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“O HOMEM, EM TODA PARTE, É A RIQUEZA DA NAÇÃO”: O DISCURSO EUGÊNICO NA SOCIEDADE DE MEDICINA DE PORTO ALEGRE NAS DÉCADAS DE 1920 E 19301 1 Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo. A documentação analisada encontra-se disponível no Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul e pode ser acessada através do site da instituição: http://www.muhm.org.br/

“MAN, EVERYWHERE, IS THE WEALTH OF THE NATION”: THE EUGENIC DISCOURSE IN THE PORTO ALEGRE MEDICAL SOCIETY IN THE 1920S AND 1930S

Resumo

A Eugenia, desde seu desenvolvimento como teoria científica por Francis Galton, teve grande difusão por diversos países durante a primeira metade do século XX. Advinda de um período de intensa discussão sobre hereditariedade, influência do meio ambiente e degeneração, a Eugenia assumiu diferentes referenciais na composição de suas propostas, resultando em um corpo teórico bastante heterogêneo e multifacetado. Esse artigo tem por objetivo analisar a difusão do ideário eugênico nos discursos da Sociedade de Medicina de Porto Alegre. Tendo como objeto de estudo o periódico da instituição, o Archivos Rio Grandenses de Medicina, buscamos entender como a ciência eugênica moldou a visão de determinados médicos não só sobre doenças venéreas e patologias infectocontagiosas, mas também sobre temas como reprodução, maternidade, primeira infância, vícios e mortalidade.

Palavras-chave
Eugenia; medicina; doenças; venenos raciais; nação

Abstract

Eugenics, since its development as a scientific theory by Francis Galton, had widespread in several countries during the first half of the 20th century. Coming from a period of intense discussion about heredity, influence of the environment and degeneration, Eugenics assumed different references in the composition of its proposals, resulting in a very heterogeneous and multifaceted theoretical set. This paper aim is to analyze the diffusion of eugenic ideas in the speeches of the Sociedade de Medicina de Porto Alegre. Having as object of study the institution’s journal, Archivos Rio Grandenses de Medicina, we seek to understand how eugenic science shaped the view of certain physicians not only on the subjects like venereal diseases and infectious-contagious pathologies, but also on topics such as reproduction, motherhood, early childhood, addictions and mortality.

Keywords
Eugenics; medicine; diseases; racial poisons; nation

Introdução

A Eugenia, ciência criada e assim nomeada por Francis Galton em 1883, tinha por objetivo utilizar os princípios da hereditariedade e dados estatísticos como forma de identificar os fatores que poderiam elevar ou prejudicar a qualidade da humanidade. Conforme seu próprio nome indicava, também estabelecia parâmetros para uma “boa reprodução”, ao incentivar a união entre pessoas saudáveis e portadoras de características superiores, fossem elas físicas, psicológicas ou intelectuais, ao mesmo tempo que desencorajava e tentava impedir a propagação de indivíduos de constituição e intelecto inferior e/ou portadores de morbidades.

O termo teve grande aceitação e difusão, especialmente nas primeiras décadas do século XX, atraindo uma gama de adeptos nos mais variados países. Sociedades eugênicas foram criadas nas mais diversas partes do globo, seguidas pela fundação de Ligas internacionais e mundiais, destinadas a discutir o assunto. Através dessas instituições e do suporte fornecido por disciplinas como antropologia, psiquiatria, biologia, genética, estatística, medicina – entre outras – a ciência eugênica encontrou apoio e legitimidade cada vez maiores. A Eugenia, assim, tornou-se uma linguagem compartilhada mundialmente, ainda que, na maioria das vezes, houvesse diferenças com relação aos meios para que tal ideal fosse atingido.

Ainda que a Eugenia tenha focado em alguns problemas em escala global, como os movimentos migratórios, ou buscado formar uma rede internacional de eugenistas, como a International Federation of Eugenic Organizations e a Federação Latina Internacional de Sociedades Eugênicas, o foco central de ação sempre foi, primeiramente, a nação. O ideal de nação saudável foi uma constante nos discursos eugênicos, conforme argumenta Turda, sobrepondo-se à ideia de uma melhoria da população mundial como um todo. Assim, seu centro de ação sempre esteve voltado para a modernização e para o progresso do que se entendia como “raça nacional” (TURDA, 2013TURDA, Marius (Ed.). Crafting Humans: From Genesis to Eugenics and Beyond. Göttingen: V&R unipress, 2013.; TURDA, GILLETTE, 2014TURDA, Marius; GILLETTE, Aaron. Latin Eugenics in Comparative Perspective. London: Bloomsbury Academic, 2014.).

Esse foco voltado para a nação já aparecia nos trabalhos de Galton, e em alguns de seus escritos a palavra eugenics vinha acompanhada do adjetivo national. Karl Pearson, no editorial do periódico Annals of Eugenics, criado por ele em 1925, explicava que Galton havia utilizado o termo “nacional” antes de eugenia porque este havia “conceived that the nation, not the family nor the individual, was the proper unit for study” (PEARSON apud TURDA, 2013TURDA, Marius (Ed.). Crafting Humans: From Genesis to Eugenics and Beyond. Göttingen: V&R unipress, 2013.). Tal perspectiva foi adotada pelo discípulo de Galton, em sua obra The Academic Aspect of the Science of National Eugenics, publicada em 1911. Conforme Pearson,

Every nation has in certain sense its own study of eugenics, and what is true of one nation is not necessarily true of the second. The ranges of thought and of habit are so diverse among nations that what might be at once or in a short time under the social control of one nation, would be practically impossible to control in a second. Eugenics must from this aspect be essentially national, and eugenics as a practical policy will vary widely according as you deal with Frenchmen or Japanese, with Englishmen or Jews (PEARSON, 1911, p. 4PEARSON, Karl. The Academic Aspect of the Science of National Eugenics. London: Dulau, 1911.).

Assim como Galton e Pearson, a maioria dos eugenistas utilizava a nação como categoria analítica dominante dentro dos discursos políticos e culturais que visavam a melhoria da raça humana. As especificidades nacionais eram utilizadas principalmente na caracterização e na identificação de traços mentais e psicológicos inerentes às populações nativas desses territórios. A ideia de classificar os grupos humanos que vivem em determinado país ou região como raça, no entanto, não foi exclusividade dos eugenistas, embora tenha sido largamente utilizada por eles como unidade de análise. Conforme apontam Appelbaum et all, a atribuição de determinados traços, fossem eles biológicos ou culturais, a comunidades nacionais eram comuns no final do século XIX e início do XX. Referências à “raza chilena”, “raza mexicana”, “raça francesa”, “raça inglesa”, “raça germânica” eram correntes não só na linguagem científica, mas também nos discursos intelectuais e políticos de formação destas próprias nações (APPELBAUM et all, 2003, p. 14APPELBAUM, Nancy et all. Race & Nation in Modern Latin America. Chapel Hill: University of North Carolina Press, 2003.).

Foi durante o período entreguerras que os programas de eugenia nacional alcançaram o ápice de seu desenvolvimento. Foi a partir daí que tanto a nação quanto o Estado passaram a ser o foco das ações e projetos idealizados pelos defensores da Eugenia. O Estado era, assim, concebido como responsável pela criação e administração das instituições voltadas para a saúde e qualidade da população, enquanto a nação era vista e avaliada como sendo uma entidade biológica adaptável e flexível. Sendo assim, encontrava-se sujeita não apenas à desintegração e extinção devido à influência de fatores degenerativos, mas também era capaz de melhorar e progredir através da aplicação de medidas e leis eugênicas. Outra importante consequência desse período, cujo impacto ressoou dentro das concepções eugênicas foi a transformação das relações entre esfera pública e privada. De acordo com Turda, a linha entre esses dois espaços passou a ficar cada vez menos nítida, devido à ideia de responsabilidade pública perante a pátria. Como resultado, foi possível combinar e mesclar noções de bem-estar coletivo e de responsabilidade individual relativos à nação (TURDA, 2013, p. 113TURDA, Marius (Ed.). Crafting Humans: From Genesis to Eugenics and Beyond. Göttingen: V&R unipress, 2013.).

Foi sob essa justificativa de sacrifícios em prol da saúde da população que se impuseram amplos programas de intervenção visando a nação como um todo, através da sujeição dos corpos à gestão política, seja para o seu aprimoramento, seja para a sua supressão ou até mesmo aniquilamento. Para isso, a eugenia fez uma ampla utilização da medicina e de outras ciências – tal qual a antropometria, a estatística, genética, entre outras – como forma de afastar o perigo da degeneração e manter a nação saudável. Na visão dos eugenistas, a utilização e aplicação de tais conhecimentos afastariam as sociedades modernas do atraso e da barbárie. Afinal, investir na população era investir na nação, e se a primeira estivesse fisicamente e mentalmente doente, a segunda estaria sujeita ao mesmo processo de decadência e degeneração sofrida pelos indivíduos que ali viviam. Isso acontecia porque, no final do século XIX, as nações eram frequentemente retratadas como organismos vivos, cujo funcionamento obedecia às leis biológicas e carregando consigo virtudes e qualidades simbolizadas pelas características inatas de seus integrantes, que eram transmitidas de geração para geração.

Com a emergência de novas áreas, como a genética – que passa a reforçar a uma ideia de hereditariedade de determinados traços humanos, ou mesmo a possibilidade de se traçar a “pureza” de alguns povos através da análise do tipo sanguíneo – no início do século XX, passa-se cada vez mais a se emergir uma identidade nacional construída em torno de fatores biológicos. A própria determinação de cidadania passa a obedecer a essa regra. A partir daí, aqueles indivíduos ou raças que representassem um perigo biológico ao corpo nacional deveriam ser identificados, combatidos e eliminados. A erradicação de potenciais “ameaças” ao futuro da nação era vista como um passo necessário não só para fortalecer a “raça” nacional, mas também era vista como um meio de proporcionar a sua regeneração.

O medo da degeneração social e biológica também era frequentemente visto como uma ameaça à perspectiva de progresso nacional. O porvir passa a ser, assim, objeto de ansiedades e inseguranças entre intelectuais, cientistas e artistas de inúmeros países. Por isso, muitos desses agentes passaram a incentivar e colaborar proativamente movimentos em prol de mudanças radicais e projetos que tivessem por objetivo a transformação não só da realidade social em que viviam, mas também dos sistemas políticos em voga na época (GRIFFIN, 2007, p. 62GRIFFIN, Roger. Modernism and Fascism: The Sense of a Beginning under Mussolini and Hitler. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2007.).

