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POR UMA HISTÓRIA CRUZADA DAS DISCIPLINAS: PONDERAÇÕES DE ORDENS PRÁTICA E EPISTEMOLÓGICA1 1 Este artigo não foi previamente publicado em plataforma de preprint e toda a bibliografia empregada encontra-se nele referida. Sua primeira versão foi apresentada no “II Encontro A História Indisciplinada”, realizado em 2015, na UFRGS. Em formato mais próximo ao atual, serviu de base para a primeira aula do curso de pós-graduação “Por uma história cruzada das ciências: princípios epistemológicos e estudos de caso”, ministrado na USP em 2018. Registra-se agradecimento à generosidade de colegas e de estudantes que, nas duas ocasiões, testaram o argumento e seus limites. Miguel Palmeira, Rodrigo Turin e Frederico Rosa teceram valiosas críticas à versão submetida, bem como os pareceristas da revista. Espera-se ter feito justiça às suas observações e assume-se, aqui, inteira responsabilidade quanto a eventuais equívocos cometidos.

FOR A CROSSED HISTORY OF DISCIPLINES: CONSIDERATIONS OF PRACTICAL AND EPISTEMOLOGICAL ORDERS

Resumo

O presente artigo tem por finalidade apresentar, em um plano epistemológico e a partir de exemplos práticos, a defesa de uma história cruzada dos saberes, entendendo-a como o estudo focado na caracterização e na explicação de circuitos de ideias e de pessoas entre diferentes disciplinas. Para tanto, parte-se da problematização dos pressupostos das histórias disciplinares, discutindo, na sequência, os prodígios e as vertigens de modelos que almejam reconstituir a unidade e a totalidade disciplinar ao longo do tempo. Mesmo considerando o interesse desses modelos, o restante do artigo insiste no lugar da interdisciplinaridade no seio das disciplinas. Tal recorte permite propor agendas experimentais que ampliem a compreensão acerca das possibilidades disciplinares, ontem, hoje e amanhã.

Palavras-chave:
História Cruzada; História da Ciência; Epistemologia; Disciplina; Interdisciplinaridade

Abstract

The purpose of this article is to present, on an epistemological basis and from practical examples, the defense of a crossed history of knowledge, understanding it as the study focused on the characterization and explanation of circuits of ideas and people between different disciplines. The article starts with the problematization of presuppositions of the disciplinary histories, discussing, then, the prodigies and the vertigos of models that aim to reconstitute the unit and the disciplinary totality through time. Even considering the interest of these models, the article insists on the place of interdisciplinarity within the disciplines. Such cutting allows the proposal of experimental agendas that allow broadening the understanding of disciplinary possibilities, yesterday, today and tomorrow.

Keywords:
Crossed History; History of Science; Epistemology; Discipline; Interdisciplinarity

Entre evidência e ideal

A busca pela caracterização do objeto das histórias disciplinares encontra-se refém de duas metafísicas que se reforçam contínua e reciprocamente, uma intuitiva, outra imediata. No primeiro caso, parte-se de categorias pré-estabelecidas acerca do que é uma disciplina para então encontrar o que se procura. Trata-se de ativar uma razão subjetiva que guia o olhar lançado ao mundo, ao melhor estilo quixotesco. No segundo caso, a questão passa por render-se à evidência do objeto. Nele, as disciplinas se dão a ver no mundo, podendo ser descritas e analisadas. O que separa essas metafísicas são manifestações distintas de um mesmo impulso, a saber, na falta de uma expressão melhor, o “complexo de narciso”. Com efeito, ora é a razão do sujeito que pretende projetar no mundo um ideal de disciplina (a disciplina e o mundo ao qual ela se refere são inteligíveis porque sou inteligente), ora é o ordenamento do mundo que parece impor ao sujeito a certeza da disciplina (eu e a disciplina somos inteligíveis porque participamos de um mundo inteligente). Entre evidência e ideal, o objeto das histórias disciplinares insiste assim em escapar à crítica.

O que complica o rompimento desse círculo vicioso é a relação, ao mesmo tempo institucional e afetiva, entre os indivíduos interessados por histórias disciplinares e as disciplinas historiadas. Na divisão do trabalho intelectual, são geralmente os especialistas de um saber que se sentem compelidos a falar sobre a historicidade das especialidades que reclamam para si. Isso pode, em alguns casos, vir a reboque do anúncio de uma contribuição sistêmica ou pontual. Uma novidade que se preze é aquela que marca ao mesmo tempo um nomear da tradição e um acerto de contas. Trata-se de uma atualização e de uma transgressão. Em outros casos, a questão é, por assim dizer, assunto de profissionais. Cada disciplina se dota de uma subdisciplina dedicada à gestão da luta pela definição legítima da disciplina, o que se faz tanto via disputa em torno de temas suficientemente notáveis para compor essa história quanto via debates sobre continuidades e rupturas em sua história, tomando a própria história disciplinar como objeto autônomo.

Independentemente do caso - na profecia da inovação e(ou) na pura gestão da tradição -, a história disciplinar invariavelmente cumpre um papel que é, antes de tudo, psicológico. Ela fornece aos portadores da disciplina a convicção de que o chão em que pisam é minimamente estável, de que recompensas os esperam nos horizontes aos quais dirigem seus sentimentos, seus pensamentos e suas ações. Em outras palavras, a história disciplinar estabiliza, dentro de cada portador, um mundo. Ela confere dignidade ao que se faz, fazendo-o precisamente em nome daquilo que se faz3 3 A negação da historicidade da disciplina, localizando em seu centro uma eternidade, cumpre papel análogo. Para alguns portadores disciplinares, por vezes é apenas esse imutável que se dá a ver. .

Seria justo, contudo, reduzir história disciplinar a essa única dimensão? Quando o portador de um saber pretende anunciar o passado, o presente e o futuro de sua disciplina, ele nada mais faz que tentar convencer a si mesmo e aos outros de que há ali, de fato, um sentido? Da perspectiva aqui assumida, encerrar a discussão nesse ponto equivale a não a abrir. E, anda assim, como ir além? Como dizer algo a respeito de uma disciplina sem vestir a toga de juiz, sentenciando a verdade disciplinar, ou a farda de policial, repreendendo em nome dessa verdade?

É difícil dar concretude ao problema e às suas possíveis soluções quando a discussão gira em torno de fórmulas puramente escolásticas. A alusão a um caso concreto pode ajudar aqui, embora seja difícil escolher entre tantos inovadores e historiadores disciplinares à disposição. Para que a escolha não soe por demais arbitrária, optou-se por realizar uma concessão aos modismos hoje em voga nas ciências sociais, discutindo na sequência um dos principais artigos da chamada “virada ontológica”, O Nativo Relativo, originalmente publicado por Eduardo Viveiros de Castro na revista Mana (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo.Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n.º 1, p. 113-148, 2002. ISSN 1678-4944. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132002000100005>.. DOI disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000100005>. Acesso em: 5 mar 2019
https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
)4 4 No dia 5 de março de 2019, o Google assinalava em suas bases um total de 745 citações do referido texto. No portal Scielo, na mesma data, indica-se que ele foi o quinto artigo da revista Mana com maior número de downloads em formato PDF, com 5104 cópias. A centralidade e a atualidade do referido texto na proposta de Viveiros de Castro são ainda reforçadas pelo fato do próprio autor ter dado seu nome a uma recente coletânea publicada em inglês (VIVEIROS DE CASTRO, 2015). . Não se trata de um texto em que a história da antropologia surja como objeto privilegiado e, ainda assim, seu autor refere-se nele, repetidas vezes, ao passado disciplinar. E há mais: ele o faz como antropólogo, em nome do futuro da antropologia.

Em O Nativo Relativo, diz-se que a essência da antropologia reside na relação entre o “discurso do antropólogo” e o “discurso do nativo”. Conforme o autor, supõe-se que tal relação seja científica, permitindo atrelar um sujeito de conhecimento a um objeto, laço particularizado pelo pressuposto de que ambos compartilham a mesma condição humana. Tal é, contudo, o procedimento da antropologia que se quer situar na história, na tradição. Como todo vanguardista disciplinar, é ela que Viveiros de Castro pretende modernizar ao apostar na recusa da distinção, de cunho epistemológico, entre o “discurso do antropólogo” e aquele do “nativo”. Disso não decorre que todos sejam “nativos”, ou passíveis de objetivação. Na esteira da Roy Wagner, e em sintonia com a noção latouriana de simetria, o que ele propõe é que os “nativos” sejam promovidos a antropólogos. Se, dessa forma, uma continuidade é estabelecida com “o que sempre se chamou propriamente de ‘antropologia'”, não deixa de haver um acerto de contas. O expurgo da tradição, em nome da tradição, consiste na recusa do jogo discursivo sobre o nativo, impondo à antropologia uma encruzilhada. Em suas palavras:

O que estou sugerindo (...) é a incompatibilidade entre duas concepções da antropologia, e a necessidade de escolher entre elas. De um lado, temos uma imagem do conhecimento do antropólogo como resultado da aplicação de conceitos extrínsecos ao objeto: sabe-se de antemão o que são as relações sociais, ou a cognição, o parentesco, a religião, a política etc., e vamos ver como tais entidades se realizam neste ou naquele contexto etnográfico (...). De outro (e este é o jogo aqui proposto), está uma ideia do conhecimento antropológico como envolvendo a pressuposição fundamental de que os procedimentos que caracterizam a investigação são conceitualmente da mesma ordem que os procedimentos investigados. Tal equivalência no plano dos procedimentos, sublinhe-se, supõe e produz uma não-equivalência radical de tudo o mais. Pois, se a primeira concepção de antropologia imagina cada cultura ou sociedade como encarnando uma solução específica de um problema genérico (...), a segunda, ao contrário, suspeita que os problemas eles mesmos são radicalmente diversos; sobretudo, ela parte do princípio de que o antropólogo não sabe de antemão quais são eles (VIVEIROS DE CASTRO, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. O nativo relativo.Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n.º 1, p. 113-148, 2002. ISSN 1678-4944. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93132002000100005>.. DOI disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-93132002000100005>. Acesso em: 5 mar 2019
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, p. 116-117).

