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ELEMENTOS DO CONSERVADORISMO NEGRO NOS ESTADOS UNIDOS: GEORGE SCHUYLER CONTRA O MOVIMENTO PELOS DIREITOS CIVIS (1950 - 1968)1 1 Artigo não publicado em plataforma de preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo.

ELEMENTS OF BLACK CONSERVATIVITY IN THE UNITED STATES: GEORGE SCHUYLER AGAINST CIVIL RIGHTS MOVEMENT (1950-1968)

Resumo

O objetivo deste artigo é o de analisar o discurso conservador do intelectual negro George Schuyler durante o período do Movimento pelos Direitos Civis. Schuyler fez parte de uma linhagem de conservadores negros que pautaram o debate sobre a questão racial na segunda metade do século XX, enfatizando a importância da moderação no ativismo negro e pregando o empreendedorismo como estratégia de desenvolvimento social no capitalismo estadunidense. Nesse processo, Schuyler se deslocou do campo progressista negro para o campo conservador e criticou veementemente as estratégias de lideranças como Martin Luther King Jr, Ella Baker e Malcom X.

Palavras-chave
George Schuyler; conservadorismo negro; Movimento pelos Direitos Civis; anticomunismo; racismo

Abstract

The aim of this article is to analyze the conservative discourses of the Black intellectual George Schuyler during the period of the Civil Rights Movement. Schuyler was part of a lineage of Black conservatives that had influenced the debate regarding the racial problem in the first half the Twentieth Century, emphasizing moderation and entrepreneurship as a strategy for social development in American capitalism. Schuyler thus moved from the liberal to the right on the political spectrum, vehemently criticizing the strategies of Black leaders such as Martin Luther King Jr, Ella Baker, and Malcom X.

Keywords
George Schuyler; black conservatism; civil rights movement; anti-communism; racism

Em 1966, o jornalista e escritor George Schuyler publicou a sua autobiografia, depois de escrever romances e contribuir com textos para a imprensa negra dos Estados Unidos. No título da publicação, Schuyler reforçou convictamente a sua posição como intelectual negro e conservador. O jornalista, na obra Black and Conservative, não tinha necessariamente a intenção de trazer detalhes sobre sua vida pessoal ou trajetória profissional, já que explorava muito pouco a sua relação com colegas, amigos ou familiares. O primeiro capítulo apenas trouxe aspectos pessoais para que o leitor compreendesse a formação de um intelectual conservador, já antecipando algumas posições políticas que determinariam o seu deslocamento para o lado direito do espectro político estadunidense. A construção de sua narrativa, portanto, oferecia uma análise histórica dos Estados Unidos entre 1930 e 1960 a partir da perspectiva de um negro conservador, concorrendo com as propostas políticas de progressistas ou radicais das lideranças negras do período.

Em 1966, a pressão do Movimentos pelos Direitos Civis já havia levado o Congresso a aprovar emendas constitucionais como a Lei dos Direitos Civis (Civil Rights Act - 1964) e a Lei do Voto (Voting Rights Act - 1965) que, depois de anos de políticas segregacionistas e violência racial, propunham uma base jurídica para a integração e a participação política dos afro-americanos. O interesse de George Schuyler com a sua autobiografia, assim como em artigos que passou a publicar em periódicos conservadores, era o de desafiar o que ele entendia ser uma tendência comunista das principais figuras das organizações políticas dos Direitos Civis nos Estados Unidos. O intelectual pretendia reforçar a existência de uma tradição conservadora negra baseada em valores presentes historicamente entre as populações negras do país. Nesse sentido, demonstrava que as ideias e agendas políticas de inserção econômica do negro no capitalismo estadunidense, em sua perspectiva, eram muito mais importantes e eficientes que as mobilizações em torno de uma “integração política forçada”.

O que acompanharemos neste artigo é a mobilização, por parte de Schuyler, de um repertório conservador afro-americano para questionar e confrontar as estratégias de lideranças negras associadas ao Movimentos pelos Direitos Civis e ao Black Power, dentre elas Martin Luther King Jr. e Malcom X. A trajetória de George Schuyler e o seu compromisso com a constituição de uma agenda conservadora para os negros revela a complexidade do ativismo afro-americano, que não estava circunscrito às propostas pacíficas do reverendo King e ao separatismo de Malcom X (1925-1965) como representante da Nação do Islã, a influente organização fundada em 1930, defensora do separatismo negro que recusava o cristianismo visto como religião predominante branca e a narrativa da nação estadunidense. A estratégia fora adotar fundamentos do Islamismo em tentativa de se distanciar da América branca, concebendo um mundo separado exclusivamente negro dentro do território dos Estados Unidos. A Nação do Islã floresceu principalmente nos guetos das grandes cidades do país.

Primórdios do moderno conservadorismo negro.

O ativismo negro, que aprofundou o seu processo de institucionalização na década de 1920, já apresentava uma diversidade de agendas que propunha a moderação diante da violência segregacionista combinada com desenvolvimento econômico. Entre eles, no campo conservador, os programas elaborados por Booker T. Washington (1865-1915). Já no campo da esquerda, a autodefesa armada revolucionária, propostas por lideranças, como a do jornalista Cyril Briggs (1888-1966), do African Blood Brotherhood, organização socialista criada em 1919, depois vinculada ao Partido Comunista.

Quando o assunto é o conservadorismo negro, a figura de Washington é a mais destacada entre os especialistas. Com a sua proposta controversa de acomodação ao segregacionismo no Sul, transformou-se em referência associada a uma história dos conservadores afro-americanos. Por um lado, ele propunha que os negros primeiro adquirissem nem que fosse os rudimentos das primeiras letras e uma profissão - as artesanais ou as que permitiriam a inserção em fábricas, por exemplo - para só então integrar-se à sociedade que os marginalizava. Por outro, ele apostava numa espécie de empreendedorismo negro que faria com que a sociedade branca reconhecesse o valor da população afro-americana.

Quando as comunidades negras do Norte passaram a crescer a partir de 1915, com a migração de milhares de trabalhadores negros vindos do Sul, surgiram novas organizações que denunciaram as práticas racistas da sociedade estadunidense e questionaram enfaticamente a abordagem pragmática de Booker T. Washington, que foi associado à representação de um “Old Negro”. Em contraposição ascendia o que ficou conhecido como “New Negro”, em cidades como Nova Iorque e Chicago, com a constituição de redes de pequenos empreendedores, operários e intelectuais negros que se opunham, e lutavam com outras armas, à segregação do país. Contudo, apesar da morte de Washington em 1915, as suas propostas continuaram a ter uma ampla aceitação entre lideranças que enfatizavam a importância do progresso econômico dos afro-americanos para promover gradualmente uma cidadania negra no país.

Hanes Walton Jr. ressalta que a emergência e a projeção de Booker T. Washington contaram com a colaboração de filantropos brancos que identificaram em sua agenda a possibilidade de conter as propostas integracionistas e assegurar preservação das hierarquias raciais, principalmente, nos estados do Sul. A partir desses arranjos, surgiu uma geração de negros com discursos contra a igualdade racial que procuravam justamente o apoio da filantropia conservadora. Joseph Holly (1874-1958), reitor da Universidade Estadual de Albany, na Geórgia, não foi tão bem-sucedido como Washington, mesmo assim conseguiu a indicação para importantes cargos em instituições educacionais, legitimando uma ordem social estruturada pela supremacia branca. Em suas considerações, Walton Jr. (2002)WALTON JR, Hanes. “Remaking African American public opinion: the role and function of the African American conservatives”. In: TATE, Gayle T; RANDOLPH, Lewis A (Org.). Dimensions of Black Conservatism in United States. New York: Palgrave, 2002. evita a afirmação de que esses negros conservadores formavam uma “classe de vendidos” para os supremacistas, citando outros nomes, dentre eles George Schuyler, que levaram adiante suas posições políticas e programas sem contar com o apoio dessa filantropia. As redes mais complexas - que envolvia negros conservadores, elite branca, setores da economia, organizações distintas e o governo - e que sustentaram as iniciativas de conservadores como Booker T. Washington foram desmobilizadas ainda na primeira metade do século XX e retornariam somente com a ascensão de Ronald Reagan e a estratégia dos republicanos de promover um campo conservador afro-americano a partir do apoio a conservadores negros como os economistas Thomas Sowell, Walter Williams e Gleen Loury (IBIDEM, p. 150).

