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GRUPOS INTERMÉDIOS: IDENTIDADE SOCIAL, NÍVEIS DE FORTUNA E PADRÕES DE CONSUMO (LISBOA NOS FINAIS DO ANTIGO REGIME)

INTERMEDIATE GROUPS: SOCIAL IDENTITY, LEVELS OF WEALTH AND PATTERNS OF CONSUMPTION (LISBON AT THE END OF ANCIENT REGIME)

Resumo

A análise dos esquemas de representação e do vocabulário social em Portugal demonstrou que, nos finais do Antigo Regime, apesar de estranhas ao enquadramento normativo, a noção de mediania e as visões da sociedade que a incluem estavam difundidas. De fato, existem vários testemunhos de que os autores portugueses e estrangeiros coevos se referiam com frequência às camadas intermédias em geral, e ao seu modus vivendi em particular. Partindo de 376 inventários realizados em Lisboa entre 1755 e 1836, propomo-nos analisar os níveis de riqueza, aferir a existência de padrões na composição do patrimônio e formas de consumo dos diferentes grupos socioeconômicos. O presente estudo tem uma dimensão comparativa, uma vez que confronta diferentes categorias, mas o seu objeto central é a análise das camadas intermédias.

Palavras-chave
Grupos intermédios; riqueza; consumo

Abstract

The analysis of schemes of social representation and social vocabulary in Portugal showed that, at the end of the Ancient Regime, although absent in the legal framework, the notion of intermediate strata and the visions of the society that included it were widespread. In fact, there are several evidences that Portuguese and foreign authors referred to the intermediate layers, in general, and to its modus vivendi, in particular. Focusing on 376 inventories carried out in Lisbon between 1755 and 1836, we seek to analyse the levels and composition of wealth, and patterns of consumption of the different socio-economic groups. This study follows a comparative approach, because it confronts different groups, but its main goal is to focus on the intermediate layers.

Keywords
Intermediate groups; wealth; consumption

Introdução

Até recentemente, a atenção dos historiadores portugueses estava bastante polarizada em torno do estudo das elites e dos grupos populares, concedendo pouca atenção aos setores da população que não se enquadram nessas duas categorias extremas. A nossa investigação enquadra-se na tendência historiográfica internacional que tem valorizado a análise dos grupos sociais intermédios1 1 EARLE, Peter. The making of the English middle class: business, society and family life in London, 1660-1730. Londres: Methuen, 1991; SEED, John. From “middling sort” to middle class in late eighteenth and early nineteenth century England. In: BUSH, M. L. (ed.). Social orders and social classes in Europe since 1500: studies in social stratification. Londres; Nova York: Longman, 1992, p. 114-135; BARRY, Jonathan. Identité urbaine et classe moyenne dans l’Angleterre moderne. Annales. Économies, Sociétés, Civilisations, nº 4, 1993, p. 853-883; BARRY, Jonathan & BROOKS, Christopher (ed.). The middling sort of people: culture, society and politics in England, 1550-1800. Hampshire; Londres: Palgrave Macmillan, 1994; WAHRMAN, Dror. Imagining the middle class: the political representation of class in Britain, c. 1780-1840. Cambridge: Cambridge University Press, 1995; DAVIDOFF, Leonore & HALL, Catherine. Family fortunes: men and women of the English middle class, 1780-1850. Londres: Routledge, 2002; MAZA, Sara. The myth of French bourgeoisie. An essay on the social imaginary, 1750-1850. Cambridge; Massachussetts; Londres: Harvard University Press, 2003. e na corrente da historiografia portuguesa que ultimamente tem eleito os grupos intermédios como objeto de estudo central. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Fernanda Olival sobre os espaços da vida privada nos grupos populares e intermédios2 2 OLIVAL, Fernanda. Os lugares e espaços do privado nos grupos populares e intermédios. In: MATTOSO, José (dir.). História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores e Debates, 2011, p. 244-275. e os resultados do projeto de investigação “Grupos intermédios em Portugal e no Império português: as familiaturas do Santo Ofício (c. 1570-1773)” que a mesma historiadora coordenou. É também o caso de Isabel M. R. Mendes Drumond Braga que, na sua obra Bens de hereges define como objetivo central conhecer a cultura material dos “grupos intermédios” em Portugal e no Brasil nos séculos XVII e XVIII, a partir dos inventários de bens de réus presos pelo Santo Ofício.3 3 BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Bens de hereges. Inquisição e cultura material. Portugal e Brasil (séculos XVII-XVIII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. Refiram-se ainda os trabalhos por nós desenvolvidos. A própria organização do presente dossiê é sintomática do interesse que os grupos intermédios têm suscitado.

De fato, a análise dos esquemas de representação e do vocabulário social em Portugal demonstrou que, nos finais do Antigo Regime, apesar de estranhas ao enquadramento normativo, a noção de mediania e as visões da sociedade que a incluem estavam difundidas. Existem vários testemunhos de que os autores portugueses e estrangeiros coevos se referiam com frequência às camadas intermédias em geral, e ao seu modus vivendi em particular.4 4 Sobre exemplos destes testemunhos leia-se DURÃES, Andreia. Grupos intermédios em Portugal (1600-1850): uma aproximação ao vocabulário social. Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, vol. 14, nº 27, 2013, p. 318-343. Dessa análise importa destacar que a multiplicidade de discursos alternativos sobre o espectro social, nos quais se inclui o modelo tripartido que considera grandes, medianos e pequenos, pretendia fazer face à crescente complexidade da organização social e reflete a progressiva inadequação do discurso oficial à realidade e a incapacidade crescente dos limites rígidos da hierarquização tripartida juridicamente definida e validada traduzirem a complexificação da morfologia social do reino que ocorreu ao longo dos séculos XVII-XVIII.5 5 Sobre este assunto leia-se RODRIGUES, José Damião. A estrutura social. In: SERRÃO, Joel & MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.). Nova história de Portugal, vol. VII. Lisboa: Editorial Presença, 2001, p. 408-409; HESPANHA, A. M. A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII. Penélope, nº 12, 1993, p. 36-37; XAVIER, Ângela Barreto & HESPANHA, A. M. A representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, vol. IV. Lisboa: Editorial Estampa, p. 131-132; HESPANHA, A. M. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal - séc. XVII. Lisboa: Edição de autor, 1986, p. 418; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, op. cit., p. 334-337.

A análise dessas camadas intermédias é premente, sem a qual a compreensão da sociedade moderna portuguesa ficará limitada aos seus polos extremos e, portanto, incompleta. Mais importante do que a história do vocabulário em si é a permanência de uma forma de a sociedade moderna portuguesa se pensar a si mesma como um todo, transversal no tempo e comum a múltiplos sujeitos, que, em última instância, prova que os contemporâneos estavam conscientes da existência de uma camada social que ocupava uma posição média na distribuição da riqueza, estatuto e autoridade.

No que toca aos padrões de significados, o conceito de grupos intermédios ou médios revela-se profundamente plástico, assumindo significados diferentes. A plasticidade do conceito radica da sua natureza posicional, reportando-se a um entre, da qual decorre a grande amplitude e variabilidade de aplicações. O termo oscila entre uma ampla gama de significados que vai dos grupos não nobres até a baixa e média nobreza. A análise dos discursos permitiu concluir que o “estado do meio” é um conceito ambíguo e difuso. Como refere Diogo Ramada Curto, as tipologias sociais, umas vezes entalam-no entre nobres e plebeus, outras conotam-no como nobre, utilizando-o como equivalente a um segundo grau de nobreza6 6 CURTO, Diogo Ramada. Discurso político em Portugal 1600-1650. Lisboa: Universidade Aberta; Centro de Estudos de História e Cultura Portuguesa, 1988, p. 205. (nomeadamente, para a distinguir de fidalguia, termo superior e mais restrito). Outros utilizam o termo para designar a nobreza simples ou nobreza rasa. Na primeira e terceira visão, o estrato intermédio parece apontar para uma condição provisória, um lugar de passagem. Um meio e não um fim em si. Um quarto entendimento aponta para um grupo (não nobre) que se diferencia dos plebeus pelos recursos médios e correlativos modo de vida, vestuário, hábitos e divertimentos e parece dotado, por isso, de identidade. Em suma, verificamos que, efetivamente, existe uma percepção social - entre nacionais e estrangeiros - favorável à consideração de um grupo intermédio. Esta percepção não só se coaduna com a nossa perspectiva de análise, como, em última instância, a legitima. Estas visões coadunam-se com o enfoque que pretendemos adotar, segundo o qual a sociedade no século XVIII já não espelha o modelo dominante que antes a tipificou. Muitos parecem defini-la pelo modelo no qual desembocará findo esse período de transição, considerando um grupo intermédio entre ricos e pobres.

No presente artigo pretendemos dar um contributo para o conhecimento dos níveis de riqueza, composição do patrimônio e padrões de consumo desse grupo.

A fonte: Inventários de bens

Antes de avançarmos, debruçar-nos-emos sobre a fonte que serve de base ao nosso estudo, os inventários de bens. Propomo-nos refletir sobre a sua natureza, condições de produção e características, elementos centrais quando se pretende avaliar o seu valor. Importa destacar os seus pontos fortes mas também as suas limitações e fragilidades.

Efetivamente, a maioria dos processos alvo de estudo são inventários orfanológicos, que se realizam obrigatoriamente sempre que um defunto deixa pelo menos um filho menor, ou seja, com idade inferior a 25 anos. Importa ressalvar que a existência de filhos menores à data da morte de um dos pais não é a única condição legal que implica a realização de inventário. Outras situações determinam a obrigatoriedade deste mecanismo para efeitos de partilha de bens, tais como a presença de um ausente ou demente entre os herdeiros, ou o fato do cônjuge sobrevivente voltar a casar. No caso de os herdeiros serem maiores, o processo, em tudo semelhante ao dos órfãos, decorre na dependência de uma outra instância, a Correição Cível.

A circunstância do processo de inventário resultar, em muitos casos, de um imperativo legal com caráter compulsivo e o fato de decorrer sob a supervisão dos tribunais influenciam a natureza, características e, consequentemente, o valor desta fonte histórica. O fim último de todo o processo consistia na salvaguarda dos interesses dos órfãos. De fato, caberia ao tutor do órfão administrar a legítima7 7 Chama-se legítima a porção da herança que cabia a cada um dos filhos ou herdeiros necessários. que coubesse ao menor na partilha e zelar para que esta lhe fosse entregue intacta ou até acrescentada quando atingisse a maioridade (ou seja, quando completasse 25 anos, casasse ou obtivesse carta régia de emancipação). Assim se assegurava a estabilidade do patrimônio no momento da transmissão intergeracional.8 8 MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários. Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime. Dissertação de mestrado em Economia e Sociologia Históricas, séculos XV-XX, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1989, p. 12.