O caminho proposto por Viveiros de Castro tem várias consequências. Implica, em primeiro lugar, aceitar como objeto da antropologia algo que aparece ora na forma de uma perspectiva sobre o social, ora como conceitos indígenas, tomados em sua razão poética. Supõe ainda um apartar-se de certas correntes disciplinares - os durkheimianos e os materialistas culturais -, mas também de outros saberes, tais como a psicologia, a sociologia, a filosofia e as ciências naturais (a física, em particular). Significa, por fim, nomear precursores, apoiadores e adversários internos à disciplina, bem como aliados e inimigos externos, em um complexo arranjo hierárquico. Marilyn Strathern, Bruno Latour, Gilles Deleuze, Claude Lévi-Strauss e outros tantos encontram-se positivamente entrelaçados para dar sentido à antropologia, tal como ela surge sob a pena do referido antropólogo brasileiro.

Tudo é muito interessante e, dentro dos limites de um texto, coerente. Ainda assim, a despeito da maior ou da menor simpatia que se possa sentir pelo discurso do autor, seria possível admitir que o retrato da antropologia nele proposto corresponde, de fato, à unidade e à totalidade da disciplina? Acaso todos os que falam ou falaram acerca da antropologia defini-la-iam em termos idênticos, concordando com os pressupostos do texto e com o diagnóstico nele apresentado? Teriam outras narrativas, enfim, os mesmos vilões, heróis e enredos?

Fortes indícios sugerem que a tribo dos antropólogos não é marcada por tamanho consenso. Há quem reconheça em Viveiros de Castro um messias e veja em sua antropologia uma salvação. Outros, porém, apresentam o “perspectivismo” como uma entre tantas correntes antropológicas, cuja relevância e contribuição variam incrivelmente, segundo o analista5 5 Veja-se, por exemplo, REYNOSO, 2014; DIANTELL, 2015; e VERDE, 2017. . Essas diferentes apreciações importam para que se perceba a existência de outras maneiras de dizer o que a antropologia foi, é e deve ser. Qual delas é a verdadeira? Qual inteligência se sobrepõe às demais e deve guiar uma análise da história dessa disciplina, uma vez que não há consensos em torno do vocabulário e dos temas que a compõem?

A armadilha implícita em tais perguntas reside nas suposições de coerência e de verdade de cada uma de suas possíveis respostas. Um avanço significativo é feito quando se percebe que, para o historiador das disciplinas, todos os ajuizamentos disciplinares são verdadeiros, o que significa dizer que nenhum deles é, de fato, o verdadeiro. Não se quer com isso diminuir a importância de autores que propõem algo novo, ou denunciar a arbitrariedade forçosamente implicada na nomeação de uma disciplina e de sua história. Trata-se apenas de aceitar que o produto da inteligência de um autor remete a uma posição, que é também uma possibilidade dada por um conjunto altamente complexo de relações. Essa posição pode ser mais hegemônica ou menos consensual, o que certamente tem um peso em qualquer história disciplinar. Ainda assim, é forçoso admitir que ela representa um ângulo de abertura para a disciplina, uma de suas manifestações, jamais a totalidade ou a unidade disciplinar.

Para retomar o exemplo mencionado, é dada a Viveiros de Castro a possibilidade, como a qualquer indivíduo, de falar em nome de uma disciplina, nomeando e enquadrando outros indivíduos e saberes, a despeito dos conceitos com os quais estes por ventura operem. Nesse sentido, todo enunciado que se quer inovador em relação a uma disciplina sempre foi, é e será assimétrico, até mesmo aquele feito em nome da simetria. O que o interessado na história das disciplinas deve tentar evitar é assumir determinada assimetria como algo válido a priori, por si só evidente e natural, transformando-a em um problema, em uma embocadura analítica.

Padrões de relação: prodígios e vertigens de modelos totalizantes

Na expectativa de diminuir as assimetrias produzidas por inovadores disciplinares ou por profissionais demasiadamente apegados ao saber que querem historiar, pesquisadores das mais diversas áreas desenvolveram ao longo do último século uma série de modelos omnibus, pretensamente válidos no âmbito de qualquer saber. Se há algo comum a todos eles, trata-se da ambição de situar as diversas posições disciplinares, pensando-as a partir dos laços que as unem e as apartam. Assim, ao contrário do portador de um saber disciplinar que constata ou projeta esse saber no mundo, a ênfase aqui recai sobre o estudo de padrões de relação que se manifestam espaço-temporalmente.

Foge ao escopo deste artigo propor uma exposição exaustiva de modelos que pensaram as disciplinas científicas e suas histórias a partir de um prisma relacional. Como alternativa, serão evocadas, e ainda assim suscintamente, três propostas que desfrutam hoje de particular prestígio, quais sejam, o paradigma kuhniano, o campo bourdieusiano e a rede latouriana. Cada uma delas realiza prodígios e provoca vertigens que cumpre discutir6 6 Não se ignora que cada um desses autores, até mesmo em decorrência de seus méritos, motivou o aparecimento de uma ampla gama de comentadores. Esclarece-se que, no que se segue, não se pretende esgotar todos esses debates. Propõe-se apenas, dentro das competências e dos limites estabelecidos, oferecer uma leitura dessas obras, certamente pessoal e parcial, para embasar um argumento. Solicita-se a indulgência do leitor quanto a esse ponto. .

Destas, a solução oferecida por Thomas Kuhn, físico reconvertido à história das ciências, é a mais antiga, tendo sido formalizada em 1962, com a publicação de A Estrutura das Revoluções Científicas (KUHN, 2003KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. Tradução de Beatriz Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2003 [1962] (7.ª Edição).)7 7 É bem verdade que o modelo desenvolvido por Kuhn foi parcialmente antecipado em seu estudo sobre a Revolução Copernicana (KUHN, 1990). É também notável que o próprio Kuhn tenha voltado a ele posteriormente, apontando lacunas e propondo agendas complementares (penso em KUHN, 2006). No presente texto, porém, serão consideradas apenas as formulações de seu livro clássico. . Nesse trabalho, em uma perspectiva que enfatiza o papel da descontinuidade em detrimento dos processos puramente cumulativos de conhecimento, a dinâmica da ciência depende da relação entre dois conceitos fundamentais: “ciência normal” e “paradigma”. O primeiro nada mais indica que o fruto de uma novidade bem-sucedida, a qual atrai adeptos e engaja epígonos em um projeto de futuro, pautado na ampliação dos resultados já obtidos. O que caracteriza esse estado de maturidade científica é justamente o paradigma, que se revela, ao mesmo tempo, visão de mundo e produtor de especialidades. É possível defini-lo como uma cartilha na qual se acredita e que se toma como ponto de partida para os mais diversos domínios de um saber particular.

Essa cartilha gera, contudo, efeitos. Interessa a Kuhn mostrar como essa relação entre “ciência normal” e “paradigma” tende a produzir, no seio de cada ciência, anomalias e paradoxos. O raciocínio parte da seguinte evidência: o objetivo de uma ciência não é produzir o novo, mas confirmar e ampliar convencionalmente o que já se sabe. Daí a importância da metáfora kuhniana do “quebra-cabeça”: espera-se de antemão encontrar nele uma imagem, e todo o esforço da ciência consiste em compor as peças para que essa imagem se forme. O problema, para insistir na metáfora, é que nem todas as peças do quebra-cabeça são encontradas. Além disso, invariavelmente e de forma inesperada, surgem outras, com imagens e de formatos estranhos, colocando em xeque o que se esperava encontrar de início. Diante da acumulação dessas anomalias, duas opções se apresentam: ou os paradigmas dão conta de absorver/ignorar as anomalias, ou entram em crise, encorajando seus adeptos a buscar alternativas capazes de explicar os fatos novos. Caso uma crise tenha sido instaurada, ela só será superada quando um novo paradigma emergir com o maior consenso possível inter pares, iniciando uma nova era para a ciência em questão. Mudam radicalmente seus problemas, seus métodos e seus objetos. Há, enfim, uma ruptura e, mais, uma revolução.

O modelo proposto por Kuhn é, nesse ponto de vista, estritamente lógico e idealista. Não que seu autor seja indiferente ao compartilhamento diferenciado do paradigma no seio de uma mesma comunidade, ou que desconsidere práticas sociais como a divulgação científica e a formação de novos pesquisadores. Ainda assim, a ciência e sua dinâmica ganham sentido, a despeito da vontade dos indivíduos nela implicados, graças aos paradigmas, que são sistemas abstratos de conceitos, de afetos e de práticas. São eles que mantêm a “ciência normal”, colocando-a, a todo o momento, à prova, em um processo que leva à acumulação de paradoxos e, em última instância, à própria ruptura com o paradigma original.

Frente a esse modelo, Pierre Bourdieu, filósofo reconvertido às ciências sociais, concebeu a partir dos anos 1970 uma alternativa sociológica. Note-se, porém, uma diferença inicial marcante entre os dois autores: para Bourdieu, o estudo das disciplinas não é uma especialidade: a ciência é tão somente um domínio particular do mundo social, ao qual devem ser aplicados os mesmos arsenais de problemas e de conceitos válidos alhures. É nesse ponto que se impõe a noção de “campo”. Em seu último curso no Collège de France, dedicado justamente ao estudo científico da ciência, ele a define do seguinte modo:

O campo tem uma estrutura objetiva que é tão somente a estrutura da distribuição (no sentido ao mesmo tempo estatístico e econômico da palavra) de propriedades pertinentes, portanto eficientes, (...) (aqui, o capital científico) e as relações de força constitutivas dessa estrutura; isso quer dizer que as propriedades, as quais podem ser tratadas como propriedades lógicas, traços distintivos que permitem dividir e classificar (...), são simultaneamente questões, enquanto objetos possíveis de apropriação, e armas, enquanto instrumentos possíveis de lutas apropriativas, para os grupos que se dividem ou se confundem em relação a eles. O espaço de propriedades é também um campo de lutas pela apropriação (BOURDIEU, 2001BOURDIEU, Pierre. Science de la Science et réflexivité. Paris: Raison d'Agir, 2001., p. 121-122).

