts-covid-failure/. Acesso em: 14 out. 2022.
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, 2022aFAZI, Thomas; GREEN, Toby. Has the great Barrington declaration been vindicated? UnHerd, 2022a. Disponível em: https://unherd.com/2022/01/has-the-great-barrington-declaration-been-vindicated/. Acesso em: 14 out. 2022.
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, 2022bFAZI, Thomas; GREEN, Toby. The left-wing case against vaccine mandates. UnHerd, 2022b. Disponível em: https://unherd.com/2022/01/the-left-wing-case-against-vaccine-mandates/. Acesso em: 14 out. 2022.
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, 2022cFAZI, Thomas; GREEN, Toby. Covid has created a capitalist nightmare. UnHerd, 2022c. Disponível em: https://unherd.com/2022/02/covid-has-created-a-capitalist-nightmare/. Acesso em: 14 out. 2022.
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). Mas há também uma explicação muito mais longa para essa pergunta, que ocupará o restante deste artigo. Minha esperança é que os leitores concordem que, de um lado, há continuidades claras entre a pesquisa sobre a história econômica africana pré-colonial e, de outro lado, a pesquisa sobre a pandemia do covid-19. Fundamentalmente, ao considerar a atual crise socioeconômica como parte de uma conjuntura estrutural de poder, bem além da ótica mais estreita do próprio vírus, podemos refletir não apenas sobre nossa situação atual, mas também sobre as continuidades em termos de poder e economia que sustentam a evolução das sociedades humanas ao longo dos últimos séculos. Por esse viés, igualmente podemos identificar a natureza dos impactos da pandemia através de uma nova perspectiva e começar a refletir sobre questões como a do pagamento de dívidas externas e principalmente a da dívida de países de baixa renda, a partir de um outro ponto de vista.

Desigualdades e passado pré-colonial da África Ocidental

Para iniciar o processo desta reflexão, podemos nos voltar para o passado pré-colonial da África Ocidental e a questão que preocupou minha pesquisa por cerca de 13 anos, entre 2006 e 2019, quando publiquei o livro A fistful of shells: West Africa from the rise of the slave trade to the age of revolution (GREEN, 2019GREEN, Toby. A fistful of shells: West Africa from the rise of the slave trade to the age of revolution. London: Allen Lane; Chicago: Chicago University Press, 2019.; WARCHOL, 2021WARCHOL, Abigail. Situando a África Ocidental pré-colonial na história econômica global. Afro-Ásia, n. 64, p. 600-605, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/46499. Acesso em: 14 out. 2022. Doi: 10.9771/aa.v0i64.46499
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), em que tratei de muitos aspectos do passado da África Ocidental, mas, principalmente, da questão da “antiga política da desigualdade global”.3 3 A tradução do livro em português é esperada em finais de 2023, pela editora Figura de Linguagem de Porto Alegre. Parte de meus argumentos se basearam na tese de Walter Rodney em seu livro How Europe underdeveloped Africa (RODNEY, 1972RODNEY, Walter. How Europe underdeveloped Africa. Dar-es-Salaam: Tanzania Publishing House; London: Bogle L’Ouverture, 1972.), como notou Ana Lucia Araujo, em um novo ensaio marcando o aniversário de 50 anos de publicação do livro marcante de Rodney (ARAUJO, 2022ARAUJO, Ana Lucia. Did Rodney get it wrong? Europe underdeveloped Africa but enslaved people were not always purchased with rubbish. African Economic History, 50, n. 2, número especial, Walter Rodney’s How Europe Underdeveloped Africa, 2022. https://analuciaaraujo.org/wp-content/uploads/2022/12/Araujo.pdf
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).

Naquele estudo, Rodney procurou analisar as continuidades que ligam o extrativismo econômico na era do tráfico transatlântico de escravos à era colonial e ao contexto pós-colonial ou neocolonial imediato. Rodney analisou o quadro estrutural que extraiu excedentes do continente africano à custa dos africanos pobres; e argumentou que as estruturas desses sistemas eventualmente desmoronaram por causa de suas contradições internas na era do imperialismo europeu formal no continente africano.

A tese de Rodney se desenvolveu dentro do quadro da teoria da dependência que buscava interpretar a concentração da riqueza no Ocidente e o subdesenvolvimento econômico de outros continentes através de uma ótica relacional. Essa escola de pensamento econômico surgiu a partir do, e paralelamente ao, trabalho de economistas como Samir Amin e André Gunder Frank, bem como de uma tradição existente de crítica caribenha da história do capitalismo nos moldes desenvolvidos pelo historiador Eric Williams (DRAYTON, 2022DRAYTON, R. The Caribbean origins of how Europe underdeveloped Africa. African Economic History, 50, n. 2, 2022, número especial, Walter Rodney’s How Europe Underdeveloped Africa. No prelo.). O livro marcante de Amin, L’Afrique de l’ouest bloquée (AMIN, 1971AMIN, Samir. L’Afrique de l’ouest bloquée. Paris: Les Éditions de Minuit, 1971.) havia sido publicado um ano antes do livro de Rodney, ambos trabalhos nunca traduzidos em português. Já o livro de Frank sobre a teoria da dependência na América Latina foi publicado alguns anos mais tarde e rapidamente traduzido em português (FRANK, 1977FRANK, Andre Gunder. A acumulação mundial. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.).

A escola da dependência assumiu uma posição transformadora, pois, em vez de ver a riqueza ocidental como produto de algum tipo de gênio inato ou inteligência nativa, passou a vê-la como um fenômeno baseado no empobrecimento de outras regiões do mundo. As chamadas economias centrais extraíram excedentes daquelas que se tornaram periféricas nesse processo. Também é importante notar que o livro de Rodney foi publicado em um momento de grande interesse pela história econômica da África pré-colonial e sua relação com a economia mundial. Em 1973, Anthony Gerald Hopkins publicou seu livro An economic history of West Africa, no qual adotou uma abordagem baseada no mercado para estudar a história econômica da região e pretendia fazer uma forte crítica da teoria da modernização então em voga entre os economistas do desenvolvimento (HOPKINS, 1973HOPKINS, Anthony Gerald. An economic history of West Africa. Harlow: Longmans, 1973.; HOPKINS, 2019HOPKINS, Anthony Gerald. An economic history of West Africa. London: Routledge, 2019.). Ao longo do tempo, a abordagem de Hopkins e de outros formalistas tendeu a predominar na Academia ocidental. Ainda na década de 1980 e com a ascensão das políticas de ajuste estrutural no continente africano, a questão do passado econômico pré-colonial quase desapareceu das agendas de pesquisa acadêmica quando o período moderno assumiu o centro do palco.

De um lado, meu livro A fistful of shells busca dialogar novamente com essas questões e construir argumentos a partir da tese de Rodney e da pesquisa com novas fontes. De outro lado, o livro também dialoga com as novas perspectivas críticas que as teorias interseccionais das últimas décadas trouxeram para a questão da agência e da subalternidade. Ao olhar para a globalização precoce no continente africano através do estudo das trocas monetárias, o livro analisa o núcleo desse processo de subdesenvolvimento econômico através da ótica da acumulação global de capital. Também procurei equilibrar essa abordagem com o surgimento do que pode ser chamado de “escola da agência” da história e da diáspora africana, que enfatizou a agência de atores africanos na construção da história, mas às vezes também o fez através da reprodução do paradigma neoliberal da ideia de agência (GREEN, 2019GREEN, Toby. A fistful of shells: West Africa from the rise of the slave trade to the age of revolution. London: Allen Lane; Chicago: Chicago University Press, 2019., p. xxx-xxxi; BENNETT, 2018BENNETT, Herman L. African kings and black slaves: sovereignty and dispossession in the early modern Atlantic world. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2018.).