A lei definia que o inventário deveria contemplar “todos os bens moveis e de raiz, que por morte do defunto ficarem”, bem como “todas as dividas, que se deverem a esses Orfãos, ou em que elles a outrem forem devedores”.9 9 Ordenações Filipinas, livro I, tít. 88, § 4. Este fato permite que os inventários, em Portugal, facultem ao historiador uma imagem bastante rigorosa do patrimônio de uma família no momento da morte do inventariado/a e constituam uma fonte privilegiada para o estudo dos níveis e composição da riqueza dos agregados.10 10 Por esse motivo os estudos que têm incidido sobre os níveis e a composição da riqueza em Portugal têm partido dos inventários orfanológicos. Veja-se, por exemplo, ROCHA, Maria Manuela. Propriedade e níveis de riqueza: formas de estruturação social em Monsaraz na primeira metade do século XIX. Lisboa: Edições Cosmos, 1994; PEDREIRA, Jorge. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822). Tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1995; MADUREIRA, Nuno Luís, op. cit.

Destacamos porém algumas lacunas no registo dos bens de raiz uma vez que o enquadramento legal definia para os prazos em vidas e vínculos um regime diferenciado, permitindo que, em alguns casos, não fossem avaliados nem entrassem na partilha dos bens.11 11 Para os bens vinculados o sistema de transmissão era independente das partilhas. Neste caso, o herdeiro estava definido. Os bens vinculados passavam na linha direta descendente ao filho mais velho, neto, filho do primogênito ou, na falta deste, na linha colateral, ao irmão ou sobrinho e apenas entravam na herança os bens livres. Também os prazos em vidas eram transmitidos à margem das partilhas. É preciso ter em conta que o inventário não nos fornece o patrimônio real da família, mas a parte que legalmente está sujeita a partilhas. Esta é uma das mais importantes lacunas dos inventários porque leva à subestimação da soma da fazenda e acarreta um grau de distorção considerável na imagem do patrimônio dos indivíduos detentores deste tipo de bens. No entanto, não serão certamente muitos os casos em que este tipo de bens não se declarou, uma vez que os juristas recomendavam que fosse objeto de descrição e louvação tudo o que pudesse ser objeto de herança, “mesmo os prasos de vidas, e morgados, que não são herança, quando os emphyteutas e administradores são menores de 25 anos, ou ausentes, ou outras algumas pessoas, que, conforme o Direito, estão sujeitas á jurisdicção do Juiz dos Orphãos por causa da administração d’estes bens”.12 12 LEIVA, António Joaquim Ferreira de Eça e. Memorias theoricas e práticas do direito orfanologico. Porto: Tipografia Comercial, 1846, p. 17. Da mesma forma se recomendava que se louvassem, para entrar em partilha, quaisquer benfeitorias feitas nesta qualidade de bens, realizadas na constância do matrimônio dos pais.13 13 LEIVA, António Joaquim Ferreira de Eça e, op. cit., p. 25. José Pereira de Carvalho corrobora esta perspectiva, salientando que também era partível o preço pelo qual o prazo se comprara, se este não tivesse sido conferido no inventário do comprador. CARVALHO, José Pereira de. Primeiras linhas sobre o processo orphanologico. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1816, p. 50-52 e 57. Do levantamento que fizemos e do confronto com os testamentos dos inventariados onde, muitas vezes, os testadores se referem ao seu patrimônio, concluímos que a referência a prazos em vidas e/ou vínculos é reduzida, representando uma pequena percentagem da totalidade da amostra. Os vínculos, além de diminutos, são socialmente circunscritos a determinados segmentos sociais, como sejam altos cargos administrativos, profissões liberais e militares.

O fato de os objetos serem elencados e descritos com grande nível de detalhe torna os inventários uma fonte incontornável quando se pretende conhecer a cultura material. No entanto, é preciso ter em conta que, apesar de facultar um bom retrato do patrimônio dos indivíduos, o inventário não é totalmente exaustivo. Micheline Baulant e Nuno Luís Madureira sublinharam a negligência a que são sistematicamente votados os objetos de pouco valor unitário, o que, embora não tenha grande repercussão no cálculo dos montantes globais de fortuna, acarreta alguma distorção na apreensão das condições de vida dos agregados.14 14 MADUREIRA, Nuno Luís, op. cit., p. 14; BAULANT, Micheline. Nécessité de vivre et besoin de paraître. Les inventaires et la vie quotidienne. In: BAULANT, Micheline; SCHUURMAN, A.; SERVAIS, Paul. Inventaires après-décès et ventes de meubles. XIVe-XIXe siècles. Louvain-la-Neuve: Academia, 1988, p. 14; Idem. Typologie des inventaires après décès. In: WOUDE, Ad Van der & SCHUURMAN, Anton (ed.). Probate inventories. Wageningen: A. A. G. Bijdragen, 23, 1980, p. 34; Idem. Enquête sur les inventaires après décès autour de Meaux aux XVIIe et XVIIIe siècles. In: WOUDE, Ad Van der & SCHUURMAN, Anton (ed.), op. cit., p. 146. Assim, e apesar do caráter relativamente exaustivo do retrato do patrimônio dos indivíduos facultado pelos inventários, a sua fiabilidade não está isenta de problemas. A sonegação e a subestimação são algumas das limitações a ter em conta. E se o número de casos nos quais os inventariantes são acusados de sonegação é pouco expressivo, o valor monetário pelo qual são avaliados os objetos é um elemento que merece ser considerado nesta reflexão crítica sobre a fonte.15 15 Não se pense que falar de inventários de bens equivale a falar em valores monetários. Micheline Baulant advertira já para este fato apontando que, em princípio, os valores não figuram nos inventários holandeses, ingleses, franceses e americanos. BAULANT, Micheline. Typologie…, op. cit., p. 39. Segundo as Ordenações, a avaliação dos objetos resulta de uma intenção expressa de salvaguarda dos interesses dos órfãos.16 16 Ordenações Filipinas, tít. 88, § 5. Embora não seja dito, é crível que a avaliação visasse também facilitar e tornar expedito o processo de partilha entre os herdeiros. Do ponto de vista do historiador, essa avaliação amplia a riqueza informativa dos inventários e, por conseguinte, o seu potencial como fonte histórica, na medida em que permite apurar dados fundamentais, como a fortuna global do defunto. Dispormos do valor monetário dos objetos permite-nos percepcionar o valor que eles tinham na sociedade em que estavam inseridos, fazer comparações, perceber hierarquias, valorações ou modas. No entanto, é preciso ter em conta que a análise de alguns inventários nos quais os bens móveis, depois de avaliados pelos peritos, foram leiloados permitiu concluir que os objetos são licitados por um preço quase sempre superior. Este aspecto merece uma análise mais sistemática, mas os dados parecem legitimar a hipótese de que haveria uma tendência para a subavaliação dos bens. A confirmar-se, esta prática está em perfeita consonância com a de outros países, onde se observa o mesmo fenômeno.17 17 A este propósito leia-se BAULANT, Micheline. Typologie…, op. cit., p. 41 e CORNETTE, Joël. La révolution des objets. Le Paris des inventaires après décès (XVIIe-XVIIIe siècles). Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, t. 36, nº 3, 1989, p. 480. L. Bourquin estima que a subavaliação dos objetos ronda os 20%. BOURQUIN, Laurent. Les objets de la vie quotidienne dans la première moitié du XVIe siècle à travers cent inventaires après décès parisiens. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, t. 36, nº 3, 1989, p. 466. O mesmo valor apurou Micheline Baulant. Enquête sur..., op. cit., p. 147.

Há também que considerar algumas lacunas sistemáticas particularmente evidentes em alguns aspectos da cultura material. É que se a fonte inclui muitas vezes bens velhos, danificados ou mesmo sem valor algum, os inventários não incluem bens perecíveis, como alimentos, e há indícios de que, em algumas categorias de bens, o processo de inventário não seria exaustivo ao ponto de considerar os bens menos valiosos. Na verdade, é crível que o número de itens existentes fosse superior ao registado. Destacamos, por exemplo, o caso da louça, uma vez que em muitos inventários não são avaliados quaisquer utensílios; e, quando estes são avaliados, apenas são referidos itens de metal (latão, cobre, bronze), vidro, “louça da Índia”, louça inglesa e pó de pedra. As referências a louça ou itens em cerâmica comum são diminutas, pelo que a análise do resultado de escavações arqueológicas põe em evidência a contradição entre os vestígios materiais do seu uso quotidiano e o seu escasso registo nos inventários.18 18 Veja-se, por exemplo, o resultado de uma escavação realizada em Setúbal em DUARTE, Susana; SOARES, Joaquina; SILVA, Carlos Tavares da. Intervenção arqueológica na rua Álvaro Castelões n.ºs 38 e 40 (Setúbal) e sismo de 1755. Setúbal Arqueológica, vol. 15, 2014, p. 341-372. No processo de António Ribeiro, que tinha uma loja de sacos de aluguer, é dito taxativamente num apenso que “a loica de que uza he de Barro da Terra e Ordinaria”, mas nenhum objeto deste material ou de outro é descrito ou avaliado na categoria louças e utensílios domésticos. 19 19 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT). Inventários orfanológicos, letra A, maço 39, nº 7, apensos, fl.1v.

No processo de António José da Cunha Salgado (1829), capitão do Real Corpo dos Engenheiros, há uma pista que consideramos fundamental para perceber os critérios que poderão nortear o processo de avaliação. Senão vejamos: no local onde normalmente figura a avaliação do mobiliário temos a seguinte declaração:

Fui a casa da Inventariante (…) a onde só achei huma pobre cama em que se (sic) dorme o seu filho, três cadeiras, hum canapé de madeira de caixa pintadas, e huma corda que serve de cabide ao fato (…), o que junto a uma pequena banca, não vale tudo o caminho dos avaliadores (…)”.20 20 ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 82, nº 5, fl. 5v.

Esta declaração leva-nos a supor que só há lugar a avaliação de bens quando se justifica o pagamento dos louvados. A comprovar-se, esta prática justifica a escassa ausência de outros bens, como, por exemplo, livros impressos. Na realidade, quase só vemos serem avaliados livros quando há uma biblioteca constituída. Provavelmente a ausência deste tipo de bens nos inventários decorre do baixo valor unitário de grande parte dos livros,21 21 Refira-se que em 44% das entradas para as quais foi possível apurar o valor unitário de cada livro, eles foram avaliados por um valor igual ou inferior a 200 réis. pelo que, à luz da declaração anterior, é legítimo admitir como hipótese que só quando o número de livros fosse realmente elevado é que estes seriam descritos e que, na maioria dos casos, não se justificava a sua avaliação.22 22 Esta prática tem levado à frustração dos investigadores que se debruçaram sobre a história do livro e da leitura e procuraram dados nos inventários orfanológicos. Veja-se, por exemplo, LOUREIRO, Olímpia. O livro e a leitura no Porto no século XVIII. Porto: Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brandão; Fundação Engenheiro António de Almeida, 1994, p. 46.