O recuo da filantropia conservadora, porém, não significou necessariamente um intervalo na atuação dos negros conservadores na primeira metade do século XX. Entre eles, destaca-se George Schuyler e outros como Plummer Bernard Young que apesar de compor os quadros da National Association of Colored People (NAACP), importante organização que tinha uma agenda de enfrentamento das práticas racistas, teve influência entre os negros do Sul através de suas publicações e difundiu sistematicamente a abordagem moderada de Booker T. Washington até a década de 1950 (SUGGS, 1988SUGGS, Henry Lewis. P.B. Young, Newspaperman: Race, Politics and Journalism in the New South, 1910-1962. Charlottesville, Va.: University Press of Virginia, 1988.). O conservadorismo perdeu um certo espaço, entretanto, foi se rearticulando ao longo dos anos, respondendo às mudanças das dinâmicas étnico-raciais da sociedade estadunidense. Nesse sentido, como veremos adiante, George Schuyler cumpriu um papel importante para o conservadorismo negro ao propor iniciativas e interpretações sobre a sociedade estadunidense alternativas aos dos progressistas negros.

Conservadorismo negro: uma historiografia em construção

O tema dos Direitos Civis nos Estados Unidos conta com historiografia consolidada e debates importantes que ajudam o pesquisador que quer ingressar no tema. Igualmente, o moderno conservadorismo da segunda metade do século XX, naquele país, já conta com massa crítica que permite a compreensão dos problemas do campo. Entretanto, o mesmo não se dá com o conservadorismo negro, cuja bibliografia é sumária. A distinção do conservadorismo em geral e do conservadorismo negro, reside grosso modo, em primeiro lugar, serem, em geral, eles mesmos negros; em segundo, de discutirem no interior do campo negro; em terceiro, em oposição aos Direitos Civis e o Movimento Negro atual.

Apesar do conservadorismo negro apresentar mudanças em um longo período, historiadores e sociólogos procuraram definir alguns elementos em comum em propostas e discursos de lideranças conservadoras. O sociólogo Kelly Miller, ainda na década de 1960, considerou a figura de Booker T. Washington como uma espécie de tipo ideal, associando ao conservadorismo negro um conjunto de práticas que privilegiava estratégias de desenvolvimento econômico dos negros sem priorizar questões relacionadas à cidadania (MILLER, 1968MILLER, Kelly. Radicals & Conservatives and others essays on the Negro in America. New York: Schoken Books, 1968.).

Após a instalação da agenda neoliberal de Ronald Reagan (1981-1989) e, particularmente, a partir de George W Bush (2001-2009) que jogou com as identidades negras trazendo para o governo negros conservadores como Colin Powell e Condoleezza Rice há um esforço na compreensão do conservadorismo negro. O intelectual conservador, Lee Walker (2009)WALKER, Lee. Rediscovering Black conservatism. Chicago: The Heartland Institute, 2009., propôs a diferença entre conservadores e liberais a partir da afirmação de que os primeiros tinham a expectativa de que um processo de integração seria consequência do progresso econômico dos negros, enquanto os liberais enfatizavam a igualdade de direitos enquanto prioridade. Contudo, Walker também considerou alguns princípios que orientavam a moderação dos conservadores como a autodeterminação, a autossuficiência e o empreendedorismo. O historiador Peter Eisenstadt (2012)EISENSTADT, Peter (org.). Black Conservatism: Essays in Intellectual and Political History. New York: Routledge, 2012., raciocinando na mesma lógica, fez referência a uma “ética protestante negra”, que orienta posicionamentos individualistas e geram representações de uma respeitabilidade negra, disciplinando os negros para o empreendedorismo. Por fim, Christopher Bracey (2018)BRACEY, Christhoper Alan. Saviours or Sellouts: the promise and peril of Black conservatism, from Booker T. Washington to Condoleeza Rice. Boston: Beacon Press, 2008., acadêmico da área do Direito, chama atenção para o que entende ser uma adesão dos conservadores negros ao “excepcionalismo da nação”, reivindicando o direito de fazer parte da história do “povo escolhido” e conclamando todos os afro-americanos a incorporarem o que são considerados “valores americanos” se distanciando dos elementos das culturas negras.

Outro aspecto destacado entre os estudiosos do conservadorismo negro é o caráter orgânico que se reproduz na análise de alguns conservadores sobre as dinâmicas sociais das comunidades afro-americanas. O historiador Robert Weens Jr. utiliza o termo “conservadorismo negro orgânico” para se referir ao modo como alguns intelectuais e lideranças apontam para algumas “disfuncionalidades” entre os negros que devem ser corrigidas por meio da incorporação de “valores americanos” em detrimento de valores associados às experiências afro-americanas. Para Weens Jr. (2002)WEENS JR., Robert. “The American Moral Reform Society and the origins of Black conservative ideology”. In: TATE, Gayle T; RANDOLPH, Lewis A (Org.). Dimensions of Black Conservatism in United States. New York: Palgrave, 2002., essa é uma tendência intelectual conservadora que compreende a pobreza negra como um problema interno aos negros, suavizando ou ignorando a condição estrutural do racismo. Ao enquadrar os problemas sociais a partir de uma noção orgânica, observa o historiador, os conservadores negros atribuiam uma superioridade moral às elites brancas que se transformavam em referências para a construção de uma respeitabilidade negra. Esse conceito de respeitabilidade foi sistematicamente articulado pela historiadora Evelyn Brooks Higginbotham (1994)HIGGINBOTHAM, Evelyn Brooks. Righteous Discontent: The Women’s Movement in the Black Baptist Church, 1880-1920. Cambridge: Harvard University Press, 1994., que enfatizou o modo como as minorias se engajaram em uma política moralista de aceitação das boas maneiras para se contrapor aos estigmas concebidos em um processo de subalternização.

Na segunda metade do século XX, como acompanharemos a partir da trajetória de George Schuyler, o conservadorismo negro encontrou canais de diálogo com um campo mais amplo do conservadorismo que se reorganizava politicamente. O anticomunismo, no momento de constituição do moderno campo conservador na década de 1950, era a base ideológica que possibilitava a combinação de diferentes tendências como o libertarianismo e o tradicionalismo, que revelavam uma tensão entre uma individualidade libertária associada à ordem capitalista e um coletivismo tradicional supostamente ameaçado pela sociedade industrial. O processo de fusão dessas correntes se deu com muito esforço intelectual empreendido por figuras como Frank Meyer que conseguiram definir uma síntese para elementos que eram tratados como dissonantes, combinando uma ordem moral e a valorização de um indivíduo sob o guarda-chuva do anticomunismo (NASH, 2006NASH, George. The conservative intellectual movement in America since 1945. Wilmington, Delaware: Intercollegiate Studies Institute, 2006.).