Todo saber seria, portanto, um sistema de relações objetivas pautado nas posições sociais adquiridas, que são os produtos do resultado de lutas pretéritas, e nas lutas atuais, orientadas pela manutenção ou acumulação de um tipo específico de prestígio. Nesse prestígio, ou capital, fundem-se tanto competências científicas - o sentido do falar e do agir com legitimidade - quanto atributos político-institucionais - diplomas, contatos na área, recursos financeiros e técnicos, entre outros. Separar essas duas facetas solidárias é, aliás, contraproducente. São elas que tornam inteligível como se dão a reprodução e a inovação dentro de uma ciência. Ademais, é a repartição desigual desse capital específico em uma estrutura de relações minimamente estável que fornece as bases pelas quais cada indivíduo vê a si próprio e ao mundo, tornando o campo igualmente um princípio de classificação.

Deve-se ter cuidado, entretanto, para não generalizar essa situação. Campo pode apenas ser evocado quando o grau de autonomia de um espaço social é relativamente grande, ou seja, quando a taxa de conversão entre o capital específico e os demais capitais é alta demais para que o câmbio seja uma operação usual. Tudo se passa então como na física contemporânea, na qual Bourdieu foi buscar a inspiração para seu modelo: um campo gravitacional, por exemplo, é determinado exclusivamente pela distribuição desigual de massa entre partículas que se encontram em relação. Para que isso ocorra no mundo da ciência, é preciso que o monopólio do capital específico esteja colocado nas mãos dos cientistas e que eles, agindo exclusivamente em função desse capital, reconheçam e atribuam prestígio a seus concorrentes diretos, sem interferências significativas de outros capitais e de seus espaços sociais característicos.

A melhor maneira de verificar se tal situação ocorre é observar a relação entre campo e aquilo que Bourdieu denomina “disposições sociais corporificadas”, ou habitus. Trata-se de um conceito que permite problematizar as experiências sociais pregressas de um indivíduo, tal como elas se encontram plasmadas em seu próprio corpo. O contato de um indivíduo com qualquer espaço social passa, invariavelmente, por um trabalho de socialização, que nada mais é que a adequação de um habitus à estrutura relacional desse espaço. Ora, quanto mais autônomo o espaço, quanto mais próximo ele estiver de um verdadeiro campo, maior é a pressão que se exerce sobre o corpo, no sentido de sua disciplinarização. Essa pressão tende a impedir que outros componentes incorporados estranhos à lógica do campo possam se fazer sentir diretamente no jogo social em questão. A relação entre habitus e espaço social é, desse modo, um excelente termômetro para se mensurar o grau de autonomia relativa do espaço estudado. Em uma ciência com elevado grau de autonomia, inclusive, o próprio habitus deve ser tomado como objeto de reflexão. É, portanto, imperativo objetivar o sujeito da objetivação para controlar não apenas os efeitos posicionais do campo, mas aquilo que, no habitus, não está relacionado ao campo científico.

Em resumo, para Bourdieu, dizer o que uma disciplina foi, é e pode ser passa pela compreensão espaço-temporal do cimento das coisas sociais, desses capitais, específicos ou não, que tornam as relações entre diversos corpos compreensíveis. Implica, além disso, correlacionar posições no campo e disposições dos agentes. É na relação entre espaço social e habitus que a continuidade e a ruptura se tornam compreensíveis8 8 É importante notar que Bourdieu fez incursões pontuais no âmbito da história das ciências, muitas delas meramente propositivas. Veja-se, sobre isso, BOURDIEU, 1975; 1976; 1995 e 2001. Seu único livro mais ambicioso relacionado ao tema não trata de uma disciplina, mas do campo científico francês como um todo (BOURDIEU, 1984). .

O terceiro e último modelo aqui evocado trabalha a partir de uma perspectiva diferente. Bruno Latour, outro filósofo reconvertido às ciências sociais, na primeira sistematização teórico-metodológica que propôs, A Ciência em Ação, publicada originalmente em 1987, tem uma postura ambígua frente à ideia de disciplina (LATOUR, 2000LATOUR, Bruno. Ciência em Ação. Tradução de Ivone Benedetti. São Paulo: Unesp , 2000 [1987].)9 9 Tal como no caso de Kuhn, a formalização latouriana é precedida de estudos de caso (em especial, LATOUR & WOOLGAR, 1997). O modelo de 1987 foi, mais tarde, reformado e parcialmente abandonado por Latour. Não foram consideradas essas mudanças no presente artigo. . Com efeito, ele prega que é preciso superar um discurso centrado em disciplinas e em objetos, inserindo-os em sistemas maiores. Ainda assim, o que não deixa de ser paradoxal, situa seus estudos em uma disciplina nova e “sem preconceitos”, intitulada “ciência, tecnologia e sociedade” (LATOUR, 2000, p. 36).

Reeditando o incontornável heideggeriano, Latour escolhe como ângulo de ataque o que denomina “caixas pretas”, os a priori científicos materializados, capazes de exercer um efeito sobre o mundo. Trata-se, para o autor, de abrir essas caixas pretas e, sobretudo, de testar suas articulações na produção de verdades. Nessa lógica, a verdade surge como sinônimo do que a ciência produz, envolvendo atores humanos e não humanos em um mecanismo que vai muito além dos próprios cientistas.

Ao passar em revista a retórica dos artigos científicos e a lógica dos laboratórios, Latour apresenta a ciência como um vasto jogo de controvérsias: a verdade é definida por quem trouxer mais aliados para seu lado, unindo-os a partir dos mais fortes vínculos. Esses aliados e vínculos envolvem, por exemplo, interesses mercadológicos, marketing e recursos de todos os tipos. Nesse caso, a imagem da “rede” se impõe: ela liga em cadeia os diversos atores implicados a partir de uma “central de cálculo”, a qual tem por ambição a universalidade, uma situação de assimetria absoluta. Em outras palavras, a rede ambiciona prender tudo o que existe em suas teias e, ainda assim, as condições para que isso ocorra não dependem apenas dela.

De fato, no modelo proposto por Latour, uma rede não existe sozinha. Ela se encontra em um ambiente de concorrência com outras redes, as quais também engajam outros atores humanos e não humanos a partir de diferentes centrais de cálculos. Eis aí, portanto, um mundo plural, um multiverso, no qual o universal traduz apenas a ambição de cada rede e seu desejo de acumular ganhos sucessivos para criar dados móveis, estáveis e combináveis. Uma mudança significativa, ou uma revolução, acontece quando um desses centros inviabiliza os demais, prendendo em sua rede os atores que antes estavam atados a outros fios. Um mundo estabilizado entra assim em colapso; um universo, que nada tem de universal, deixa de existir. Ou seja, no âmbito das “tecnociências”, a verdade traduz sempre uma relação de poder, uma situação de dominação efetiva ou pretendida de uma rede.

Vê-se como cada um dos três modelos discutidos realiza de forma distinta uma abordagem relacional e totalizante das disciplinas. Para Kuhn e Bourdieu, elas são conjuntos estáveis de relações respectivamente lógicas e sociológicas. Para Latour, a disciplina integra um conjunto de relações maior que é a “rede”, cujo objetivo é claro - o domínio alheio -, mas não seu sucesso - que depende da concorrência. Os diferentes pontos de vista acerca de uma disciplina, ou suas possibilidades, são assim controlados. No primeiro caso, o paradigma é deduzido logicamente desses pontos de vista e de suas implicações práticas. Algo análogo acontece com o campo, atrelando a essas visadas o peso relativo de suas posições sociais, caracterizadas tanto pela luta pretérita quanto pela acumulação presente de capital específico. No caso de Latour, os pontos de vista viram epifenômenos da rede, que aprisiona os diferentes atores nela engajados impondo um direcionamento a suas ações.

O que se pode depreender desses esforços? Há em todos eles um nobre e necessário empenho em controlar as posições particulares implicadas em uma disciplina. Controlar posições não significa, contudo, esgotá-las, e essa diferença nada tem de negligenciável. A questão central que se impõe aos modelos omnibus é a seguinte: seria possível considerar todos os pontos de vista e suas posições correlatas em uma história disciplinar? Acaso tal procedimento não envolveria uma miríade de situações e de agentes por demais complexa? Isso não implicaria discutir tanto aqueles portadores altamente reconhecidos de um saber quanto os que profetizam no deserto, bem como os públicos, de neófitos ou leigos, de cada um deles? A resposta parece inequívoca: não é humanamente possível ser exaustivo quanto a esses pontos e o que cada modelo propõe pode ser descrito, na melhor das hipóteses, como uma simplificação mais ou menos sofisticada da realidade. Admitindo como verdadeira essa afirmação, então em nome do quê e como se opera o recorte que dá sentido à construção dos modelos? Como saber se as definições de rede, campo ou paradigma não fecham precocemente a discussão? A despeito de todos os prodígios produzidos por esses modelos e das verdades que efetivamente dão a ver, o fato é que eles também se encontram reféns dos dois ideais distintos e complementares já evocados na primeira parte deste texto: os ideais da unidade e da totalidade de um saber.