Outra das lacunas corresponde à roupa de vestir, uma vez que, embora os inventários constituam uma fonte útil e rica para o seu estudo, é preciso ter em conta que, na maioria dos casos, apenas é inventariada a roupa do falecido. Muitas vezes esta é mesmo precedida do título “Roupa do defunto”. Este é um elemento importante a ter em conta para não se tomar a parte pelo todo. Enquanto nas outras categorias do patrimônio são louvados todos os bens do agregado, no caso da roupa de vestir o mais comum é ser avaliado apenas o vestuário de um dos seus elementos.23 23 O juiz do processo de inventário de bens do capitão António José de Figueiredo informa-nos sobre aquele que será o entendimento e prática comuns relativamente ao registo de roupa de vestir e joias. Segundo este juiz, “[n]ão devem ser descritos no autto de qualquer arrecadação aquelles bens que são proprios do uso dos herdeiros” salvo “o que for de ouro, prata ou diamantes ou quaisquer outras pedras preciosas; porquanto estas devem descrever-se”. ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 30, nº 3, fl. 12v. Não é por acaso que as referências à roupa de cama e de mesa são mais abundantes e sistemáticas do que as de roupa de vestir.

Percebe-se assim a riqueza dos inventários que, como afirma Jan de Vries, facultam uma imagem estática ou uma fotografia do mundo dos objetos no momento da morte do seu proprietário.24 24 VRIES, Jan de. Between purchasing power and the world of goods: understanding the household economy in early modern Europe. In: BREWER, John & PORTER, Roy (ed.). Consumption and the world of goods. Londres: Routledge, 1993, p. 102. Daqui resulta o enorme potencial desta fonte, mas também a sua limitação. É que o documento reflete o stock de produtos de que uma família dispunha ou, se se preferir, o patrimônio constituído pelos bens móveis e imóveis que configuram os outputs, mas raramente temos acesso aos inputs, como salários, contas correntes dos negócios e rendas. No fundo, os inventários são inaptos quando se pretende obter uma imagem dinâmica, capaz de abarcar os fluxos de entrada e saída de bens. Não conhecemos os níveis de reposição dos artigos, nem sabemos quando, nem por que vias os bens integraram o patrimônio dos indivíduos (compra, dote, doação). Em suma, os inventários informam-nos sobre o ponto de chegada, mas não documentam o caminho percorrido.

Outro problema a equacionar é o da representatividade social da fonte, que deve ser perspectivada à luz do enquadramento legal que facultava mecanismos para os indivíduos se eximirem à elaboração de um inventário. De fato, parece consensual entre os juristas de direito orfanológico que não se deveria proceder a inventário quando a herança fosse de pouco valor, não suportando sequer as despesas da partilha ou que pouco dela restasse. Não deveria haver lugar a inventário quando dele resultasse mais dano que proveito para os órfãos.25 25 CARVALHO, José Pereira de, op. cit., p. 41. Nesses casos, costumava fazer-se auto e justificação de pobreza, que se julgava por sentença.26 26 CARNEIRO, Manuel Borges. Direito civil de Portugal, vol. III. Lisboa: Tipografia de Maria da Madre de Deus, 1858, p. 93. Através deste mecanismo, alguns inventariantes alegavam a escassez de recursos e pediam que fosse lavrado auto de pobreza para não realizarem inventário. Depois de ouvir testemunhas, competia ao juiz deferir ou não o processo.

Na amostra analisada, o recurso ao mecanismo foi por vezes tentado, embora nem sempre com o sucesso desejado. Atentemos no exemplo de António da Costa Chaves, mestre alfaiate, falecido em 1777, deixando quatro filhos, dois dos quais menores. A viúva inventariante, Antónia Maria da Conceição, procurou alcançar uma sentença cível de justificação de pobreza. Fundamentou o seu requerimento referindo que o dinheiro ganho pelo falecido marido através do seu ofício não chegava para as despesas. O juiz não atendeu ao seu pedido, determinando que a requerente fosse obrigada a fazer inventário, sendo a fortuna estimada em 20.080 réis.27 27 ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 29, nº 1, fls. 1-14. Este processo mostra-nos os argumentos invocados para requerer a isenção e, ao ser indeferido, dá-nos também uma imagem de um limiar relativamente baixo para a não elegibilidade relativamente ao usufruto da prerrogativa de isenção de realização de inventário.

Em suma, cremos ser de extrema importância ter presentes estas características da fonte quando estamos a analisar e interpretar os dados recolhidos. Omiti-las ou escamoteá-las pode levar a leituras deturpadas e enviesadas sobre os níveis de riqueza, composição do patrimônio e consumo dos agregados.

Considerações metodológicas

Do ponto de visa metodológico, a presente análise tem uma natureza sobretudo quantitativa. Pretende-se conhecer os níveis de riqueza, composição do patrimônio e estrutura do consumo, assim como aferir a existência ou não de um padrão na composição do patrimônio e do consumo dos grupos intermédios. Acreditamos que as diferenças são passíveis de serem detectadas e compreendidas se confrontarmos este grupo com outros grupos sociais, pelo que o presente estudo tem uma dimensão comparativa.

Para se compreenderem os critérios de seleção da amostra, importa referir que a classificação arquivística dos processos é deficiente. Estes não estão catalogados segundo um critério cronológico ou geográfico, mas de acordo com uma ordenação alfabética que tem em conta o nome do defunto. Optamos por levantar os inventários relativos às letras A e V. Dentro desse universo procedemos ao levantamento dos inventários que preencheram cumulativamente os seguintes critérios:

  • dizerem respeito a habitantes do espaço urbano lisboeta;

  • terem sido realizados entre 1755 e 1836;

  • permitirem a identificação da ocupação socioprofissional de um dos cônjuges;

  • incluírem a descrição do patrimônio móvel.

Foram recolhidos numa base de dados os bens de 376 inventários. Importa referir que o modelo de análise dos grupos que norteou a abordagem à fonte leva em linha de conta, sobretudo, os níveis de riqueza dos agregados. Optamos por agrupar e classificar os inventários em função da soma da fazenda que corresponde ao somatório de todos os bens do agregado.28 28 Vários fatores podem levar a que o valor da fazenda calculado pelo juiz e registado no inventário seja diferente do apurado por nós. Essa discrepância pode decorrer da soma da fazenda apurada pelo juiz estar errada por lapso nos seus cálculos; de nos inventários serem avaliados bens de raiz ou rendimentos de prazos ou vínculos que o juiz não considera na soma da fazenda, por não entrarem na partilha, mas que nós, porque perseguimos um objetivo diferente, consideramos; o juiz considerar o valor de licitação dos bens e não o valor da avaliação dos louvados (neste caso, embora o primeiro possa traduzir um valor mais próximo do valor de mercado, optamos por priorizar a salvaguarda das condições de comparabilidade dos inventários entre si e considerar o valor da avaliação); ou ainda do fato do juiz fazer entrar na soma da fazenda os bens dos filhos casados que devem entrar à colação que nós optamos por excluir, porque, embora correspondam a uma parte do patrimônio constituído pelos inventariados ao longo da sua vida, estes não são usufrutuários do mesmo à data da morte. Esta classificação partiu dos seis intervalos de níveis de riqueza que o Alvará de 21 de junho de 1759 definiu para efeitos de cobrança dos honorários do partidor,29 29 O referido alvará, que pretendia fazer face à desordem nos Juízos dos Órfãos da cidade de Lisboa, distinguia com rigor as funções dos avaliadores e do partidor, bem como os critérios a ter em conta para efeitos de pagamento a cada um destes. O pagamento dos primeiros calculava-se em dias de trabalho; o dos segundos era fixado por lei, mas indexado à fortuna global do inventário. SILVA, António Delgado da. Collecção da legislação portugueza. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Tipografia Maigrense, 1828, p. 669-671. isto é, o oficial público a quem competia fazer a partilha e divisão dos bens.30 30 CARNEIRO, Manuel Borges, op. cit., p. 97. Inibidos de produzir qualquer arbítrio a respeito desta, os partidores eram meros executores do despacho que determinava a forma como a partilha se deveria realizar.31 31 Não havia qualquer confusão entre a sua função e a dos juízes e a dos avaliadores já que estes não podiam ser partidores, nem os partidores avaliadores. CARVALHO, José Pereira de, op. cit., p. 28. Subjacente ao princípio da indexação do seu salário ao valor dos bens32 32 CARNEIRO, Manuel Borges, op. cit., p. 155-156. parece estar a premissa da maior capacidade da herança, mas também o fato de o trabalho do partidor ser correlativo do valor total dos bens e este, do seu número.

Entendemos que o critério é significativo porque recorre a uma classificação coeva indissociável da própria fonte. O Quadro 1 resume os intervalos de riqueza, bem como o pagamento previsto na lei (cf. itálico).

Quadro 1
Categorias socioeconômicas de análise

O estudo de Maria Manuela Rocha sobre a localidade de Monsaraz na primeira metade do século XIX dá pistas importantes sobre a perspectiva contemporânea dos níveis de riqueza, permitindo interpretar e dar significado às categorias consideradas.34 34 ROCHA, Maria Manuela, op. cit., p. 94-97. De acordo com os dados recolhidos por esta autora, um indivíduo com uma fortuna inferior a cerca de 400.000 réis seria considerado pobre, enquanto que um indivíduo com uma fortuna a rondar os 2.000.000 réis mereceria o epíteto de rico. Estes valores foram tomados como referência por Nuno Luís Madureira no estudo que desenvolveu sobre inventários em Lisboa. Segundo este autor, “nos finais do século XVIII e inícios do século XIX, um indivíduo com total de fortuna inferior a 400.000 réis tem toda a probabilidade de ser considerado ‘pobre’ pela comunidade”.35 35 MADUREIRA, Nuno Luís, op. cit., p. 18.

Tendo em conta estes dados e com vista a ajustarmos estes intervalos aos objetivos do presente trabalho, optamos por agregar o primeiro e segundo intervalos, considerando-os a categoria A, que corresponde ao grupo com baixo poder econômico. As categorias B e C corresponderiam a indivíduos das camadas intermédias cujos inputs permitiriam aos seus membros viver acima do limiar da pobreza, ainda que modestamente; e os agregados das categorias D e E são considerados ricos. A análise dos níveis de riqueza dos indivíduos levou-nos a considerar que esta grelha era insuficiente para abarcar os níveis de riqueza pelo que criamos uma sétima categoria (F), onde incluímos todos os indivíduos que tivessem uma fortuna igual ou superior ao dobro da anterior (E), sendo considerados muito ricos.

Achamos pertinente separar um grupo que constitui uma elite e se demarca pelo elevado estatuto social e que designaremos como fidalgos e altos dignitários. Este grupo é constituído por 23 indivíduos e inclui o cardeal patriarca, fidalgos da Casa Real, desembargadores e altas patentes do exército.

2.1. Composição socioprofissional da amostra

É importante lembrar que um dos critérios que norteou a seleção da amostra consistiu na identificação socioprofissional dos indivíduos ou, no caso de se tratar de uma mulher, na identificação da ocupação/estatuto do seu marido (mesmo que falecido). Só nos casos em que a mulher era viúva e se conhecia a sua ocupação socioprofissional, esta foi considerada em detrimento da do cônjuge. Este critério levou-nos a excluir um grande número de inventários, uma vez que esta documentação não explicita de forma sistemática a ocupação socioprofissional dos indivíduos. Muitas vezes esta é inferida através do patrimônio, nomeadamente, da avaliação do recheio de lojas, oficinas etc., das dívidas passivas e ativas, de declarações feitas no testamento, no respectivo instrumento de aprovação, ou ainda de documentação apensa, como contratos de dote, instrumentos de obrigação, escrituras de compra e venda, sentenças etc.