Como forma de corroborar suas hipóteses acerca do declínio e da deterioração da nação, uma série de dados e números passaram a ser apresentados. Assim, questões como aumento das taxas de criminalidade nas áreas urbanas, imigração descontrolada, dissolução das estruturas familiares tradicionais, condições precárias e insalubres de vida nas quais a maioria da população vivia, medidas e projetos de medicina e higiene social insuficientes e ineficazes, declínio da taxa de nascimentos, principalmente entre as classes altas, disseminação de doenças contagiosas e moléstias venéreas, alcoolismo, vagabundagem, aumento de comportamentos imorais e desvios sexuais, passaram a ser utilizados como indicativos de que a qualidade da população estava decaindo (TURDA e GILLETTE, 2014TURDA, Marius; GILLETTE, Aaron. Latin Eugenics in Comparative Perspective. London: Bloomsbury Academic, 2014.).

A eugenia passou, nesse contexto, a apresentar-se como uma alternativa viável para solucionar tais problemas. Primeiro porque esta era capaz de oferecer uma resposta em termos científicos, e, portanto, mais rápidos e previsíveis do que o desenrolar natural e lento operado pela natureza. Segundo porque ela possibilitava aos seres humanos intervirem diretamente, quebrando a incerteza quanto ao futuro da raça nacional.

A Sociedade de Medicina de Porto Alegre e sua importância como objeto de estudo

Durante o período republicano, desenvolveu-se no Brasil um intenso debate relacionado à nossa identidade enquanto povo e enquanto nação. Movidos por preocupações comuns, os intelectuais brasileiros ponderaram sobre a situação de atraso em que o Brasil se encontrava perante as sociedades mais prósperas, e buscaram identificar quais seriam os entraves que impediam o progresso do país.

A ideia de que havia uma hierarquia entre as diferentes nações foi motivo de acirrado debate durante os séculos XIX e XX. Tais explicações, fossem elas baseadas em critérios de inferioridade/superioridade cultural, na dicotomia civilização/barbárie ou mesmo em teorias que colocavam a culpa dessa diferença na influência do clima ou na formação racial das populações nacionais, contribuíram para solidificar a noção de que os seres humanos podiam ser classificados de forma qualitativa e desigual, e que essa diferença podia se refletir no estágio de desenvolvimento e no grau de modernidade e progresso alcançado pela nação da qual esses indivíduos faziam parte.

A Eugenia se desenvolveu como uma parte intrínseca de tal ethos científico, cujas discussões marcaram o final do século XIX e o início do XX. Seus defensores tinham como meta a formulação uma doxologia de desenvolvimento racial capaz de englobar a humanidade como um todo. Ao mesmo tempo que tinham como fim a melhoria da espécie humana em sua totalidade, os eugenistas, por outro lado, foram capazes de conciliar tais ideias em concomitância com teorias que visavam, primeiramente, evolução de suas próprias nações, de forma a guiá-las à um futuro novo e promissor.

Por ser uma ciência que, desde sua origem, buscou extrapolar o simples debate teórico e se tornar uma disciplina com aplicação prática e capaz de intervir em questões sociais, econômicas e políticas, foi necessário que seus idealizadores pudessem ser capazes de transformar o debate eugênico em matéria de interesse público. Tendo isso em vista, os eugenistas, passaram a ver a si mesmos, segundo Turda, como “not merely as scientists in the narrow sense, but as champions of a new form of intellectual and cultural activity that sought to find a balance between scholarly detachment and political activism” (TURDA, 2010, p. 19TURDA, Marius. Modernism and Eugenics. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2010.).

Sendo assim, é possível explicar por que os eugenistas não só no Brasil, como em outros países, não restringiram seus debates apenas às sociedades e conferências dedicadas exclusivamente ao assunto. Também ajuda a compreender por que pessoas que não faziam parte de tais círculos aderiram ao discurso eugênico, devido aos esforços de seus apoiadores em fazer de tal tópico uma questão de interesse comum.

Tal ideia é fundamental para expandir os estudos da Eugenia para além de determinados espaços específicos – no caso do Brasil, a Sociedade Eugênica e a Liga Brasileira de Higiene Mental – e buscar sua influência em lugares ou mesmo em autores que não eram membros de tais instituições. Somente assim é possível mapear o alcance que a ciência galtoniana ocupou entre os círculos intelectuais brasileiros e a aderência destes ao ideal eugênico.

A Sociedade de Medicina de Porto Alegre e seu periódico, o Archivos Rio-Grandenses de Medicina oferecem uma perspectiva interessante nesse sentido. Fundada em 17 de maio de 1908 por médicos ligados à Faculdade de Medicina de Porto Alegre e Irmandade e Hospital Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, essa entidade tinha por objetivo a realização e discussão de estudos clínicos. Em 1920, passou a publicar uma revista destinada à divulgação de pesquisas, discussões e saberes relacionados à área médica, bem como relatórios das demais atividades realizadas pela Sociedade.

Nas páginas dos Archivos Rio-grandenses de Medicina, é possível perceber a influência que as teorias eugênicas exerceram dentro da área médica, e como ela moldou a visão de determinados profissionais sobre temas relacionados à maternidade, primeira infância, mortalidade infantil, doenças venéreas, substâncias psicoativas, criminalidade, entre outros. Havia uma clara preocupação não só com a manutenção da qualidade do “capital humano” da nação, mas também com sua quantidade, dado que no Rio Grande do Sul algumas cidades apresentavam taxas negativas de crescimento populacional. A ideia de que certas moléstias eram causadoras de “cargas sociais” – conceito muito utilizado dentro da Eugenia para designar pessoas que, devido a alguma enfermidade, fosse ela herdada, congênita, resultado de vícios ou infecciosa, oneravam a sociedade como um todo, pois além de não serem membros produtivos, ainda dependiam de auxílios estatais ou da caridade alheia – também permeia vários dos textos publicados. Até mesmo questões como a necessidade de aplicação de exames pré-nupciais com fins eugênicos foram postos em discussão, dada a preocupação dos membros da Sociedade não só com doenças hereditárias, mas com patologias congênitas, como heredossífilis, ou mesmo cegueira ou surdez em recém-nascidos causados por mães portadoras de moléstias venéreas.

Embora muitas vezes partissem de problemas percebidos durante sua prática clínica, ou mesmo que eram mais prevalentes no Rio Grande do Sul, havia um senso de que tais males impactavam a nação como um todo, e que saná-los levaria o país ao tão sonhado progresso.

A noção de que a doença e a degeneração da população era a causa do atraso em que o país se encontrava é uma constante não só em textos diretamente relacionados à questão eugênica, mas também em assuntos relacionados à saúde pública. Para certos membros da Sociedade, elevar os atributos físicos e mentais do povo por meio da medicina era o mesmo que elevar o patamar de civilização e de riqueza nacionais. Isso porque, para eles, somente pessoa hígidas e eugênicas eram capazes de produzir conhecimento, cultura e bens materiais, necessários para o enriquecimento da nação. Indivíduos doentes e disgênicos, eram vistos não só como incapazes de tornarem-se trabalhadores prolíficos, mas também como intelectualmente produtivos, pois acreditavam que, junto com o corpo, deteriorava-se também sua capacidade criativa e de aprendizado.

Obviamente, a Sociedade não atuou descolada dos grupos de eugenistas que atuavam em São Paulo e no Rio de Janeiro. Belisário Penna, por exemplo, era membro honorário da Sociedade de Medicina do Rio Grande do Sul, e Raimundo Gonçalves Vianna, além de ser o presidente da seção regional da Liga Brasileira de Higiene Mental no Rio Grande do Sul – a Liga Rio-Grandense de Higiene Mental – também teve um texto publicado no Boletim de Eugenia, editado por Renato Kehl.

Dado que o objetivo da Sociedade de Medicina de Porto Alegre era a promoção de debates e estudos médicos variados, a eugenia era apenas um dos muitos temas explorados nas reuniões e no periódico da instituição. Nas páginas dos Archivos, é possível encontrar um número bastante diversificado de tópicos, que iam desde casos clínicos, novas técnicas cirúrgicas, até anedotas e curiosidades. Em vista desses outros assuntos serem muito mais predominantes que os relacionados à ciência galtoniana, não é possível caracterizar a SMPA como sendo um espaço destinado à promoção ou mesmo à divulgação de temas relacionados a Eugenia, tal qual a Sociedade Eugênica de São Paulo ou mesmo a Liga Brasileira de Higiene Mental. Isso torna os Archivos de Rio-Grandenses de Medicina um termômetro interessante para demonstrar a penetração do ideário eugênico no imaginário médico e nas escolas de medicina do início do século XX, uma vez que uma parte importante dos membros da Sociedade também eram professores da Faculdade.

A Sociedade de Medicina de Porto Alegre: estrutura, membros e organização

Fundada em 17 de maio de 1908, essa entidade de caráter científico visava à produção de estudos clínicos nas mais diversas áreas da Medicina. De acordo com seus dirigentes, tinha por fim tratar dos interesses da “classe médica sob os pontos de vista científico, moral e profissional”. As reuniões eram realizadas semanalmente, “tendo concorrência não muito grande em relação com o número de sócios efetivos atuais”, problema que, segundo publicado no primeiro número de sua revista, era corrente em outras agremiações congêneres nacionais e estrangeiras. Apesar disso, apontavam, era relativamente grande em número as comunicações recebidas, “e em grande maioria despertam muito interesse” (ARCHIVOS, 1920, ano I, n. 1, p. 41).

A participação dos professores da instituição de ensino superior na agremiação científica sempre foi constante. É possível perceber que os artigos publicados por docentes da Faculdade no periódico da Sociedade constituem larga maioria. Os formandos que aspiravam a cargos na instituição de ensino também demonstrariam interesse em participar da associação, de forma que buscavam apresentar trabalhos e enviavam seus textos para figurarem entre as páginas dos Archivos. (VIEIRA, 2009, p. 39VIEIRA, Felipe de Almeida. “Fazer a classe”: identidade, representação e memória na luta do sindicato médico do Rio Grande do Sul pela regulamentação profissional (1931-1943). Porto Alegre: UFRGS, 2009. 261f. Dissertação de mestrado em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2009.).