George Schuyler: do socialismo ao campo conservador

George Schuyler nasceu em 25 de fevereiro de 1895, em Providence, Rhode Island, mas foi criado na cidade de Syracuse, no estado de Nova Iorque. A sua infância foi marcada pela influência de sua mãe, Eliza Schuyler, e principalmente sua avó, Helen Fisher, a qual o intelectual atribuiu a sua postura conservadora cultivada desde a sua tenra idade. Schuyler não chegou a conhecer o pai, que morreu quando ainda era um bebê. Entretanto, a linhagem paterna foi importante para a sua família, que construiu uma narrativa de distinção em relação a outras famílias negras, ressaltando o fato do bisavô, Philip Schuyler, ter lutado na Guerra de Independência a favor das 13 colônias britânicas. O grande orgulho dos Schuylers era o de não terem passado pela experiência da escravidão no século XIX, diferentemente das famílias negras que migraram para o estado de Nova Iorque, na década de 1910, que, além da memória do cativeiro, haviam deixado as comunidades do Sul onde sofriam com a reconfiguração de hierarquias raciais no período pós-abolição (WILLIAMS, 2007WILLIAMS, Oscar. George S. Schuyler: portrait of a black conservative. Knoxville: University of Tennessee Press, 2007.).

Em seus escritos, Schuyler procurou destacar as singularidades de sua linhagem familiar. Entretanto, no próprio relato revelou as limitações vivenciadas pela mãe e pela avó, que não poderiam oferecer-lhe uma boa educação. O intelectual retratava o esforço de Helen Fisher, uma trabalhadora doméstica, para estimular no neto o gosto pela leitura. As condições econômicas de sua família não eram tão melhores daqueles que haviam chegado recentemente ao estado de Nova Iorque a à cidade de Syracuse oriundos do Sul em busca de uma vida melhor. Quando observou as condições de trabalho dos negros na cidade, Schuyler decidiu que era momento para mudanças, apostando nas Forças Armadas como uma via de ascensão social. Assim, aos 17 anos se alistou no exército e teve uma experiência de cerca de seis anos entre os estados de Washington e o Havaí. Em sua autobiografia, a passagem pelas Forças Armadas foi considerada fundamental para a sua formação intelectual, já que trabalhou na edição de uma publicação militar, onde pôde incrementar as suas habilidades na escrita (SCHUYLER, 1966SCHUYLER, George. Black and Conservative: the autobiography of George Schuyler. New Rochelle: Arlington House Publishers, 1966.).

George Schuyler, apesar da dedicação, não evoluiu na carreira militar, encontrando os obstáculos que muitos homens negros encaravam nas Forças Armadas em um período em que a violência racial, sob a segregação racial, chegou ao ápice. Em sua autobiografia, Schuyler não dá detalhes sobre a saída do exército, mas revela certa frustração por não ter conseguido avançar na hierarquia militar. Jeffrey B. Leak, estudioso da obra de Schuyler, no entanto, discute o silêncio de Schuyler na própria autobiografia, informando que o intelectual havia desertado do exército por conta de uma experiência de discriminação racial. O episódio não foi esclarecido, mas Schuyler foi preso por cerca de seis meses e, quando livre, foi obrigado a iniciar a sua trajetória profissional praticamente do zero (LEAK, 2001LEAK, Jeffrey B (ed.). “The Black Muslims in America: an interview with George Schuyler, Malcom X. C. Eric Lincoln, and James Baldwin”. In: LEAK, Jeffrey (ed.). Rac[e]ing to the right: selected essays of George S. Schuyler. Knoxville: University of Tennessee Press, 2001, pp. 73-93.).

Nos anos posteriores, Schuyler circulou entre trabalhos braçais de baixa remuneração, sem ter tempo suficiente para se dedicar às suas leituras. Na cidade de Nova Iorque, lavou pratos e, conforme a autobiografia, entrou em contato com diferentes figuras das classes trabalhadoras. Para Leak, esse foi um momento na vida do intelectual em que foi obrigado a seguir o princípio conservador de autossuficiência e independência devido às suas condições precárias. Na Broadway, George Schuyler conviveu com as experiências de prostituição, jogos de azar, furtos e mendicância. As longas horas de trabalho pesado em troca de salários baixos influenciaram a sua decisão de retornar à Syracuse, onde contou com o conforto familiar e retomou as atividades intelectuais. Na biblioteca pública da cidade, passava horas lendo e escrevendo, iniciando, de maneira sistemática, a leitura de socialistas estadunidenses e das obras de Marx.

Segundo a sua perspectiva conservadora, Schuyler só se dedicou às obras socialistas porque foi o único meio de exercício intelectual disponível e, também, porque considerava um recurso eficiente para aliviar as suas crises de insônia. Entretanto, os seus primeiros textos indicam uma crítica contundente ao sistema capitalista que persistiu por alguns anos (IBIDEM, p. xx). Ainda que negasse a importância da literatura marxista, ela impulsionou a sua paixão pelos grandes embates intelectuais, levando-o a se filiar no Partido Socialista de Syracuse em 1921. Em 1923, retornou à Nova Iorque, decidido a ocupar um espaço de destaque entre a intelectualidade negra que se articulava nos grandes centros urbanos, principalmente na cidade de Nova Iorque. Em suas incursões pelos espaços intelectuais, Schuyler se aproximou do socialista negro A. Philiph Randolph, que editava o jornal The Messenger, estabelecendo uma relação que propiciaria a sua inserção na impressa negra. O periódico, apesar das limitações em sua estrutura, foi primordial para a ascensão de Schuyler na esfera pública negra que se consolidava a partir do sucesso comercial de alguns jornais da imprensa negra como o Chicago Defender (FRANCISCO, 2016FRANCISCO, Flavio Thales. O Novo Negro na Diáspora: modernidade afro-americana e as representações sobre o Brasil e a França no jornal Chicago Defender (1916-1940). São Paulo: Intermeios/FAPESP, 2016.)

Nas suas colunas elaboradas para o Messenger, George Schuyler discutiu as práticas discriminatórias que se reproduziam em diferentes esferas sociais, principalmente nos sindicatos. As lideranças negras, que circulavam entre as organizações socialistas nas primeiras décadas do século XX, já denunciavam as inúmeras ações dos trabalhadores brancos para inviabilizar o acesso dos negros aos sindicatos. Hubert Harrison, um dos principais líderes socialistas negros do período, criticava o racismo da classe trabalhadora e afirmava que era dever dos socialistas tratar da questão racial para atrair os trabalhadores negros para os sindicatos. Segundo Harrison, o capitalismo não poderia ser superado nos Estados Unidos sem a presença da população negra, que vivenciava as condições mais precárias do mercado de trabalho (PERRY, 2009PERRY, Jeffrey. Hubert Harrison: the voice of Harlem radicalism, 1883-1918. New York: Columbia University Press, 2009.). Já o reconhecido intelectual William Dubois (1868-1963), líder da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), que em diferentes momentos de sua trajetória se autoproclamou socialista e comunista, desenvolveu um estudo histórico sobre os trabalhadores na era da Reconstrução após a Guerra Civil (1861-1865), analisando o modo como a crença na superioridade branca inviabilizara as iniciativas de organização inter-racial de trabalhadores (DUBOIS, 1999DUBOIS, William Edward Burghardt. The Black Reconstruction, 1860-1880. New York: Simon & Schuster, 1999.).

George Schuyler, contudo, não discutiu somente a relação entre o ativismo negro e o socialismo nos Estados Unidos. O intelectual abordou uma variedade de temas que estavam relacionados à diversidade de agendas dos afro-americanos, passando pelos campos da literatura, artes, política e economia. O jornal The Messenger, apesar de não ter a mesma dimensão dos principais periódicos da imprensa negra, propiciou um canal privilegiado para Schuyler divulgar suas ideias e pautar o debate sobre a questão racial nos Estados Unidos. No momento em que a rede de intelectuais negros se estabelecia nos principais centros econômicos do território estadunidense, como no bairro do Harlem na cidade de Nova Iorque, Schuyler enveredou na discussão sobre a cultura afro-americana. A geração conhecida como Harlem Renaissance, através de escritores, pintores e escultores, propunha a construção de uma nova identidade negra, que estivesse alinhada com a experiências negras do pós-abolição e desconstruíssem as representações de negros como figuras boçais e subservientes (HUTCHINSON, 2007HUTCHINSON, George. The Cambridge companion to Harlem Renaissance. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.). Enquanto alguns intelectuais celebravam elementos específicos de uma cultura negra nos Estados Unidos, George Schuyler destacava o caráter estadunidense das experiências negras, reforçando o argumento de que os negros no país eram tão “americanos” quanto qualquer outro grupo de europeus que contribuiu para a constituição da nação. O intelectual não acreditava em uma cultura especificamente negra. Os negros eram mais “americanos” que grande parte da população branca que havia chegado em fluxos migratórios muito mais recentes (SCHUYLER, 2001SCHUYLER, George. “Negro-art Hokum”. In: LEAK, Jeffrey (ed.). Rac[e]ing to the right: selected essays of George S. Schuyler. Knoxville: University of Tennessee Press, 2001, pp 13-16.).