O problema fica mais evidente quando se coloca a questão, ao mesmo tempo pertinente e desconcertante, das relações entre essas unidades. Gaston Bachelard, em um ensaio intitulado Crítica Preliminar do Conceito de Fronteira Epistemológica, publicado originalmente em 1934, já havia exposto o cerne do imbróglio (BACHELARD, 2008BACHELARD, Gaston. Crítica preliminar do conceito de fronteira epistemológica. In: BACHELARD, Gaston. Estudos. Tradução de Estela Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008 [1934], p. 79-86., p. 49-86). Para ele, falar em “fronteira do conhecimento” é um duplo contrassenso. Em primeiro lugar, dá a entender que em algum momento é possível enunciar a totalidade daquilo que se conhece. Ora, nenhuma inteligência particular e finita (um indivíduo ou um grupo) pode almejar estar em tal posição, não apenas porque ela implica um conjunto de saberes amplo em demasia, mas também, e principalmente, porque significa imaginar conceitualmente que é possível estabelecer uma fronteira clara entre aquilo que se sabe e aquilo de que se é ignorante. Conhecer a totalidade do conhecimento supõe justamente apartar dessa totalidade outra coisa, o desconhecido. Um dos contrassensos oriundos dessa suposição é que o ato de isolar e de nomear o desconhecido já pressupõe algum conhecimento acerca dele. Soma-se a isso outro problema, relativo à dinâmica da produção de conhecimento: além de não carregar dentro de si a totalidade do conhecimento, cada indivíduo ou grupo avança em uma direção particular, trabalhando com questões, teorias e métodos nem sempre afinados com os de seus colegas. Ou seja, o conhecimento é produzido de forma dinâmica e múltipla. Falar em fronteira implica congelar esse dinamismo em uma fotografia.

Contrassensos similares podem ser localizados no cerne das compartimentalizações que caracterizam o conhecimento. Acaso é possível estabelecer uma demarcação clara e unívoca entre o passado, o presente e o futuro de um saber, ou mesmo a fronteira entre um e outro saber, exigindo que ela seja reconhecida unanima e inequivocamente por seus portadores? Afinal, dizer o que é uma disciplina, em sua unidade e totalidade, não significaria também supor que se sabe o que ela não é mais, bem como, igualmente, o que foram e são todas as demais disciplinas com as quais ela tem relações?

Os modelos aqui discutidos escamoteiam essas vertiginosas contradições ao individualizar a investigação. Para Kuhn, o “paradigma” diz respeito a um único saber, impondo-se ainda como filtro incontornável para tudo aquilo que vai além. O modelo de Latour apresenta subterfúgio similar, pois transforma as “redes” em espécies de mônadas que se realizam em sua ação de produzir assimetria. Tudo se passa como se, no mundo da tecnociência, as diferentes redes fossem impermeáveis umas às outras, assim como o são, para utilizar uma imagem prosaica, os diferentes competidores em jogos de sociedade (um banco imobiliário, por exemplo). Bourdieu, por fim, não problematiza a sobreposição dos “campos” senão no habitus dos agentes, e sempre em relação a um campo específico10 10 Veja-se, sobre isso, BOLTANSKI, 2003, p. 153-161. . Tal situação é tanto mais nebulosa quanto mais ambíguo é o estatuto desse conceito em seus textos, que ora surge como interessante recurso heurístico, ora como dado de realidade. Além disso, ao menos quando o assunto é ciência, Bourdieu defende teórica e politicamente o ideal de autonomia (BOURDIEU, 1995BOURDIEU, Pierre. La cause de la science. Actes de la recherche en sciences sociales. Paris, nos. 106-107, p. 3-10, 1995. ISSN: 0335-5322. Disponível em: <https://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1995_num_106_1_3131>. DOI disponível em: <https://doi.org/10.3406/arss.1995.3131>. Acesso em: 8 maio 2020
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)11 11 Ou seja, dar ênfase às sobreposições seria, em seus termos, realçar a heteronomia. Isso ocorre tanto em um plano mais geral (o campo científico em relação a outros espaços/campos - o econômico, o jornalístico etc.) quanto em um plano particular (cada disciplina em relação às demais). O argumento na sequência ocorrerá em outra direção: a autonomia não deve ser defendida via reafirmação do particular, mas via articulação produtiva de particulares, tendo o “geral” como pano de fundo. Cada disciplina específica, no que ela periodicamente apresenta de inventivo, só se sustenta em função de um renovado diálogo “para fora”, que quebre em alguma medida com sua autorreferencialidade. A trajetória de Bourdieu ilustra isso: sua defesa da autonomia de certa sociologia só foi possível porque ele e seus colaboradores puderam compor um programa inovador ao fazer confluir diferentes vertentes que se queriam sociológicas e também repertórios de autores, conceitos e problemas externos (vindos de certa antropologia, de certa linguística, de certa filosofia, de certa física, e assim por diante). De resto, esse programa inovador não teve apenas efeitos “para dentro”, vindo também a afetar outras disciplinas e espaços/campos socias. Esse assunto será tratado na conclusão do artigo. .

Por uma história cruzada das disciplinas

O que se pretende neste artigo não é denunciar a precariedade dos três modelos evocados, ou a parcialidade dos discursos daqueles que falam, como vanguardistas ou historiadores profissionais, a respeito da história de suas disciplinas. Nem os modelos, nem os discursos são falsos em si mesmos e certamente apontam para questões interessantes. O fundamental, contudo, é reconhecer que eles apenas apresentam respostas incompletas e parciais. Não há motivo para abandoná-las, pois elas fazem parte das representações que dão sentido e estabilizam o mundo dos produtores de conhecimento. Ainda assim, o historiador disciplinar não precisa, tendo consciência disso, contentar-se com a pura e simples reificação delas.

Um dos possíveis caminhos para a complexificação de seu trabalho consiste em tensionar os ideais e as evidências das disciplinas valendo-se da noção de interdisciplinaridade, sem visar, com isso, partir da unidade e da totalidade disciplinares, ou então reconstituí-las. Eis a possibilidade aqui aventada. É necessário, porém, cautela, pois existem inúmeros sensos-comuns em torno dessa noção que, logicamente incompatíveis entre si, precisam ser desde já retificados. O primeiro deles imagina a interdisciplinaridade como algo existente por si só, uma área do conhecimento análoga às demais; o segundo, por seu turno, acredita que a interdisciplinaridade é o resultado do encontro de duas ou mais disciplinas. Nos dois casos, são novamente os pressupostos da totalidade e da unidade que se fazem presentes, tanto para derivar a interdisciplinaridade de duas ou mais coisas previamente existentes quanto para torná-la algo equivalente às demais.

Para fugir dessas armadilhas é imprescindível assumir que a primeira forma de abordar uma disciplina não é definindo-a, mas buscando inventariar os sentidos que os rótulos disciplinares puderam assumir. Ou seja, recomenda-se proceder inicialmente à maneira de Wittgenstein em relação aos ajuizamentos morais e estéticos: as disciplinas são como os conceitos de “belo” e de “bom”, que podem assumir sentidos distintos em diferentes cenários (WITTGENSTEIN, 1971WITTGENSTEIN, Ludwig. Leçons et conversations. Tradução de Jacques Fauve. Paris: Gallimard, 1971., p. 15-86). Por esse motivo a impossibilidade de uma história disciplinar total, pois é impossível repertoriar todos os contextos em que se atribui sentido a um rótulo disciplinar: o historiador sabe que só tem em mãos alguns vestígios das enunciações disciplinares, vestígios esses que estão longe de representar todas as tomadas de posição possíveis. Mesmo no presente, quem ousaria ser exaustivo quanto aos usos desses rótulos, que são cotidianamente evocados nos mais diferentes registros (em livros, em artigos, em salas de aula, em programas de auditório, em redes sociais, em corredores, em botecos etc.)? Essa impossibilidade é, antes de ser uma fraqueza, uma força. Ela convida o historiador disciplinar a não encerrar rapidamente a discussão acerca do que uma disciplina foi, é e pode vir a ser. Mais que isso, ela provoca o historiador a explicitar sua posição e a assumir sua parcialidade, para então confrontar-se com um leque de novas e de velhas possibilidades.

No presente texto, interdisciplinaridade evoca, antes de tudo, situações em que dois ou mais rótulos disciplinares são evocados em um mesmo contexto enunciativo. Importa destacar que tais expedientes não supõem necessariamente consensos definidos a priori acerca do que significam uma ou outra disciplina cujo diálogo se quer estudar. Se os portadores de uma disciplina nem sempre estão de acordo quanto ao sentido que deve ser atribuído à especificidade disciplinar, pode-se deduzir que fenômenos similares aconteçam com igual ou maior frequência quando se explicita a pertinência ou a impertinência de um diálogo entre saberes. As possibilidades são inúmeras. Alguém pode, por exemplo, ao atribuir um sentido preciso a cada uma das disciplinas envolvidas, pregar a inexistência de fronteiras entre elas. Nesse caso, defende-se uma convergência total. Outra alternativa, certamente a mais frequente, é aquela de uma convergência parcial, a qual, articulando definições diferentes de disciplinas, delineia áreas de colaboração e(ou) de sobreposição. Como terceira possibilidade, pode-se conceber que alguém, explicitando ou não suas razões, defenda a impossibilidade do diálogo. Importa destacar, por fim, que todas essas tomadas de posição podem se dar - e costumeiramente se dão - ao mesmo tempo, envolvendo diferentes definições e, por conseguinte, diferentes circuitos de entusiastas e de detratores.

Ilustra-se o raciocínio com exemplos concretos. Desde seu doutorado, sem ter previamente muita clareza quanto às implicações do que estava fazendo, o autor deste artigo tem trabalhado com essa modalidade cruzada de recorte. Ele se dispôs a analisar os diálogos entre os autoproclamados helenistas, latinistas e os sociólogos durkheimianos ao longo da Terceira República francesa (BENTHIEN, 2011aBENTHIEN, Rafael Faraco. Interdisciplinaridades: latinistas, helenistas e sociólogos em revistas. Tese de doutorado. História Social. Universidade de São Paulo, 2011a.). A pesquisa consistiu em isolar nas revistas especializadas enunciados em que se explicitava o problema das relações entre os estudos sociológicos - uma novidade naquele cenário - e as pesquisas sobre Grécia e Roma Antigas - objetos então altamente tradicionais e prestigiados. As múltiplas interfaces entre os representantes de saberes estabelecidos e aqueles de um saber outsider sedimentaram o desenvolvimento do trabalho: à medida que lograram conquistar espaço no sistema de ensino e pesquisa francês, os sociólogos tiveram de negociar com helenistas e latinistas, seja reconhecendo a centralidade de seus objetos - discutindo autores greco-latinos ou reforçando a relevância de suas civilizações para a história ocidental -, seja oferecendo seus préstimos - insistindo sobre a valia dos problemas, dos métodos e dos conceitos sociológicos para a complexificação do trabalho dos classicistas. Teriam essas negociações levado a acomodações de tensões e a soluções de compromisso? A resposta passava por listar o que se produziu e explicar os indícios encontrados.