Em seus primeiros anos, a associação encontrou dificuldades para se manter ativa. Funcionou com regularidade até dezembro de 1910, época em que entrou em férias por tempo indeterminado. Suas reuniões só seriam retomadas no final de 1912.

Em 1920, a Sociedade resolve produzir um periódico próprio, intitulado Archivos Rio-grandenses de Medicina, que tinha por objetivo discutir temas médicos, bem como a divulgação de congressos e das atividades da instituição. Sua publicação foi bastante irregular, especialmente nos dois primeiros anos. Em 1924, sua produção foi interrompida, retornando somente no segundo semestre de 1926.

Nos primeiros volumes, houve uma intensa rotatividade de docentes da Faculdade de Medicina no conselho editorial. A partir de 1926, a direção da revista passa a ser ocupada apenas por uma pessoa: o professor Argymiro Chaves Galvão.

Na primeira edição após sua posse, o médico definia quais os objetivos a serem alcançados pelo “Órgão Oficial da Sociedade de Medicina de Porto Alegre”:

Os “Archivos Rio Grandenses de Medicina” surgem amparados na nossa dedicação e máxime na força representada pela intelectualidade médica Rio Grandense.

As páginas da nossa Revista irradiarão de Porto Alegre para o interior do Estado, para todo o Brasil, para o estrangeiro, todo o estudo, toda a série de pesquisas científicas, todas as preciosas investigações que diariamente se fazem no contato com o doente, ou no convívio dos laboratórios e que, em via de regra, ficam guardadas nas atas da nossa Sociedade de Medicina.

Para a publicação dos trabalhos científicos apresentados à nossa Sociedade, para a publicação das discussões ali travadas, precisamos de um jornal médico onde as questões estudadas e discutidas escapem ao sabor dos leigos (ARCHIVOS, 1926, ano V, n. 1, p. 2-3).

No segundo semestre de 1930, o Archivos passaria por um processo de reformulação. Além do novo formato, seria incorporado ao seu conteúdo a publicação dos trabalhos da Diretoria de Higiene do Estado. Essa mudança levaria o periódico a adotar um novo nome: O Archivo Médico. De acordo com Galvão, apesar dessas transformações, a revista continuaria sendo órgão oficial da Sociedade.

Esse período marca uma aproximação entre médicos e o governo estadual, em oposição a relação conflituosa mantida entre os profissionais e a administração anterior, encabeçada por Borges de Medeiros, que havia retirado a exigência de diploma para aqueles que desejavam praticar Medicina. Segundo aponta Beatriz Weber, esse relacionamento passou a tomar novas orientações com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1928 (WEBER, 2003). O novo governo se comprometeu a promover uma campanha pública de educação sanitária, designando Belisário Penna como diretor geral da Saúde Pública. A escolha foi saudada pelos membros da Sociedade, dado o reconhecimento que Penna havia angariado em sua atuação na promoção de campanhas de higiene e saneamento, bem como sua defesa pela criação de um departamento nacional de saúde pública. Uma sessão solene foi organizada em sua homenagem, e o título de sócio honorário lhe foi conferido.

Na nova configuração, os textos do Archivo Médico ficariam divididos em quatro sessões, cada um com seus respectivos responsáveis: 1) Memórias originais, comunicações e escritas, dirigida por Martim Gomes; 2) Discussões e relatos orais na Sociedade de Medicina, sob responsabilidade de Guerra Blessmann; 3) Medicina Social, higiene, eugenia, educação e psicologia médica, contando com os médicos Mário Totta, Raul Moreira, Fernando Freitas de Castro; 4) Síntese da literatura internacional do dia, análises, correspondência, liderada por Argymiro Galvão.

Há novamente uma interrupção na circulação dos Archivos no mês de novembro de 1930, voltando somente em agosto de 1931. Segundo o novo secretário da redação e integrante da Diretoria de Higiene, Leônidas Soares Machado, “a heróica arrancada de Outubro de 1930 e as férias de fim de ano”, somados ao afastamento do professor Argymiro Galvão, “que durante vários anos foi a alma dos Archivos”, perturbaram imensamente a vida da revista (ARCHIVOS, 1931, ano X, n. 1, p. 1). Por proposta de Machado, o periódico voltaria a utilizar o seu antigo nome, isto é, Archivos Rio-Grandenses de Medicina.

As discussões sobre importância da aplicação de princípios da higiene e da eugenia tem uma presença significativa nos Archivos durante o seu período de publicação, que vai de 1920 a 1942. Dividiremos o artigo em três seções, que correspondem aos temas que aparecem com mais frequência nas discussões relacionadas à ciência eugênica. O primeiro diz respeito aos “venenos raciais” – alcoolismo, doenças venéreas, lepra, tuberculose e toxicomanias e à importância de se melhorar a constituição da população nacional, a fim de que esta pudesse trabalhar e produzir riquezas para o país. Logo após, apresentamos as discussões sobre puericultura, proteção à maternidade e educação higiênica, cujo objetivo era controlar a alarmante mortalidade infantil no Estado. Por último, estão as propostas de exames pré-nupciais, que estabeleciam inspeção prévia dos nubentes de forma a constatar doenças degenerativas, impedindo o matrimônio entre seus portadores.

Os venenos raciais e a degeneração da raça

Uma das preocupações que marcaram o discurso médico do início do século XX foi a constituição física e mental da população nacional, cujas razões poderiam ser estéticas – ligadas à beleza da população –, relacionadas a questões de saúde ou mesmo da produtividade do trabalhador brasileiro. Os motivos eram os mais diversos. A má alimentação e as parasitoses, por exemplo, eram tidas como responsáveis pela indolência, falta de ânimo e pela constituição débil daqueles que delas sofriam (LIMA; HOCHMAN, 1996LIMA, Nísia Trindade; HOCHMAN, Gilberto. Condenado pela raça, absolvido pela medicina. O Brasil descoberto pelo movimento sanitarista da Primeira República. In: MAIO, Marcos Chor (Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. FIOCRUZ, 1996, p. 23-40.). Doenças como tuberculose, lepra e sífilis, cujas altas taxas de contágio faziam com que o Brasil fosse visto no exterior como, conforme expressão utilizada por médico americano, uma “sociedade de pessoas doentes” (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 71), eram descritas como fatores de degeneração, dado o seu alto potencial de causar danos muitas vezes irreversíveis em seus portadores.

Essa apreensão com o vigor e a higidez da população era impulsionada pela grande disseminação de enfermidades contagiosas, moléstias venéreas e infecções parasitárias no território brasileiro nesse período. A inexistência de ações de combate e prevenção a nível federal para lidar com esses males fazia com que fosse cada vez mais difícil controlar o crescente número de contaminados e óbitos3 3 É importante destacar, no entanto, que essa ausência de ações federais de combate e profilaxia de algumas doenças é referente ao período anterior a década de 1930, época em que é criado o Ministério da Educação e Saúde. Apesar de haver, após esse período, um avanço na ofensiva contra várias doenças, especialmente no caso da Lepra, Bertolli Filho aponta que casos como o da tuberculose continuaram a receber pouca atenção das autoridades, apesar da “peste branca” ser bastante disseminada no período varguista. BERTOLLI FILHO, Claudio. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001. Sobre o combate a lepra, ver: CABRAL, Dilma. Lepra, medicina e políticas de saúde no Brasil (1894-1934). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Filantropia, poder público e combate à lepra (1920-1945). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, supl. 1, dez. 2011, p. 253-274. . O retrato da nação como um “grande hospital”, delineado por Miguel Pereira, tinha como objetivo denunciar essa situação de descaso e o abandono por parte da administração central, especialmente com os habitantes do interior. Pereira, assim como os integrantes do recém-formado movimento higienista, passou a atribuir às epidemias e patologias a causa do atraso nacional.

No Brasil, a eugenia emerge em meio a essas discussões sobre doença e saúde pública. Ambiente sanitário, salubridade e higidez passam a ser fatores considerados importantes para a qualidade racial do povo. Ao procurar, por meio de medidas sanitárias, educação higiênica e da aplicação de políticas eugênicas, controlar os fatores de degeneração que atingiam os indivíduos, seus planos de melhoria contemplavam tanto as gerações atuais como as futuras (TURDA; GILLETTE, 2014, p. 12TURDA, Marius; GILLETTE, Aaron. Latin Eugenics in Comparative Perspective. London: Bloomsbury Academic, 2014.).

Essa eugenia com foco na prevenção recebeu, de acordo com Stepan, as mais variadas denominações: “eugenia preventiva”, “eugenia social”, “eugenia e medicina social”, “higiene eugênica” (STEPAN, 2005, p. 92STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005.). Marcada, em sua maioria, por uma interpretação neolamarckista4 4 De acordo com Meloni, qualquer teoria que enfatizasse a influência do ambiente e a adaptação direta dos indivíduos ao seu meio, ou que desse aos “fatores reais a precedência sobre a predeterminação”, foi historicamente identificada como lamarckismo (ainda que tais concepções tenham precedido a teoria de Lamarck) ou, após 1880, neolamarckismo (MELONI, 2016, p. 2). dos mecanismos de adaptação e hereditariedade, essa linha teve bastante expressão em países da América Latina, bem como em Portugal, Espanha, Bélgica, França, Itália e Romênia (STEPAN, 2005STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005.; TURDA; GILLETTE, 2014TURDA, Marius; GILLETTE, Aaron. Latin Eugenics in Comparative Perspective. London: Bloomsbury Academic, 2014.), embora não tenha se limitado a eles. De acordo com Turda, Bacur e Chung, é possível observar uma tendência similar em países do Leste Europeu (TURDA, 2014TURDA, Marius. Eugenics and Nation in Early 20th Century Hungary. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014.; BACUR, 2010BACUR, Maria. Eugenics. Eugenics in Eastern Europe, 1870s-1945. In: BASHFORD, Alison; LEVINE, Phillipa (Org.). The Oxford Handbook of the History of Eugenics. New York: Oxford University Press, 2010, p. 398-412.) e até mesmo na China (CHUNG, 2010CHUNG, Yuehtsen Juliette. Eugenics in China and Hong Kong: Nationalism and Colonialism, 1890s-1940s. In: BASHFORD, Alison; LEVINE, Phillipa (Org.). The Oxford Handbook of the History of Eugenics. New York: Oxford University Press, 2010, p. 258-274.).