George Schuyler revelou ao longo de sua trajetória intelectual a preocupação com o racialismo da sociedade estadunidense. Em Black no More, obra em que estreou como romancista em 1931, Schuyler, de maneira satírica, retratou os problemas sociais dos Estados Unidos ao elaborar como personagem um cientista que criava uma máquina para transformar negros em brancos. A sua intenção com o romance, que o transformou em pioneiro da ficção científica entre os afro-americanos, era criticar os supremacistas brancos. Atacava também as organizações políticas negras, principalmente a Universal Negro Improvement Association de Marcus Garvey (1887-1840), líder jamaicano com grande influência nos bairros negros das cidades dos Estados Unidos, que flertava com ideia de “retorno” ao continente africano. Na trama explorou as reações dos dois polos dos enfrentamentos raciais - o negro e o branco - diante de uma invenção que desestabilizava as dinâmicas das relações raciais nos Estados Unidos. O questionamento das diferenças raciais de Schuyler, seja na literatura ou nos comentários políticos em coluna dos jornais, em um primeiro momento, tinha um caráter antirracista. Entretanto foi se transformando em um recurso importante contra o ativismo negro. Para ele, a organização política em torno de identidades raciais era uma alternativa de eficácia limitada para avanço social dos negros (SCHUYLER, 1989SCHUYLER, George. Black no more: being an account of the strange and wonderful workings of science in the land of the free, A.D. 1933-1940. Boston: Northeastern University Press, 1989.).

Contudo, a transição do intelectual para o conservadorismo, que se deu ao longo da década de 1930, teve um momento de inflexão no ano de 1931, quando nove adolescentes negros foram acusados de estuprar duas mulheres brancas em Scottboro, no Alabama. O Partido Comunista dos Estados Unidos ofereceu apoio legal aos réus, vencendo a competição com as organizações do movimento negro que tradicionalmente faziam a defesa de cidadãos negros envolvidos em casos de racismo. George Schuyler reclamou que o principal objetivo dos comunistas não era o de apoiar os adolescentes, envolvidos em uma prática comum no Sul do país de acusar homens negros de estuprarem mulheres brancas sem evidências, mas promover o partido entre os afro-americanos (SCHUYLER, 1966SCHUYLER, George. Black and Conservative: the autobiography of George Schuyler. New Rochelle: Arlington House Publishers, 1966., p. 189). Nesse período, o intelectual conservador começou a reproduzir a ideia de que a ideologia dos comunistas não fazia parte da cultura política estadunidense, restando o capitalismo como o sistema ideal para o desenvolvimento social e econômico das comunidades negras do país. O caso dos garotos de Scottboro, que mobilizou a militância e entrou para a história como uma referência de injustiça racial, provocou uma primeira reação de Schuyler que anos depois se transformou em um anticomunista convicto.

Nesse processo de mudanças, contudo, George Schuyler cumpriu um papel importante nos movimentos e agendas antirracistas, principalmente quando deixou o Messenger em 1926 e assumiu uma coluna do jornal Pittsburgh Courier, onde viveu o auge de sua carreira. O intelectual foi um dos responsáveis pela ascensão do periódico, que se tornou o mais importante na década de 1940. Dentre os trabalhos mais relevantes realizados para o jornal esteve a reportagem especial sobre as comunidades segregadas dos estados do Sul dos Estados Unidos, no qual relatou aos leitores do Courier as suas experiências com as relações tensas entre negros e brancos na região. Antes que o anticomunismo passasse a orientar definitivamente o seu discurso, Schuyler também participou da campanha pela integração das Forças Armadas durante a Segunda Guerra Mundial, momento em que o Pittsburgh Courier liderou a “Campanha do Duplo V”, que fazia referência à vitória dos Estados Unidos na guerra e a vitória interna que seria propiciada pelo fim da segregação entre os militares (RAWNS, Jr., 2013RAWNS Jr., James. The double V: how wars, protest, and Harry Truman desegregated America’s military. New York: Bloomsblury Press, 2013.). Em um primeiro instante, Schuyler hesitou em apoiar uma iniciativa que, na sua interpretação, estimularia negros a lutarem por um país que os privava de direitos internamente, mas depois percebeu que a força da campanha entre os afro-americanos poderia impulsionar um processo mais amplo de desarticulação da segregação nas instituições estadunidenses.

Na década de 1950, George Schuyler, enfim, deslocou-se definitivamente para o lado direito do espectro político estadunidense, se indispondo com as principais lideranças negras do campo progressista. O intelectual, mergulhado no clima de caça aos comunistas na década de 1950, apoiou de maneira entusiasmada o senador Joseph McCarthy e a sua investida contra quem considerava alinhado a Moscou. Apesar de apresentar uma política editorial moderada em relação a outros jornais da imprensa negra, o Pittsburgh Courier, que tinha outros intelectuais conservadores em seu quadro, removeu Schuyler do conselho editorial, em 1964, já que ele havia insistido na publicação de artigos contra as lideranças do Movimento pelos Direitos Civis, mesmo depois de advertido. A tensão chegou ao ápice quando Schuyler resolveu concorrer ao congresso pelo Partido Conservador em uma disputa contra o democrata Adam Clayton Powell Jr., vinculado ao Harlem e um dos ativistas mais importantes de Nova Iorque, no décimo oitavo distrito de Manhattan. Além disso, Schuyler, em participação em júri público, apoiou a decisão em favor de um policial branco que havia assassinado um homem negro que supostamente portava uma faca (WILLIAMS, 2007WILLIAMS, Oscar. George S. Schuyler: portrait of a black conservative. Knoxville: University of Tennessee Press, 2007., pp. 142-143).

Nesse período, como acompanhamos anteriormente, se configurava nos Estados Unidos o campo conservador que ganhou influência no Partido Republicano, impulsionado na década de 1960 pela campanha de Barry Goldwater à presidência (NASH, 2006NASH, George. The conservative intellectual movement in America since 1945. Wilmington, Delaware: Intercollegiate Studies Institute, 2006.). Nesse contexto, Schuyler começou a manifestar publicamente o seu apoio aos candidatos republicanos nas eleições, justificando a sua posição como negro conservador na imprensa. Os textos do intelectual publicados no Pittsburgh Courier começaram a rarear, até que a relação com o periódico chegasse ao fim em 1966. Enquanto se distanciava da imprensa negra, Schuyler passou a ser cortejado por editores conservadores, que elogiavam a sua escrita e suas posições com relação ao Movimento pelos Direitos Civis. O jornalista William Loeb, editor do Manchester Union Leader, divulgou o nome de Schuyler entre editores conservadores, contribuindo de maneira decisiva para a inserção do intelectual negro no campo conservador (WILLIAMS, 2007WILLIAMS, Oscar. George S. Schuyler: portrait of a black conservative. Knoxville: University of Tennessee Press, 2007., p. 145). Os editores do Pittsburgh Courier, inclusive, ao demitirem Schuyler, utilizaram como uma das alegações o fato de que os seus textos faziam muito mais sentido para os leitores brancos conservadores do que para os segmentos moderados do periódico negro.