Por imperativos de comparabilidade da amostra com os estudos disponíveis, optamos por utilizar a classificação socioprofissional usada por Jorge Borges de Macedo no estudo que desenvolveu sobre a estrutura da população ativa em Lisboa entre 1763-1769. Assim, os indivíduos foram agrupados em função dos setores de atividade a que estavam ligados (agricultura, pesca, indústria, comércio e serviços, onde discriminamos os transportes, a administração, as profissões liberais e os criados). A estes acrescentámos o exército, os “pequenos proprietários” (indivíduos identificados como “vivendo de suas fazendas”) e os nobres.

Os dados do Gráfico 1, que representam a composição socioprofissional da amostra, espelham o resultado de um processo de classificação marcado por algumas dificuldades e dúvidas. De fato, a ambiguidade e opacidade do vocabulário social constituiu uma dificuldade e implicou opções que importa justificar. É sobejamente conhecido que a organização do trabalho e do mundo dos ofícios no Antigo Regime impunha uma contiguidade entre as atividades comercial e artesanal, tornando difícil o estabelecimento de fronteiras entre os dois setores. Partindo deste pressuposto, e como forma de ultrapassar esta dificuldade, no processo de classificação tivemos em conta a natureza dos bens comercializados e a organização do setor em causa. Consideramos que não basta ter loja para se ser lojista. Era preciso também estar desvinculado do processo produtivo. Concretizando: um indivíduo com loja de sapateiro por estar ligado à produção e comercialização dos bens que produzia foi considerado um artesão; ao passo que um indivíduo com loja de retrós, por estar à partida desvinculado da produção e concentrar a sua atividade na comercialização, foi enquadrado no comércio. No caso de designações polissêmicas, como é o caso de capitão, que tanto designa um capitão de navio como um cargo militar, optamos por assumir, por defeito, a segunda. Assim, na falta de qualquer referência em sede de inventário que nos reportasse para a atividade marítima, assumimos uma ligação ao exército.

Gráfico 1
Composição socioprofissional da amostra

Em alguns casos tivemos dificuldade em compatibilizar um modelo de análise marcado pela monofuncionalidade, fazendo corresponder a cada indivíduo uma profissão e uma categoria, com uma realidade social complexa onde a multifuncionalidade não era abstração nem exceção. De fato, para alguns indivíduos temos a indicação de mais do que uma ocupação socioprofissional. Esta situação poderia ser simplesmente o reflexo da mudança de ocupação, procedimento corrente que acompanhava, como hoje, o ciclo de vida de um indivíduo e movimentos conjunturais visando a obtenção de melhores recursos. No entanto, o fato de terem chegado até nós referências a várias atividades não significa que estas tenham sido exercidas em simultâneo. A referência a múltiplas atividades podia traduzir um processo cumulativo e sincrônico, através do qual o indivíduo chamava a si várias ocupações, tarefas, cargos que exercia em simultâneo, sendo difícil, a esta distância, identificar a mais importante e representativa do seu perfil. O próprio cruzamento de fontes pôs em evidência o caráter ambivalente da classificação coeva, uma vez que verificamos que, em função de diferente documentação, os mesmos indivíduos podiam ser, no mesmo ano, diferentemente classificados. Veja-se, por exemplo, o caso de Anastácio José de Moura, que sabemos ter uma loja de mercador de retrós, mas, no Livro da Décima de Arruamento, é referenciado como não tendo ofício;36 36 ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 104, nº 3; Arquivo Histórico do Tribunal de Contas (AHTC). Livro da Décima de Arruamentos da Freguesia de S. José, 1785. e António Martins Ferreira que, no inventário, é identificado como capitão e, no Livro da Décima de Arruamento, como “vivendo de suas fazendas”.37 37 AHTC. Livro da Décima de Arruamentos da Freguesia das Mercês, 1782.

Em alguns casos, a multifuncionalidade não acarretou problemas metodológicos de monta, na medida em que as várias atividades se desenvolviam no âmbito de uma mesma categoria socioprofissional. Outros casos, porém, afiguraram-se mais complexos porque as diversas referências à ocupação do indivíduo o reportavam a diferentes categorias profissionais e esferas de atuação distintas. Optamos por privilegiar informações relativas à ocupação socioprofissional sobre alusões relativas ao estatuto e por assumir a referência mais tardia, isto é, aquela pela qual o inventariado é identificado no momento do inventário. Trata-se, muitas vezes, da ocupação indicada na capa do processo ou aquela que é mais vezes mencionada no decurso deste. Nos casos em que não foi possível aplicar estes critérios, optamos por considerar a ocupação que mais peso tinha ao nível do patrimônio e fortuna do indivíduo.

O Gráfico 1 representa a composição socioprofissional da amostra.

Quando comparamos a composição socioprofissional da nossa amostra com os dados disponíveis sobre a estrutura da população tributável da cidade entre 1763 e 1769 (cf. Gráfico 2), constatamos que aquela parece fornecer um espelho de toda a sociedade, embora a imagem que fornece possa estar distorcida. Concretizando, a amostra parece aproximar-se da sociedade, na medida em que estão representadas todas as profissões; verificamos um peso forte do grupo dos artesãos e dos comerciantes e um peso diminuto dos trabalhadores dos transportes, dos agricultores e pescadores. No entanto, como seria expectável, ela não traduz com rigor a estrutura profissional da cidade. É preciso não esquecer que as condições de produção das duas fontes são diferentes e que cada uma implica diferentes tipos e graus de enviesamento face à população total. De qualquer forma, é absolutamente claro que, por comparação com a população tributável no terceiro quartel do século XVIII, a amostra apresenta um peso excessivo dos indivíduos relacionados com a atividade comercial e um peso diminuto do grupo dos criados. Embora em menor grau, parece haver também uma sobrerrepresentação dos indivíduos relacionados com a administração e profissões liberais. Parece claro que, embora permita perceber grande parte da sociedade, a nossa amostra tende a distorcer as respectivas proporções de cada categoria socioprofissional, verificando-se uma relativa sobrerrepresentação dos grupos superiores e intermédios. Esta situação decorre, por um lado, do enquadramento jurídico que dispensa os mais pobres da realização de inventário e, por outro, da metodologia e características da fonte usada por Jorge Borges de Macedo no estudo que serviu de base à nossa análise comparativa, que tende a subavaliar os militares, os negociantes, nobres e as profissões relacionadas com a administração.38 38 MACEDO, Jorge Borges de, op. cit., p. 86. Em suma, é bastante evidente que os inventários de Lisboa não reproduzem com rigor a diversidade e hierarquia do mundo do trabalho, verificando-se uma sobrerrepresentação das camadas mais altas e uma correlativa sub-representação dos grupos econômica e socialmente menos favorecidos. O fato de optarmos por levantar apenas os processos de indivíduos para os quais foi possível a identificação socioprofissional pode ter acentuado esse fenômeno. Este critério poderá ter induzido uma sub-representação das camadas mais baixas e dos indivíduos não qualificados, uma vez que nestes casos a omissão da sua profissão é mais provável e a hipótese de inferir a sua ocupação, partindo do seu patrimônio ou dívidas, mais reduzida.

Gráfico 2
Composição socioprofissional de Lisboa (1763-1769)

2.2. Preços, salários e custo de vida

É importante referir que a dinâmica econômica da transição do século XVIII para o século XIX ficou marcada pela alta de preços.39 39 Entre cerca de 1726 e cerca de 1790, define-se uma tendência crescente e contínua dos preços. No entanto, a partir de inícios da década de 1790, o nível dos preços aumenta de forma muito acentuada. SOUSA, Rita Martins de. Moeda e metais preciosos no Portugal setecentista: 1688-1797. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 192. Esta subida teve causas exógenas, pois decorreu da inflação verificada nas economias europeias, reflexo do estado de guerra que se vivia, e endógenas, na medida em que refletiu o impacto negativo da primeira experiência de emissão de papel-moeda em Portugal a que o Estado recorreu para fazer face ao seu endividamento.40 40 Sobre este assunto leia-se FONSECA, Fernando Taveira da. Flutuações e crises económicas. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, op. cit., vol. V, p. 393-407; COSTA, Leonor Freire; LAINS, Pedro; MIRANDA, Susana Münch. História económica de Portugal. 1143-2010. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2012, p. 279-281; NUNES, Ana Bela & VALÉRIO, Nuno. Moeda e bancos. In: LAINS, Pedro & SILVA, Álvaro Ferreira da (org.). História económica de Portugal 1700-2000, vol. II. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 284-289. De fato, além dos problemas sentidos no setor industrial e comercial, a crise financeira do Estado, com início na década de 90 do século XVIII, correspondeu ao culminar de uma situação de desequilíbrio estrutural que contribuiu para um quadro pouco favorável no início do século XIX.41 41 Sobre as causas da crise financeira e meios de resolução das dificuldades leia-se o elucidativo artigo de SILVEIRA, Luís Espinha da. Aspectos da evolução das finanças públicas portuguesas nas primeiras décadas do século XIX (1800-27). Análise Social, vol. 23, 1987, p. 505-529 e a síntese de SILVA, Álvaro Ferreira da. As finanças públicas. In: LAINS, Pedro & SILVA, Álvaro Ferreira da (org.), op. cit., vol. I, p. 237-261, p. 257 e ss. No que concerne aos salários reais, estes sofreram uma quebra significativa que penalizou o trabalho qualificado (mestres pedreiros e carpinteiros) em 50%, e o trabalho não qualificado em 66%.42 42 COSTA, Leonor Freire; LAINS, Pedro; MIRANDA, Susana Münch, op. cit., p. 280-281. Vejamos o Gráfico 3 que representa a evolução dos dois indicadores em Lisboa.

Gráfico 3
Índice geral de preços e salários reais dos mestres carpinteiros da cidade de Lisboa (1788=100)

Os dados sobre esta conjuntura fundamentam a linha de corte estabelecida para efeitos da presente análise, que tomará a década de 1790 como coordenada fundamental, por corresponder ao início de um ciclo de alta de preços, que só termina em 1813. A partir daí a linha dos salários reais reaproxima-se da linha do custo de vida. No entanto, diga-se, a reaproximação é real, mas a convergência insuficiente, pelo que os salários reais no século XIX não retomam os níveis das décadas de 60-80 do século XVIII.43 43 MADUREIRA, Nuno Luís. Mercado e privilégios…, op. cit., p. 279-302. Ora, é expectável que o aumento dos preços e o declínio dos salários reais acarretem um agravamento do custo de vida e que este se repercuta sobre a poupança e o consumo interno, refletindo-se eventualmente, a médio prazo, nos níveis de riqueza e na composição da fortuna dos agregados. É a dimensão e expressão destas ondas de choque que pretendemos captar. Para tal procederemos à divisão da amostra em dois períodos: 1755-1792 e 1793-1836.