O que surpreende, do ponto de vista da historiografia dos saberes assim colocados em relação, é que as genealogias produzidas por seus representantes a partir da segunda metade do século XX não investigaram sistematicamente os circuitos de ideias e de pessoas de interesse do autor. Entre os sociólogos interessados pela história da sociologia francesa, nenhum trabalho explorou a relação entre os primeiros sociólogos e os classicistas12 12 Quando muito, destacou-se a importância de Fustel de Coulanges para a formação de Durkheim na École Normale Supérieure (FOURNIER, 2007, p. 47-48 e 56-60). . Seus interesses voltaram-se especialmente à recuperação dos diálogos com outras disciplinas então em evidência - a filosofia, em particular13 13 No tocante às relações entre sociólogos durkheimianos e filósofos, ver HEILBRON, 2006; MUCHIELLI, 1998; PAOLETTI, 1989 e 2012; PINTO, 2009. . Entre os helenistas e os latinistas do mesmo período, por outro lado, o tema era polêmico. O grupo organizado em torno de Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne e Pierre Vidal-Naquet indicava que o diálogo com as ciências sociais se concretizou justamente com eles, sendo antes apenas prefigurado por Louis Gernet, alguém tão original quanto marginal14 14 Veja-se, por exemplo, VERNANT, 2001, p. 157-168. . Já os representantes do establishment dos classicistas franceses, por seu turno, buscaram minimizar a relevância do comparatismo das ciências sociais ao insistir no nexo essencial que conecta as línguas e as culturas gregas, latinas e francesas15 15 É o que afirma Jacqueline de Romilly, paradigmaticamente, em uma de suas derradeiras entrevistas publicadas (PERNOT, 2008, p. xvi-xxiv). .

As transformações do sistema de ensino e pesquisa francês ajudam a explicar, ao menos em parte, as diferentes memórias disciplinares. A partir dos anos 1950, os estudos clássicos perderam muito de seu lugar de destaque nos concursos e, por conseguinte, no ensino secundário. De componente central para a autoimagem do honnête homme francês, ou seja, do homem aristocrático-burguês educado, eles passaram a ser vistos cada vez mais como uma barreira à democratização e à modernização do ensino, ou então como saberes não mais relevantes que os demais16 16 Tal denúncia é antiga e foi formulada na Franca desde a Comissão Ribot, a qual retirou a obrigatoriedade do latim para os exames de ingresso no ensino superior universitário francês (veja-se, a esse respeito, RINGER, 1992, p. 141-195). Em 1925, o filósofo Edmond Goblot o anuncia em um livro que se tornou clássico, La Barrière et le Niveau (ver, para a versão em português, GOBLOT, 1989). O próprio Pierre Vidal-Naquet, na introdução de suas memórias, reconhece o quanto essa argumentação corroeu o prestígio social dos estudos clássicos, a ponto de o autor se ver como representante da última geração, formada nos anos 1950, que ainda deveu parte significativa de sua autoimagem ao contato com os autores greco-latinos (VIDAL-NAQUET, 2007). . Já a sociologia, na esteira do estruturalismo, ganhou cada vez mais espaço, sendo reconhecida a partir da criação de certificados de estudos e de centros de pesquisas especializados.

A quase inversão de papéis torna compreensível a falta de interesse de uns - os antigos outsiders agora em ascensão - e as diferentes posturas de outros - os antigos dominantes agora relegados às margens do sistema. Estes, em especial, dividiram-se entre aqueles interessados em defender o antigo prestígio de seus objetos e aqueles dispostos a renovar seu campo de estudos a partir tanto do diálogos para fora quanto da criação de novas genealogias intelectuais, duas reações que se deram às custas de um apagamento de partes da história de suas áreas17 17 É verdade que não se pode reduzir os latinistas e os helenistas às duas posições evocadas. Havia ainda os que, como Pierre Lévêque, buscavam o diálogo com uma ciência social marxista, pouco tradicional na universidade francesa, bem como pesquisadores interessados no diálogo com certa filosofia e certa filologia alemãs (em especial, em torno de Jean Bollack). Para uma visão panorâmica dessas questões, ver BENTHIEN, 2009. .

A contrapelo das historiografias consolidadas, a pesquisa recuperou vários circuitos de ideias e de pessoas, tanto positivos quanto negativos. Nomes hoje praticamente esquecidos e outrora centrais para os debates entre sociólogos e classicistas, tais como os dos irmãos Reinach (Salomon e Theodore), Camille Jullian, Gustave Glotz, Paul Perdrizet, Paul Huvelin, Joseph Déchelette, Antoine Meillet, Henri Hubert, Henri Jeanmaire e Pierre Roussel puderam ser resgatados, mostrando como os diversos encontros entre eles produziram agendas de pesquisa inovadoras nas primeiras décadas do século XX. Uma vez feita essa recuperação de nomes a partir do material publicado nas revistas especializadas, tornou-se possível (re)descobrir outros documentos ainda não considerados pelas respectivas histórias disciplinares. Em visitas aos arquivos de Henri Hubert, Salomon Reinach, Marcel Mauss e Joseph Déchelette foram encontrados vestígios dos mesmos diálogos em cartas, bem como em material preparatório de publicações e cursos ministrados18 18 Veja-se WEISS & BENTHIEN, 2012, e BENTHIEN, 2014. .

O conjunto consolidado de resultados viabilizou, na sequência, buscar variáveis explicativas, mesmo que parciais, para os diferentes engajamentos nos circuitos isolados19 19 Variáveis de diversas ordens - tais como afinidades religiosas, políticas, escolares etc. - corroboram para tornar inteligível a existência de certos circuitos em que os rótulos transitam. Afinal, latinistas, helenistas e sociólogos franceses tiveram uma vida antes de se consagrarem a seus estudos. E mesmo depois de sua “profissionalização”, suas existências não se resumem a seus trabalhos. As tradicionais histórias disciplinares por vezes autonomizam demais a dimensão específica dos investimentos puramente disciplinares, ignorando ou minimizando a importância de diálogos “para fora”. . No âmbito do intervalo investigado, foram restabelecidas correlações de ordem política - sobretudo no âmbito da simpatia ao socialismo e aos combates em torno do Caso Dreyfus -, religiosa - com um lugar de destaque ocupado por minorias, judeus em particular - e de trajetórias escolares/profissionais que aproximavam estruturalmente sociólogos e helenistas - ao ponto de ambos citarem-se com frequências e participarem, com mais ou menos intensidade, das iniciativas científicas e institucionais alheias. Constatou-se assim que são vários os primeiros colaboradores de Durkheim a apresentarem-se publicamente como especialistas em diversos aspectos (religião, economia, língua e direito) da civilização grega. Por outro lado, entre os latinistas, dentre os quais predominavam professores católicos e conservadores, moral e politicamente, as pontes foram menos frequentes e as resistências, maiores. Nos três casos, contudo, não se constatam perfis absolutamente homogêneos. As disciplinas jamais constituem, afinal, blocos totalmente fechados e coerentes20 20 Em estudos posteriores, investiu-se em debates instaurados entre sociólogos e arqueólogos, com alguns resultados já publicados (BERT et alii, 2015, p. 7-37; e BENTHIEN, 2016, p. 281-297). É difícil não mencionar aqui a iniciativa coletiva da qual participa-se em torno da coleção “Biblioteca Durkheimiana”, publicada pela Edusp e dirigida pelo autor do referido artigo e por Raquel Weiss (UFRGS). Nela, a monumentalidade da “escola sociológica francesa” é criticada a partir de um trabalho filológico com o texto editado (anotando diferenças entre as versões publicadas em vida pelo autor), da explicitação das escolhas dos tradutores (tornada possível graças às edições bilíngues), da criação de aparato crítico não laudatório, bem como da inserção de anexos consequentes (outros textos de época e materiais de arquivo). Vê-se, em cada volume, como as fronteiras disciplinares são pouco adequadas para uma apreciação matizada da referida escola. A coleção publicou, até o presente momento, seis volumes. .

Além de expor resultados, o objetivo do presente texto é também defender epistemologicamente uma posição. Nesse sentido, o trunfo desta abordagem não está, vale insistir, no fato dela fornecer uma resposta definitiva acerca do que é uma disciplina, tampouco negar sua existência. Ele reside, isso sim, na possibilidade de controlar melhor o ângulo a partir do qual se olha as disciplinas e, por extensão, restituir circuitos de ideias e de pessoas que possam por ventura ter ficado de fora de historiografias tradicionais. Dito de outro modo, esta proposta não implica implodir os resultados consolidados, mas torná-los mais complexos a partir da explicitação de uma embocadura analítica paradoxalmente mais modesta.

Entre os historiadores contemporâneos, os que mais dão subsídios para tal proposta são Michel Espagne, Bénédicte Zimmerman e Michael Werner, em particular quando convidam seus interlocutores a pensar a partir dos prismas de uma “história cruzada” e das “transferências culturais”. Ao explorar os intercâmbios franco-alemães, nas letras e nas ciências, a ênfase desses autores se dá não na apresentação de ontologias francesas e alemãs, mas na reconstrução de circuitos complexos. Tais circuitos atravessam França e Alemanha, bem como os inúmeros grupos existentes transversalmente a esses países, unindo e separando indivíduos, criando verdadeiras zonas de comunicação e, também, de opacidade21 21 Trata-se, também aqui, de seguir os “objetos”, que são os rótulos, verificando se existem ou não polos que orientam esses circuitos. Cf., sobre isso, WERNER & ZIMMERMANN, 2003; bem como ESPAGNE, 2013. .