Nesse sentido, a trajetória de Schuyler representou o movimento de conservadores negros da esfera pública afro-americana para a esfera conservadora de maioria branca. Se Booker T. Washington e seus seguidores, na virada do século XIX para o XX, foram capazes de propor agendas para os negros com uma perspectiva mais moderada ou conservadora, a partir de Schuyler o papel dos conservadores negros seria o de pautar a questão racial para o público conservador mais amplo, legitimando o discurso de que o avanço nas relações raciais estaria atrelado ao engajamento econômico dos negros como alternativa à luta pela igualdade de direitos. Nesta época, o intelectual passou a ser tratado pela maioria das lideranças negras como “um negro vendido” que legitimava os argumentos de racistas contra as ações do movimento negro na luta pela integração racial. Edward Franklin Frazier, famoso sociólogo negro, já na década de 1930, apontava a percepção de Schuyler como ridícula e sem conexão com a realidade dos afro-americanos (LEAK, p. xxxvi). Conforme ele se desgarrava do ativismo negro, foi reforçando a sua própria identidade política, o que o levou a escrever a autobiografia na qual construiu uma narrativa de formação da sua perspectiva de negro conservador nos Estado Unidos.

Contra os Direitos Civis: George Schuyler e o conservadorismo negro

Um dos temas mais explorados por George Schuyler em seus textos para os periódicos conservadores foi a ascensão do Movimento pelos Direitos Civis, apontando os equívocos das estratégias e das agendas que, segundo a sua perspectiva, nutriam ainda mais as tensões raciais. A institucionalização das organizações negras iniciou-se nas primeiras décadas do século XX, com agendas que tinham como objetivo desmantelar o conjunto de práticas racistas que sustentava as hierarquias raciais e as políticas segregacionistas do Sul. Na década de 1920, por exemplo, a pauta mais importante era a de combate aos linchamentos frequentes de cidadãos negros, articulando os ativistas em torno de uma lei antilinchamento. Entre os nomes de destaque, estava Ida B. Wells, jornalista e educadora que havia feito o primeiro grande estudo sobre linchamentos nos Estados Unidos, argumentando que essa prática era sistemática e fazia parte do repertório segregacionista nos estados do Sul (WALDREP, 2009WALDREP, Christopher. African Americans confronting lynching: strategies of resistance from Civil War to the Civil Rights era. New York: Rowman and Littlefield Publishers, 2009.). A estratégia da NAACP naquele momento foi a de dialogar com os congressistas republicanos para encaminhar o projeto de lei. Contudo, havia o temor de que uma iniciativa em benefício dos negros pudesse indispor o eleitorado conservador contra a medida. Apesar das conquistas dessa primeira geração do ativismo negro do pós-abolição, havia a grande dificuldade para a mobilização das classes populares e a rede da militância estava concentrada nas cidades do Norte do território estadunidense. A ascensão de um ativismo sulista mais combativo a partir de 1950 foi importante porque galvanizou as comunidades negras do Sul e deu um novo impulso ao ativismo negro em todas as regiões do país.

O boicote ao sistema de transporte da cidade de Montgomery, que projetou nacionalmente Martin Luther King Jr. (1929-1968), em 1953, se transformou em uma referência de ação política e influenciou várias organizações que se articulavam nos estados do Sul. King, em seus discursos, valorizava a ideia de ação pacífica e circulou por diferentes cidades para orientar ativistas locais. Por outro lado, havia nomes como Ella Baker que não atraiam os holofotes da grande imprensa, mas eram indispensáveis para a organização local. A atuação política de mulheres negras como Baker era mais antiga e vinha das igrejas. Eram ativistas e promotoras de ações que consolidaram o processo de capilarização do Movimento pelos Direitos Civis que lutava pelo direito ao voto, acesso às universidades e o fim da segregação dos espaços públicos (RANSBY, 2003RANSBY, Barbara. Ella Baker & the Black Freedom Movement. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 2003.). Lideranças como Baker e King conquistaram o apoio de brancos progressistas e a pressão do movimento ganhou cada vez mais força, levando o governo a aprovar leis que garantissem o acesso dos eleitores negros e minorias às urnas e desmantelassem as políticas de segregação que assolavam os estados do Sul desde o final do século XIX.

Por outro lado, no campo conservador, surgiu uma diversidade de leituras sobre a ascensão do ativismo negro dos Direitos Civis na década de 1950, impulsionada não somente por lideranças carismáticas negras, mas por avanços na Suprema Corte como a decisão do caso Brown vs Board em favor do fim da segregação nos espaços escolares. As primeiras análises, que eram publicadas em revistas conservadoras como a National Review, ainda trabalhavam com a ideia do espectro do comunismo que rondava diferentes organizações políticas e se consubstanciava em lutas pela igualdade de direitos. A construção de uma coletividade negra para iniciar a luta pelo fim da segregação das escolas era interpretada, por conservadores, como um primeiro passo de uma articulação que logo se transformaria em uma ameaça à propriedade privada (SOUSA, 2013SOUSA, Rodrigo Farias de. William Buckley Jr, National Review e a crítica conservadora ao liberalismo e os direitos civis nos EUA, 1955-1968. Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense, 2013., p. 269). Ou seja, a integração não era um fim, mas uma espécie de “cavalo de Tróia” para dar um novo fôlego aos comunistas dos Estados Unidos, que, segundo eles, almejavam construir uma ordem social baseada em uma igualdade constituída artificialmente. Outro ponto explorado pelos conservadores, era a possibilidade de o governo federal intervir nos estados do Sul para acabar com as políticas de segregação, subvertendo a relação de equilíbrio entre autoridades estaduais e federais, revelando um autoritarismo dos progressistas ao forçar a integração entre grupos raciais.

Enquanto um intelectual negro alinhado às pautas dos conservadores, George Schuyler manteve o seu discurso entre o elogio ao capitalismo estadunidense, demonstrando aos seus leitores que o engajamento no empreendedorismo poderia suprir as barreiras impostas pelas políticas segregacionistas, e a condenação do ativismo negro como agente promotor de um coletivismo baseado na “ficção da existência da raça”. Estes dois aspectos foram orientados por um anticomunismo que, como acompanhamos anteriormente, foi aflorando em suas reflexões ao longo do tempo.

A posição pró-capitalista de George Schuyler e as críticas ao Movimento Negro, se manifestaram de maneira clara, em 1961, em um debate moderado por Eric Goldman, historiador da Universidade de Princeton, que contou com a participação de Eric Lincoln, acadêmico especializado em religiões, Malcom X, radical representante da Nação do Islã e contrário ao ativismo pacifista de Martin Luther King, o romancista James Baldwin e o próprio Schuyler. A proposta era de discutir o livro de Lincoln sobre a Nação do Islã, entretanto os temas debatidos transcenderam a organização a qual Malcom X pertencia, tratando, sobretudo, de propostas para o progresso dos afro-americanos. O ascendente Malcom X defendeu a posição da Nação do Islã - em nome do nacionalismo negro, contra a integração à sociedade branca -, afirmando que não havia na sociedade a possibilidade de mobilidade social para os negros. Quer dizer, a emancipação só seria possível a partir da separação das raças, com os negros construindo um mundo dos e para os negros.

Os demais participantes exploraram diferentes pontos para manifestar o apoio às estratégias de integração, ainda que reconhecessem alguns aspectos interessantes na argumentação de Malcom X. Schuyler, por exemplo, apontou a importância que a Nação do Islã dava para formação de empreendedores, ainda que refutasse veementemente qualquer processo de racialização e de divisão da sociedade entre negros e brancos. A grande inciativa da Nação do Islã, para ele, era a de reabilitar negros, das lides da pobreza, da condição de rua, das cadeias através do avanço econômico. No que se refere a relação entre negros e brancos, no entanto, Schuyler refutou qualquer espécie de separação e, novamente, elogiou as oportunidades do capitalismo estadunidense ao afirmar que as condições dos afro-americanos eram melhores do que de qualquer outra população negra no mundo.