Meu livro tratou então do que podemos chamar de “a velha política da desigualdade global”. A continuidade intelectual entre esse trabalho e minha pesquisa atual sobre a crise do covid-19 surge por meio desse tema da desigualdade global. Meu argumento neste artigo é o de que é possível traçar continuidades estruturais entre o atual contexto de endividamento de países do sul global e o extrativismo da era da pandemia de covid-19 e os contextos das relações econômicas da África pré-colonial com o mundo atlântico. Ao fazer essas conexões, podemos entender melhor os dois contextos, mesmo se essas relações possam soar surpreendentes para alguns.

Neste artigo tento responder a algumas perguntas. O que a ótica do historiador econômico e os contextos da África pré-colonial podem oferecer para entender uma estrutura na qual a resposta à pandemia foi conduzida pelas ciências exatas, ou pelo menos por algumas das ciências exatas? Quando a maioria do público leitor se tornou viciada em dados e debates científicos como nunca antes, e o que a perspectiva de um acadêmico que está fora desse mundo científico realmente pode oferecer? Ora, muitas vezes, na vida acadêmica, análises de fora de uma norma disciplinar específica podem ser reveladoras. Certamente, as políticas de resposta à pandemia de SARS-CoV-2 foram conduzidas quase exclusivamente através da ótica da medicina e baseadas em dados da saúde pública. Enquanto isso, a ausência das Ciências Sociais, nas quais eu incluiria a economia e a história econômica, das mesas de tomada de decisão tem sido gritante, como discuti amplamente no meu livro The covid consensus (GREEN, 2021aGREEN, Toby. The covid consensus: the new politics of global inequality. London: C. Hurst & Co.; New York: Oxford University Press, 2021a., p. 14-17; veja também SUTORIS et al., 2022SUTORIS, Peter et al. (org.). Pandemic response and the cost of lockdowns: global debates from humanities and social sciences. Abingdon: Routledge, 2022.).

Entretanto, o que acontece se reconhecermos as maneiras pelas quais a medicina e a saúde pública estão profundamente imbricadas na acumulação de capital no século XXI, como de fato estavam durante a era do desenvolvimento da ciência médica moderna no período do colonialismo europeu na África e, portanto, em padrões associados de desigualdade (GREEN, no preloGREEN, Toby. Covid-19: medicine and colonialism, past and present. Journal of Extreme Anthropology. No prelo.)? O que acontece se analisarmos o que aconteceu nos últimos dois anos pelo prisma da desigualdade continuando até o presente com o tipo de análise que realizei em A fistful of shells? Neste artigo, eu argumento que, se fizermos isso, as implicações são gritantes e muito reveladoras.

Os fenômenos de crédito, inflação e marginalidade econômica num contexto de fluxo tecnológico estiveram profundamente relacionados com as transformações dos contextos socioeconômicos da África Ocidental dos séculos XV ao XVIII. Esses fenômenos também são fundamentais para os contextos dos oceanos de dívidas do covid-19, as quais foram criadas nesses anos e das crescentes pressões inflacionárias que se seguiram e foram ainda mais exacerbadas pela guerra na Ucrânia. Este artigo argumenta que isso não é um acidente. Pensar nas continuidades nos permite refletir mais profundamente sobre a configuração estrutural do capital do século XXI e a resposta política à pandemia dos últimos dois anos.

Há muito mais considerações a serem ditas sobre a era pré-colonial da África Ocidental do que posso articular neste artigo. Meu foco aqui será a dimensão econômica, mais especificamente o que os historiadores geralmente chamam de “moeda-mercadoria”. O que se entende por “moeda-mercadoria”? Os historiadores da África geralmente usam esse termo para se referir aos bens que eram comercializados como moeda na era do comércio atlântico de escravizados, mas que tinham múltiplos usos além daqueles de valor monetário estrito. Por exemplo: têxteis, barras de ferro e cobre, sal e rum eram amplamente usados como moedas em partes da África Ocidental atlântica. Os cauris (concha monetaria moneta) que foram descritos como “o dinheiro concha do comércio de escravos” (HOGENDORN e JOHNSON, 1986HOGENDORN, Jan; JOHNSON, Marion. The shell money of the slave trade. Cambridge: Cambridge University Press, 1986.; LOVEJOY, 1974Lovejoy, Paul E. Interregional monetary flows in the precolonial trade of Nigeria. Journal of African History, v. 15, n. 4, p. 563-585, 1974. Disponível em: https://bit.ly/3g07bZE. Acesso em: 15 out. 2022. Doi: https://doi.org/10.1017/S0021853700013888
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) também eram amplamente usados como moeda. Ou seja, o termo “moeda-mercadoria” é utilizado para denotar uma moeda que tem usos utilitários e monetários.

No entanto, essa estrutura foi atualizada por historiadores econômicos nos últimos 15 anos. Em primeiro lugar, muitas dessas “mercadorias” eram, na verdade, amplamente usadas como moedas em outras partes do mundo: o cobre era usado para fabricar moedas em Portugal e no Peru no século XVII (GREEN 2019GREEN, Toby. A fistful of shells: West Africa from the rise of the slave trade to the age of revolution. London: Allen Lane; Chicago: Chicago University Press, 2019., pp. 225-226), enquanto os cauris também eram usados como moeda em Yunnan, na China. Não havia nada especificamente “africano” sobre esse quadro. Portanto, o uso africano desse tipo de dinheiro estava ligado aos quadros econômicos mundiais. Akinobu Kuroda, que tem desenvolvido muitos trabalhos no contexto econômico da África Ocidental, argumenta que as áreas de moedas plurais têm, de fato, sido a norma nas estruturas econômicas globais, onde diferentes moedas podem coexistir dependendo do uso e da sazonalidade (KURODA, 2008Kuroda, A. What is the complementarity among monies? An introductory note. Financial History, v. 15, n. 1, p. 7-15, 2008. Disponível em: https://bit.ly/3TqYrds. Acesso em: 15 out. 2022. Doi: https://doi.org/10.1017/S0968565008000024
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). Além disso, como já foi demonstrado, muitos dos bens importados pelos comerciantes europeus nas trocas atlânticas eram formas de moeda preexistentes na África Ocidental, especialmente no caso do cobre e dos cauris (GREEN, 2016GREEN, Toby. Africa and the price revolution: currency imports and socioeconomic change in west and west-central Africa during the seventeenth century. Journal of African History, v. 57, n. 1, p. 1-24, 2016.).

Em muitos casos, o que ocorreu de fato foi a expansão de uma base monetária existente, que muitas vezes teve consequências inflacionárias. Nisso, é claro, a África atlântica não estava sozinha. Os historiadores econômicos há muito tempo observaram como o enorme aumento da circulação de prata na Europa após a conquista espanhola do México e do Peru no século XVI teve consequências inflacionárias em muitas partes do continente (HAMILTON, 1934HAMILTON, Earl. American treasure and the price revolution in Spain, 1501-1650.Cambridge, MA: Harvard University Press, 1934.). Embora alguns tenham desafiado essa visão de causalidade, ignorando o crescimento demográfico europeu e o aumento da demanda de moeda, o papel do aumento da disponibilidade de moeda no que os historiadores conhecem como “revolução dos preços” ainda é geralmente aceito como um fator significativo. Grande parte dessa prata estava destinada a ser reexportada para a China, e historiadores econômicos como Dennis Flynn e Arturo Giraldez mostraram como esse processo foi acompanhado de uma depreciação do valor da prata durante a dinastia Ming na China (FLYNN e GIRALDEZ, 1996FLYNN, Dennis O.; GIRALDEZ, Arturo. China and the Spanish empire. Revista de História Económica, v. 14, n. 2, p. 309-338, 1996. Disponível em: https://bit.ly/3eGETmC. Acesso em: 14 out. 2022. Doi: https://doi.org/10.1017/S0212610900006066
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). Em suma, o padrão de aumento da oferta de moeda e inflação era comum em todo o mundo no século XVI (GREEN, 2016GREEN, Toby. Africa and the price revolution: currency imports and socioeconomic change in west and west-central Africa during the seventeenth century. Journal of African History, v. 57, n. 1, p. 1-24, 2016.).