É importante destacar, no entanto, que esse tipo de interpretação não esteve ausente em outros países. Meloni, por exemplo, destaca que “until 1915, no clear division between heredity and environment was evident in American eugenics. Only later did hard heredity marginalize soft eugenics approaches” (MELONI, 2016, p. 76MELONI, Maurizio. Political Biology - Science and Social Values in Human Heredity from Eugenics to Epigenetics. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2016.). Na Grã-Bretanha, Caleb Williams Saleeby pode ser citado como um dos eugenistas que seguia esse tipo de abordagem. O programa de higiene racial norueguês, idealizado por Alfred Mjøen também englobava a chamada “higiene racial profilática”, que tinha entre seus objetivos o combate aos “racial poisons, (especially syphilis), narcotic poisons, (especially alcohol)”, a prevenção de “racial national diseases as a function of the state”, bem como a emissão de certificados de saúde antes do casamento (PHILIPTSCHENKO, 1928, p. 296PHILIPTSCHENKO, Iurii Aleksandrovich. The Norwegian eugenic programme (Discussed at meetings of the eugenic society of Leningrad). In: The Eugenics Review. London, vol. 19, n.4, 1928, p. 294–298.). Recentemente, Weidling procurou demonstrar que a sobreposição entre concepções de eugenia, prevenção e combate de doenças também esteve presente na Alemanha, tendo como foco os chamados “venenos raciais” (álcool, tuberculose, doenças venéreas) e as “deficiências mentais” e “feeble-mindedness” (WEINDLING, 2018, p. 5WEINDLING, Paul. Conceptualising Eugenics and Racial Hygiene as Public Health Theory and Practice. In: Kananen, Johannes; Bergenheim, Sophy; Wessel, Merle (Eds.). Conceptualising Public Health: Historical and Contemporary Struggles over Key Concepts. Abingdon: Routledge, 2018.).

Essa preocupação com a prevenção de doenças perpassa, portanto, projetos bastante variados, especialmente as denominadas como “venenos raciais”. Mas qual a razão dessa intensa preocupação e o motivo de serem classificados dessa maneira?

Englobando desde alcoolismo, consumo de nicotina, morfina e outras substâncias psicoativas, até patologias como lepra, tuberculose, sífilis e outras moléstias sexualmente transmissíveis, esses males eram comumente apontados por eugenistas como fatores de aniquilamento e degeneração, dado o seu potencial de degradação, corrupção e inferiorização biológica. Isso porque sua ação não se limitava somente ao indivíduo doente. Sem o devido cuidado, elas poderiam atingir povoados e até mesmo nações inteiras e, caso houvesse a possibilidade de transmissão congênita ou hereditária, nem mesmo os descendentes seriam poupados (STEPAN, 2005 p. 92STEPAN, Nancy Leys. A hora da eugenia: raça, gênero e nação na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2005.).

Nos Archivos, a questão dos “venenos raciais” esteve na pauta de debates, ainda que sob outras denominações, como “venenos sociais” ou “flagelos”. Diferente das discussões que giraram em torno da implementação de medidas sanitárias que, ao vislumbrarem a possibilidade de erradicação de verminoses e de enfermidades como malária e febre amarela, possuíam um tom otimista, a questão dos “venenos raciais” era abordada sob uma perspectiva bastante negativa e pessimista. Isso porque, diferente do primeiro caso, em que a cura era uma possibilidade viável, doenças como tuberculose e lepra não possuíam tratamentos eficazes, e a sífilis, embora contasse com algumas opções, ainda se tratava de remédios muitas vezes tóxicos e de efeito mais profilático que terapêutico (CARRARA, 1996, p. 34CARRARA, Sérgio. Tributo a vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1996.). Além disso, a extensão da degeneração causada por esses males era vista como sendo mais ampla, não só por afetar corpo e mente, mas também por seu caráter permanente, irreversível, progressivo e, em alguns casos, hereditário. Não havia, portanto, espaço para recuperação nem esperanças de regeneração.

O discurso de Ulysses de Nonohay, em sua aula inaugural na disciplina de Dermatologia e Sifiligrafia na Faculdade de Medicina de Porto Alegre é um bom exemplo não só de como a questão dos “venenos raciais” era abordada, mas também de um prognóstico mais duro e pessimista sobre o efeito das enfermidades.

O médico explicava que os “flagelos” possuíam uma forma de atuação bastante distinta das doenças transmitidas por parasitas animais ou pelos problemas causados pela alimentação inadequada. Para ele, os efeitos desses dois últimos grupos de enfermidades se assemelhavam a um ciclone: apesar causarem devastação, possuíam caráter passageiro.

Já aquelas que recebiam a denominação de “flagelos”, argumentava Nonohay, atuavam de forma diferente. Eram altamente contagiosas, crônicas, possuíam duração ilimitada e, muitas vezes, eram transmitidas de pais para filhos. Por isso, podiam “com razão receber o nome de doenças das raças...”. Isso porque, para o médico, elas não se limitavam a afetar apenas o indivíduo, tendo um impacto mais profundo, dado que causavam danos ainda mais graves para a família e para a espécie. Ao invés de um ciclone que devasta e passa, dizia, são “a morte lenta, a invalidez, a miséria, a degeneração, as criadoras das malditas cargas sociais” (ARCHIVOS, 1922, ano III, n. 4, p. 77).

Essa ideia de “carga social” a que Nonohay se refere é bastante recorrente dentro do discurso eugênico. Partia-se da ideia de que certas moléstias tornavam o indivíduo permanentemente incapacitado, impossibilitando-o de levar uma vida produtiva. Inaptos para o trabalho, eram obrigados a contar com a caridade de seus familiares e com o auxílio do Estado, sobrecarregando a sociedade e consumindo valiosos recursos que, segundo os eugenistas seriam mais bem investidos em outras áreas. De acordo com ele:

[...] só a Lepra, a Blenorragia e a Sífilis são aptas a reduzir a imenso a capacidade de trabalho da nossa raça. A Lepra, de que há talvez no Brasil mais de 100.000 doentes, é uma infecção tão grave que foi considerada uma praga do Céu. [...] Se aquele número é real, senão menor que o real, são 100.000 brasileiros inutilizados para o trabalho, são 100.000 brasileiros verdadeiras cargas sociais, são 100.000 mendigos que tem de subir o seu calvário, à custa da caridade pública ou da caridade da Nação. São também 100.000 focos de contágio e, portanto, quem poderá imaginar qual seria a progressão do Mal, se o Governo não iniciasse a sua profilaxia?

Na sua marcha fatal para a morte, durante anos, ela é foco de contágio. E enquanto pela úlcera, pela gangrena, pela cárie, destrói as partes moles; fratura ossos, é a própria decomposição orgânica em vida a sua propagação se faz rapidamente, mercê de um sem número de intermediários.

Por outro lado, produzindo a esterilidade ou quiçá se transmitindo por hereditariedade, basta um leproso para que se tenha extinta uma família (ARCHIVOS, 1922, ano III, n. 4, p. 77).

Os portadores de doenças eram tratados, assim, como “potencialmente perigosos”. Não só por carregarem o “signo da degeneração” entre seus descendentes, mas também pelo risco de transmissão e contaminação de pessoas saudáveis. O dermatologista sugeria que, em casos como o da lepra e da tuberculose, fosse feito o registro e a internação dos enfermos em instituições que os separassem da comunidade em que viviam, de forma a monitorar o avanço dessas patologias e quebrar o ciclo de contágio. Essa recomendação estava de acordo com as recomendações do período para o combate dessas moléstias, uma vez que, apesar de conhecidos seus agentes etiológicos, ainda não havia tratamentos ou curas eficazes disponíveis. No caso da lepra, havia ainda uma incógnita sobre a forma como se daria a sua transmissão. Alguns locais, como a cidade do Rio de Janeiro, a notificação compulsória e o isolamento no caso dessas duas moléstias estavam previstos por lei desde 1904 (CABRAL, 2013CABRAL, Dilma. Lepra, medicina e políticas de saúde no Brasil (1894-1934). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013.).

As doenças venéreas eram apontadas pelos médicos dos Archivos como responsáveis por inúmeros problemas. A blenorragia, ou gonorreia, por exemplo, era apontada como um dos fatores principais da esterilidade humana e criadora “por excelência” dos “cegos ditos de nascença” (ARCHIVOS, 1922, ano III, n. 4, p. 288).

A sífilis, por sua vez, era uma das mais visadas na cruzada ao combate aos males venéreos no Rio Grande do Sul. Em relatório apresentado pela Diretoria do Estado no ano de 1922, ela aparece descrita como uma “moléstia terrível que não termina juntamente com o indivíduo, mas extermina-lhe a geração”. Por exercer um efeito permanente sobre as populações, sugeriam que fossem implementadas ações de contínuas de combate (ARCHIVOS, 1922, ano III, n. 11, p. 77-78).

Mas o risco de contágio não era a única preocupação. Ulysses de Nonohay se dizia convicto de que os danos causados pela moléstia venérea eram responsáveis, em grande parte, pela “anarquia moderna”, causadora de revoluções, morticínios e miséria. Segundo ele, a doença, quando não atacava diretamente o sistema nervoso, abalava sua fisiologia de forma indireta, produzindo gerações de psicastênicos. Estes enfermos, em sua maioria, impunham sua “mentalidade diferente, o seu pessimismo, as suas excitações ou depressões” ao conjunto da sociedade. Assim, via o apelo a metafísica, a “crise de ideias” e a “crises de caráter” como manifestação dessa psicastenia coletiva, originada pela lues, associada ou tendo como causa predisponente o alcoolismo.

Para Nonohay, os perigos da sífilis eram múltiplos. Não só ela deformava a constituição psíquica dos enfermos, criando os “idiotas, os imbecis e os loucos”, mas também era responsável por degradar a condição física, formando assim os “monstros e os aleijados”.