Tem duas coisas aqui que eu não concordo radicalmente. Uma é a de que todas as evidências corroboram a posição do movimento [negro] muçulmano, isso é uma justificava para a campanha de ódio contra os brancos. Agora, gostaria de dizer que esses 18 milhões negros que se encontram em situação adversa, que você [Malcolm X] tanto fala, são os mais saudáveis, os mais ricos, os que têm mais propriedades, os não brancos mais educados e os mais bem informados do mundo, incluindo os dos países islâmicos. Temos que deixar as coisas claras, está registrado, não há dúvida sobre isso. E a próxima questão: tem alguma coisa na Constituição ou alguma coisa que [Eric] Lincoln disse ou escreveu sobre um grupo ter o direito de dividir o território estadunidense? Eu achei que havia sido resolvida um século atrás [tradução do autor] (LEAK, 2001LEAK, Jeffrey. (org.). Rac[e]ing to the right: selected essays of George S. Schuyler. Knoxville: The University of Tennessee Press, 2001., pp. 73-93).

George Schuyler acreditava que o processo de abolição da escravidão nos Estados Unidos havia impulsionado a integração dos negros. O intelectual sempre condenou as práticas violentas do segregacionismo, entretanto acreditava, assim como Booker T. Washington, que em um longo prazo os negros poderiam alcançar o mesmo nível dos demais cidadãos estadunidenses. Em termos históricos, o grande problema do país havia sido a escravidão, mas a abolição e a aprovação de emendas constitucionais para garantir a cidadania dos libertos foram instrumentos importantes para uma cidadania de primeira classe para os negros. Segundo ele, o fim de um sistema escravista abalou as hierarquias raciais e a própria dinâmica do capitalismo cumpriu o papel de promover a ascensão econômica e social dos afro-americanos.

Em uma fala que fez em um congresso em Berlim, em 1950, e que depois foi divulgada na imprensa conservadora, Schuyler, para ressaltar o que considerava os aspectos positivos da experiência afro-americana nos Estados Unidos, comparou a União Soviética ao seu país, afirmando que a realidade da escravidão naquele momento estava muito mais próxima dos soviéticos do que dos estadunidenses. Schuyler citou inúmeros dados como taxa de alfabetização e acesso à propriedade privada entre negros para contrastar, com o que considerou como regime de trabalho escravo: o comunismo na União Soviética.

Durante os 225 anos de escravidão legalizada nos Estados Unidos, 10 milhões de africanos foram trazidos para as plantations do Hemisfério Ocidental. Como eles representavam valores econômicos para os seus senhores, todos os esforços foram feitos para preservação da saúde e da produtividade. Este fato deveria ser contrastado com o sistema escravocrata soviético que desde a década de 1930 tem entre 15 e 20 milhões vítimas de servidão em condições de selvageria, que devido aos maus-tratos morreram. Como não têm valor individual, esses desafortunados trabalham até a morte com uma falta de compaixão incalculável. Enquanto isso, o sistema escravocrata soviético tem se tornado essencial e sua economia cresce de maneira extensiva de ano em ano. A União Soviética, após 30 anos, tem o dobro de escravos dos que foram trazidos para todas as Américas durante 225 anos [...] (SCHUYLER, 2001SCHUYLER, George. “Negro-art Hokum”. In: LEAK, Jeffrey (ed.). Rac[e]ing to the right: selected essays of George S. Schuyler. Knoxville: University of Tennessee Press, 2001, pp 13-16., p. 61)

Como se vê, o raciocínio de George Schuyler era distorcido e aproximava dois universos e épocas incomparáveis. Na sua perspectiva, os dois países apresentavam movimentos opostos. Enquanto os Estados Unidos incorporavam a sua população negra à economia como cidadãos livres depois de anos de escravidão, a União Soviética tinha a sua economia fomentada a partir do trabalho escravo. Na palestra, Schuyler afirmava o seu anticomunismo ao identificar um sistema escravista soviético e ainda defendia a sua tese de que o capitalismo estadunidense apresentava um caráter inclusivo. O intelectual conservador chegou a comentar que a representação dos Estados Unidos enquanto inferno racial, por parte do Movimento Negro, por um lado, era um exagero. Por outro, “havia todo um esforço por parte de regimes totalitários, como o soviético, de retratar a decadência da democracia estadunidense”. Na sua opinião, havia muitos negros pobres, assim como brancos também, mas a situação dos trabalhadores negros e brancos dos Estados Unidos apresentava um padrão superior em relação a grande maioria dos trabalhadores de outros países. Nesse sentido, Schuyler acionava um princípio comum em discursos do conservadorismo negro que era o de reivindicar o lugar dos negros na “América”, enquanto parte orgânica de uma nação superior.

Ao contrário da propaganda de estados escravocratas totalitários, os negros americanos não somente têm liberdade para se deslocar, para rezar e trabalhar, como também para se expressar. Por exemplo, enquanto na Rússia há somente um jornal judeu, que é controlado pelo governo, a minoria negra nos Estados Unidos opera cerca de 200 jornais e vêm publicando periódico desde 1827. A maioria desses jornais é publicada nos estados do Sul “acometidos pelo terror”. Eles pertencem a indivíduos e têm uma tiragem semanal de cerca de 3 milhões de exemplares, as estruturas de impressão valem milhões de dólares. É praticamente a partir dos jornais e das organizações que eles divulgam que a população negra tem se articulado em uma força militante contra o racismo reacionário. Não há um simples caso de que jornais tenham sido atacados, no Sul ou Norte, ainda assim criticam impiedosamente a segregação racial. Obviamente esse ambiente existe somente em uma democracia (Ibidem, p. 65).

George Schuyler, portanto, apostava na ideia de que havia um processo de integração em curso, que se consolidaria em longo prazo. A estratégia de citar dados, mesmo fora de contexto, sobre a situação dos afro-americanos e compará-los com minorias em outros países foi fundamental para se contrapor às lideranças do Movimento pelos Direitos Civis que cotidianamente se engajavam em táticas de ocupação pacífica de espaços segregados. Para Schuyler, as ações dos militantes negros no Sul, eram equivocadas e ignoravam os avanços sociais das populações negras. O intelectual se alinhou aos demais conservadores ao condenar as intervenções do Estado sobre os costumes de negros e brancos viverem separadamente. As tentativas de condução da ordem poderiam ter efeitos contrários, comprometendo anos de mudanças culturais que proporcionavam gradualmente canais para a inclusão de afro-americanos. George Schuyler acreditava que nenhuma lei teria a capacidade de mudar a mentalidade da população branca do Sul de uma hora para outra.