Optamos por recorrer a um defletor, uma vez que o objetivo do presente trabalho consiste na análise dos níveis de riqueza, composição da fortuna e padrões de consumo, e a metodologia passa pela comparação dos dados num período alargado (1755-1836), marcado, como vimos, pela forte oscilação do nível dos preços. O recurso a este instrumento afigurou-se essencial como forma de reduzir o impacto da conjuntura econômica na leitura dos dados e, por esta via, tornar procedente a análise e comparação dos níveis de riqueza e consumo no período considerado. Refira-se ainda que esta metodologia implicou a opção por um indicador específico (Índice Geral de Preços), cuja escolha carece de explicitação. De forma sucinta podemos dizer que os dois critérios que nortearam esta seleção foram o fato de o indicador estar publicado e cobrir a totalidade do período em análise. Vários índices cumpriam o primeiro critério, mas apenas um cumpria cumulativamente os dois. Por esse motivo, dos indicadores que abrangem os séculos XVIII e/ou XIX até agora construídos, optamos pelo de Eugénia Mata e Nuno Valério.44 44 Em rigor, este índice está publicado em VALÉRIO, Nuno & MATA, Eugénia. História económica de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 2003 [1994], p. 261-272, mas é resultado do trabalho de VALÉRIO, Nuno, Os preços em Portugal (séculos 13 a 20), apresentado no XVII Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social, Ponta Delgada, 1997, parcialmente publicado em Idem. Um indicador da evolução dos preços em Portugal nos séculos 16 a 19. Working Paper. Lisboa: Instituto Superior de Economia e Gestão, Gabinete de História Económica e Social (ISEG/GHES), nº 4, 1997, p. 1-17. Os outros indicadores disponíveis que abrangem parcialmente o período em estudo são da autoria de Rita Martins de Sousa, David Justino e Nuno Luís Madureira. Cf. JUSTINO, David. A formação do espaço económico nacional. Portugal 1810-1913, vol. II. Lisboa: Vega, 1989, p. 14-16; SOUSA, Rita Martins de, op. cit., p. 171-197; MADUREIRA, Nuno Luís. Consumo, preços e salários (1760-1830). Ler História, nº 32, 1997, p. 5-29; Idem. Mercado e privilégios, op. cit., p. 279-302. Assim, os valores estimados pelos louvados que estão na base do cálculo dos níveis de riqueza foram deflacionados tendo em conta este Índice Geral de Preços. No entanto, decidimos submeter o defletor a duas operações que visaram melhorá-lo como instrumento no contexto da presente análise: calculamos as médias móveis a três anos e alteramos o ano-base de 1914 para 1750. O primeiro expediente visou suavizar as oscilações, o segundo, ajustar a escala. Na escolha do novo ano-base tivemos em conta o fato de se tratar de um período sem grandes oscilações ao nível dos preços. A opção tem a vantagem de ser cronologicamente próxima do Alvará de 1759, que define os honorários do partidor e que, em grande medida, norteou a definição das categorias de riqueza usadas no presente estudo.

3. Análise dos dados

3.1. Níveis de riqueza

Depois deste enquadramento, tendo em conta o quadro de análise e as potencialidades e limites dos inventários, passamos ao tratamento da informação. Começamos por partir dos montantes globais do patrimônio dos inventariados para analisar o nível de riqueza médio dos diferentes grupos socioprofissionais.

O resultado desta análise está materializado no Gráfico 4 que permite uma leitura global dos níveis de riqueza médios dos diferentes grupos socioprofissionais e a sua hierarquização. Da sua análise é possível observar, sem surpresa, o baixo nível de riqueza dos grupos ligados à atividade agrícola e piscatória, bem como dos criados. Destaca-se também o grupo dos pequenos proprietários, dos indivíduos relacionados com os transportes e dos artesãos com fortunas médias entre cerca de 1.000.000 e 2.000.000 réis; um terceiro grupo, constituído pelos profissionais liberais e indivíduos relacionados com a administração, que evidencia níveis de riqueza mais próximos da média geral que se situa nos 4.500.000 réis, e um quarto grupo, composto pelos comerciantes, membros do exército e da nobreza, constituído apenas por um elemento, que apresenta fortunas médias superiores a 6.000.000 réis.

Gráfico 4
Níveis de riqueza médios por categoria profissional (1750 = 100)

Para obtermos uma imagem mais complexa e, diga-se, rigorosa e precisa dos níveis de riqueza que conseguimos apurar com os dados dos nossos inventários, construímos o Quadro 2 que representa a distribuição dos indivíduos das diferentes categorias socioprofissionais pelas diversas classes de riqueza. A partir do quadro é possível captar correspondências estatisticamente significativas (χ2 gl=45 = 87,392; sig = 0,000) entre a hierarquia da riqueza e a ocupação social e avaliar a concentração e dispersão da riqueza nos diferentes grupos socioprofissionais, ou de outra maneira, apreender a heterogeneidade dos níveis de riqueza no seio de um mesmo grupo profissional.

Quadro 2
Distribuição dos indivíduos das categorias profissionais pelas classes de riqueza

O quadro permite desde logo vislumbrar as categorias socioprofissionais mais frequentemente associadas a baixos níveis de riqueza. É o caso dos agricultores e pescadores, dos criados, dos proprietários, assim como dos trabalhadores relacionados com os transportes e dos artesãos, cuja maioria se enquadra nas categorias de menor riqueza (A e B). Estas ocupações socioprofissionais que compõem um grupo que, por esse motivo, podemos considerar economicamente menos favorecido, revelam uma relativa homogeneidade nos níveis de riqueza. Dentro desse grupo destacamos apenas os artesãos uma vez que, apesar da maior parte dos seus elementos (54%) se enquadrar nas duas primeiras categorias e de a categoria A ser a sua classe modal, existem artesãos em todas as classes de riqueza. As fortunas superiores a 2.000.000 réis não são propriamente uma exceção, representando cerca de um quarto do total dos artesãos. No entanto, é importante salientar o perfil diferenciado dos artesãos que integram estas classes de riqueza (D, E e F), uma vez que entre estes encontramos fabricantes (3), mestres-de-obras (3), indivíduos que trabalham metais preciosos, como ourives (1), mestres douradores (2), que produzem bens diferenciados, como os confeiteiros (3), livreiros (1), sombreireiros (1), mestres cabeleireiros (1) ou destinados a um mercado especializado, como os carpinteiros de seges (2), um fabricante de órgãos (1) e um relojoeiro (1).

O quadro evidencia o quão falaciosa pode ser a apresentação dos níveis de riqueza considerando apenas as médias dos grupos, atendendo à profunda heterogeneidade dos níveis de riqueza nas profissões liberais, nos funcionários da administração, membros do exército e comerciantes. Em todos estes grupos os indivíduos enquadrados no nível de riqueza inferior (A) correspondem a menos de um terço do total do grupo. É significativo que, no grupo dos comerciantes se nota mesmo um predomínio das classes de riqueza superiores (D, E e F), que, juntas, representam 57% do grupo. Não é por acaso que 57% dos elementos que constituem a classe com maior nível de riqueza correspondem a indivíduos ligados ao comércio e que em mais nenhum grupo a classe de maior riqueza (F) constitua a classe modal. Quando analisamos o perfil dos comerciantes mais ricos (F), detectamos que os negociantes de grosso trato e contratadores (20) representam a maioria do grupo (57%) seguidos, de longe, pelos mercadores de lã e seda (14%). Estes dados estão em total concordância com o trabalho de Jorge Pedreira que demonstrou o elevado nível de riqueza dos negociantes, salientando o lugar de destaque deste grupo na hierarquia das fortunas, sublinhando a sua especificidade na escala nacional, mas também internacional.45 45 PEDREIRA, Jorge, op. cit., p. 295-303.

Neste seguimento, importa sublinhar que a aplicação do teste não paramétrico Kruskal-Wallis permitiu concluir que existem diferenças estatisticamente significativas no nível de riqueza entre grupos profissionais. Para averiguar entre que grupos se manifestavam essas diferenças, usou-se o teste de Scheffe para a comparação múltipla de médias que nos levou a concluir que o nível de riqueza médio dos artesãos contrasta com o dos comerciantes (sig=0,011), sendo o primeiro (2.079.692 réis) significativamente inferior ao segundo (6.782.288 réis).

3.2. Concentração e distribuição de riqueza

Importa também analisar, ainda que brevemente, os níveis de concentração da riqueza. Para estimar o fenômeno levamos em linha de conta o nível de riqueza médio global que considera todos os casos estudados, que se situa nos 4.500.000 réis, e a sua aplicação às diferentes classes de riqueza usadas no presente estudo que permite separar grosso modo as classes E e F como estando acima desse limiar.

Assim e partindo desse pressuposto de análise, concluímos que 73% dos indivíduos têm níveis de fortuna inferiores à média, aos quais correspondem apenas 18% da riqueza total. O grupo A, que representa 24% do total da amostra, concentra apenas 1% da riqueza total. As classes que se organizam acima do nível médio (E e F), apesar de representarem 27% da amostra, concentram a maior parte da fortuna (82%). É também digno de nota o fato de 68% da riqueza total dos inventários analisados dizerem respeito ao patrimônio de apenas 61 indivíduos, que representam 16% da amostra. Paradigmático da desigualdade na distribuição da riqueza é o inventário de dona Ana de Vasconcelos Bela, que teve como inventariante seu marido Camilo Pereira Soares Laroche, negociante, cujo patrimônio é estimado em 130.376.912 réis (68.619.427 réis a preços de 1750) e que representa 4% do conjunto dos patrimônios. Exemplos como este, bem como o quadro anteriormente traçado, revelam a grande desigualdade econômica que se vivia na sociedade lisboeta do Antigo Regime.

Assim, apesar de não ser este o cerne do nosso trabalho, não podemos deixar de destacar que uma percentagem significativa da fortuna estava concentrada nas mãos de um pequeno grupo de indivíduos e que o fenômeno tendeu a agravar-se do primeiro para o segundo período de análise. Senão vejamos: da comparação dos dois períodos, concluímos que, no primeiro (1755-1792), o número de inventários pertencentes às categorias A e B, correspondentes a indivíduos pobres e remediados, representava 40% do total da amostra, que possuía apenas 4% da riqueza, e o grupo mais rico (F), que correspondia a 15% da amostra, possuía 60% de toda a riqueza. Entre 1793-1836, o fenômeno de concentração agudiza-se. Os inventariados das categorias A e B passaram a representar 38% e a possuir apenas 3% da riqueza, e o grupo mais rico aumentou, passando a representar 17% dos inventariados e a possuir 72% da riqueza.

Outro dado significativo é que, enquanto no período de 1755-1792 a média do patrimônio dos indivíduos que integram o nível mais baixo de fortuna rondava os 180.000 réis, a média da camada mais rica era de cerca de 15.700.000 réis. Entre 1793-1836, essa distância aumenta. Nesse período, a média do patrimônio da camada mais baixa passou a rondar os 190.000 réis e a da camada mais rica 20.920.000 réis, ou seja, 110 vezes o patrimônio da primeira. Não é por acaso que quando analisamos os quartis verificamos que os valores da mediana e do terceiro quartil no período de 1755-1792 são superiores à do período subsequente. Do primeiro para o segundo período, o número de outliers aumenta de forma brutal, bem como o grau de severidade das observações extremas.