A questão não é exatamente nova, nem de um ponto de vista epistemológico, como já indicou Bachelard, nem de um ponto de vista metodológico. Em outros trabalhos, o autor deste artigo refere-se a reflexões análogas advindas do uso que Weber propõe do conceito de “afinidades eletivas”, ou ainda da análise sociolinguística que Antoine Meillet constrói a partir da noção de “empréstimo”22 22 Em particular, BENTHIEN, 2011a, p. 297-302 e 2011b, assim como MEILLET, 2016. . Nos dois casos, a questão é a mesma: mostrar como os indivíduos, os grupos e as várias dimensões da vida social se interpenetram, viabilizando circuitos que persistem e se transformam.

Considerações finais: a respeito de profetas, sacerdotes e leigos

Há ainda outra razão para que o tema da interdisciplinaridade norteie um olhar renovado em relação às disciplinas, a saber, o fato de a reprodução disciplinar requerer não apenas a preservação do velho, mas também, e principalmente, a produção do novo. Nesse sentido, a questão da interdisciplinaridade não se reduz ao mero jogo de linguagens, para falar como Wittgenstein, mas está no próprio cerne da atividade disciplinar. Trata-se de um jogo sério, no qual ninguém pode deixar de se posicionar.

As diferentes posturas enunciativas evocadas na primeira parte deste texto indicam um esforço por parte dos portadores das disciplinas em prol da justificação e da generalização de suas posições. Destaca-se aqui, com o perdão do trocadilho, que essas posições invariavelmente supõem algum grau de sobreposição. Isso é visível não apenas nos casos em que se advoga a fusão entre uma ou outra disciplina, mas também nas inúmeras manifestações que apontam para zonas de colaboração, de trocas, entre saberes. Eis uma questão que, dada sua regularidade, vai além da dimensão puramente epistemológica do problema.

Ao propor há praticamente quarenta anos uma sociologia histórica dos estabelecimentos científicos, Norbert Elias já indicou o quão “normal” deveria ser a percepção da interdisciplinaridade para a história das ciências (ELIAS, 1982ELIAS, Norbert. Scientific Establishments. In: ELIAS, Norbert; MARTINS, Herminio; WHITLEY, Richard. Scientific Establishments and Hierarchies. Londres: D. Reidel Publishing Company, 1982, p. 3-69.). As diferentes unidades que produzem conhecimento definem-se, afinal, não essencialmente, mas em função das relações que as prendem umas às outras ao longo de uma ampla cadeia de gerações de especialistas. O problema para uma apreensão matizada da questão, na percepção do sociólogo, reside nas “armadilhas filosóficas” construídas por grupos de especialistas para si e para as instituições em que habitam23 23 Bachelard, por seu turno, fala em “obstáculos epistemológicos”, em termos muito próximos àqueles utilizados nas primeiras páginas deste artigo. Veja-se, acerca desse conceito capital, BACHELARD, 1995. . Por trás do rótulo disciplinar, vê-se uma ontologia, e, consequentemente, uma relação hierárquica dada na própria natureza do mundo. E há mais: boa parte dessa percepção trans-histórica de determinado conhecimento está atrelada a uma ideologia profissional construída historicamente, uma imagem de si que fornece orientação para as ações de determinados indivíduos no mundo. Quando a interdisciplinaridade é percebida pelo prisma dessa ideologia, ela é justamente enquadrada em um esquema valorativo prévio, ou então vista como emanando naturalmente da lógica transcendental da divisão de trabalho científico. Para tornar mais concreto o peso dessa ideologia profissional, Elias compara as instituições científicas ocidentais aos seus mais ilustres precursores, os estabelecimentos religiosos. Ao trabalhar a partir da noção de “discurso autorizado”, cuja interpretação e difusão são monopólios sacerdotais, as igrejas oferecem a seus clientes uma visão de mundo. Se durante séculos essa lógica da “revelação” norteou o ensino e a pesquisa ocidentais, a ciência moderna fundou-se na percepção da parcialidade e da falibilidade humanas. Ela não se contentou com o papel de confirmar verdades recebidas das gerações anteriores, mas a estas acrescentou questões e resultados novos, expandindo-as, tornando-as mais complexas. Não há ruptura absoluta entre uma e outra instituição, assim como não há continuidade absoluta.

Se a aproximação entre igrejas e estabelecimentos científicos é justa, alguns tipos cunhados por Max Weber em sua sociologia religiosa - os profetas, os sacerdotes e os leigos - podem ser úteis para tornar manuseável a noção de interdisciplinaridade, tal como ela é entendida no presente texto. Os profetas são aqueles que anunciam uma boa nova, uma guinada tão radical que a antiga fé é parcialmente reformada, ou então abandonada. E há mais: o sociólogo alemão chama atenção para o fato de os profetas invariavelmente circularem entre mundos. Eles produzem verdadeiras “sínteses”, conectando o mundo da rua, e suas demandas, às tradições dos diversos templos, operando assim um comércio pouco usual nas duas direções. Os profetas caracterizam-se precisamente por essa atitude radical e inovadora na produção de um “sentido cósmico”. Os sacerdotes, por seu turno, dos quais depende a sobrevivência de uma profecia, rotinizam o carisma do profeta, transformando seus novos ensinamentos em manuais, instituindo os velhos e os novos testamentos, bem como zelando pela boa observação dos ritos. Eles instituem e protegem as fronteiras. Por fim, toda igreja depende dos leigos, junto aos quais recruta seus futuros quadros e aos quais promete, na forma de bens e de serviços, certos benefícios. Como a história das religiões é atravessada constantemente por profecias, as quais suscitam novos esforços de rotinização, vê-se o quanto esses três tipos são fundamentais (WEBER, 2006WEBER, Max. Sociologie de la Religion. Tradução de Isabelle Kalinowski. Paris: Flammarion , 2006., p. 152-204).

Algo similar ocorre no âmbito das disciplinas científicas. No caso específico dos “profetas” disciplinares, para que produzam uma novidade, devem engendrá-la também a partir da viabilização de circuitos inusitados. A produção de um “grande nome” passa pelo reconhecimento inter pares de que há, atrelada a ele, uma contribuição sistêmica ou pontual digna de adesão ou de enfrentamento24 24 Embora esse carisma profético seja mais palpável quando recai sobre uma única pessoa, ele também se faz sentir em grupos, que podem receber etiquetas de “escola”, de “círculo”, ou algum outro rótulo mais institucional identificado com agendas inovadoras. Note-se que também aqui as adesões podem ser positivas ou negativas. No âmbito da história das religiões, as novas profecias enfrentam resistências tanto de profetas concorrentes quanto das igrejas estabelecidas. Em alguns casos, a agenda nova é atacada por seus adversários como “heresia”, em outros, como “magia”. O importante é indicar a “incoerência” e, sobretudo, o caráter “impuro”, “sacrílego”, “ilícito” e “ilegítimo” da proposta. Uma discussão recente em relação aos usos positivos e negativos desses rótulos coletivos pode ser encontrada em ORAIN, 2018. . A eleição de novos objetos, problemas e métodos indica assim uma ruptura ao menos parcial com a autorreferencialidade das agendas consagradas. Ou seja, sugere-se que a inspiração para tal não se encontra apenas na agenda outrora legítima, mas se faz, em um diálogo para fora, contra ela. Tão logo uma nova agenda encontre epígonos, entram em cena figuras análogas às dos “sacerdotes”, aqueles que a normatizam e a reproduzem. Sejam eles professores que divulgam e discutem textos sagrados, ou pesquisadores que aplicam agendas de pesquisas previamente definidas, os sacerdotes disciplinares esforçam-se por instituir e controlar as fronteiras da disciplina que entendem ser legítimas. Os leigos, ou os não-iniciados, são tanto estudantes - ainda não graduados e, portanto, ainda impossibilitados de um amplo reconhecimento - quanto aqueles que não pertencem de modo algum às corporações profissionais. Esse público é, aliás, crucial, uma vez que é dele que virão os neófitos das disciplinas particulares, bem como a parcela do público que arcará, via compra de bens e de serviços, ou via doações diretas ou indiretas (tais como impostos obrigatórios), com as condições de existência da comunidade de especialistas. Nessa perspectiva, é sempre estratégico que alguns iniciados divulguem a boa nova ao grande público, em uma versão desprovida da linguagem hermética dos iniciados.

Caso a transposição da temática weberiana possa ser levada a sério, assim como se propõe aqui, a disciplina seria o conjunto de profetas, sacerdotes e leigos, os quais abarcam, a bem dizer, o mundo inteiro, e que falam em diferentes direções, a partir de diferentes circuitos. É nesse sentido que a interdisciplinaridade, estando no cerne da profecia, faz parte das disciplinas. E há mais: ela parece ser mesmo um dos motores, senão o principal motor, das disciplinas.

Viveiros de Castro, para voltar ao caso discutido no início deste texto, é um perfeito exemplo de profeta disciplinar. Ao profetizar um futuro para a antropologia, apresenta uma triagem do passado e vai ao encontro de outras disciplinas e autores para produzir sua mensagem, difundida por sacerdotes dispostos a passar adiante o evangelho. Essa mensagem, que enfrenta resistências e adesões, é reproduzida nos cursos de graduação e de pós-graduação da área. Ela também chega às instâncias dos não iniciados - especialistas em outros saberes ou não-cientistas -, os quais vinculam-se a ela com maior ou menor interesse. E seria diferente com qualquer outro indivíduo bem-sucedido dotado da mesma ambição?