Somado a isso, dizia, a lues era o maior fator de mortalidade infantil, de loucura, de mendicidade e possivelmente de crime, “todas as cargas sociais que se desregram o equilíbrio econômico nacional” (ARCHIVOS, 1929, ano VIII, n. 8, p. 14), dada a sua capacidade de anular as faculdades cerebrais humanas. Ao predispor seus portadores a todos as outras moléstias e transformá-los em indivíduos astênicos, abúlicos e incapazes de perseguirem uma carreira fecunda e produtiva, reduzia assim a capacidade de trabalho e a geração de riquezas, a ação da sífilis pesava “fortemente no obituário”, sombreando “todo o nosso futuro de Nação” (ARCHIVOS, 1929, ano VIII, n. 8, p. 14).

Assim como as doenças venéreas, a tuberculose também era apontada como um “veneno racial”. Ambos os males tinham em comum serem resultado de uma conduta irresponsável e falta de probidade moral daqueles que os adquiriam durante a vida adulta:

É que as condições de vida criadas pela civilização conduziram a humanidade a uma série de erros, de preconceitos, que as afastaram das normas da vida sã, e por isso hoje o homem não morre, mata-se, cava por suas próprias mãos a cova onde se há de enterrar. Duma humanidade que leva uma vida de vício, de gradação e de miséria, outra coisa não podemos esperar mais do que uma descendência de raquíticos, de tarados, de farrapos humanos inúteis para a vida e para o progresso (ARCHIVOS, 1934, ano XIII, n. 2, p. 82).

Para Carlos Bento, professor e chefe da Clínica de Propedêutica Médica da faculdade de Medicina de Porto Alegre, a tuberculose, sendo um mal social, clamava uma solução que dependesse não só da terapêutica médica, mas também de uma terapêutica social, pois a doença e a miséria, figuraria entre os “dois grandes fatores da destruição da raça”. Por esse motivo, sua profilaxia era alvo de forte atenção em nações preocupadas com a “evolução da espécie e o aperfeiçoamento da raça” (ARCHIVOS, 1934, ano XIII, n. 2, p. 82).

As cifras de mortalidade em razão da “peste branca” eram elevadas, conforme estatísticas apresentadas pelos médicos especialistas Clemente Ferreira, Plácido Barbosa e Antônio Ferrari. Quatro em cada mil habitantes sucumbiam no Brasil, o que resultava em uma cifra mortuária de 120.000 para os presumíveis 30.000.000 da população da época. De acordo com Bertolli Filho, a moléstia causada pelo bacilo de Koch era uma das enfermidades que mais cobrava vidas na nação brasileira. Apesar disso, pouco se fez em termos de profilaxia e de ações direcionadas ao tratamento da doença. Mesmo na década de 1940, a tuberculose continuava sendo considerada a “ameaça número um do país”. (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 70-71BERTOLLI FILHO, Claudio. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.). “É um grande capital que se perde”, lamentava Carlos Bento.

A mortalidade em razão de patologias venéreas e infectocontagiosas, como a sífilis, a lepra e a tuberculose, era bastante elevada, sendo essas as principais causas de óbito da população no Rio Grande do Sul. Essa tendência não diferia do restante do Brasil, onde essas enfermidades ocuparam o topo da lista de causa mortis durante primeira metade do século XX. Por esse motivo, multiplicavam-se metáforas como “grande hospital” e “sick man’s society” para designar a multiplicidade de males que assolavam o país e ceifavam incontáveis vidas. A falta de políticas amplas de combate e profilaxia eram vistas como um atestado não só de atraso, mas também de uma certa aversão a própria modernidade (BERTOLLI FILHO, 2001, p. 70BERTOLLI FILHO, Claudio. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.).

No caso do Rio Grande do Sul, essa situação, combinada a uma alta mortalidade infantil, fez com que certas cidades, como Rio Grande e Pelotas, acabassem tendo taxas de crescimento vegetativo negativo. Em função dos elevados índices de mortalidade, a fórmula doença + degeneração biológica = incapacidade para o trabalho = elevado custo social era repetida exaustivamente por políticos e médicos, onde prejuízo econômico provocado por tal situação era bastante enfatizado. Isso porque a morte e a debilidade resultantes das enfermidades eram responsáveis, de acordo com os médicos da Sociedade de Medicina, tanto pela escassez quanto pelo enfraquecimento da mão-de-obra jovem do país que deixava de produzir riquezas em razão da falta de vigor físico (CADAVIZ e ABRÃO, 2010, p. 275-276CADAVIZ, Aline Kassick; ABRÃO, Janete Silveira. Pela ordem e progresso da Nação: teoria da degenerescência, estigma e políticas higienistas em uma abordagem sobre a tuberculose e a sífilis. In: GUILHERMANO, Luiz Gustavo et al (Orgs.). Páginas da História da Medicina. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 275-276.). Assim trabalhador doente tornava-se inválido precocemente, e ao invés de contribuir, transformava-se em um fardo para a sociedade.

O consumo de substâncias psicoativas como o álcool, ópio e a cocaína também estavam entre a lista dos chamados “venenos raciais”. A utilização de psicoativos fora da orientação médica era relacionada, nos textos analisados, a uma série de hábitos considerados degenerativos. O uso de tais substâncias era, por exemplo, descrito como um fator de estímulo à atividade criminal em indivíduos predispostos. Nos dois primeiros números dos Archivos, o psiquiatra e professor de Clínica Psiquiátrica Luis Guedes escreveu na sessão de Psiquiatria forense sobre a “Questão médico-legal do alcoolismo”. Em seus textos, ele relata casos. O primeiro, é o do guarda civil identificado como J. B., acusado de facilitar a fuga de um dos presos por estar embriagado. De acordo com Guedes, apesar de o paciente não apresentar nenhum aspecto de que o denunciasse como doente ou defeituoso, “apenas um ou outro estigma degenerativo”, a “baixa condição social” e um “nível moral inferior” faziam com que se estregasse, por vezes, “ao uso imoderado do álcool e, sob ação deste, pode aniquilar-se-lhe a vontade e a energia e obscurecerem-se-lhe as outras faculdades”. Por isso, concluía que nesse caso, a substância teria sido utilizada para encorajar a atividade criminosa. Tal explicação, argumentava o psiquiatra, não deveria ser utilizada a fim de atenuar a culpa cometida. Bem pelo contrário. Para ele, seria razoável onerar-se a penalidade para que, “ao menos, servisse de incentivo a uma luta sem tréguas, ao uso do nefasto tóxico, tão grandemente prejudicial em suas múltiplas consequências” (ARCHIVOS, 1920, ano I, n. 1, p. 32-33).

No segundo caso apresentado pelo médico, o álcool teria atuado como “fator de evidente responsabilidade”, devido a sua atuação como ativador de predisposições congênitas existentes no indivíduo anteriormente ao crime. Em situações como essa, concluía Guedes, “o tóxico então, muito embora utilizados em doses razoáveis, vem agravar e não raro enormemente, essa constituição psicopata” (ARCHIVOS, 1920, ano I, n. 2, p. 66).

O médico Argymiro Galvão também incluía o álcool e as outras “toxicomanias” na lista dos fatores que contribuíam para a “derrocada do homem moral, físico e intelectual”. Para ele, o uso generalizado dessas substâncias seria um dos “magnos problemas da nossa nacionalidade, da nossa raça”, de forma que os médicos não poderiam se silenciar sobre essa questão, sob pena de trair sua “verdadeira função”. A ação não deveria, portanto, ficar restrita à ação da polícia, pois esta não teria capacidade de intervir diretamente sobre o viciado. Seria preciso combinar a ação médica com a do poder público, de forma a organizar serviços aos “intoxicados”. Somente dessa forma poder-se-ia “salvar inúmeros infelizes já a beira da miséria orgânica, da morte moral, ou na marcha acelerada, em caminho do termo final da vida” (ARCHIVOS, 1926, ano V, n. 2, p. 44).

Quando o decreto n. 4089 de 13 de junho de 1928, que passou a regular o comércio de “substâncias tóxicas”, foi publicado, Argymiro Galvão escreveu um editorial nos Archivos, elogiando o governo estadual pela decisão, dado se tratar de uma reivindicação de longa data dos médicos da Sociedade de Medicina, lembrando também que seus membros haviam se manifestado várias vezes nas páginas do periódico com relação a sua necessidade.

No volume seguinte, Galvão faria um segundo texto, intitulado Toxicomanias, onde analisava o efeito do que classificou como “quatro principais espectros” – cocaína, morfina, éter e álcool – sobre a “família e por consequência sobre a sociedade”.

De acordo com o médico, essas substâncias afetavam profundamente o indivíduo, debilitando seu organismo e produzindo “taras” (defeitos) mentais. Além disso, o uso dos tóxicos faria com que o interesse – “grande móvel da atividade humana” – fosse atingido, resultando no desaparecimento de sua atividade construtora, criadora e realizadora. Assim, além das energias físicas e morais dos usuários, aniquilava-se também o patrimônio intelectual da humanidade. Por esse motivo, considerava tais substâncias como os “quatro obreiros da destruição orgânica” (ARCHIVOS, 1928, ano XVII, n. 6, p. 11-12).

Mas esse “espetáculo Dantesco” não se encerrava aí, dizia Galvão. Para ele, os efeitos provocados por esses “venenos” não se limitavam ao usuário, produzindo consequências igualmente desastrosas nas famílias e no restante da sociedade. O vício, ao quebrar o “equilíbrio moral” dos usuários, anulava o “conceito do dever com o social”, iniciando assim a ruína do núcleo familiar. Essa destruição teria repercussões na nação como um todo, “visto ser a família o alicerce sobre o qual ergue-se alteroso o edifício social”.

O médico recomendava que o Estado, utilizando como guia os preceitos da higiene moderna, deveria exercer “tutelar intervenção” e “eficiente proteção da coletividade social”, pois sobre o futuro da nacionalidade pesava “o mais negro prognóstico (ARCHIVOS, 1928, ano XVII, n. 6, p. 12). Para ele, embora a técnica e o conhecimento científicos pudessem contribuir para o progresso das nações e a realização moral, intelectual e física do homem pudesse ser alcançada por meio da aplicação dos princípios da Medicina Social, a ausência de políticas públicas adequadas faria com que esse quadro continuasse a piorar, e o Rio Grande do Sul passaria a assistir à “derrocada moral de sua nobreza”.