Em conclusão, podemos afirmar que, apesar da conjuntura econômica que marcou o período em análise não ter afetado de forma muito significativa os níveis de riqueza médios, à luz do que ficou exposto, e atendendo à maior concentração da riqueza que então se verifica, é legítimo pensar que o impacto da conjuntura foi favorável para alguns agregados. Em particular, a conjuntura parece ter favorecido os indivíduos ligados ao comércio e, dentro destes, os negociantes de grosso trato.

3.3. Composição do patrimônio

O segundo enfoque de análise centra-se na composição do patrimônio, que tem por base oito componentes:

  • o ouro e a prata, incluindo todas as joias, bem como a baixela;

  • recheio da casa, onde estão considerados os móveis, as roupas de casa e de vestir, os livros, a louça e utensílios domésticos, e as armas;

  • bens de raiz, que englobam o domínio direto ou útil de bens imóveis urbanos e rústicos;

  • dívidas ativas, que agregam todo o tipo de ativos decorrentes da atividade profissional (venda a crédito), empréstimos de dinheiro (com obrigação, sob penhor ou gratuitos), rendas, heranças, letras etc.

  • utensílios do ofício e mercadorias, onde foram incluídas, além dos instrumentos de trabalho e stocks das lojas e oficinas, as colheitas armazenadas;

  • dinheiro;

  • apólices, que incluem títulos de dívida pública e ações;

  • semoventes, que englobam gado, escravos e seges.

O Quadro 3 permite concluir que, nos dois períodos em análise, o investimento se concentra em duas categorias de bens: bens de raiz e dívidas ativas. As duas categorias representavam juntas 59% e 62% da fortuna no período de 1755-1792 e 1793-1736, respectivamente. Quando analisamos o peso global médio destas duas componentes do patrimônio nas diferentes categorias socioeconómicas verificámos que, nos dois períodos, esta configuração do patrimônio se aplica à generalidade dos estratos. Em todos, estes dois referenciais de riqueza representam, em média, entre 60% e 72% da fortuna. Só a composição do patrimônio da categoria A tem uma configuração diferenciada de todas as outras no que diz respeito ao peso relativo das dívidas ativas, do recheio da casa e dos bens de raiz, uma vez que em mais nenhum outro grupo o recheio da casa corresponde à componente mais importante do patrimônio, sendo esta uma diferença estatisticamente significativa. Para os menos afortunados, os bens de uso doméstico e pessoal, como os móveis, a roupa de casa, a roupa de vestir, a louça e utensílios domésticos representavam uma parte considerável dos seus recursos. Neste grupo, o recheio da casa representou em média 33% do patrimônio no primeiro período e 25% no segundo. Se considerarmos também o investimento em joias e baixela, vemos que, nos dois períodos, o patrimônio móvel representa em média 46% e 35% da sua riqueza. O inventário dos bens de António da Costa Chaves, mestre alfaiate, é a este título um exemplo extremo, uma vez que, num patrimônio estimado em 20.080 réis (17.770 réis a preços de 1750), o recheio da casa representa 90% da fortuna.46 46 ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 29, nº 1.

Quadro 3
Valor médio das componentes do patrimônio no período de 1755-1792 e 1793-1836 (1750=100)

Por oposição, embora os indivíduos com níveis de riqueza superiores possuíssem melhores condições de vida, mais e melhores objetos, o recheio da casa representava menos de 15% do seu patrimônio.

Atentemos agora ao que acontece ao total investido em objetos de ouro e prata e que, em certo sentido, poderá ser sintomático da capacidade de entesouramento dos agregados. Veja-se que o peso médio dos objetos em metais preciosos no conjunto dos patrimônios entre 1755 e 1792 situava-se nos 8,1% e, entre 1793 e 1836, baixa para 4,9%. O recheio da casa também decresce de forma significativa de 14,5 para 10,1%. Igualmente expressiva é a diminuição do investimento na componente semoventes. Entre 1755 e 1792, esta última representava 2,4% das fortunas, mas, no período subsequente, desce de forma acentuada, passando a representar 0,4%, assim como a percentagem de indivíduos que declara este tipo de bens, que cai 18 pontos percentuais. Quando mudamos de objetiva e atentamos ao quadro geral do comportamento das diferentes classes relativamente a estas três variáveis constatamos que essas tendências são transversais. A única exceção corresponde ao grupo dos altos dignitários e, mesmo nestes, apenas em relação à percentagem da fortuna investida em objetos de ouro e prata. Verificamos também que o decréscimo se manifesta não só na percentagem que essas componentes representam no patrimônio, como também no total efetivamente investido, sendo as diferenças estatisticamente significativas. Em suma, podemos afirmar que os dados até agora recolhidos permitem concluir que a conjuntura econômica antes descrita parece ter tido impacto não só na capacidade de entesourar, como também nos níveis de consumo dos agregados.

Em sentido inverso às componentes do patrimônio móvel está o investimento em apólices, cujo peso relativo nas fortunas cresce significativamente de 0,3% para 1,5%, concentrando-se, sobretudo, nas mãos dos mais ricos (classe F). De fato, o peso que as apólices têm no patrimônio dos indivíduos deste grupo (4,6%) distancia-o de todos os outros, nos quais as apólices representam no máximo 1% da sua riqueza total, sendo esta diferença estatisticamente significativa. Importa destacar que, não só o peso médio desta componente aumenta, como também a percentagem de indivíduos cujo inventário inclui pelo menos um título, apólice ou ação aumenta 10 pontos percentuais.

Verificamos também um fraco peso do dinheiro no patrimônio que, ainda assim, tendeu a aumentar ligeiramente face às restantes componentes. A percentagem de moeda, que correspondeu a 6,1 e 8,5% da riqueza, deve ser lida com cautela, tendo em conta a composição socioprofissional da amostra. Não podemos esquecer que a maior parte dos inventários corresponde a indivíduos ligados ao comércio e que os comerciantes, por estarem diretamente ligados ao mercado, se demarcam dos demais grupos profissionais pela liquidez. É que esta componente da riqueza representa cerca de 10% do seu patrimônio. Este dado poderá trazer alguma distorção, pelo que será preciso tê-lo em conta quando queremos inferir dados sobre a liquidez e circulação monetária a partir dos inventários. Ainda assim é importante relevar que nos dois períodos considerados a percentagem de inventários que inclui dinheiro nos seus ativos se mantém constante, situando-se nos 47 e 50%, respectivamente.

Outra importante constatação diz respeito ao peso das dívidas ativas, em geral, e ao valor médio das passivas, em particular. A ampla difusão do crédito, o alto grau de endividamento e a dependência do crédito na economia lisboeta foram já amplamente estudados por Maria Manuela Rocha.47 47 ROCHA, Maria Manuela. Crédito privado num contexto urbano. Lisboa, 1770-1830. Tese de doutorado, Instituto Universitário Europeu, Florença, 1996; Idem. Actividade creditícia em Lisboa (1770-1830). Análise Social, vol. XXI, p. 136-137 (2º-3º), Lisboa, 1996, p. 579-598; Ibidem. Viver a crédito: Práticas de empréstimo no consumo individual e na venda a retalho (Lisboa, séculos XVII e XIX). Working Paper. Lisboa: ISEG/GHES, nº 11, 1998, p. 1-16; Ibidem. Crédito privado em perspectiva comparada (séculos XVII-XVIII). Working Paper. Lisboa: ISEG/GHES, nº 10, 1998, p. 1-25. Esta temática foi também tratada pela historiografia brasileira. Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana, 1750-1850. Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, 1994. Os dados do presente trabalho corroboram os estudos anteriores, pois espelham a ampla difusão do fenômeno. Não só verificamos que entre 1755-1792 e 1793-1836, respectivamente 85 e 83% da amostra declaram dívidas ativas, como constatamos que, com exceção do grupo A, estas constituem, juntamente com os bens de raiz, os dois principais referenciais de riqueza. Por outro lado, verificamos que, considerando os dois períodos, o valor médio das dívidas passivas tende a aumentar, o que pode ser indicador de um aumento da dificuldade das famílias em saldar as dívidas.

Refira-se ainda que os valores absoluto e relativo dos utensílios relacionados com os ofícios e mercadorias que constituíam o recheio das lojas tendem a aumentar, o que pode indiciar uma maior dificuldade de escoamento ou, paradoxalmente, um maior investimento na atividade profissional. Neste item em particular, o patrimônio dos artesãos e comerciantes tende a apresentar uma configuração distinta dos demais grupos profissionais, atendendo ao peso que esta componente representa. Os utensílios e mercadorias chegam a representar 89% da fortuna dos indivíduos, como no caso do inventário realizado na sequência da morte de Ana Maria, casada com António Duarte, mestre pinceleiro.48 48 ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 42, nº 6.

3.4. Consumo

Debruçar-nos-emos agora sobre o patrimônio móvel e bens de consumo dos indivíduos, considerando para o efeito o valor investido nas joias, na baixela, em mobília, quadros, roupa de casa, roupa de vestir, louças e utensílios, livros e armas.

Quadro 4
Valor médio das categorias de consumo nos períodos de 1755-1792 e 1793-1836 (1750=100)

Um dos dados mais relevantes que retiramos da análise do comportamento de consumo consiste no decréscimo significativo do valor médio das joias avaliadas. Trata-se, diga-se, de uma tendência transversal a todos os grupos e não de uma especificidade dos grupos intermédios. É também notória uma diminuição do peso relativo que as jóias detêm no patrimônio, bem como do número médio de adornos descritos nos inventários. Refira-se que as diferenças do valor médio e do peso relativo, apuradas com base na comparação de médias, são estatisticamente significativas.

Por outro lado, se considerarmos o valor médio pelo qual é avaliada a baixela, verificamos que, com exceção do grupo E e dos altos dignitários, este aumenta, assim como, excetuando o grupo F, o peso médio que representa no patrimônio dos indivíduos. No caso da baixela, ao contrário do que acontece com as joias, o número de inventários que incluem pelo menos um item aumenta seis pontos percentuais, bem como o número médio de objetos por inventário, que sobe de 21,0 para 39,4.

Outro fenômeno transversal a todos os grupos é a diminuição do valor médio da roupa de vestir, cujo peso relativo no patrimônio tende a decrescer. No entanto, paradoxalmente, na generalidade dos grupos, o número de itens aumenta, o que pode ser visto como uma consequência da revolução industrial entretanto ocorrida em alguns países europeus e do seu impacto nos preços de alguns produtos têxteis.

Muito embora o número médio de móveis e itens de roupa de casa tenha aumentado em quase todos os grupos, o valor médio pelo qual são estimados os bens destas duas categorias decresceu ligeiramente em quase todos os grupos e de forma abrupta no dos altos dignitários. As únicas exceções são o grupo A, cujo nível médio pelo qual são estimados os móveis se mantém próximo dos 16.000 réis, e o grupo C, cujo nível médio aumenta ligeiramente.

