RESUMO
O presente artigo estuda uma parcela de documentos no acervo de Mário de Andrade do IEB/USP, com o aporte da crítica genética, visando aproximar o estudioso cultural do manuscrito “Preto”, o diretor do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo - idealizador das comemorações do Cinquentenário da Abolição - e o ensaísta de “Estudos sobre o negro”, segunda parte da obra póstuma Aspectos do folclore brasileiro (2019). O diálogo entre as produções confirma que Mário de Andrade identifica a existência de um preconceito de cor à brasileira e, ao vivenciar consequências da violência racial, alcança a compreensão de uma complexidade do racismo no Brasil, semelhante ao atualmente denominado racismo institucional (VINUTO, 2023).
PALAVRAS-CHAVE
Preconceito de cor; Mário de Andrade; racismo no Brasil
ABSTRACT
This article examines a portion of documents from the Mário de Andrade collection (IEB/USP), with the support of genetic criticism, aiming to bring the cultural scholar closer to the manuscript “Preto”, the director of the Department of Culture of the city of São Paulo - creator of the celebrations for the Fiftieth Anniversary of the Abolition - and the essayist of “Studies on the Black”, the second part of the posthumous work Aspects of Brazilian Folklore (2019). The dialogue between these works confirms that Mário de Andrade identifies the existence of a Brazilian-style color prejudice and, by experiencing the consequences of racial violence, reaches an understanding of the complexity of racism in Brazil, similar to what is currently called institutional racism (VINUTO, 2023).
KEYWORDS
Color prejudice; Mário de Andrade; racism in Brazil
Entre os aspectos que definem o pensamento moderno de Mário de Andrade (1893-1945), destacam-se seus estudos sobre a cultura negra e relações raciais no Brasil. O folclore, concebido por ele como um campo de conhecimento cultural, constitui-se em ferramenta teórica para a análise tanto dos materiais oriundos de suas pesquisas de campo quanto das leituras de cancioneiros populares e diários de viagem, particularmente aqueles de estrangeiros que descreveram cenários e práticas culturais de diversas regiões do país.Ao longo da vida, reúne farto material e, de acordo com Telê Ancona Lopez (1972, p. 11), “a literatura popular torna-se [para Mário de Andrade] seu fator básico de conhecimento do povo brasileiro”
Ao indicar a importância da arte popular como fonte de criação para a erudita, modernistas, como Mário de Andrade, herdam aspectos da tradição romântica. Desde o início dos anos de 1920, o paulista insiste para que artistas da elite encontrem no popular possíveis formulações para uma identidade nacional para que, assim, o Brasil participe do “concerto das nações”. Em 1924, escreve a Tarsila do Amaral:
Vocês foram a Paris como burgueses. Estão “épatés”. E se fizeram futuristas! hi! hi! hi! Choro de inveja. Mas é verdade que considero vocês todos uns caipiras em Paris. Vocês se parisianizaram na epiderme. Isso é horrível! Tarsila, Tarsila, volta para dentro de ti mesma. Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estesias decadentes! Abandona Paris! Tarsila! Tarsila! Vem para a mata virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis. Há MATA VIRGEM. Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam. (apud AMARAL, 2001, p. 78).
Vale lembrar que na Europa dos anos de 1920, a arte negra, à qual Mário de Andrade se refere na carta, diz respeito a obras espoliadas de territórios africanos colonizados por países europeus. Pablo Picasso e Georges Braque, entre outros vanguardistas, entraram em contato com peças depositadas em museus etnográficos como matriz para suas criações. Ou seja, ações imperialistas, em territórios africanos, asiáticos e americanos, exploraram material significativo que, de forma indireta, serviu de matriz para a criação de artes de vanguardas contestatórias. Dito de outro modo, uma parcela de artistas encontrou, nesses contextos, elementos inéditos que possibilitaram questionar as formas tradicionais de representação de mundo ocidental. Nesse sentido, além da famigerada presença de reprodução de máscaras africanas no cubismo, destaco também, na literatura, a publicação de Anthologie nègre de Blaise Cendrars, em 1921. Pela primeira vez na Europa, focaliza-se o valor artístico, e não etnográfico, de um conjunto de textos literários produzidos em território africano.
Esse novo momento de confronto na arte ocidental, acessado por Mário de Andrade em publicações de livros e revistas, instiga-o, assim como a outros vanguardistas latino-americanos, a olhar para o nacional, desvinculando-se da cultura europeia como modelo central. O interesse pela cultura popular de matriz africana e/ou indígena provoca um tensionamento capaz de questionar hierarquias éticas e estéticas em relação à produção erudita em diferentes países da América Latina. O movimento de raiz romântica, de olhar para dentro, para um popular ainda desconhecido, alcançou em Mário de Andrade outros desdobramentos. As viagens pelo país e a biblioteca de mais de 20 mil volumes, por exemplo, forneceram-lhe bases sólidas para estudar o Brasil com crivo crítico; desse modo, o repositório de saber popular permite-lhe (re)conhecer, entre outros aspectos, o protagonismo da cultura negra em diálogo, inclusive, com a origem afro-brasileira do próprio escritor, neto de mulheres negras.