Na opinião de Argymiro Galvão, outro problema que precisava ser solucionado era a questão da regulamentação da profissão médica no Estado. Segundo o médico, as questões colocadas pela Medicina Social só encontrariam resolução quando “o homem de estudos e o ignorante” não gozassem dos mesmos direitos no exercício da medicina e a ciência não fossem mais “tripudiada pelos analfabetos, especuladores, ladrões da boa-fé dos crédulos” (ARCHIVOS, 1928, ano XVII, n. 6, p. 14).

Como pudemos ver, os “venenos raciais” eram compreendidos como um conjunto de doenças cuja ação repercutia de forma ampla, comprometendo a saúde não só dos indivíduos, mas também a qualidade biológica da “raça” brasileira. As moléstias venéreas, a lepra, a tuberculose e os vícios (ou toxicomanias), devido aos seus potenciais de deterioração não só da constituição física, mas também das faculdades mentais e morais dos indivíduos, aumentava a mortalidade entre adultos e recém-nascidos e incapacitava seus portadores, impedindo-os de se tornarem membros úteis e produtivos para a nação. Transformavam-se, por isso, “cargas sociais”, pois incapazes de trabalhar e dependentes da caridade alheia, oneravam o Estado e consumindo valiosos recursos. Por isso, dizia Nonohay, esses “elementos de despopulação, de produção insuficiente e má, de depressão de riquezas” (NONOHAY, 1922, p. 77), esses “flagelos”, criadores das “malditas cargas sociais”, eram responsáveis pelo desregramento do equilíbrio econômico nacional” (NONOHAY, 1929, p. 14).

A ideia de “carga social” aparece interligada, portanto, a noção de “venenos raciais”. Essas enfermidades provocavam um estado de degeneração e invalidez tão profunda, que seus efeitos eram irreversíveis. Por não haver a possibilidade de tratamento, muito menos de cura, somados ao risco de contágio, esses sujeitos eram vistos como incapazes de serem regenerados e reintegrados à sociedade. Por isso, acabavam se transformando em fardos, tanto para a família, quanto para a nação.

Para os médicos da Sociedade, os efeitos desse conjunto de males não reverberavam apenas entre as gerações atuais. A probabilidade de certas doenças de causarem problemas congênitos, como o caso da cegueira causada por sífilis, bem como de transmissão hereditária fazia com que os “venenos” representassem uma ameaça também para as gerações vindouras. Assim, comprometiam tanto o presente quanto o futuro do país e de sua “raça”.

As possibilidades limitadas de tratamento e a ausência de terapias capazes de erradicar essas patologias fazia com que as únicas ações viáveis, na compreensão dos médicos da Sociedade, fossem voltadas para a prevenção, profilaxia, vigilância e isolamento. Daí o tom dos discursos em torno dos “venenos raciais” e os prognósticos serem muitas vezes bastante pessimistas. Para esses profissionais, a doença era a marca do atraso, e sendo o Brasil um “grande hospital”, a tarefa requeria urgência pois, ao evitar a propagação dessas enfermidades, acreditavam estar também promovendo a reabilitação da pátria.

“De pequenino é que se torce o pepino”: cuidados com a infância, maternidade e educação eugênica

Um dos objetivos da Eugenia era combater certos males antes mesmo que eles se manifestassem, evitando, assim, que a degeneração se estendesse a todo o corpo social e resultasse no aniquilamento da raça. Com o intuito de prevenir o surgimento de futuros doentes e portadores de taras (defeitos/degenerações), os defensores da Eugenia recomendava que se intervisse cada vez mais cedo sobre a vida da população. No caso do Rio Grande do Sul, onde a mortalidade infantil apresentava taxas elevadas, a busca pelo aprimoramento racial passava também pela questão de quantidade.

O problema do alto número de mortos entre os recém-natos foi discutido por diversos professores da Faculdade de Medicina nas páginas dos Archivos. Argemiro Dornelles, ao comparar os índices de natimortalidade no Rio Grande do Sul com os registrados em outras cidades do Brasil e do exterior, declarava que “o record, para a nossa vergonha, pertence-nos” (ARCHIVOS, 1926, ano V, n. 1, p. 8-10). Segundo ele, era lamentável que “um dos estados mais ricos da União” pudesse contar com percentuais tão elevados de mortalidade não só entre recém-nascidos, mas também entre as faixas etárias de 0 a 1 ano.

A alta mortalidade infantil no Rio Grande do Sul era considerada um perigo e uma “ameaça perene” a ser evitada, pois, conforme escreveu Leônidas Machado, “é um capital fabuloso que se esvai, é um formidável tributo que pagamos mais à morte, são centenas e centenas de esperanças que fenecem e desfazem” (ARCHIVOS, 1931, ano X, n. 2, p. 23).

O professor Florêncio Ygartua citava que, entre os principais responsáveis pela morte de crianças e recém-nascidos estavam a má alimentação, a miséria, a vivenda anti-higiênica, a ignorância, a heredo-lues (sífilis congênita), a tuberculose, as enfermidades infectocontagiosas, o abandono e a filiação ilegítima, “além de outras muitas causas que se relacionam intimamente com os problemas de ordem médico sociais”.

O comportamento e a conduta das mães também eram analisados como sendo parte do problema. Raul Moreira, por exemplo, alertava para o perigo da “ignorância e má vontade de certas mães” no cuidado dos próprios filhos e que, segundo ele, sacrificavam a beleza e a saúde de seus filhos por “chás dançantes, pelas múltiplas e fúteis reuniões, enquanto, no santuário do lar, o seu rebento se arrasta nas mãos mercenárias” (ARCHIVOS, 1927, ano VI, n. 2, p.4)

Alguns médicos ainda criticavam a utilização de amas de leite, ressaltando a importância do aleitamento materno nos primeiros meses de vida como forma de garantir e conservar a saúde dos bebês. Para eles, a amamentação por meio de amas poderia transmitir doenças e o leite de vaca, de procedência nem sempre confiável, poderia, em caso de contaminação, causar infecções muitas vezes letais.

Para os médicos da Sociedade, a negligência do Estado com o cuidado das crianças produzia resultados desastrosos. Argumentavam que a decadência econômica e política da nação não deixava de ser uma das consequências da situação “desamparo em que vive a nossa infância, para a qual os poderes públicos não volvem a suas vistas protetoras” (ARCHIVOS, 1927, ano VI, n. 2, p. 3).

Por esse motivo, a puericultura era vista como uma ferramenta importante pois, ao garantir a higidez e a vitalidade das crianças e evitar males que pudessem levar a sua degeneração possuía um importante potencial de controlar tanto a qualidade quanto a quantidade populacional. Os cuidados, iniciados antes mesmo do nascimento, incluíam educação, aconselhamento e assistência obstétrica, de forma não só a diminuir as taxas de mortalidade materna, do feto e do recém-nascido, mas também, ao garantirem a saúde da mãe, asseguravam que doenças não seriam transmitidas ao bebê, seja de maneira congênita, herdada, no parto ou por amamentação. O acompanhamento se estenderia até o fim da infância, de forma a não só proteger, mas também inculcar valores de higiene e eugenia.

Por esse motivo, Raul Moreira apontava a puericultura e a higiene infantil como “ciências sociais de alta relevância para o futuro do país”. Para ele, a puericultura pré e pós-natal deveria ser uma realidade, cujo desconhecimento não poderia ser admitido em “cérebro culto”, dado que vivíamos no “reinado fecundo da Eugenia, ciência [...] que não permite o desmoronar da espécie humana, mas antes visa que tudo corra harmonicamente” (ARCHIVOS, 1928, ano VII, n. 5, p. 2).

Fazendo uma seleção no “conjunto interminável dos meios de proteção à infância” que pudessem ser de possível adaptação ao Rio Grande, Moreira sugeria a criação de um grupo de instituições compostas de fundações destinadas a fornecer apoio às mães e aos bebês, bem como à proteção da primeira infância.

As creches seriam destinadas a receber e a cuidar durante o dia crianças de 15 dias a 3 anos. As câmaras de amamentação, instaladas nas dependências de fábricas e estabelecimentos comerciais e administrativos, possibilitando que os filhos das trabalhadoras fossem amamentados durante o expediente. Já as gotas de leite ou copos de leite tinham por objetivo “oferecer leite de boa qualidade, na falta do leite materno”. Esses lugares deveriam garantir a “alimentação racional, a higiene rigorosa, a defesa contra doenças contagiosas” (ARCHIVOS, 1927, ano VI, n. 2, p. 7).

A escola popular de maternidade, destinada a ensinar tanto às jovens quanto às futuras mães, promoveria os benefícios da amamentação natural e tornando-as aptas, sobretudo, nos preceitos básicos da higiene da primeira infância. As lições, de frequência semanal, seriam ministradas por pediatras, auxiliados por estudantes interessados no assunto.

O museu da infância, cuja localização poderia ser fixa ou itinerante, trataria de todo o tipo de assunto que se referisse “aos pequeninos”, especialmente aqueles relacionados à higiene infantil e a prevenção de doenças contagiosas:

Estatísticas concludentes, agora, por exemplo, com os resultados da vacina preventiva contra a tuberculose; o perigo dos bicos mal cuidados, o melhor tipo de mamadeira, quadros demonstrativos de amamentação natural e artificial, fazendo-se o paralelo entre ambas; o evoluir da criança, utensílios rudimentares para uma boa cozinha terapêutica, etc. Paredes ilustradas, com figuras que falem e pensamentos que se arraiguem no espírito do visitante (ARCHIVOS, 1928, n. 5, p. 4).

Por fim, recomendava o estabelecimento de inspeção médico escolar. O médico, como “profissional e sacerdote”, deveria amparar o “corpo e a alma dos alunos, curando aqui, evitando ali, descortinando vocações e sondando caracteres”. Auxiliado por uma enfermeira, o profissional deveria observar “quatro pontos capitais”: 1) a vigilância higiênica dos locais e mobiliários das escolas; 2) a profilaxia de doenças transmissíveis; 3) o exame individual da criança e a posterior formulação de fichas sanitárias; 4) a educação sanitária de alunos e mestres (ARCHIVOS, 1928, n. 5, p. 4).