O grande problema das histórias disciplinares tradicionais é que elas focam em demasia no conteúdo da mensagem dos profetas e dos sacerdotes. Elas sacralizam a boa nova, que é a própria ideia de disciplina que se defende ou que se ataca, e que invariavelmente implica a nomeação de um passado e a projeção de um futuro. Atenta-se pouco, assim, para os mecanismos de produção dos profetas e dos sacerdotes, ou seja, para os circuitos que tornam possíveis tanto a mensagem inovadora quanto sua difusão25 25 Ou, no caso da difusão, quando o fazem, priorizam o interno em detrimento do externo, medindo e explicando o sucesso de especialistas apenas no seio da disciplina que reclamam para si. .

Ao colocar a interdisciplinaridade no centro da história disciplinar, a história cruzada das disciplinas não se confunde com o que diz um ou outro profeta. Ela situa, na verdade, a profecia, convidando o historiador a reconstituir os circuitos de pessoas e de ideias que são ativados na viabilização do novo. Observar a disciplina a partir das tensões entre rótulos disciplinares apenas viabiliza falar a seu respeito sem naturalizar ou tomar a priori partido acerca do que se diz, e também sem querer, de forma alguma, anunciar sua totalidade e sua unidade. No fundo, essa ambição irrealizável só é legítima na boca dos profetas e dos sacerdotes disciplinares, por razões ao mesmo tempo científicas, políticas (no sentido institucional do termo) e afetivas.

Além de complexificar as histórias disciplinares, o que me parece lícito esperar de uma história cruzada das ciências é que ela possa, ao expor o mecanismo da profecia disciplinar e de sua difusão, encorajar o surgimento de novos profetas. A disciplina científica não precisa ser, afinal, um instrumento de fechamento e de dominação. Ela também precisa encarnar a possibilidade de uma abertura à complexidade do mundo, um convite à tolerância e à inventividade, bem como à responsabilidade que as acompanham. Essa é, sem dúvida, sua melhor faceta.