Assim, as pesquisas das últimas duas décadas têm mostrado como as economias pré-coloniais da África Ocidental estavam integradas aos processos econômicos mundiais. Esses trabalhos históricos procuraram, portanto, incluir a África dentro de uma dinâmica da qual a pesquisa acadêmica (datando dos anos 1960 e da escola histórica de Trevor-Roper) muitas vezes a excluiu. A importância dessa integração da África Ocidental dentro de um quadro mais amplo da economia mundial é crucial, pois também ajuda a reforçar a abordagem relacional das questões econômicas globais que, como observado anteriormente, foi desenvolvida na década de 1970 no quadro da teoria da dependência. A fistful of shells argumentou que os padrões surgidos nesse período desfavoreceram o continente africano na acumulação de capital, colocando em marcha o padrão de uma desigualdade mais globalizada, a qual Walter Rodney chamou de subdesenvolvimento econômico e ao qual os processos posteriores se somaram.

Mas como esse quadro tomou forma? Em suma, enquanto as moedas que a África Ocidental havia usado e importado anteriormente perderam valor global comparativo (no caso dos cauris e do cobre, por exemplo), o valor acumulado através do trabalho produtivo dos africanos escravizados nas Américas e da exportação de ouro aumentou e levou à criação do sistema monetário padrão-ouro em 1821. Com o tempo, portanto, ocorreu uma mudança na acumulação de capital. A consequência foi que, no início do século XIX, durante a Revolução Industrial, as economias de escala significavam que havia pouco retorno do investimento manufatureiro na África, o que acelerou o processo de desigualdade comparativa (GREEN, 2019GREEN, Toby. A fistful of shells: West Africa from the rise of the slave trade to the age of revolution. London: Allen Lane; Chicago: Chicago University Press, 2019., p. 471).

Os eventos dos últimos dois anos forneceram uma perspectiva útil sobre essas ideias. Uma questão fundamental é a do crédito. De fato, era normal na era do comércio atlântico de africanos escravizados que as moedas fossem importadas de outros lugares. Pode-se pensar, por exemplo, na importância das minas de prata da América espanhola para os estoques de moeda europeia. A dependência de estados africanos como Kongo, Daomé e os aro de Biafra em formas externas de moeda, portanto, não era rara. O que talvez fosse incomum era a relação que essa dependência tinha com questões de crédito e o papel de credores dos negociantes atlânticos, que forneciam essas moedas variadas aos comerciantes e governantes africanos.

Essa dependência do crédito externo tem sido, de muitas maneiras, uma característica central dos sistemas econômicos africanos desde essa época, algo que pode ser visto com muita clareza na era atual dos empréstimos para o covid-19. É por isso que, durante os primeiros meses da pandemia, escrevi um ensaio com Carlos Cardoso, ex-diretor de pesquisa do CODESRIA (Conselho pelo Desenvolvimento das Ciências Sociais na África), agora baseado no Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral em Bissau, em que argumentamos que essa crise exigia uma reconsideração de como os países africanos garantiriam crédito econômico no futuro e a criação de instituições credoras muito mais consolidadas sediadas no continente (CARDOSO e GREEN, 2020CARDOSO, Carlos; GREEN, Toby. How Africa can take this moment to end a 500-year-old economic model. African Arguments, 25 jun. 2020. Disponível em: https://africanarguments.org/2020/06/how-africa-can-take-this-moment-to-end-a-500-years-old-economic-model/. Acesso em: 15 out. 2022.
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). No entanto, dois anos após o início da pandemia, podemos ver que esse tipo de solução está muito longe de ser posta na mesa. Os dados mais recentes sobre a crise da dívida são alarmantes e têm graves implicações para a saúde pública futura no continente africano. Entretanto, como vemos, a relação entre crédito externo e subdesenvolvimento econômico é realmente muito antiga. É por isso que o que realmente vimos durante a pandemia é uma continuidade radical das políticas já existentes.

Desigualdades no continente africano na era da pandemia de covid-19

Voltemos então a considerar o cenário da desigualdade na era da pandemia de covid-19, o que chamei em meu livro sobre esse tema, “a nova política da desigualdade global” (GREEN 2021aGREEN, Toby. The covid consensus: the new politics of global inequality. London: C. Hurst & Co.; New York: Oxford University Press, 2021a.). Podemos ver de imediato uma situação que leva a um arcabouço econômico estrutural que existe, de longa data, a novos patamares. Podemos considerar essa continuidade de duas maneiras: seja como um resultado inevitável do surgimento de um novo vírus respiratório, quando a resposta é impulsionada por prioridades científicas; ou como a intensificação das estruturas existentes de poder político e econômico, reproduzindo interconexões de crédito, dívida e empobrecimento que agora estão estruturalmente embutidos em quaisquer políticas de “inovação”. A maioria dos analistas até hoje geralmente optou pela primeira abordagem, mas neste artigo vou explorar a segunda.

Ao considerar a inevitabilidade das políticas de resposta à pandemia e os impactos que essa escolha teve na África Ocidental em termos de renda e desigualdades, felizmente há muitos dados úteis a serem considerados. Em primeiro lugar, há a questão do emprego. Um bom exemplo é a Nigéria, onde a Agência de Estatística da Nigéria estimou em setembro de 2021 uma perda de 20% no setor formal (EBOH, 2021EBOH, Camillus. Around 20% of Nigerian workers lost jobs due to covid-19 – stats office. Reuters, 11 set. 2021), https://www.reuters.com/world/africa/around-20-nigerian-workers-lost-jobs-due-covid-19-stats-office-2021-09-21/. Acesso em: 14 out. 2022.
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). Esse foi de fato um resultado positivo, quando comparado às projeções iniciais: no final de março de 2020, no início da pandemia, o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) estimou que metade de todos os empregos formais na África poderiam ser perdidos como resultado da implementação de medidas de mitigação da pandemia (NEARLY, 2020Nearly half of jobs in Africa could be lost due to coronavirus, UN warns. New Zimbabwe, 30 mar. 2020. Disponível em: https://www.newzimbabwe.com/nearly-half-of-jobs-in-africa-could-be-lost-due-to-coronavirus-un-warns/. Acesso em: 15 out. 2022.
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). No entanto, mesmo uma queda de 20% do nível de emprego representa um enorme impacto. E esses impactos contínuos foram mostrados de forma angustiante em um curta-metragem de Tobi Akinde, do Instituto Francês de Pesquisa na África da Universidade de Ibadan, na Nigéria, transmitido em dezembro de 2021, no qual o primeiro entrevistado descreveu a falta de empregos na Nigéria (AKINDE, 2021Akinde, Tobi. Soja go, soja come: impacts of the covid-19 pandemics on everyday workers in Ibadan & Lagos, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HDiVZ1i9utg. Acesso em: 14 out. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=HDiVZ1i9...
).

Naturalmente, sobre a questão do emprego formal, há também o mercado informal. Em 2018, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estimou que 85% de todo o trabalho no continente africano foi realizado no setor informal (International Labour Organization, 2018INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION. More than 60 per cent of the world’s employed population are in the informal economy. 2018. Disponível em: https://www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/news/WCMS_627189/lang--en/index.htm. Acesso em: 15 out. 2022.
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). De acordo com o relatório de novembro de 2021, a maioria das pessoas afetadas pela perda de emprego não recuperou a capacidade de trabalhar. Ainda em 2021 seus ganhos estavam muito abaixo dos níveis de 2019, e uma em cada três pessoas estava ameaçada pela insegurança alimentar. Além disso, 40% dos trabalhadores domésticos, vendedores ambulantes e catadores ainda ganhavam menos de 75% de seus ganhos pré-covid em meados de 2021 (REED et al., 2021REED, Sarah Orleans et al. The crisis is far from over for informal workers — we need an inclusive recovery for the majority of the world’s workforce. Nov. 2021. Disponível em: https://www.wiego.org/resources/covid-Global-policy-insights. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.wiego.org/resources/covid-Gl...
).