Importa destacar o reduzido número de agregados cujo inventário inclui a descrição e avaliação de livros (16%), e que deve ser visto à luz do que anteriormente se referiu quando debatemos as limitações da fonte. No entanto, é importante destacar a clara associação entre a posse de livros, ou melhor, a constituição de bibliotecas, e determinadas profissões. De fato, 60% dos profissionais liberais e 32,5% dos funcionários ligados à administração declaram livros. Este tipo de consumo tem bastante expressão no patrimônio da categoria socioprofissional dos profissionais liberais, representando em média 2,6% da sua fortuna, um valor claramente superior a todos os outros, o que torna este consumo distintivo e associado a determinadas classes socioprofissionais.

Afigura-se-nos também como digno de nota o aparente decréscimo verificado nos quadros, onde incluímos pinturas e gravuras. De fato, o decréscimo no valor médio pelo qual são avaliados, a proporção que representam no patrimônio, assim como a diminuição no número médio de quadros por inventariante, sendo as diferenças estatisticamente significativas, leva-nos a pensar que esta foi uma componente da cultura material em que se registou um desinvestimento. Excetuando o grupo dos altos dignitários, a tendência é de uma forma geral comum e, por conseguinte, socialmente transversal.

Por outro lado, a louça e os utensílios domésticos, onde estão incluídos itens relacionados com a preparação e armazenamento de alimentos, iluminação e higiene, tendem a representar uma menor proporção do patrimônio dos grupos intermédios, e o valor total pelo qual são estimados, inferior. Isto apesar do número médio de itens tender a multiplicar-se. É nesta categoria, em especial, que podemos falar numa “revolução no consumo”. De fato, os utensílios de cozinha conhecem um incremento no seu número, mas, sobretudo, na sua especialização. O “serviço”, por exemplo, a existir, define-se pela diversificação e especificidade de objetos, respondendo a novos hábitos de consumo que requerem novos instrumentos (chocolateiras, bules, cafeteiras etc.). Podemos considerar que, como nota Daniel Roche, a mesa conhece agora muitas situações sociais, estando rodeada por um número crescente de móveis e acessórios, louça, talheres, toalhas, através dos quais se transfigurava em relações sociais.49 49 ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Lisboa: Editorial Teorema, 1998, p. 233. Por outro lado, os materiais tendem a diversificar-se com a difusão do uso da porcelana, do vidro e da prata, que se sobrepõem ao uso de outros materiais, como o estanho.

Quando confrontamos o investimento das diferentes categorias socioeconômicas nas diferentes componentes do patrimônio móvel, concluímos que existem diferenças estatisticamente significativas (cf. anexo 1). É que, apesar das camadas A, B, C, D e E corresponderem a um conjunto relativamente homogêneo em relação ao total despendido nas várias categorias de consumo, verificam-se diferenças significativas que permitem opor estes grupos ao dos altos dignitários e ao grupo F, e, por vezes, mesmo estes dois entre si. Concretizemos: os altos dignitários destacam-se claramente dos demais pelo valor médio investido em armas e livros, bem como no número médio de livros, armas, quadros e peças de roupa de vestir; têm um comportamento diferenciado de consumo relativamente a todos os grupos, mas semelhante ao grupo F, quanto ao valor médio investido em joias e na baixela, assim como no número médio de objetos que a compõem, no número de itens de roupa de casa e mobiliário. Importa destacar que, relativamente ao valor médio pelo qual é estimada a roupa de casa e o mobiliário, os altos dignitários se destacam do grupo F, que por sua vez se demarca de todos os outros.

O grupo economicamente mais desfavorecido (A), por sua vez, destaca-se de todos os outros pela proporção que o mobiliário, roupa de casa, roupa de vestir e utensílios representam no seu patrimônio.

Conclusão

Para concluir, recuperamos a pergunta que constituiu o nosso ponto de partida. Existe um padrão ou padrões de consumo associados às camadas intermédias? Os dados recolhidos e o tratamento quantitativo a que foram submetidos com vista a analisar o nível de riqueza, composição do patrimônio e categorias de consumo levam-nos a concluir que o patrimônio móvel está bastante correlacionado com o nível de riqueza, pelo que não foi possível detectar com clareza um padrão de consumo diferenciado associado aos grupos intermédios. Foi possível, isso sim, verificar que o limiar mínimo estabelecido para definir os grupos intermédios se revelou ajustado, uma vez que essa fronteira tem tradução na composição da riqueza, fazendo com que, no grupo com fortuna inferior a 400.000 réis, os bens móveis tenham um peso incomparavelmente superior ao dos outros grupos, e o seu patrimônio apresente, por esse motivo, uma configuração singular. A mesma singularidade não foi possível encontrar nos grupos intermédios. O que os dados revelaram foram tendências transversais a todos os grupos nas quais os grupos intermédios, como os definimos, participam. No entanto, dentro dos grupos intermédios foi possível demarcar a classe F, que se destacou das demais pelo peso que as apólices representam no seu patrimônio e pelo valor médio pelo qual são estimadas as suas joias, baixela, móveis e roupa de casa. E se nas duas últimas categorias a distância em relação aos altos dignitários é também considerável, o mesmo não se pode afirmar relativamente às joias e baixela, o que pode ser indicador de um fenômeno de mimetização. Estes dados sobre o patrimônio do grupo F podem ser sintomáticos de uma tentativa de aproximação aos indivíduos com estatuto mais elevado. A este propósito importa lembrar que o período pombalino abriu um novo caminho a todos aqueles que, embora tivessem profissões conotadas com mecânica, possuíam dinheiro e aspiravam à nobilitação. A todos aqueles que estivessem dispostos a investir nas mais importantes companhias comerciais, a Coroa oferecia o gozo de uma regalia especial em matéria de status social: facultava-se a isenção de mecânica na candidatura às ordens militares.50 50 OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, máxime, p. 202-206. O que os inventários dos indivíduos mais ricos espelham são duas estratégias de ascensão social: a aproximação do padrão de consumo dos altos dignitários e a compra de ações, que configura uma estratégia de investimento, mas também uma estratégia de ascensão social, na medida em que representa um “atalho” no acesso às ordens militares.

Relativamente aos grupos intermédios, consideramos que as hipóteses de identificação de um padrão de consumo não se esgotam aqui. Será necessário perscrutar a difusão de determinadas tipologias ou mesmo matérias-primas dos objetos que constituem o patrimônio dos indivíduos antes de assumirmos a ausência de um padrão.

Em síntese, considerando apenas o total investido no recheio da casa, os dados parecem apontar para um cenário em mutação. Os dados até agora recolhidos apontam para um novo paradigma de consumo, que passa pela valorização da casa como espaço de conforto e sociabilidade. As evidências da presente amostra e abordagem confirmam esta ideia. Tome-se, o exemplo das joias, que têm como contraponto a baixela, que, por sua vez, está intimamente ligada ao consumo de novos produtos, como o chá, café, chocolate e açúcar. Sintomática de um hipotético desinteresse relativamente aos objetos que se expõem ao olhar público é também a quebra no investimento na roupa de vestir e nos semoventes, que pode, em última instância, ser indício da tendência do homem urbano se defender do público através da reclusão na esfera privada, como defesa face ao aumento populacional na cidade, resultante da migração do campo para cidade, e que teve como consequência o esbater das definições geográficas de classe no interior das cidades, de que fala Richard Sennett.51 51 SENNETT, Richard. The fall of public man. Nova York: W. W. Norton & Company, 1992.