A saúde e o bem-estar da criança seriam garantidos não só através da educação escolar, mas também através da educação física, de forma que tivessem um corpo apto e hábitos sadios. De acordo com Carlos Bento, o desporto poderia ser considerado um remédio salutar para a debilidade física e um dos únicos meios de regenerar a raça. Isso porque, segundo ele, de geração em geração o homem perderia a sua vitalidade, daí o motivo pela qual “uma direção médica severa deveria graduar o esforço físico de cada mancebo e que esse esforço deveria ser orientado num sentido utilitário nacionalista e tradicionalista”. Essa preocupação expressa pelo médico remetia à mesma preocupação expressa não só pelos seus colegas da Sociedade, mas também de muitos integrantes dos movimentos eugenista e higienista, de que a degeneração causada por certas doenças, vícios ou hábitos imorais ou insalubres atuaria de forma profunda e permanente nos indivíduos, deixando um legado de degradação e decadência orgânica que comprometeria progressivamente o vigor de seus descendentes.

Por isso, Carlos Bento acreditava que as entidades “chamadas competentes” deveriam oferecer à população jovem uma “rigorosa preparação ginástica” a fim de evitar que os rapazes acabassem “as fileiras já numerosas dos tuberculosos, anêmicos e depauperados” ao invés de “robustecerem e tornarem-se amanhã cidadãos validos e valores sociais da sua raça” (ARCHIVOS, 1934, ano XII, n. 4, p. 178-179).

A eugenia negativa e os exames pré-nupciais

A questão reprodutiva foi um assunto de suma importância dentro das discussões sobre Eugenia. Isso porque a ciência idealizada por Galton trazia uma promessa de progresso científico e social embutida na proposta de que, através da supervisão do processo reprodutivo, seria possível não só melhorar a qualidade dos seres humanos, mas também, a longo prazo, estabelecer o controle racional sobre o caminho da evolução da espécie (TUCKER, 2009, p. 64TUCKER, William H. The Cattell Controversy - Race, Science and Ideology. Chicago: University of Illinois Press, 2009.). Sexualidade, natalidade e maternidade passavam, dentro dessa lógica, a serem vistos através de uma posição de responsabilidade biológica frente a espécie.

Doenças hereditárias e moléstias venéreas, devido ao seu potencial de comprometer o futuro das gerações vindouras, constituíam-se como importantes itens de apelo a uma sexualidade responsável, disciplinada e alcançada por meio de uma escolha racional de parceiros. Para os eugenistas, a escolha de um cônjuge era um ato de suma importância, pois seus desfechos afetavam o progresso evolutivo da população. Assim, se, por um lado, uma seleção adequada contribuiria para aumentar a qualidade e os índices eugênicos da “raça”, por outro, uma união disgênica produziria resultados catastróficos. Em função disso, argumentavam que uma decisão tão importante não deveria ser feita apenas com base em fatores subjetivos e guiada apenas pela emoção. Por isso, acreditavam ser fundamental que os indivíduos compreendessem a importância de se levar em conta a saúde e a constituição física e genética dos seus parceiros em consideração na hora de escolher seu futuro marido ou esposa.

Nas propostas eugênicas, a reprodução era administrada de duas maneiras: através do incentivo da união entre indivíduos portadores de caracteres eugênicos e através da regulação e proibição de casamentos entre indivíduos degenerados. Para que essa medida fosse efetivada, sugeria-se que os nubentes passassem por uma inspeção médica que atestassem a sua saúde e assim fosse permitida ou negada a permissão para o casamento.

Dado que havia uma grande preocupação com a disseminação de doenças venéreas, os exames pré-nupciais se apresentavam como uma solução não só para frear a transmissão de doenças hereditárias, mas também para evitar o contágio entre nubentes. Essa medida mesclava, portanto, eugenia preventiva com eugenia negativa. Como é possível perceber, nem sempre havia uma linha bem demarcada entre as propostas eugênicas. Como bem destaca Levine “many eugenicists advocated a combination of tactics for both improvement and prevetion, making any hard and fast distinction between positive and negative eugenics impossible” (LEVINE, 2017, p. 8LEVINE, Philippa. Eugenics: A Very Short Introduction. New York: Oxford University Press, 2017.).

A questão dos exames pré-nupciais foi discutida por Gonçalves Vianna em uma das reuniões da Sociedade de Medicina de Porto Alegre. Falando em nome da Liga Brasileira de Higiene Mental, uma vez que era seu representante no Rio Grande do Sul, destacava o “alcance prático imediato e futuro” dessa proposta, argumentando ser a mesma “perfeitamente exequível” (ARCHIVOS, 1926, ano V, n. 1, p. 13).

A fim de contrapor aqueles que consideravam tal procedimento como “atentado a liberdade, uma prática coercitiva e até vexatória, imoral”, ou mesmo questionavam-se como resolver pela razão aquilo que é de domínio do sentimento, Vianna evocava as ideias do eugenista Renato Kehl. O trecho citado fazia parte de um texto publicado em 1925 no periódico da Liga Brasileira de Higiene Mental, o Archivos Brazileiros de Hygiene Mental, na qual o chamado “pai da Eugenia no Brasil” afirmava:

“A esterilização dos degenerados e criminosos constitui uma das medidas complementares da política eugênica, a qual estabelece, precipuamente, o exame da sanidade pré-nupcial, o impedimento à paternidade indigna, a procriação em suma de cacoplastas e desgraçados”. “A Eugenia, ciência da boa geração, para a consecução de seus desígnios selecionistas estabelece a seleção dos genitores, a proteção do fruto “in útero”, prescrevendo ainda a sua defesa post-concepcional, no decurso dos primeiros anos da vida, o que compete à puericultura”. “À Eugenia incumbe, pois, a puericultura ante-concepcional e intra-uterina, como à agricultura se impõe, principalmente, a seleção e proteção das sementes, como à zootecnia se impõe, inicialmente, a escolha dos reprodutores e a segregação dos que não convém” [...] (ARCHIVOS, 1926, ano V, n. 1, p. 13-14).

Antes de tudo, dizia Vianna, era preciso considerar o conceito social do matrimônio. Questionava: o “que é, na verdade, o casamento, senão um contrato feito por dois indivíduos de sexo diferente, com o fim da propagação da espécie?”. Para ele, causava espanto que, tendo em vista o cuidado e a longa preparação dos noivos em seguir todos os passos e medidas para garantir o êxito de um casamento, pouca atenção se desse ao histórico hereditário e de saúde dos parceiros. Segundo ele, levavam-se em conta inúmeros fatores, como conhecimento da crença religiosa de cada um, antecedentes de conduta, educação, grau de instrução, índole de temperamento, “nada escapando à meticulosidade dos contratantes”. No entanto, questionava, por que esses cuidados não podiam ser aplicados àquilo que diz respeito estado de saúde dos nubentes, tanto do ponto de vista físico quanto mental? Esses fatores deveriam figurar entre os primeiros quesitos a serem analisados como forma de “garantia de estabilidade e penhor de felicidade conjugal” (ARCHIVOS, 1926, ano V, n. 1, p. 14).

Preocupado com as doenças nervosas e mentais, Vianna apontou a sífilis e o alcoolismo como as principais responsáveis pelo acometimento dessas patologias. Se estes males não existissem, dizia, 80% das moléstias mentais poderiam ser evitadas. Sendo assim, indagava, poderiam os médicos hesitar quando profundamente convencidos pela “observação dolorosa de todos os dias, da notável sensibilidade dos organismos que descendem de neuro e psicopatas, a perpetuarem tristemente os estigmas invencíveis da herança degenerescente”? (ARCHIVOS, 1926, ano V, n. 1, p. 14).

Sendo a sífilis e o alcoolismo doenças que constituíam um perigo não só para o indivíduo, Vianna entendia que qualquer medida que visasse evitar a propagação de tais males como o mais elevado programa de “colaboração social” que um profissional de sua área pudesse empreender. Isso porque, para ele e para muitos médicos que foram seus contemporâneos, esses males não afetavam apenas os doentes, mas também os seus descendentes. O legado mórbido deixado por essas patologias era visto como responsável por comprometer a qualidade das gerações futuras e sua viabilidade como cidadãos produtivos, ameaçando-os com o perigo de nascerem privados de saúde e vigor e tornarem-se, desde cedo, “cargas sociais”, representavam igualmente um problema tanto para a sociedade quanto para a nação. Por esse seu potencial de degeneração orgânica, ameaçava a raça com o risco de aniquilamento ou com o retorno a estágios anteriores de evolução física e moral (CARRARA, 1996, p. 38CARRARA, Sérgio. Tributo a vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1996.).

O médico também atribuía o alto número de natimortos ao casamento de “sifilíticos, ou contaminados por outra doença infecciosa, ou taras transmissíveis”. As uniões disgênicas eram, assim, por ele identificadas como sendo responsáveis por 80% das mortes de recém-nascidos. De acordo com Vianna, essas estatísticas teriam motivado Renato Kehl a propor à Academia Nacional de Medicina que estudasse a possibilidade de enviar ao Congresso Nacional um memorial requisitando a reforma do art. 219, para que fosse estipulado tanto a exigência do exame antenupcial quanto a proibição de casamentos de indivíduos que demonstrassem ser portadores de taras, vícios ou moléstias capazes de se transmitirem por contágio ou herança.

Embora Vianna afirmasse não poder trazer intenção deste apelo, uma vez que para tanto não lhe “sobraria prestígio nem autoridade”5 5 As várias referências de Vianna à Renato Kehl, especialmente ao seu “prestígio e autoridade” vem da projeção que o médico assumiu frente ao movimento eugênico brasileiro. Além de inúmeros livros publicados sobre o assunto, o eugenista ainda foi um dos membros fundadores da Sociedade Eugênica de São Paulo, primeira instituição dedicada ao tema na América Latina. Em 1929, auxiliou na organização do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Kehl também foi o criador do periódico Boletim de Eugenia, que se notabilizou pela divulgação da ciência galtoniana no Brasil. Gonçalves Vianna é, inclusive, mencionado na edição de março de 1929 por suas “brilhantes e valorosas” conferências sobre Medicina Social. Renato Kehl, assim como Vianna, também participou da Liga Brasileira de Higiene Mental. Foi responsável, ainda, pela criação da Comissão Central Brasileira de Eugenia. Para uma análise mais aprofundada sobre a trajetória do “pai da Eugenia no Brasil”, ver: SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Guarapuava: Editora Unicentro, 2019. SANTOS, Ricardo Augusto. Pau que nasce torto, nunca se endireita! E quem é bom, já nasce feito? Esterilização, Saneamento e Educação: uma leitura do Eugenismo em Renato Kehl (1917-37). Niterói: UFF, 2008. 257f. Tese de doutorado em História, Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, 2008. , sugeria a médicos e professores que, na ausência de legislação e “sem ataque aos direitos e liberdades humanas”, pregassem no reduto de suas clínicas e no exercício de seus consultórios “por todos os meios de vulgarização, enfim, com brandura persuasiva e convincente, as indiscutíveis verdades que a Higiene ensina e a Eugenia nos pede. Para ele, era dever dos profissionais de saúde combater os numerosos fatores que conspiravam contra a saúde e a vida da população, “promovendo paralelamente as condições eugênicas em favor das gerações que estão por vir”, sendo essa a “mais nobre aspiração da Medicina” (ARCHIVOS, 1926, ano V, n. 1, p. 18). A mulher, por sua “influência decisiva nos nossos destinos”, também deveria contribuir como “incansável e prestimosa colaboradora”.