Nessa situação de colapso econômico, naturalmente a crise da dívida está crescendo e aqui a relação com o crédito internacional, que já nos é familiar no quadro deste artigo, tem sido central. As iniciativas de suspensão da dívida procuraram adiar cerca de US$ 20 bilhões devidos por 73 países a credores bilaterais entre maio e dezembro de 2020. No entanto, com medo de rebaixamentos em suas classificações de crédito e custos de empréstimos mais altos, muitos países de baixa renda relutaram em adotar os empréstimos covid-19 oferecidos por instituições multilaterais de crédito (SANDEFUR, 2021SANDEFUR, Justin. World Bank grants for global vaccination – why so slow? Nature, v. 594, n. p. 475, 2021. Disponível em: https://www.nature.com/articles/d41586-021-01678-5. Doi: https://doi.org/10.1038/d41586-021-01678-5. Acesso em: 15 out. 2022.
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). No final, apenas 42 países receberam ajuda financeira, totalizando US$ 12,7 bilhões (GREEN, 2022GREEN, Toby. The world’s poorest countries are facing an unprecedented debt crisis UnHerd, 2022. Disponível em: https://unherd.com/thepost/the-worlds-poorest-countries-are-facing-an-unprecedented-debt-crisis/ Acesso em: 15 out. 2022.
https://unherd.com/thepost/the-worlds-po...
).

Com a queda dos rendimentos do emprego formal e informal e o aumento das dívidas através do sistema de crédito internacional, as consequências foram duras. Um relatório de fevereiro de 2022 observou que não apenas o PIB caiu 7,8% em alguns casos, mas que as remessas do exterior caíram 25% (Climate and Development Knowledge Network, 2022Climate and Development Knowledge Network. Economic recovery from covid-19: prospects for sub-Saharan Africa. 1º fev. 2022. Disponível em: https://cdkn.org/story/economic-recovery-covid-19-prospects-sub-saharan-africa. Acesso em: 15 out. 2022.
https://cdkn.org/story/economic-recovery...
). Em um contexto em que as remessas dos países ricos representavam mais da metade dos fluxos de capital privado para a África antes da pandemia, isso teve um efeito devastador na economia diária, com um aumento de mais de 40 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza em todo o continente africano (UNCTAD, 2018UNCTAD. United Nations Conference on Trade and Development. EDAR-Facts and figures. UNCTAD Economic Development in Africa Report 2018. 2018. Disponível em: https://unctad.org/press-material/edar-facts-and-figures-unctad-economic-development-africa-report-2018. Acesso em: 15 out. 2022.
https://unctad.org/press-material/edar-f...
). Podemos citar alguns exemplos da África Ocidental. No final de janeiro de 2022, o economista ganense Godfred Alufar Bokpin sugeriu que a economia de Gana estava à beira do colapso (KOJO, 2022KOJO, EMMANUEL. Ghana’s economy on the verge of collapse – Prof. Bokpin. Pulse Ghana, 19 jan. 2022. Disponível em: https://www.pulse.com.gh/business/ghanas-economy-on-the-verge-of-collapse-prof-bokpin/15xf55h. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.pulse.com.gh/business/ghanas...
). Os investimentos entraram em colapso à medida que a relação entre a dívida e o PIB aumentou, processo desencadeado pela resposta à pandemia (GOKOLUK, 2022GOKOLUK, Selcuk. Ghana debt dips deeper into distress as investors quit. Bloomberg UK, 13 jan. 2022. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2022-01-13/ghana-debt-moves-deeper-into-distress-as-investors-lose-patience. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.bloomberg.com/news/articles/...
).

Enquanto isso, na Nigéria, o panorama é de lucros cada vez menores, dívidas crescentes e acordos de serviço da dívida inacessíveis (IYATSE, 2022IYATSE, Geoff. Nigeria in crisis as debt stock hits N26t in 7 years. Guardian Nigeria, 9 jan. 2022. Disponível em: https://guardian.ng/news/nigeria-in-crisis-as-debt-stock-hits-n25t-in-7years/. Acesso em: 15 out. 2022.
https://guardian.ng/news/nigeria-in-cris...
). Esse contexto levou a um enorme aumento no custo dos alimentos básicos, após a triplicação da dívida do país desde que o presidente Buhari assumiu o cargo em 2015 (EWEPU, 2022EWEPU, Gabriel. Coalition set to mobilize Nigerians to resist gas, fuel hikes, electricity tariffs. Vanguard, 16 jan. 2022. Disponível em: https://www.vanguardngr.com/2022/01/coalition-set-to-mobilise-nigerians-to-resist-gas-fuel-hikes-electricity-tariffs/. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.vanguardngr.com/2022/01/coal...
). Além disso, deve-se notar que essa situação grave antecedeu a invasão russa da Ucrânia. Vários analistas concordam que esse evento teve um impacto ainda mais acentuado em termos de aumento dos preços dos combustíveis e alimentos (RUSSIA’s invasion of..., 2022RUSSIA’s invasion of Ukraine is causing record-high food prices. The Economist, 8 abr. 2022. Disponível em: https://www.economist.com/graphic-detail/2022/04/08/russias-invasion-of-ukraine-is-causing-record-high-food-prices. Acesso em: 14 out. 2022.
https://www.economist.com/graphic-detail...
).

Nas nações africanas que adotaram as medidas de socorro oferecidas pelos credores internacionais, o panorama é um pouco melhor. Um relatório da OXFAM de 2021 revelou que 85% dos 107 empréstimos para o covid negociados pelo FMI para aliviar a crise da dívida imediata provocada nos países pobres pela resposta ao SARS-CoV-2 estão vinculados a futuros programas de austeridade para pagá-los (TAMALE, 2021TAMALE, Nona. Adding fuel to fire: how IMF demands for austerity will drive up inequality worldwide. OXFAM, 2021. Disponível em: http://hdl.handle.net/10546/621210. Acesso em: 15 out. 2022. Doi: https://doi.org/10.21201/2021.7864
http://hdl.handle.net/10546/621210...
). Ou seja, futuras erosões de saúde, programas sociais e educação em países pobres são um resultado garantido. Enquanto isso, um artigo de dezembro de 2021, de Ayoade Alakija (copresidente do Programa de Entrega de Vacinas na África), no Financial Times falou sobre a perda de duas décadas de progresso na erradicação da desigualdade (ALAKIJA, 2021Alakija, Ayoade. Africa is being punished by richer nations in the covid battle. Financial Times, 8 dez. 2021. Disponível em: https://www.ft.com/content/12924b55-679d-4b31-b2d4-596f16dd6f4a. Acesso em: 14 out. 2022.
https://www.ft.com/content/12924b55-679d...
). Mas esse número sobre empréstimos para a pandemia de covid deixa claro que esse é apenas o começo de um processo de impactos na vida socioeconômica e nos meios de subsistência das populações do continente africano.