Em um discurso feito em 1963, no momento em que se discutia uma lei que garantisse a igualdade de direitos para os negros, George Schuyler citou momentos na História dos Estados Unidos em que as intervenções do governo federal tiveram efeitos contrários ao pretendido. Schuyler comparou o período de ascensão do Movimento pelos Direitos Civis ao da Reconstrução, logo após a Guerra Civil, em que congressistas - conhecidos como republicanos radicais - haviam criado leis para a inclusão dos negros libertos (FORNER, 1988). Tais leis e inserção negra tiveram vida curta, já que logo a segregação racial tomou conta do Sul e atingiu também o Norte. O argumento de Schuyler era de que, tal qual o período dos republicanos radicais, uma lei dos Direitos Civis poderia aprofundar os embates raciais, fazendo com que os negros mais perdessem do que ganhassem. Ele se apoiava no fato de que a 14a Emenda da Constituição, elaborada quando da Reconstrução (1868), que tinha a função de garantir a cidadania dos negros, não fora respeitada pelos sulistas no período da Reconstrução no século XIX. Anos após a sua aprovação, havia se tornado letra morta em meio à criação de leis de segregação racial. Schuyler também fez referência à proibição do consumo de álcool - Lei Seca (Prohibition) - que, segundo ele, passou por cima de um movimento amplo de temperança que havia sido bem-sucedido em educar os cidadãos para evitar o consumo abusivo de bebidas alcoólicas. A proibição, segundo o intelectual, aumentou a criminalidade e desmantelou as ações da própria sociedade contra o alcoolismo. Portanto, a aprovação de uma lei não poderia ser tratada com esperança, mas com a expectativa de que as relações raciais, que apresentavam grandes avanços, poderiam retroceder:

Nós, portanto, necessitamos de uma lei federal punitiva para impor os direitos civis dos negros? A população estadunidense não avançou suficientemente para poder decidir em várias áreas o ritmo de aceitação dos negros? Todas as recentes pesquisas da nação demonstram que os brancos em geral concordam com igualdade na educação, na moradia, igualdade de deslocamento, de recreação e igualdade nas oportunidades de trabalho. Toda igreja importante se manifestou publicamente em favor de todos esses objetivos. Haverá bolsões de resistência, nem todos mudam no mesmo ritmo e grau. Mas qual é a razão para se supor que o ritmo de aceitação vai mudar com uma lei e através da imposição das forças armadas? (SCHUYLER, 2001SCHUYLER, George. “Negro-art Hokum”. In: LEAK, Jeffrey (ed.). Rac[e]ing to the right: selected essays of George S. Schuyler. Knoxville: University of Tennessee Press, 2001, pp 13-16., pp. 102-103)

A constatação de que a integração da população negra era uma questão de tempo levou George Schuyler a criticar as principais referências do ativismo negro nos Estados Unidos. Schuyler, no início de sua carreira, na década de 1920, apontou os limites das propostas mais radicais, como as de retorno ao continente africano, mas sempre esteve alinhado com a militância negra compromissada com as agendas integracionistas. Já nos anos 1950, quando a virada do autor para o campo conservador se consolidara, ainda que continuasse a reconhecer o problema do racismo nos Estados Unidos, passou a retratar a grande maioria das lideranças como “comunistas irresponsáveis” que levavam cidadão negros inocentes a encarar a violência policial e as hordas supremacistas das comunidades sulistas. Quer-se dizer que, embora conservador, Schuyler criticava os excessos do racismo no Sul do país.

Na década de 1960, o ativista mais importante da militância negra era Martin Luther King Jr., que, desde o boicote de Montgomery, em 1956, liderou ativistas em ações que terminaram em embates físicos e prisões. Para George Schuyler, King representava um enorme perigo para o progresso da população negra, pois suas táticas poderiam fazer com que setores da população branca que apoiavam a igualdade de direitos pudessem mudar de ideia e interromper o longo processo histórico de integração que havia se iniciado com o fim da escravidão. A preocupação de Schuyler estava menos na condição insustentável dos negros e mais em como os brancos receberiam as demandas dos Direitos Civis.

Desde o começo da chamada Revolução Negra e das atitudes insanas que começaram com ela, eu tenho manifestado a mesma posição editorialmente e na minha coluna durante anos. Eu tenho me colocado contra todas as marchas sobre Washington e outras manifestações, considerando-as como técnicas comunistas de agitação, infiltração e subversão. Isso é indicado pelo fato de que, invariavelmente, são propostas, incitadas, organizadas e lideradas por agitadores coletivistas profissionais, cujo único interesse é explorar o trabalhador.

Eu tenho constantemente advertido os negros por quarenta anos que a miséria deles não poderia ser aliviada de maneira alguma a partir da ação em multidão, provocações inconvenientes e desobediência civil. A ostentação de armas sem munição acompanhada por insultos, maldições e denúncias dos brancos, genericamente e especificamente, é quase fútil e simplesmente cria o que os negros não podem enfrentar: mais inimigos (SCHUYLER, 1966SCHUYLER, George. Black and Conservative: the autobiography of George Schuyler. New Rochelle: Arlington House Publishers, 1966., p. 341).

Schuyler, nesse sentido, se juntava a outros nomes como o temido conservador J. Edgar Hoover, chefe do FBI que iniciou uma perseguição sistemática a King (GARROW, 2015GARROW, David Jeffries. The FBI and the Martin Luther King, Jr: from Solo to Memphis. New York: Open Road Media, 2015.). O ataque de Schuyler, conservadores e reacionários sobre Martin Luther King era uma ofensiva sobre uma liderança que incorporava os valores que orientavam o Movimento pelos Direitos Civis. Isso quer dizer que King recebeu oposição de vários descontentes do espectro político. Entre os negros, a oposição vinha dos nacionalistas negros, como Malcolm X e membros da Nação do islã, e dos conservadores negros. Em 1964, quando King foi premiado com o Nobel por sua luta contra a desigualdade racial, George Schuyler fez uma crítica feroz à sua atuação como liderança do movimento. Para Schuyler, King era apenas mais um numa linhagem de fraudes que havia ganhado o Prêmio Nobel. O prêmio não agraciara somente King, mas membros do Partido Comunista, como Bayard Rustin - naquele momento já membro da NAACP - que haviam idealizado as estratégias do Movimento pelos Direitos Civis. Para o conservador, a principal contribuição de King para a paz mundial havia sido o ferimento e o encarceramento de negros por enfrentarem brancos, além de quebrar financeiramente comunidades negras que eram prosperas economicamente.

[...] Possivelmente o único mérito dele [Martim Luther King] foi o de liderar o boicote de Montgomery, mas a vitória foi alcançada devido ao ridicularizado legalismo da NAACP que deu um fim à segregação nos transportes em todos os lugares através da atuação na corte federal.

Depois que esse programa não violento terminou em lojas com vidros quebrados e destruição de bens, o doutor reverendo suspendeu o protesto, assim como outra liderança havia feito. Ele foi um dos responsáveis por celebrações do verão em Mississipi que não terminaram pacificamente, mas com prisões, incêndio e assassinatos. Em vez de melhorar, essas táticas desordenadas pioraram as relações raciais. Alfred Bernard Nobel, provavelmente, vai se revirar em seu túmulo no dia 10 de dezembro, quando Dr. King receberá o troféu e o dinheiro (SCHUYLER, 2001SCHUYLER, George. “Negro-art Hokum”. In: LEAK, Jeffrey (ed.). Rac[e]ing to the right: selected essays of George S. Schuyler. Knoxville: University of Tennessee Press, 2001, pp 13-16., p. 105).

George Schuyler, em seus escritos, oscilava entre duas interpretações sobre a relações raciais no Estados Unidos muitas vezes contraditórias. Na primeira, e que foi comum até a década de 1950 entre os acadêmicos, era a de que a sociedade estadunidense, assim como as demais, passava por um processo de modernização. Nesse sentido, a escravidão e a criação de hierarquias raciais eram fenômenos do passado e que não tinham espaço em uma sociedade na qual prevaleciam as relações capitalistas modernas. O fim da escravidão, portanto, apontava um curso evolucionista que impulsionava conciliação entre negros e brancos, indicando que em um longo prazo a ideia de raça poderia perder a sua força nas relações sociais. Se na história dos Estados Unidos alguns grupos de imigrantes, como irlandeses e judeus, haviam vivenciado práticas sistemáticas de discriminação baseadas na “ficção da raça”, e posteriormente passaram a ser assimilados, o mesmo aconteceria com os negros, era apenas uma questão de tempo. A partir desta perspectiva, Schuyler reproduzia a lógica de Booker T. Washington, como vimos, liderança negra que prezava pela moderação. O intelectual conservador negro, portanto, condenava Martin Luther King por ignorar um processo que já estava em curso.