A conferência proferida por Gonçalves Vianna durante a reunião da Sociedade suscitou bastante interesse, conforme consta nos Archivos. De acordo com o registo, as discussões se estenderam até mais tarde que o usual por conta do entusiasmo gerado. É interessante destacar que nas atas consta a observação de que nenhum pronunciamento rejeitando a proposta do exame pré-nupcial foi proferido.

Entre os presentes, o dr. Hugo Ribeiro teceu considerações sobre o diagnóstico da sífilis e constatando a dificuldade de se encontrar uma solução para a questão, pois “no que diz respeito a esterilização, quando indicada a fim de evitar proles infelizes, encontraria ainda forte barreira no elemento católico”. Por fim, manifestou-se adepto do exame médico pré-nupcial, com a ressalva de que este só seria aplicável se houvesse a possibilidade de se contar com “informações sinceras do doente” e não para “somente satisfazer a letra da lei ou a simples exigência do outro nubente”.

Ribeiro não estava sozinho em sua apreensão. A preocupação de que propostas eugênicas visando impedir a reprodução e o matrimônio de indivíduos “inferiores” ou “degenerados” pudesse entrar em conflito com os dogmas teológicos do catolicismo foi constante nos países de língua latina, onde a Igreja Católica exercia forte presença (TURDA, GILLETTE, 2014, p. 103TURDA, Marius; GILLETTE, Aaron. Latin Eugenics in Comparative Perspective. London: Bloomsbury Academic, 2014.). No Brasil, essa questão teve bastante destaque nas reuniões da Liga Brasileira de Higiene Mental. De acordo com Wegner e Souza, isso demonstrava que os eugenistas estavam conscientes da força que as ideias religiosas desempenhavam dentro da sociedade brasileira. Por isso, seria imprescindível que o movimento eugênico lançasse mão diálogo político e intelectual, do convencimento e de mediações que amenizassem as críticas à ciência galtoniana (WEGNER, SOUZA, 2013, p. 274WEGNER, Robert; SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Eugenia ‘negativa’, psiquiatria e catolicismo: embates em torno da esterilização eugênica no Brasil. In: História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, vol.20, n.1, 2013, p.263-288. ISSN 0104-5970. Doi: https://doi.org/10.1590/S0104-59702013005000001.
https://doi.org/10.1590/S0104-5970201300...
).

Embora os integrantes Sociedade de Medicina de Porto Alegre manifestassem a mesma percepção de que essas estratégias de comunicação e intermediação fossem necessárias a fim de popularizar certas medidas eugênicas, alguns deles discordavam que houvesse uma incompatibilidade entre crenças católicas, pensamento científico e propostas eugênicas relativas à restrição do matrimônio. Guerra Blessman, por exemplo, acreditava que o conflito entre Medicina e Igreja era apenas aparente. A após uma série de considerações sobre o assunto, argumentava que a questão, embora complexa, encontraria solução caso não fosse encarada sob o “espírito estreito da lei, mas sim de acordo com as situações do meio e de cada caso particular”. Argumentava que, mesmo que fosse possível contar com o vigor da lei, uma “verdadeira catequese dos infectados”, feita “à luz da clínica, dos ensinamentos do laboratório, sob a guarda de um critério bem definido” poderia ter resultados frutíferos, constituindo uma “obra de alto valor para a sociedade”.

Raul Bittencourt também acreditava que a disputa entre ciência e religião em nada obstaria a prática do exame pré-nupcial, pois este era “a lídima expressão da evolução”. Salientou que a Igreja acabaria concordando com certas medidas, visto que, como a história demonstrava, ela sempre acabava cedendo, mesmo que tardiamente.

Gonçalves Vianna, por sua vez, dizia não perceber o menor conflito entre a Ciência e a Religião. Argumentava que, ao longo de sua educação em meio católico, jamais apreciara a influência decisiva da Igreja na liberdade do pensamento. Concluía que, embora ciência e religião caminhassem sempre juntas, esta “mantendo o seu espírito doutrinário” e cederia lugar àquela, “todas as vezes em que a verdade científica exuberante fosse proclamada pelo determinismo experimental”.

Sobre a necessidade da regulamentação legal dos exames pré-nupciais, de forma a estabelecer a proibição do casamento daqueles que não fossem sadios, o professor Otacílio Rosa afirmava que, como médico, manifestava-se a favor da necessidade do exame, mas como cidadão considerava-o impraticável.

Lannes Brunet, por sua vez, salientou o fato de que, apesar de todos reconhecerem a necessidade do exame pré-nupcial, acreditava que a elevada cifra de analfabetismo no país representaria um obstáculo à implementação de tais medidas. O professor Argymiro Galvão, diretor dos Archivos e figura central na Sociedade de Medicina, no entanto, discordava, apresentando dois exemplos que, segundo ele, invalidavam o argumento de Brunet. Terminou sua reflexão arguindo que, se a posse de instrução exercia, de fato, influência no assunto em questão, grande importância deveria ser atribuída, também à “licenciosidade profissional” que imperava no Rio Grande do Sul.

Conclusão

Através das páginas dos Archivos, pudemos ver como como a disseminação da Eugenia se deu dentro de outros espaços, e como os profissionais da área médica se apropriaram dessa ciência para pensar questões relacionadas à reprodução, maternidade, infância, conduta moral, vícios, criminalidade, saúde pública, progresso, entre outros.

A partir de discussões sobre “venenos raciais”, mortalidade infantil, exames pré-nupciais, pudemos ver que os membros da Sociedade de Medicina de Porto Alegre pensavam a ciência eugênica a partir de um conceito de nação, e suas ações visavam o bem da população como um todo, a fim de preservar a integridade do povo brasileiro e não só de uma parcela localizada em determinado Estado. Garantir a saúde e a integridade física, mental e moral dos cidadãos, evitando qualquer fator que pudesse causar sua degeneração era visto pelos médicos da instituição como atos elevados de colaboração social e feitos de grande patriotismo. Melhorar a raça não deveria ser, portanto, uma tarefa isolada, restringindo-se apenas a algumas regiões, afinal, para eles, era o futuro do Brasil que estava em jogo.

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    É importante destacar, no entanto, que essa ausência de ações federais de combate e profilaxia de algumas doenças é referente ao período anterior a década de 1930, época em que é criado o Ministério da Educação e Saúde. Apesar de haver, após esse período, um avanço na ofensiva contra várias doenças, especialmente no caso da Lepra, Bertolli Filho aponta que casos como o da tuberculose continuaram a receber pouca atenção das autoridades, apesar da “peste branca” ser bastante disseminada no período varguista. BERTOLLI FILHO, Claudio. História social da tuberculose e do tuberculoso: 1900-1950. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001. Sobre o combate a lepra, ver: CABRAL, Dilma. Lepra, medicina e políticas de saúde no Brasil (1894-1934). Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013. SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Filantropia, poder público e combate à lepra (1920-1945). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, supl. 1, dez. 2011, p. 253-274.
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    De acordo com Meloni, qualquer teoria que enfatizasse a influência do ambiente e a adaptação direta dos indivíduos ao seu meio, ou que desse aos “fatores reais a precedência sobre a predeterminação”, foi historicamente identificada como lamarckismo (ainda que tais concepções tenham precedido a teoria de Lamarck) ou, após 1880, neolamarckismo (MELONI, 2016, p. 2MELONI, Maurizio. Political Biology - Science and Social Values in Human Heredity from Eugenics to Epigenetics. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2016.).
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    As várias referências de Vianna à Renato Kehl, especialmente ao seu “prestígio e autoridade” vem da projeção que o médico assumiu frente ao movimento eugênico brasileiro. Além de inúmeros livros publicados sobre o assunto, o eugenista ainda foi um dos membros fundadores da Sociedade Eugênica de São Paulo, primeira instituição dedicada ao tema na América Latina. Em 1929, auxiliou na organização do Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia. Kehl também foi o criador do periódico Boletim de Eugenia, que se notabilizou pela divulgação da ciência galtoniana no Brasil. Gonçalves Vianna é, inclusive, mencionado na edição de março de 1929 por suas “brilhantes e valorosas” conferências sobre Medicina Social. Renato Kehl, assim como Vianna, também participou da Liga Brasileira de Higiene Mental. Foi responsável, ainda, pela criação da Comissão Central Brasileira de Eugenia. Para uma análise mais aprofundada sobre a trajetória do “pai da Eugenia no Brasil”, ver: SOUZA, Vanderlei Sebastião de. Renato Kehl e a eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras. Guarapuava: Editora Unicentro, 2019. SANTOS, Ricardo Augusto. Pau que nasce torto, nunca se endireita! E quem é bom, já nasce feito? Esterilização, Saneamento e Educação: uma leitura do Eugenismo em Renato Kehl (1917-37). Niterói: UFF, 2008. 257f. Tese de doutorado em História, Departamento de História, Universidade Federal Fluminense, 2008.
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    Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referidas no artigo. A documentação analisada encontra-se disponível no Museu de História da Medicina do Rio Grande do Sul e pode ser acessada através do site da instituição: http://www.muhm.org.br/

Fontes

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Editado por

Editores Responsáveis
Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    12 Mar 2020
  • Aceito
    08 Dez 2020
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