Apesar disso, houve uma exceção: os impactos da pandemia na África foram notavelmente semelhantes aos de outras partes do mundo. Os bilionários do continente se saíram muito bem. Um relatório de janeiro de 2022 da Nigéria descobriu que os 18 bilionários da África viram sua riqueza aumentar em 15% somente em 2021 (MOJEED, 2022MOJEED, Abdulkareem. Despite pandemic, Africa’s billionaires 15% richer in 2021. Premium Times, 25 jan. 2022. Disponível em: https://www.premiumtimesng.com/news/top-news/507655-despite-pandemic-africas-billionaires-15-richer-in-2021.html. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.premiumtimesng.com/news/top-...
). Isso os colocou no mesmo nível dos bilionários dos Estados Unidos, quando um relatório no final de outubro de 2021 da Forbes mostrou que eles eram US$ 2 trilhões mais ricos do que no início da pandemia (WOODARD, 2021WOODWARD, Alex. American billionaires added $2 trillion to their wealth during pandemic. Independent, 18 out. 2021. Disponível em: https://www.independent.co.uk/news/world/americas/billionaire-money-increase-covid-pandemic-b1940590.html. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.independent.co.uk/news/world...
). Na América Latina, os bilionários aumentaram sua riqueza em 52% durante a pandemia (PANDEMIA aumentó..., 2022PANDEMIA aumentó 52% la riqueza de millonarios latinos, pero ahondó la pobreza: Oxfam. Forbes Colombia, 17 jan. 2022. Disponível em: https://forbes.co/2022/01/17/economia-y-finanzas/pandemia-aumento-52-la-riqueza-de-millonarios-latinos-pero-ahondo-la-pobreza-oxfam. Acesso em: 14 out. 2022.
https://forbes.co/2022/01/17/economia-y-...
). Somente no México os multimilionários viram sua riqueza aumentar em 31,4% somente em 2021 (ROJAS, 2022ROJAS, Mario Mendoza. Multimillonarios mexicanos sacan tajada de la pandemia: son 11% más ricos. Publimetro, 27 jan. 2022. Disponível em: https://www.publimetro.com.mx/noticias/2022/01/28/pandemia-dispara-riqueza-de-multimillonarios-mexicanos-cepal/. Acesso em: 15 de out. 2022.
https://www.publimetro.com.mx/noticias/2...
).

No caso do continente africano, como mostrei na primeira parte deste artigo, ficou evidente o aumento maciço da pobreza e da desigualdade, tanto dentro do continente como entre o continente e outras partes do mundo. Mostrei que o contexto é de crédito e dívida e o significado desse quadro em um momento de crise sociopolítica e estrutural. Se trata então de uma descrição razoável do início do comércio atlântico da era moderna e certamente descreve a situação durante a era da pandemia de covid-19. Ou seja, onde as economias estão globalmente interconectadas, e desde os anos 1500, períodos de crise econômica e social muitas vezes viram o surgimento de políticas que aumentaram o peso da dívida das nações africanas e levaram a maiores relações de dependência econômica e política.

O rescaldo da era das revoluções no hemisfério ocidental, por exemplo, marcou a desvalorização massiva dos cauris como moeda na África Ocidental, pressagiando a ascensão do colonialismo europeu de maneira formal (LOVEJOY, 1974Lovejoy, Paul E. Interregional monetary flows in the precolonial trade of Nigeria. Journal of African History, v. 15, n. 4, p. 563-585, 1974. Disponível em: https://bit.ly/3g07bZE. Acesso em: 15 out. 2022. Doi: https://doi.org/10.1017/S0021853700013888
https://bit.ly/3g07bZE...
). Nesse período de crise, o que estamos vendo é mais um quadro de aumento do endividamento e empobrecimento. Muitas análises atuais descreveriam isso como um “resultado inevitável” da pandemia, mas podemos optar por vê-lo como o resultado inevitável de cinco séculos de globalização política e econômica.

Existem outras maneiras de imaginar um tipo de relação econômica e política diferente daquela que foi delineada até agora? No nosso artigo sobre esse tema, Carlos Cardoso e eu desenvolvemos duas ideias centrais (CARDOSO e GREEN, 2020CARDOSO, Carlos; GREEN, Toby. How Africa can take this moment to end a 500-year-old economic model. African Arguments, 25 jun. 2020. Disponível em: https://africanarguments.org/2020/06/how-africa-can-take-this-moment-to-end-a-500-years-old-economic-model/. Acesso em: 15 out. 2022.
https://africanarguments.org/2020/06/how...
). A primeira foi a de que era imperativo que as instituições africanas desenvolvessem estruturas de crédito continentais por meio das instituições multilaterais existentes, como o Ecobank e a União Africana. Isso poderia ser iniciado por meio de uma campanha para incentivar os membros da diáspora africana a bancar instituições do continente, o que, com o tempo, tornaria o continente menos dependente do crédito internacional. Nossa segunda sugestão foi a de que as dívidas com instituições de crédito globais da África não fossem apenas adiadas, mas canceladas. Desde que publicamos esse artigo em agosto de 2020, o apoio a esta última ideia ficou muito mais forte. Esse será o foco da parte final do presente artigo.

Em termos de pobreza e desigualdade, fica claro que o que se presenciou nos últimos dois anos foi uma das maiores e mais rápidas transferências de riqueza dos pobres para os ricos da história. Ou seja, um enorme aumento das desigualdades. Como o economista liberal ganhador do Prêmio Nobel, Joseph Stiglitz, escreveu na revista Scientific American: “o resultado mais significativo da pandemia será um agravamento da desigualdade, tanto dentro dos Estados Unidos quanto entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. A riqueza global de trilionários cresceu US$ 4,4 trilhões entre 2020 e 2021 e, ao mesmo tempo, mais de 100 milhões de pessoas caíram abaixo da linha da pobreza” (STIGLITZ, 2022STIGLITZ, Joseph E. Covid has made global inequality much worse. Scientific American. 1º mar. 2021. Disponível em: https://www.scientificamerican.com/article/covid-has-made-global-inequality-much-worse/. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.scientificamerican.com/artic...
).

Muitos jornalistas e meios de comunicação afirmam que esse aumento da desigualdade foi causado pela pandemia. No entanto, meu argumento neste artigo é o de que isso não foi causado pelo SARS-CoV-2, mas pela resposta a esse novo vírus respiratório. Como argumentou o historiador Adam Tooze em seu livro Shutdown: how covid shook the world’s economy, não há nada de novo em uma pandemia de um vírus como esse, o que é novo e sem precedentes é a resposta a esse vírus (TOOZE, 2021TOOZE Adam. Shutdown: how covid shook the world’s economy. London: Allen Lane, 2021.). O que também é inédito é o aumento da desigualdade, sendo que esse aumento foi causado por um outro fator sem precedentes: a resposta à pandemia, uma vez que tais aumentos da desigualdade não foram associados às pandemias anteriores.

Se o SARS-CoV-2 fosse uma ameaça terrível para as nações africanas, tanto quanto para as nações ocidentais, pode-se argumentar que esse era simplesmente um processo doloroso pelo qual se precisava passar. Porém, as evidências dos últimos dois anos mostram que este não foi o caso. Até 15 de outubro de 2022, a África havia registrado um número total de 257.736 mortes (WORLDMETER, 2022WORLD HEALTH ORGANIZATION. Non-pharmaceutical public health measures for mitigating the risk and impact of epidemic and pandemic influenza. 19 set. 2019. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/non-pharmaceutical-public-health-measuresfor-mitigating-the-risk-and-impact-of-epidemic-and-pandemic-influenza. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.who.int/publications/i/item/...
). Destes, 172.391 ocorreram em apenas quatro países, geralmente países mais ricos e com populações mais velhas (África do Sul, Tunísia, Egito e Marrocos). Apenas 85.345 mortes foram registradas no resto do continente, ou cerca de 42.000 por ano. Tais números não devem ser totalmente surpreendentes, pois a Organização das Nações Unidas (ONU) registrou que a idade média no continente em 2019 era 19,8 anos (MO IBRAHIM FOUNDATION, 2019Mo Ibrahim Foundation. Africa’s first challenge: the youth bulge stuck in “waithood”, 2019. Disponível em: https://mo.ibrahim.foundation/news/2019/africas-first-challenge-youth-bulge-stuck-waithood. Acesso em: 15 out. 2022.
https://mo.ibrahim.foundation/news/2019/...
), quando ficou claro que esse é um vírus que afeta predominantemente pessoas muito mais velhas. De fato, alguns profissionais da Saúde notaram esse resultado potencial em março de 2020, quando a pandemia começou (NORDLING, 2020NORDLING, Linda. “A ticking time bomb”: Scientists worry about coronavirus spread in Africa. Science, 15 mar. 2020. Disponível em: https://www.sciencemag.org/news/2020/03/ticking-time-bomb-scientists-worry-about-coronavirus-spread-africa. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.sciencemag.org/news/2020/03/...
), mas foram ignorados, e medidas de bloqueio foram recomendadas e impostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em todo o continente (GREEN, 2021aGREEN, Toby. The covid consensus: the new politics of global inequality. London: C. Hurst & Co.; New York: Oxford University Press, 2021a., p. 138).