Entretanto, em algumas palestras e textos, em uma frequência menor, George Schuyler expressou a segunda interpretação que previa a noção de castas raciais. Neste caso, a casta foi frequentemente utilizada para comparar a hierarquia racial estadunidense com outras hierarquias que ele considerava como referências de violência entre castas que ele considerava como certas na Índia, África do Sul e União Soviética. Nessa outra perspectiva, Schuyler reconhecia que existiam dinâmicas de relações raciais construídas no pós-abolição que não desapareceriam num longo prazo. Em texto, publicado em 1967, o intelectual procurou demonstrar como a noção de castas raciais estava presente desde a formação da nação estadunidense, cuja transformação se dava de acordo com as circunstâncias. Quando utilizou o termo casta racial em falas e textos, a estratégia era a de afirmar que a hierarquia racial que se constituíra nos Estados Unidos era menos hostil aos negros, do que para grupos nos países citados, propiciando aberturas para que se desenvolvessem social e economicamente (SCHUYLER, 2001SCHUYLER, George. “Negro-art Hokum”. In: LEAK, Jeffrey (ed.). Rac[e]ing to the right: selected essays of George S. Schuyler. Knoxville: University of Tennessee Press, 2001, pp 13-16., pp. 109-120). A partir desta perspectiva, Schuyler criticava o ativismo negro por insistir em agendas negras que estimulavam a persistência das castas raciais, cuja mudança estava em curso, reforçando argumento de que os ativistas negros ignoravam as possibilidades da articulação de organizações políticas inter-raciais.

Ou seja, para George Schuyler, o Movimento pelos Direitos Civis, através de suas principais lideranças, contribuía mais para reforçar a hierarquia racial do que destruí-la. Não é preciso dizer que o assassinato de Martin Luther King Jr., em 1968, serviu para o conservador bater na mesma tecla. O intelectual reforçou a sua tese de que a luta dos ativistas negros aumentava a violência e afastava setores da população branca que em algum momento demonstraram simpatia com a possibilidade da igualdade direitos entre negros e brancos. Para ele, King havia contribuído para a sua morte ao se entregar ao seu impulso demagógico e participar de um protesto que deveria ter sido liderado por sindicalistas, já que a intenção do ativista era a de apoiar o movimento de trabalhadores do setor sanitário na ocasião da sua morte. Se não tivesse se deslocado para Memphis, poderia estar vivo. Mais uma vez, o intelectual retratou King como uma liderança teimosa e incapaz de fazer cálculos políticos para proteger os seus seguidores da violência. Schuyler retomou a carreira do ativista procurando demonstrar como as intervenções nas comunidades do Sul, e ativistas como King, na verdade, cometeram uma frequência de erros a partir de métodos equivocados. Vejamos o que diz Schuyler sobre dois significativos distúrbios no ano de 1968 Birmingham e Saint Augustinne:

Devido à teimosia de Dr. King ou dedicação extrema, os distúrbios em Birmingham [Alabama] eram inevitáveis. Advertido por líderes responsáveis para não visitar a cidade, já que eles tinham condições de administrar a situação, ele e seu grupo foram do mesmo jeito. A persistência aliada ao clima de tumulto entre negros e brancos provocou os eventos deploráveis que se seguiram.

Do mesmo jeito, os problemas causados em Saint Augustinne na Flórida, foram provocados deliberadamente, e ninguém sabe o que se ganhou com isso. Com certeza houve uma grande repercussão nos jornais, rádio e televisão, houve ameaças e prisões, mas ninguém sabe como isso ajudou nas relações raciais, exceto para criar mais um palco para os discursos de King (SCHUYLER, 2001SCHUYLER, George. “Negro-art Hokum”. In: LEAK, Jeffrey (ed.). Rac[e]ing to the right: selected essays of George S. Schuyler. Knoxville: University of Tennessee Press, 2001, pp 13-16., pp 129-131).

No momento em que selecionou Martin Luther King como o seu antagonista, George Schuyler já não era mais uma voz relevante entre os afro-americanos como fora na década de 1940. A tese de que o ativismo negro era um dos movimentos políticos que mais comprometiam a possibilidade de um compromisso entre negros e brancos nos Estados Unidos, neste momento, tinha repercussão somente no campo conservador. O espaço encontrado entre conservadores interessados em uma perspectiva diferente sobre a ascensão do Movimento pelos Direitos Civis foi uma iniciativa pioneira que posteriormente, como já observamos, foi reproduzida em um projeto amplo da agenda de Ronald Reagan para incorporar segmentos da população negra ao campo conservador.

As interpretações de George Schuyler que ressaltavam o possível fim da importância da raça ou o “racialismo maléfico” do ativismo negro, que estavam alinhadas com os discursos conservadores da época, foram importantes para estruturar as narrativas de um pós-racialismo nos Estados Unidos. A partir do momento em que foram aprovadas a Lei do Direitos Civis e a Lei do Voto, os conservadores, à medida em que o tempo passava, apostaram no argumento de que a sociedade estadunidense caminhava para uma ordem pós-racial na qual a raça não teria mais nenhum significado, o que desmobilizaria o ativismo dos negros nos Estados Unidos. Nesse sentido, Schuyler foi fundamental para pautar os temas que seriam explorados pela geração de conservadores negros que ascenderam na década de 1980 com o reaganismo (WALTON Jr., 2002WALTON JR, Hanes. “Remaking African American public opinion: the role and function of the African American conservatives”. In: TATE, Gayle T; RANDOLPH, Lewis A (Org.). Dimensions of Black Conservatism in United States. New York: Palgrave, 2002.). Esta geração fez uma crítica sistemática às agendas do ativismo negro, alegando o fim da era das raças e propondo a engajamento dos afro-americanos com os verdadeiros “valores americanos”.

Considerações Finais

A trajetória de George Schuyler é fundamental para a compreensão das experiências e propostas políticas dos negros conservadores na sociedade estadunidense. Ainda que não sejam celebrados como nomes progressistas como William DuBois e Martin Luther King Jr. ou radicais como Marcus Garvey e Malcom X, tiveram importância no debate sobre a questão racial nos Estados Unidos. A partir da agenda de moderação de Booker T. Washington, enquanto uma reação ao segregacionismo no Sul do país, as propostas de constituição de um empreendedorismo negro e de engajamento em um processo gradual de integração tiveram grande circulação entre os afro-americanos na primeira metade do século XX. No momento em que Schuyler fazia a sua transição do campo progressista para o conservador, ele incorporou esses temas históricos para criticar a geração do Movimento pelos Direitos Civis que emergia na década de 1950.

O intelectual conservador cumpriu um papel importante no ativismo negro, principalmente no debate sobre o fim da segregação das forças armadas, entretanto o entusiasmo com a articulação do campo conservador a partir da década de 1950 acabou determinando a sua trajetória como um intelectual que se considerava o pioneiro do conservadorismo negro. A preocupação com a ideia de raça, segundo ele, reproduzida pelos negros e a convicção de que as dinâmicas do capitalismo estadunidense ofereciam possibilidades para a prosperidade da população negra reforçaram a sua crença de que o Movimento pelos Direitos Civis era um agente prejudicial para as relações raciais. Schuyler construiu as suas interpretações a partir de um quadro político marcado pela caça aos comunistas promovida por Joseph McCarthy, o que levou o intelectual conservador a enquadrar grande parte do ativismo como elemento subversivo da ordem social e política. A obsessão com a figura de Martin Luther King Jr. consolidou o seu afastamento do universo negro e, consequentemente, a aproximação dos conservadores que consideravam o engajamento de uma das lideranças mais importantes do Movimento pelos Direitos Civis apenas um furor demagógico.

  • Coordenação do Dossiê Direitas nos Estados Unidos e Brasil durante a Guerra Fria
    Mary Anne Junqueira e Marcos Napolitano
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    Artigo não publicado em plataforma de preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo.

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Editado por

Editores Responsáveis
Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2020
  • Aceito
    11 Ago 2020
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