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    • 1
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    • 2
      OLIVAL, Fernanda. Os lugares e espaços do privado nos grupos populares e intermédios. In: MATTOSO, José (dir.). História da vida privada em Portugal. A Idade Moderna. Lisboa: Círculo de Leitores e Debates, 2011, p. 244-275.
    • 3
      BRAGA, Isabel M. R. Mendes Drumond. Bens de hereges. Inquisição e cultura material. Portugal e Brasil (séculos XVII-XVIII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012.
    • 4
      Sobre exemplos destes testemunhos leia-se DURÃES, Andreia. Grupos intermédios em Portugal (1600-1850): uma aproximação ao vocabulário social. Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro, vol. 14, nº 27, 2013, p. 318-343.
    • 5
      Sobre este assunto leia-se RODRIGUES, José Damião. A estrutura social. In: SERRÃO, Joel & MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.). Nova história de Portugal, vol. VII. Lisboa: Editorial Presença, 2001, p. 408-409; HESPANHA, A. M. A nobreza nos tratados jurídicos dos séculos XVI a XVIII. Penélope, nº 12, 1993, p. 36-37; XAVIER, Ângela Barreto & HESPANHA, A. M. A representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, vol. IV. Lisboa: Editorial Estampa, p. 131-132; HESPANHA, A. M. As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal - séc. XVII. Lisboa: Edição de autor, 1986, p. 418; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, op. cit., p. 334-337.
    • 6
      CURTO, Diogo Ramada. Discurso político em Portugal 1600-1650. Lisboa: Universidade Aberta; Centro de Estudos de História e Cultura Portuguesa, 1988, p. 205.
    • 7
      Chama-se legítima a porção da herança que cabia a cada um dos filhos ou herdeiros necessários.
    • 8
      MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários. Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime. Dissertação de mestrado em Economia e Sociologia Históricas, séculos XV-XX, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1989, p. 12.
    • 9
      Ordenações Filipinas, livro I, tít. 88, § 4.
    • 10
      Por esse motivo os estudos que têm incidido sobre os níveis e a composição da riqueza em Portugal têm partido dos inventários orfanológicos. Veja-se, por exemplo, ROCHA, Maria Manuela. Propriedade e níveis de riqueza: formas de estruturação social em Monsaraz na primeira metade do século XIX. Lisboa: Edições Cosmos, 1994; PEDREIRA, Jorge. Os homens de negócio da Praça de Lisboa de Pombal ao Vintismo (1755-1822). Tese de doutorado em Sociologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, 1995; MADUREIRA, Nuno Luís, op. cit.
    • 11
      Para os bens vinculados o sistema de transmissão era independente das partilhas. Neste caso, o herdeiro estava definido. Os bens vinculados passavam na linha direta descendente ao filho mais velho, neto, filho do primogênito ou, na falta deste, na linha colateral, ao irmão ou sobrinho e apenas entravam na herança os bens livres. Também os prazos em vidas eram transmitidos à margem das partilhas.
    • 12
      LEIVA, António Joaquim Ferreira de Eça e. Memorias theoricas e práticas do direito orfanologico. Porto: Tipografia Comercial, 1846, p. 17.
    • 13
      LEIVA, António Joaquim Ferreira de Eça e, op. cit., p. 25. José Pereira de Carvalho corrobora esta perspectiva, salientando que também era partível o preço pelo qual o prazo se comprara, se este não tivesse sido conferido no inventário do comprador. CARVALHO, José Pereira de. Primeiras linhas sobre o processo orphanologico. Lisboa: Tipografia Lacerdina, 1816, p. 50-52 e 57.
    • 14
      MADUREIRA, Nuno Luís, op. cit., p. 14; BAULANT, Micheline. Nécessité de vivre et besoin de paraître. Les inventaires et la vie quotidienne. In: BAULANT, Micheline; SCHUURMAN, A.; SERVAIS, Paul. Inventaires après-décès et ventes de meubles. XIVe-XIXe siècles. Louvain-la-Neuve: Academia, 1988, p. 14; Idem. Typologie des inventaires après décès. In: WOUDE, Ad Van der & SCHUURMAN, Anton (ed.). Probate inventories. Wageningen: A. A. G. Bijdragen, 23, 1980, p. 34; Idem. Enquête sur les inventaires après décès autour de Meaux aux XVIIe et XVIIIe siècles. In: WOUDE, Ad Van der & SCHUURMAN, Anton (ed.), op. cit., p. 146.
    • 15
      Não se pense que falar de inventários de bens equivale a falar em valores monetários. Micheline Baulant advertira já para este fato apontando que, em princípio, os valores não figuram nos inventários holandeses, ingleses, franceses e americanos. BAULANT, Micheline. Typologie…, op. cit., p. 39.
    • 16
      Ordenações Filipinas, tít. 88, § 5.
    • 17
      A este propósito leia-se BAULANT, Micheline. Typologie, op. cit., p. 41 e CORNETTE, Joël. La révolution des objets. Le Paris des inventaires après décès (XVIIe-XVIIIe siècles). Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, t. 36, nº 3, 1989, p. 480. L. Bourquin estima que a subavaliação dos objetos ronda os 20%. BOURQUIN, Laurent. Les objets de la vie quotidienne dans la première moitié du XVIe siècle à travers cent inventaires après décès parisiens. Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, t. 36, nº 3, 1989, p. 466. O mesmo valor apurou Micheline Baulant. Enquête sur..., op. cit., p. 147.
    • 18
      Veja-se, por exemplo, o resultado de uma escavação realizada em Setúbal em DUARTE, Susana; SOARES, Joaquina; SILVA, Carlos Tavares da. Intervenção arqueológica na rua Álvaro Castelões n.ºs 38 e 40 (Setúbal) e sismo de 1755. Setúbal Arqueológica, vol. 15, 2014, p. 341-372.
    • 19
      Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT). Inventários orfanológicos, letra A, maço 39, nº 7, apensos, fl.1v.
    • 20
      ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 82, nº 5, fl. 5v.
    • 21
      Refira-se que em 44% das entradas para as quais foi possível apurar o valor unitário de cada livro, eles foram avaliados por um valor igual ou inferior a 200 réis.
    • 22
      Esta prática tem levado à frustração dos investigadores que se debruçaram sobre a história do livro e da leitura e procuraram dados nos inventários orfanológicos. Veja-se, por exemplo, LOUREIRO, Olímpia. O livro e a leitura no Porto no século XVIII. Porto: Centro de Estudos D. Domingos de Pinho Brandão; Fundação Engenheiro António de Almeida, 1994, p. 46.
    • 23
      O juiz do processo de inventário de bens do capitão António José de Figueiredo informa-nos sobre aquele que será o entendimento e prática comuns relativamente ao registo de roupa de vestir e joias. Segundo este juiz, “[n]ão devem ser descritos no autto de qualquer arrecadação aquelles bens que são proprios do uso dos herdeiros” salvo “o que for de ouro, prata ou diamantes ou quaisquer outras pedras preciosas; porquanto estas devem descrever-se”. ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 30, nº 3, fl. 12v.
    • 24
      VRIES, Jan de. Between purchasing power and the world of goods: understanding the household economy in early modern Europe. In: BREWER, John & PORTER, Roy (ed.). Consumption and the world of goods. Londres: Routledge, 1993, p. 102.
    • 25
      CARVALHO, José Pereira de, op. cit., p. 41.
    • 26
      CARNEIRO, Manuel Borges. Direito civil de Portugal, vol. III. Lisboa: Tipografia de Maria da Madre de Deus, 1858, p. 93.
    • 27
      ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 29, nº 1, fls. 1-14.
    • 28
      Vários fatores podem levar a que o valor da fazenda calculado pelo juiz e registado no inventário seja diferente do apurado por nós. Essa discrepância pode decorrer da soma da fazenda apurada pelo juiz estar errada por lapso nos seus cálculos; de nos inventários serem avaliados bens de raiz ou rendimentos de prazos ou vínculos que o juiz não considera na soma da fazenda, por não entrarem na partilha, mas que nós, porque perseguimos um objetivo diferente, consideramos; o juiz considerar o valor de licitação dos bens e não o valor da avaliação dos louvados (neste caso, embora o primeiro possa traduzir um valor mais próximo do valor de mercado, optamos por priorizar a salvaguarda das condições de comparabilidade dos inventários entre si e considerar o valor da avaliação); ou ainda do fato do juiz fazer entrar na soma da fazenda os bens dos filhos casados que devem entrar à colação que nós optamos por excluir, porque, embora correspondam a uma parte do patrimônio constituído pelos inventariados ao longo da sua vida, estes não são usufrutuários do mesmo à data da morte.
    • 29
      O referido alvará, que pretendia fazer face à desordem nos Juízos dos Órfãos da cidade de Lisboa, distinguia com rigor as funções dos avaliadores e do partidor, bem como os critérios a ter em conta para efeitos de pagamento a cada um destes. O pagamento dos primeiros calculava-se em dias de trabalho; o dos segundos era fixado por lei, mas indexado à fortuna global do inventário. SILVA, António Delgado da. Collecção da legislação portugueza. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Tipografia Maigrense, 1828, p. 669-671.
    • 30
      CARNEIRO, Manuel Borges, op. cit., p. 97.
    • 31
      Não havia qualquer confusão entre a sua função e a dos juízes e a dos avaliadores já que estes não podiam ser partidores, nem os partidores avaliadores. CARVALHO, José Pereira de, op. cit., p. 28.
    • 32
      CARNEIRO, Manuel Borges, op. cit., p. 155-156.
    • 33
      CARVALHO, José Pereira de, op. cit., p. 29.
    • 34
      ROCHA, Maria Manuela, op. cit., p. 94-97.
    • 35
      MADUREIRA, Nuno Luís, op. cit., p. 18.
    • 36
      ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 104, nº 3; Arquivo Histórico do Tribunal de Contas (AHTC). Livro da Décima de Arruamentos da Freguesia de S. José, 1785.
    • 37
      AHTC. Livro da Décima de Arruamentos da Freguesia das Mercês, 1782.
    • 38
      MACEDO, Jorge Borges de, op. cit., p. 86.
    • 39
      Entre cerca de 1726 e cerca de 1790, define-se uma tendência crescente e contínua dos preços. No entanto, a partir de inícios da década de 1790, o nível dos preços aumenta de forma muito acentuada. SOUSA, Rita Martins de. Moeda e metais preciosos no Portugal setecentista: 1688-1797. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006, p. 192.
    • 40
      Sobre este assunto leia-se FONSECA, Fernando Taveira da. Flutuações e crises económicas. In: MATTOSO, José (dir.). História de Portugal, op. cit., vol. V, p. 393-407; COSTA, Leonor Freire; LAINS, Pedro; MIRANDA, Susana Münch. História económica de Portugal. 1143-2010. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2012, p. 279-281; NUNES, Ana Bela & VALÉRIO, Nuno. Moeda e bancos. In: LAINS, Pedro & SILVA, Álvaro Ferreira da (org.). História económica de Portugal 1700-2000, vol. II. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2005, p. 284-289.
    • 41
      Sobre as causas da crise financeira e meios de resolução das dificuldades leia-se o elucidativo artigo de SILVEIRA, Luís Espinha da. Aspectos da evolução das finanças públicas portuguesas nas primeiras décadas do século XIX (1800-27). Análise Social, vol. 23, 1987, p. 505-529 e a síntese de SILVA, Álvaro Ferreira da. As finanças públicas. In: LAINS, Pedro & SILVA, Álvaro Ferreira da (org.), op. cit., vol. I, p. 237-261, p. 257 e ss.
    • 42
      COSTA, Leonor Freire; LAINS, Pedro; MIRANDA, Susana Münch, op. cit., p. 280-281.
    • 43
      MADUREIRA, Nuno Luís. Mercado e privilégios…, op. cit., p. 279-302.
    • 44
      Em rigor, este índice está publicado em VALÉRIO, Nuno & MATA, Eugénia. História económica de Portugal. Lisboa: Editorial Presença, 2003 [1994], p. 261-272, mas é resultado do trabalho de VALÉRIO, Nuno, Os preços em Portugal (séculos 13 a 20), apresentado no XVII Encontro da Associação Portuguesa de História Económica e Social, Ponta Delgada, 1997, parcialmente publicado em Idem. Um indicador da evolução dos preços em Portugal nos séculos 16 a 19. Working Paper. Lisboa: Instituto Superior de Economia e Gestão, Gabinete de História Económica e Social (ISEG/GHES), nº 4, 1997, p. 1-17. Os outros indicadores disponíveis que abrangem parcialmente o período em estudo são da autoria de Rita Martins de Sousa, David Justino e Nuno Luís Madureira. Cf. JUSTINO, David. A formação do espaço económico nacional. Portugal 1810-1913, vol. II. Lisboa: Vega, 1989, p. 14-16; SOUSA, Rita Martins de, op. cit., p. 171-197; MADUREIRA, Nuno Luís. Consumo, preços e salários (1760-1830). Ler História, nº 32, 1997, p. 5-29; Idem. Mercado e privilégios, op. cit., p. 279-302.
    • 45
      PEDREIRA, Jorge, op. cit., p. 295-303.
    • 46
      ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 29, nº 1.
    • 47
      ROCHA, Maria Manuela. Crédito privado num contexto urbano. Lisboa, 1770-1830. Tese de doutorado, Instituto Universitário Europeu, Florença, 1996; Idem. Actividade creditícia em Lisboa (1770-1830). Análise Social, vol. XXI, p. 136-137 (2º-3º), Lisboa, 1996, p. 579-598; Ibidem. Viver a crédito: Práticas de empréstimo no consumo individual e na venda a retalho (Lisboa, séculos XVII e XIX). Working Paper. Lisboa: ISEG/GHES, nº 11, 1998, p. 1-16; Ibidem. Crédito privado em perspectiva comparada (séculos XVII-XVIII). Working Paper. Lisboa: ISEG/GHES, nº 10, 1998, p. 1-25. Esta temática foi também tratada pela historiografia brasileira. Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de BOXER, Charles. A idade de ouro do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000; ALMEIDA, Carla Maria Carvalho de. Alterações nas unidades produtivas mineiras: Mariana, 1750-1850. Dissertação de mestrado em História, Universidade Federal Fluminense, 1994.
    • 48
      ANTT. Inventários orfanológicos, letra A, maço 42, nº 6.
    • 49
      ROCHE, Daniel. História das coisas banais. Lisboa: Editorial Teorema, 1998, p. 233.
    • 50
      OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa: Estar Editora, 2001, máxime, p. 202-206.
    • 51
      SENNETT, Richard. The fall of public man. Nova York: W. W. Norton & Company, 1992.

    Anexo 1

    Quadro 5
    Valor médio do número de objetos e do investimento nas categorias de consumo de acordo com os grupos socioeconômicos (1750=100)

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      Jul-Dec 2016

    Histórico

    • Recebido
      24 Jun 2015
    • Aceito
      31 Mar 2016
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