Esses números são amplamente considerados subestimados e talvez não sejam realmente significativos. Em julho de 2020, o professor de Medicina da Universidade de Stanford, John Ioannides, estimou que os números de casos africanos representavam entre 30 e 80% do número real e que essa proporção estava aumentando com o tempo (IONANNIDIS, 2021Ioannidis, John P. A. Over and Under-estimation of covid-19 Deaths. European Journal of Epidemiology, v. 36, p. 581-588, 2021. Acesso em: 15 out. 2022. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10654-021-00787-9. Doi: https://doi.org/10.1007/s10654-021-00787-9
https://link.springer.com/article/10.100...
). Enquanto isso, a OMS declarou, em outubro de 2021, que apenas um em cada sete casos de covid-19, cerca de 15%, foram registrados no continente africano (KHAN, 2021KHAN, Aina. J. Six out of seven coronavirus cases in Africa are going undetected, the WHO says. New York Times, 14 out. 2021. Disponível em: https://www.nytimes.com/2021/10/14/world/africa/covid-africa-who.html. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.nytimes.com/2021/10/14/world...
). Considerando que isoladamente os casos de covid-19 são menos suscetíveis de serem registrados do que as mortes por covid-19 (uma vez que podem resultar apenas em sintomas leves), essas estimativas de casos e número de mortes são bastante comparáveis. Eles indicariam que a taxa de mortalidade por covid-19 na África seja talvez duas ou três vezes maior que a registrada fora dos quatro países (África do Sul, Tunísia, Egito e Marrocos), com taxas de mortalidade mais altas que as mencionados acima, em que diagnósticos e instalações médicas não permitiram registros precisos.

Se formos mais conservadores e afirmarmos que o número real é quatro vezes o registrado, ou cerca de 340.000 mortes em dois anos para o continente (exceto os quatro países já mencionados), ou aproximadamente 170.000 por ano, em um continente onde 9 milhões de pessoas morrem anualmente, esse aumento de mortalidade de cerca de 2% não é enorme. Além disso, deve-se notar que essas são estimativas conservadoras, assumindo um aumento de quatro vezes na mortalidade registrada por covid-19. Alguns renomados acadêmicos africanos acham que as estimativas de mortalidade por covid-19 são, na realidade, superestimadas, e não subestimadas. Essa foi a opinião do Dr. Samuel Adu-Gyamfi, historiador de Medicina do Gana e chefe do Departamento de História e Ciência Política da Kwame Nkrumah University of Science and Technology (KNUST), em entrevista concedida em outubro de 2021 (GREEN e ADU-GYAMFI, 2021GREEN, Toby; Adu-Gyamfi, Sameul. The catastrophic impact of covid lockdown policy in Ghana. Collateral Global TV, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aIZHCDBdNMA. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=aIZHCDBd...
).

Um bom estudo de caso é a Nigéria. Em 19 de abril de 2022, a Nigéria havia registrado 3.143 mortes por covid-19, ou cerca de 1.600 por ano. Mas sejamos extremamente cautelosos e suponhamos que o número real seja sete vezes esse, e cerca de 10.000 por ano. Em um país onde 1,8 milhão de pessoas morre anualmente, essa taxa representa um aumento de mortalidade de 0,6%. Em um continente em que mais de 40 milhões de pessoas entraram na pobreza extrema em 2021 (REED et al., 2021REED, Sarah Orleans et al. The crisis is far from over for informal workers — we need an inclusive recovery for the majority of the world’s workforce. Nov. 2021. Disponível em: https://www.wiego.org/resources/covid-Global-policy-insights. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.wiego.org/resources/covid-Gl...
) e onde a OMS diz que a desnutrição é responsável pelas mortes, em todo o mundo, de 45% das crianças menores de 5 anos (GREEN, 2021GREEN, Toby; Adu-Gyamfi, Sameul. The catastrophic impact of covid lockdown policy in Ghana. Collateral Global TV, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aIZHCDBdNMA. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=aIZHCDBd...
a, p. 135), a lógica de propor e impor políticas de restrições sociais mundialmente (como a OMS fez em fevereiro e março de 2020) deve ser seriamente questionada.

Além disso, os confinamentos já haviam sido testados na África no contexto de outras doenças infecciosas, como durante a epidemia de ebola de 2014-2015, que atingiu Guiné-Conacri, Libéria e Serra Leoa. O que chama a atenção é que renomados profissionais e organizações da saúde global, como os Médicos Sem Fronteiras (MSF), alertaram contra essa política na época como quebra de confiança e impraticável em países com uma economia informal tão grande (BBC, 2014SIERRA Leone’s Ebola lockdown will not help, says MSF. BBC, 6 set. 2014. Disponível em: https://www.bbc.co.uk/news/world-africa-29096405. Acesso em: 14 out. 2022.
https://www.bbc.co.uk/news/world-africa-...
). Seguiram-se tumultos na Libéria (TOOZE, 2021TOOZE Adam. Shutdown: how covid shook the world’s economy. London: Allen Lane, 2021., p. 52), e, como mostrou o antropólogo Paul Richards, o controle da epidemia de ebola não teve relação com confinamentos, mas veio como resultado de um diálogo sustentado com as comunidades locais e das políticas desenvolvidas em parceria com elas (RICHARDS, 2016RICHARDS, Paul. Ebola: how a people’s science helped end an epidemic. London: Zed Books, 2016.). É por isso que profissionais experientes de saúde pública global, como Llanos Ortíz Montero, ex-vice-diretor dos MSF na Espanha e que esteve envolvido na resposta ao Ebola em Freetown, ficaram chocados com as recomendações da OMS para confinamentos universais durante a pandemia de covid-19 (GREEN, 2021dGREEN, Toby. The Ebola lockdown that everyone forgot. UnHerd, 2021d. Disponível em: https://unherd.com/thepost/the-ebola-lockdown-that-everyone-forgot/ Acesso em: 15 out. 2022.
https://unherd.com/thepost/the-ebola-loc...
).