  • 1
    Este artigo não foi previamente publicado em plataforma de preprint e toda a bibliografia empregada encontra-se nele referida. Sua primeira versão foi apresentada no “II Encontro A História Indisciplinada”, realizado em 2015, na UFRGS. Em formato mais próximo ao atual, serviu de base para a primeira aula do curso de pós-graduação “Por uma história cruzada das ciências: princípios epistemológicos e estudos de caso”, ministrado na USP em 2018. Registra-se agradecimento à generosidade de colegas e de estudantes que, nas duas ocasiões, testaram o argumento e seus limites. Miguel Palmeira, Rodrigo Turin e Frederico Rosa teceram valiosas críticas à versão submetida, bem como os pareceristas da revista. Espera-se ter feito justiça às suas observações e assume-se, aqui, inteira responsabilidade quanto a eventuais equívocos cometidos.
  • 3
    A negação da historicidade da disciplina, localizando em seu centro uma eternidade, cumpre papel análogo. Para alguns portadores disciplinares, por vezes é apenas esse imutável que se dá a ver.
  • 4
    No dia 5 de março de 2019, o Google assinalava em suas bases um total de 745 citações do referido texto. No portal Scielo, na mesma data, indica-se que ele foi o quinto artigo da revista Mana com maior número de downloads em formato PDF, com 5104 cópias. A centralidade e a atualidade do referido texto na proposta de Viveiros de Castro são ainda reforçadas pelo fato do próprio autor ter dado seu nome a uma recente coletânea publicada em inglês (VIVEIROS DE CASTRO, 2015VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. The Relative Native. Chicago: The Chicago University Press/Hau Books, 2015.).
  • 5
    Veja-se, por exemplo, REYNOSO, 2014REYNOSO, Carlos. Crítica de la Antropología Perspectivista. Buenos Aires: UBA, 2014.; DIANTELL, 2015DIANTELL, Erwan. Ontologie et Anthropologie: dix ans de controverse (Brésil, France, États-Unis). Revue Européenne de Sciences Sociales, Genebra, v. 53, n.º 2, p. 119-144, 2015. ISSN: 1663-4446. DOI: 10.4000/ress.3314. Disponível em : <https://journals.openedition.org/ress/3314>. Acesso em: 8 maio 2020.
    https://journals.openedition.org/ress/33...
    ; e VERDE, 2017VERDE, Filipe. Fechados no quarto de espelhos: o perspectivismo ameríndio e o “jogo comum” da antropologia. Anuário Antropológico, Brasília, v. 42, n.º 1, 2017. ISSN: 2357-738X. DOI: 10.4000/aa.1679. Disponível em: <https://journals.openedition.org/aa/1679>. Acesso em: 8 maio 2020.
    https://journals.openedition.org/aa/1679...
    .
  • 6
    Não se ignora que cada um desses autores, até mesmo em decorrência de seus méritos, motivou o aparecimento de uma ampla gama de comentadores. Esclarece-se que, no que se segue, não se pretende esgotar todos esses debates. Propõe-se apenas, dentro das competências e dos limites estabelecidos, oferecer uma leitura dessas obras, certamente pessoal e parcial, para embasar um argumento. Solicita-se a indulgência do leitor quanto a esse ponto.
  • 7
    É bem verdade que o modelo desenvolvido por Kuhn foi parcialmente antecipado em seu estudo sobre a Revolução Copernicana (KUHN, 1990KUHN, Thomas S. A Revolução Copernicana. Tradução de Marília Fontes. Lisboa: Edições 70, 1990 [1957].). É também notável que o próprio Kuhn tenha voltado a ele posteriormente, apontando lacunas e propondo agendas complementares (penso em KUHN, 2006KUHN, Thomas S. O Caminho desde a Estrutura. Tradução de Cezar Mortari. São Paulo: Unesp, 2006.). No presente texto, porém, serão consideradas apenas as formulações de seu livro clássico.
  • 8
    É importante notar que Bourdieu fez incursões pontuais no âmbito da história das ciências, muitas delas meramente propositivas. Veja-se, sobre isso, BOURDIEU, 1975BOURDIEU, Pierre. La spécificité du champ scientifique et les conditions sociales du progrès de la raison. Sociologie et Sociétés, Montreal, v. 7, n.º 1, p. 91-118, 1975. ISSN: 1492-1375. Disponível em: <https://www.erudit.org/fr/revues/socsoc/1975-v7-n1-socsoc122/001089ar/>. DOI: <https://doi.org/10.7202/001089ar>. Acesso em: 8 maio 2020.
    https://www.erudit.org/fr/revues/socsoc/...
    ; 1976BOURDIEU, Pierre. Le champ scientifique. Actes de la recherche en sciences sociales, Paris, v. 2, nº. 2-3, p. 88-104, 1976. ISSN: 0335-5322. Disponível em: <https://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1976_num_2_2_3454>. DOI: <https:/doi.org/10.3406/arss.1976.3454>. Acesso em: 8 maio 2020.
    https://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322...
    ; 1995BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus . Paris: Minuit , 1984. e 2001BOURDIEU, Pierre. Science de la Science et réflexivité. Paris: Raison d'Agir, 2001.. Seu único livro mais ambicioso relacionado ao tema não trata de uma disciplina, mas do campo científico francês como um todo (BOURDIEU, 1984BOURDIEU, Pierre. Homo Academicus. Paris: Minuit, 1984.).
  • 9
    Tal como no caso de Kuhn, a formalização latouriana é precedida de estudos de caso (em especial, LATOUR & WOOLGAR, 1997LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. A Vida de Laboratório. Tradução de Angela Viana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997 [1979].). O modelo de 1987 foi, mais tarde, reformado e parcialmente abandonado por Latour. Não foram consideradas essas mudanças no presente artigo.
  • 10
    Veja-se, sobre isso, BOLTANSKI, 2003BOLTANSKI, Luc. Usages faibles, usages forts de l'habitus. In: ENCREVÉ, Pierre; LAGRAVE, Rose-Marie (org.). Travailler avec Bourdieu. Paris: Flammarion, 2003, p. 153-161., p. 153-161.
  • 11
    Ou seja, dar ênfase às sobreposições seria, em seus termos, realçar a heteronomia. Isso ocorre tanto em um plano mais geral (o campo científico em relação a outros espaços/campos - o econômico, o jornalístico etc.) quanto em um plano particular (cada disciplina em relação às demais). O argumento na sequência ocorrerá em outra direção: a autonomia não deve ser defendida via reafirmação do particular, mas via articulação produtiva de particulares, tendo o “geral” como pano de fundo. Cada disciplina específica, no que ela periodicamente apresenta de inventivo, só se sustenta em função de um renovado diálogo “para fora”, que quebre em alguma medida com sua autorreferencialidade. A trajetória de Bourdieu ilustra isso: sua defesa da autonomia de certa sociologia só foi possível porque ele e seus colaboradores puderam compor um programa inovador ao fazer confluir diferentes vertentes que se queriam sociológicas e também repertórios de autores, conceitos e problemas externos (vindos de certa antropologia, de certa linguística, de certa filosofia, de certa física, e assim por diante). De resto, esse programa inovador não teve apenas efeitos “para dentro”, vindo também a afetar outras disciplinas e espaços/campos socias. Esse assunto será tratado na conclusão do artigo.
  • 12
    Quando muito, destacou-se a importância de Fustel de Coulanges para a formação de Durkheim na École Normale Supérieure (FOURNIER, 2007FOURNIER, Marcel. Émile Durkheim . Paris: Fayard , 2007., p. 47-48 e 56-60).
  • 13
    No tocante às relações entre sociólogos durkheimianos e filósofos, ver HEILBRON, 2006HEILBRON, Johan. La Naissance de la Sociologie. Tradução de Paul Dirkx. Marselha: Agone, 2006.; MUCHIELLI, 1998MUCHIELLI, Laurent. La Découverte du Social. Paris: La Découverte, 1998.; PAOLETTI, 1989PAOLETTI, Giovanni. L'Année Sociologique et les philosophes: histoire d'un débat (1898-1913). L'Année Sociologique, Paris, v. 48, n.º 1., p. 77-114, 1989. ISSN: 0066-2399. e 2012PAOLETTI, Giovanni. Durkheim et la Philosophie. Paris: Garnier, 2012. ; PINTO, 2009PINTO, Louis. La Théorie Souveraine. Les sociologues français e la sociologie au XXe siècle. Paris: Cerf, 2009..
  • 14
    Veja-se, por exemplo, VERNANT, 2001VERNANT, Jean-Pierre. Entre Mito e Política. Tradução de Christina Murachco. São Paulo: Edusp , 2001., p. 157-168.
  • 15
    É o que afirma Jacqueline de Romilly, paradigmaticamente, em uma de suas derradeiras entrevistas publicadas (PERNOT, 2008PERNOT, Laurent. À l'École des Anciens. Paris: Les Belles Lettres, 2008. , p. xvi-xxiv).
  • 16
    Tal denúncia é antiga e foi formulada na Franca desde a Comissão Ribot, a qual retirou a obrigatoriedade do latim para os exames de ingresso no ensino superior universitário francês (veja-se, a esse respeito, RINGER, 1992RINGER, Fritz. Fields of Kwnoledge. Cambridge: Cambridge, 1992., p. 141-195). Em 1925, o filósofo Edmond Goblot o anuncia em um livro que se tornou clássico, La Barrière et le Niveau (ver, para a versão em português, GOBLOT, 1989GOBLOT, Edmond. A Barreira e o Nível. Tradução de Estela dos Santos. Rio de Janeiro: Papirus, 1989.). O próprio Pierre Vidal-Naquet, na introdução de suas memórias, reconhece o quanto essa argumentação corroeu o prestígio social dos estudos clássicos, a ponto de o autor se ver como representante da última geração, formada nos anos 1950, que ainda deveu parte significativa de sua autoimagem ao contato com os autores greco-latinos (VIDAL-NAQUET, 2007VIDAL-NAQUET, Pierre. Mémoires. Paris: Seuil, 2007. (volume 1: la brisure et l'attente).).
  • 17
    É verdade que não se pode reduzir os latinistas e os helenistas às duas posições evocadas. Havia ainda os que, como Pierre Lévêque, buscavam o diálogo com uma ciência social marxista, pouco tradicional na universidade francesa, bem como pesquisadores interessados no diálogo com certa filosofia e certa filologia alemãs (em especial, em torno de Jean Bollack). Para uma visão panorâmica dessas questões, ver BENTHIEN, 2009BENTHIEN, Rafael Faraco. Um homem entre vários mundos: sobre uma entrevista com Jean Bollack. PhaoS, Campinas, v. 9, p. 5-27, 2009. ISSN: 1676-3076. Disponível em: <https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/index.php/phaos/article/view/9441>. Acesso em: 8 maio 2020.
    https://econtents.bc.unicamp.br/inpec/in...
    .
  • 18
    Veja-se WEISS & BENTHIEN, 2012WEISS, Raquel Andrade; BENTHIEN, Rafael Faraco. A redescoberta de um sociólogo: considerações sobre a correspondência de Émile Durkheim a Salomon Reinach. Novos Estudos - Cebrap, São Paulo, n.º 94 , p. 133-149, 2012. ISSN: 0101-2200. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002012000300007&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. DOI: <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002012000300007>. Acesso em: 19 fev. 2019.
    https://www.scielo.br/scielo.php?script=...
    , e BENTHIEN, 2014BENTHIEN, Rafael Faraco. O que há de impessoal em arquivos pessoais: considerações a partir de uma experiência de pesquisa na França. Vozes, Pretérito e Devir, Teresina, v. 3, p. 42-57. 2014. ISSN: 2317-1979. Disponível em : <http://revistavozes.uespi.br/ojs/index.php/revistavozes/article/view/50/52>. Acesso em: 8 maio 2020.
    http://revistavozes.uespi.br/ojs/index.p...
    .
  • 19
    Variáveis de diversas ordens - tais como afinidades religiosas, políticas, escolares etc. - corroboram para tornar inteligível a existência de certos circuitos em que os rótulos transitam. Afinal, latinistas, helenistas e sociólogos franceses tiveram uma vida antes de se consagrarem a seus estudos. E mesmo depois de sua “profissionalização”, suas existências não se resumem a seus trabalhos. As tradicionais histórias disciplinares por vezes autonomizam demais a dimensão específica dos investimentos puramente disciplinares, ignorando ou minimizando a importância de diálogos “para fora”.
  • 20
    Em estudos posteriores, investiu-se em debates instaurados entre sociólogos e arqueólogos, com alguns resultados já publicados (BERT et alii, 2015BERT, Jean-François (org.) et al. Henri Hubert et la Sociologie des Religions. Liège: Presses Universitaires de Liège, 2015., p. 7-37; e BENTHIEN, 2016BENTHIEN, Rafael Faraco. Sociologue et archéologue. Henri Hubert à la lumière de ses compte-rendus. In: DAHAN-GAIDA, Laurence (org.). Circulation des savoirs et reconfiguration des idées. Lille: Septentrion, 2016, p. 281-297., p. 281-297). É difícil não mencionar aqui a iniciativa coletiva da qual participa-se em torno da coleção “Biblioteca Durkheimiana”, publicada pela Edusp e dirigida pelo autor do referido artigo e por Raquel Weiss (UFRGS). Nela, a monumentalidade da “escola sociológica francesa” é criticada a partir de um trabalho filológico com o texto editado (anotando diferenças entre as versões publicadas em vida pelo autor), da explicitação das escolhas dos tradutores (tornada possível graças às edições bilíngues), da criação de aparato crítico não laudatório, bem como da inserção de anexos consequentes (outros textos de época e materiais de arquivo). Vê-se, em cada volume, como as fronteiras disciplinares são pouco adequadas para uma apreciação matizada da referida escola. A coleção publicou, até o presente momento, seis volumes.
  • 21
    Trata-se, também aqui, de seguir os “objetos”, que são os rótulos, verificando se existem ou não polos que orientam esses circuitos. Cf., sobre isso, WERNER & ZIMMERMANN, 2003WERNER, Michael; ZIMMERMANN, Bénédicte. Penser l'histoire croisée: entre empirie et réflexivité. Annales, Paris, v. 58, n.º 1, p. 7-36, 2003. ISSN: 1953-8146. DOI:. 10.3917/anna.581.0007. Disponível em: <https://www.cairn.info/revue-annales-2003-1-page-7.htm>. Acesso em: 19 fev. 2019.
    https://www.cairn.info/revue-annales-200...
    ; bem como ESPAGNE, 2013ESPAGNE, Michel. La notion de transfert culturel. Revue Sciences/Lettres, Paris, n.º 1, 2013. ISSN: 2271-6246. DOI: 10.4000/rsl.219. Disponível em <https://journals.openedition.org/rsl/219>. Acesso em: 8 maio 2020.
    https://journals.openedition.org/rsl/219...
    .
  • 22
    Em particular, BENTHIEN, 2011aBENTHIEN, Rafael Faraco. Interdisciplinaridades: latinistas, helenistas e sociólogos em revistas. Tese de doutorado. História Social. Universidade de São Paulo, 2011a., p. 297-302 e 2011bBENTHIEN, Rafael Faraco. Comment les mots changeant de sens. Atelier du Centre de Recherches Historiques. Paris, v. 7, 2011b. ISSN: 1760-7914. Disponível em: <https://journals.openedition.org/acrh/3576>. Acesso em: 20 fev. 2019.
    https://journals.openedition.org/acrh/35...
    , assim como MEILLET, 2016MEILLET, Antoine. Como as Palavras Mudam de Sentido. Tradução de Rafael Faraco Benthien. São Paulo: Edusp, 2016..
  • 23
    Bachelard, por seu turno, fala em “obstáculos epistemológicos”, em termos muito próximos àqueles utilizados nas primeiras páginas deste artigo. Veja-se, acerca desse conceito capital, BACHELARD, 1995BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Científico. Tradução de Estela Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto , 1995 [1938]..
  • 24
    Embora esse carisma profético seja mais palpável quando recai sobre uma única pessoa, ele também se faz sentir em grupos, que podem receber etiquetas de “escola”, de “círculo”, ou algum outro rótulo mais institucional identificado com agendas inovadoras. Note-se que também aqui as adesões podem ser positivas ou negativas. No âmbito da história das religiões, as novas profecias enfrentam resistências tanto de profetas concorrentes quanto das igrejas estabelecidas. Em alguns casos, a agenda nova é atacada por seus adversários como “heresia”, em outros, como “magia”. O importante é indicar a “incoerência” e, sobretudo, o caráter “impuro”, “sacrílego”, “ilícito” e “ilegítimo” da proposta. Uma discussão recente em relação aos usos positivos e negativos desses rótulos coletivos pode ser encontrada em ORAIN, 2018ORAIN, Olivier. Les écoles en sciences de l'homme: usages indigènes et catégories analytiques. Revue d'Histoire des Sciences Humaines, Paris, n.º 32 , p. 7-32, 2018. ISSN: 1963-1022. DOI: 10.4000/rhsh.288. Disponível em : <https://journals.openedition.org/rhsh/288>. Acesso em: 19 fev. 2019.
    https://journals.openedition.org/rhsh/28...
    .
  • 25
    Ou, no caso da difusão, quando o fazem, priorizam o interno em detrimento do externo, medindo e explicando o sucesso de especialistas apenas no seio da disciplina que reclamam para si.

Referências Bibliográficas

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    » https://www.persee.fr/doc/arss_0335-5322_1995_num_106_1_3131» https://doi.org/10.3406/arss.1995.3131
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    » https://www.erudit.org/fr/revues/socsoc/1975-v7-n1-socsoc122/001089ar/» https://doi.org/10.7202/001089ar
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Editado por

Doutor em ciências pelo programa de pós-graduação em História Social, do Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo - FFLCH/USP. Professor do magistério superior lotado no Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba, Paraná, Brasil.
Editores Responsáveis: Júlio Pimentel Pinto e Flavio de Campos

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2019
  • Aceito
    05 Fev 2020
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