Em suma, os países ricos pressionaram os países de baixa renda do continente africano a destruir seus meios de subsistência e fluxos de renda, aumentando enormemente a carga da dívida, como já vimos neste artigo, para combater uma doença que é principalmente um problema para as pessoas mais ricas com expectativa de vida mais longa nos países ricos. Como observei em um artigo recente (GREEN, 2021cGREEN, Toby. Medical colonialism: pandemic impacts and vaccine delivery. African Arguments, 2021c. Disponível em: https://africanarguments.org/2021/12/medical-colonialism-pandemic-impacts-and-vaccine-delivery /. Acesso em: 15 out. 2022.
https://africanarguments.org/2021/12/med...
), tais recomendações são a iteração do colonialismo médico do século XXI. Enquanto isso, o foco da indústria farmacêutica global em testes de covid-19 e vacinas contra o covid-19 resultou em uma escassez de outras vacinas e, de fato, dos testes rápidos de malária, na medida em que os fabricantes desses testes passaram a fabricar testes de covid-19 (GREEN e ORTÍZ MONTERO, 2021GREEN, Toby; MONTERO, Llanos Ortíz. Collateral damage of covid policies in poor countries. Collateral Global TV, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=481kyqtU68o. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=481kyqtU...
). Em outras palavras, as prioridades médicas africanas foram mais uma vez subordinadas às regras do mundo rico. Enquanto isso, economias e infraestruturas africanas retrocederam 20 anos, com impactos futuros do endividamento causado pelas respostas ao covid-19, na sequência de uma resposta única para uma doença que, de fato, não afeta o continente africano da mesma maneira que o resto do mundo. Como isso causou um enorme aumento do endividamento para combater uma doença que vários comentadores têm dito ser muito menos grave do que as endemias existentes (GREEN e RODRIGUES 2022GREEN, Toby; RODRIGUES, Elsa Ofélia Sequeira. Angola: the impact of lockdowns on public health. Collateral Global TV, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9oamsSMBFFI. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=9oamsSMB...
), a questão de saber se os países africanos devem ser forçados a pagar a conta desse endividamento é muito importante.

Do ponto de vista acadêmico, um dos elementos marcantes dos últimos dois anos foi a quase total exclusão das disciplinas das Ciências Sociais e Humanas do debate sobre as respostas políticas à pandemia do coronavírus. Digo marcante, em vez de surpreendente, uma vez que essa resposta é claramente uma peça com a direção política generalizada dos governos ocidentais nas últimas décadas, que priorizaram assuntos STEM (ciência, tecnologia, engenharia e matemática) enquanto cortaram o financiamento ou subfinanciaram as Ciências Sociais e Humanas. É claro que o financiamento de pesquisas médicas e científicas é de grande importância, mas, ao começar a juntar os fios dessa discussão, podemos ver que a exclusão de perspectivas das Ciências Humanas e sociais nas políticas de resposta à pandemia foi um erro com graves consequências.

Em primeiro lugar, as perspectivas críticas de disciplinas não STEM são muito úteis para examinar os dados empíricos existentes. Os últimos dois anos partiram do pressuposto de que os dados sempre devem ter primazia sobre a crítica. E essa é, eu diria, uma das premissas centrais que impulsionou a resposta à pandemia e limpou o terreno das perspectivas relevantes das Ciências Humanas e sociais. Mas um tal ponto de vista que “fetichiza” os dados pressupõe a existência de uma objetividade que está muito longe da realidade. Houve muita discussão sobre a definição e a interpretação dos dados do covid-19. Por exemplo, a redefinição da noção de “caso”, que antes do SARS-CoV-2 exigia expressão sintomática, e a definição de “mortalidade por covid-19” dentro de 90 (ou 28) dias após um resultado de teste positivo e a questão das comorbidades.

Historiadores e cientistas sociais sabem que os dados não são objetivos e que as premissas centrais são construídas a partir de como são apresentados e analisados, como de fato a pandemia de SARS-CoV-2 mostrou. Reunindo as perspectivas discutidas neste artigo, poderíamos sugerir que esses pressupostos centrais e as direções políticas incluíram a continuidade das relações globais de desigualdade de longa data, que ligam o norte global e o sul global. Na verdade, eu argumentaria que, para realmente calcular qual deve ser uma resposta apropriada às pandemias, precisamos nos afastar de uma fetichização de dados que apenas refletem nosso vício na tecnologia de computação. Para calcular uma resposta a uma pandemia, precisamos incorporar perspectivas da psicologia, sociologia, economia e antropologia médica, bem como de história. De muitas maneiras, esse é o tipo de crítica que uma série de estudiosos das Ciências Humanas e Sociais estão procurando agora desenvolver – e que também emergiu nas questões discutidas neste artigo.

Além da questão da crítica, o que a história como disciplina pode trazer para o estudo do fenômeno que convulsionou as sociedades globais nos últimos dois anos? Como a história pode contribuir ao estudo da catástrofe socioeconômica associada à resposta à crise gerada pela pandemia? Na minha opinião, a história pode trazer muito. Nesta parte final do artigo, darei alguns exemplos que iluminam essa perspectiva e, a meu ver, demonstram duas questões. Em primeiro, no caso de futuras pandemias, as análises e as críticas de cientistas sociais e acadêmicos das humanidades serão vitais na formulação das políticas para responder às pandemias. Em segundo, na atual fase pós-pandemia, tais respostas também são vitais.

Um exemplo da utilidade da disciplina de história (ou de qual poderia ter sido essa utilidade) é a questão da história comparada. Comparar essa pandemia com outras é bastante fácil, se considerarmos sua gravidade, e isso pode e deve ajudar a orientar o que pode ser uma resposta apropriada. A comparação que costuma ser feita é com a epidemia de gripe espanhola de 1918-19. De acordo com o Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos, a gripe espanhola matou pelo menos 50 milhões de pessoas durante os dois anos de sua nova endemicidade em 1918-1919 (CDC 2019aCDC. Centers for Disease Control and Prevention. Influenza (Flu): 1918. Pandemic (H1N1 virus). 2019a. Disponível em: https://www.cdc.gov/flu/pandemic-resources/1918-pandemic-h1n1.html. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.cdc.gov/flu/pandemic-resourc...
). A grande maioria dessas mortes ocorreu entre pessoas mais jovens. Nesse momento, a população mundial era de cerca de 1,8 bilhão (ROSER et al., 2019ROSER, Max et al. World population growth. Our world in data [2013], 2019. Disponível em https://ourworldindata.org/world-population-growth#how-has-world-population-growth-changed-over-time. Acesso em: 15 out. 2022.
https://ourworldindata.org/world-populat...
), menos de um quarto do que a população mundial atual. Então, comparativamente, esse número de mortes corresponderia a cerca de 200 milhões de mortes em 2020-2021. Tal número não pode ser comparado aos 6,570 milhões de pessoas, em grande parte mais idosas, que foram contabilizadas como mortas durante mais de dois anos e meio de SARS-CoV-2 até o momento (WORLDMETER). Mesmo se esse número se trate de subcontagem e que o número real seja mais elevado, ainda se trata de um número comparativamente bem menor que o da mortalidade da gripe espanhola.

Que outras comparações podemos fazer? Uma pode ser a chamada gripe asiática de 1957, que segundo o CDC matou aproximadamente 1,1 milhão de pessoas no espaço de dois anos, numa época em que a população mundial correspondia a 40% da população atual ou seja, 2,5 milhões de mortes nos dias de hoje (CDC, 2019bCDC. Centers for Disease Control and Prevention. Influenza (Flu): 1957-1958. Pandemic (H2N2 virus). 2019b. Disponível em: https://www.cdc.gov/flu/pandemic-resources/1957-1958-pandemic.html. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.cdc.gov/flu/pandemic-resourc...
). Essa seria uma taxa de mortalidade que é aproximadamente 40% da estimativa atual para o covid-19. Mas como se tratava de uma pandemia que afetou mais os jovens do que os idosos, o número de anos de vida perdidos foi maior, embora claramente, em termos de mortalidade geral, seja ainda muito menor do que no caso do covid-19.

Histórias comparativas podem ser arriscadas, e de fato perigosas, se compararmos maçãs e peras. Certamente, os números relativos de mortalidade do covid-19 e da gripe espanhola sugerem que maçãs e peras estão sendo comparadas aqui. Alguns podem dizer o mesmo sobre a pandemia de 1957, e certamente são necessárias mais pesquisas. É uma pena que mais estudos desse tipo não tenham sido financiados ou divulgados nos últimos dois anos, pois isso poderia ter ajudado a avaliar qual seria a resposta política mais apropriada à pandemia de covid-19.

Outro exemplo da utilidade da história como disciplina é a história das políticas. Os historiadores costumam examinar documentos oficiais e, em seguida, estudar eventos reais e políticas em ação e propor hipóteses quando as políticas oficiais e ações são discrepantes. Essa é uma das contribuições do trabalho que tenho feito até agora nessa área. Examinar as políticas oficiais, avaliar a natureza da resposta e, em seguida, apresentar hipóteses para explicar o abismo entre elas.

Meu argumento é o de que há uma necessidade urgente de muito mais trabalhos feitos pelos historiadores nesta área. E um dos elementos centrais dessa necessidade é interrogar a OMS e suas políticas. Já vimos como a implementação de confinamentos breves na Libéria e Serra Leoa em 2014 foi tentada e considerada um fracasso. A OMS encomendou então mais pesquisas sobre intervenções não farmacêuticas em pandemias no caso de futuras pandemias. Em outro lugar, analisei o documento da OMS de dezembro de 2019 sobre intervenções não farmacêuticas em pandemias, que é um documento interessante (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2019WORLD HEALTH ORGANIZATION. Non-pharmaceutical public health measures for mitigating the risk and impact of epidemic and pandemic influenza. 19 set. 2019. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/non-pharmaceutical-public-health-measuresfor-mitigating-the-risk-and-impact-of-epidemic-and-pandemic-influenza. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.who.int/publications/i/item/...
). O relatório, preparado pela Escola de Higiene e Medicina Tropical da Universidade de Hong Kong em colaboração com a OMS, não usa a palavra “confinamento” ao abordar a questão das respostas adequadas às pandemias. Ou seja, as políticas de última geração em saúde global produzida apenas três meses antes da declaração da pandemia de SARS-CoV-2 não recomendavam nem mencionavam confinamentos. Além disso, o relatório também afirmava que o fechamento de fronteiras, a quarentena de indivíduos assintomáticos e o uso de rastreamento de contatos, políticas que se tornaram práticas rotineiras nos últimos dois anos, não deveriam ser aplicadas de modo algum (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2019WORLD HEALTH ORGANIZATION. Non-pharmaceutical public health measures for mitigating the risk and impact of epidemic and pandemic influenza. 19 set. 2019. Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/non-pharmaceutical-public-health-measuresfor-mitigating-the-risk-and-impact-of-epidemic-and-pandemic-influenza. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.who.int/publications/i/item/...
). Como explicar tal mudança em tão poucos meses?

Mais trabalhos sobre questões políticas e suas raízes históricas são urgentemente necessários. Uma análise em tempo real atualizada durante a primeira fase da pandemia certamente teria ajudado a desenvolver uma compreensão mais completa do consenso científico e da resposta comparada a pandemias anteriores.

A questão das políticas nos leva à terceira área que desejo destacar aqui, que é certamente um dos elementos mais fundamentais da história como disciplina. Como crítica do poder, a história analisa e interpreta as maneiras pelas quais o poder opera nas sociedades humanas e pode fornecer uma variedade de casos para mostrar a diversidade potencial de arranjos sociais que o poder pode produzir e podem ser usados em alguns casos para, até certo ponto, mitigar o abuso de poder. Essa é uma das razões pelas quais este artigo é disciplinarmente histórico, já que nele procurei analisar a política, a doença e seus impactos, não pela ótica da medicina, mas pela ótica do poder. Como crítica do poder, a análise da resposta política à pandemia parece bem diferente de como aparece, quando vista pela ótica da medicina e do poder médico.

Nesse sentido, como vimos em relação à África e o problema da desigualdade global, as políticas que testemunhamos nos últimos dois anos são sem precedentes por seu estilo, mas não em sua estrutura. Essas políticas seguem um padrão de longa data que liga o crédito externo, a depreciação da moeda e o subdesenvolvimento econômico na África em tempos de crise socioeconômica global. Muitos detalhes dos impactos dos últimos dois anos são agora públicos e são uma leitura sombria, quando consideramos o balanço da pandemia. Não há dúvida de que os danos nos países pobres excedem largamente quaisquer benefícios, pois, de fato, a pesquisa acadêmica concluída a partir dos breves confinamentos do Ebola de 2014-2015. Como um crítico indiano anônimo escreveu na New Left Review na edição de março/abril de 2020:

O confinamento transferiu o fardo da pandemia do coronavírus quase inteiramente para os ombros dos pobres e marginalizados. Está claro nos videoclipes nas mídias sociais de pessoas comuns expressando sua raiva e desamparo que a maioria vê o confinamento como uma calamidade muito maior do que o próprio covid-19… Colocado de forma brutal, os trabalhadores podem morrer de fome para salvar da morte os idosos principalmente de classe média. E para quem duvida que a possibilidade da fome seja real, vale notar que o ministro-chefe de Kerala, amplamente elogiado por sua resposta à pandemia, sentiu a necessidade de tranquilizar explicitamente as pessoas de que não permitiria que ninguém no estado morresse de fome como consequência do confinamento

(MUSAHAR, 2020Musahar, N.R. India’s Starvation Measures. New Left Review, v. 122, p. 29-34, 2020. Disponível em: https://newleftreview.org/issues/ii122/articles/india-s-starvation-measures. Acesso em: 15 out. 2022.
https://newleftreview.org/issues/ii122/a...
).

É por isso que, em meu livro The covid consensus (GREEN, 2021aGREEN, Toby. The covid consensus: the new politics of global inequality. London: C. Hurst & Co.; New York: Oxford University Press, 2021a.), descrevo a estrutura das políticas de resposta à pandemia como uma “continuidade radical das tendências existentes”. Já havia uma desigualdade desenfreada nas economias globais, mas com a pandemia essa realidade aumentou radicalmente. A presença da computação, que já estava na vanguarda do trabalho e das interações sociais, também aumentou radicalmente. Como argumentado aqui, por muitos séculos, as políticas que levam ao crescimento do endividamento e à dependência dos países pobres dos ricos não são novidade.

Conclusão

Precisamos de muito mais trabalhos que busquem analisar os eventos da pandemia de SARS-CoV-2, não principalmente pela ótica da medicina e da ciência, como tem sido feito até agora, mas pela ótica da história, através de uma crítica do poder. A resposta oferecida aqui para a pergunta sobre o que está na raiz dos tempos sem precedentes que estamos vivendo é bem diferente da de muitos. Em primeiro lugar, esses problemas são de tipo inédito, é verdade, mas não em sua estrutura, e representam uma continuidade radical das tendências existentes. Em meu livro, The covid consensus (GREEN, 2021GREEN, Toby; Adu-Gyamfi, Sameul. The catastrophic impact of covid lockdown policy in Ghana. Collateral Global TV, 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aIZHCDBdNMA. Acesso em: 15 out. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=aIZHCDBd...
), argumento que a maneira como a resposta sem precedentes a um novo vírus respiratório permitiu a rápida aceleração das direções de poder existentes nas sociedades humanas sugere que a resposta a esse vírus foi condicionada, não pela ameaça que esse vírus representava para a saúde humana, mas sim pelas tendências de poder existentes nas sociedades humanas. Neste artigo, vimos como esse quadro também é condicionado por séculos de interações globais que ligam o continente africano ao resto do mundo, interações que tendem a exacerbar as desigualdades em tempos de crise socioeconômica. Mas espero também ter mostrado como as perspectivas das Ciências Humanas e sociais podem oferecer perspectivas para mudar esse equilíbrio – ou, melhor, desequilíbrio. Como vimos, um olhar mais atento às evidências pode levar a importantes implicações políticas relacionadas a perspectivas de assuntos não STEM. Mas, para que isso se torne um forte argumento para a abolição do endividamento dos países africanos, também é necessário considerar as perspectivas de longo prazo sobre as relações da África com a desigualdade global, como tentei oferecer aqui.

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    A tradução do livro em português é esperada em finais de 2023, pela editora Figura de Linguagem de Porto Alegre.

Referências bibliográficas

Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Out 2022
  • Aceito
    18 Abr 2023
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