Além da valorização do nacional, o material recolhido por Mário de Andrade, principalmente o de fonte popular, permitiu ao pesquisador modernista deslindar violências cotidianas, como o preconceito de cor à brasileira. Os apodos - frases ultrajantes, jocosas repetidas oral e cotidianamente - consolidam o racismo contra a população negra; o etnógrafo coletou centenas deles para investigar, como veremos, o fenômeno primeiramente como fruto de uma “superstição da cor preta”, mas, no ano seguinte, avança ao reconhecer e denunciar a existência de uma “linha de cor”, conforme tradução direta de “color line”, termo importado do contexto do racismo nos Estados Unidos.
No Brasil, a falácia da democracia racial, motivada pelo Estado Novo, ocultava ações que denominamos atualmente como racistas. Mediante pesquisas, criações artísticas e atuação política, Mário de Andrade constatou que, no final da década de 1930, cinquenta anos após a Abolição da escravatura, mantinha-se no país a imposição de lugares sociais de subalternidade a serem ocupados pela população negra, em uma sociedade econômica e culturalmente dominada por brancos. Nos anos de 1930 e1940, coube a estudiosos, de diferentes perspectivas teóricas, refletir sobre relações raciais no Brasil em estudos precursores tomados por nomes como Gilberto Freyre, Arthur Ramos e Manuel Raimundo Querino. Aproximo Mário de Andrade deste último - o funcionário público e autodidata coletou e estudou importante material cultural africano em fontes populares baianas. A primeira edição (póstuma) de Costumes africanos no Brasil (QUERINO, 1938) chegou às mãos de Mário de Andrade pelo prefaciador da obra, Arthur Ramos, conforme se lê em dedicatória do exemplar que se encontra no Fundo Mário de Andrade do Arquivo do IEB/USP. O estudioso baiano e o leitor paulista, ambos afrodescendentes, compartilham uma visão semelhante sobre o enfrentamento do preconceito racial por meio do acesso da população negra à educação formal. Para Mário de Andrade e Manuel Querino não havia o “problema do negro”, ou seja, a precária condição econômica enfrentada pela população negra brasileira não resultava de uma inferioridade de raça, mas sim da falta de acesso à instrução, uma das interdições imposta à população negra desde o Brasil colônia e que se manteve no pós-abolição. Ambos aproximam-se de uma concepção contemporânea denominada racismo institucional, a qual, conforme explica Juliana Vinuto, trata-se de uma violência que não pode ser concebida no nível individual, mas como resultado de “padrões históricos de submissão operados por instituições durante a interação entre seus operadores e os cidadãos atendidos” (VINUTO, 2023, p. 302)
Essa lógica de violência institucional, pelo caráter não explícito, pode ser aproximada da simbólica, a qual se manifesta de diferentes formas e em outros contextos da diáspora africana. Também contemporâneo de Mário de Andrade, o intelectual afro-americano W. E. B. Du Bois descreve uma dinâmica violenta e não verbalizada, subjacente às relações entre negros e brancos nos Estados Unidos. Segundo Du Bois (1999, p. 52), a ausência de um enfrentamento direto da questão “Como é a sensação de ser um problema?” deve-se a um irônico “sentimento de delicadeza” do branco e à “dificuldade em articulá-la corretamente”. Contudo, ela se faz presente, ainda que de forma implícita, nas interações interpessoais: “Com um jeito hesitante, aproximam-se de mim, olham-me com curiosidade ou compaixão e, em vez de perguntarem diretamente [...], dizem: ‘Na minha cidade, conheço um excelente homem de cor’” (DU BOIS, 1999, p. 52). Embora aparentemente revestidas de cortesia, essas palavras reforçam uma visão hierárquica que sustenta a ideia de uma superioridade racial branca. O reconhecimento singular de um “excelente homem de cor” funciona como um mecanismo de exclusão simbólica, evidenciando a dificuldade do branco em se engajar de forma genuína com as múltiplas dimensões da experiência negra, reduzindo-a um “problema”. Mário de Andrade, a seu modo, explora e interpreta essas complexidades em diferentes aspectos de sua produção intelectual. Para tanto, serve-lhe a concepção que atribui a folclore
Na primeira das três partes do livro Aspectos do folclore brasileiro, em “O folclore no Brasil”, escrito em 1942, Mário de Andrade busca teorizar sua compreensão de folclore como ciência, a princípio destacando o uso errôneo de pesquisadores que lançam mão da coleta de material da cultura popular apenas como “forma burguesa de prazer” (ANDRADE, 2019, p. 26). Ou seja, para eles, o folclore seria encarado apenas como coleta daquilo “que elas [as artes folclóricas] podem apresentar de bonito para as classes superiores.”. Esse processo, chamado pelo ensaísta de “superiorização das classes burguesas”, na verdade, apaga “a busca do conhecimento, a utilidade de uma interpretação legítima e um anseio de simpatia humana” (ANDRADE, 2019, p. 17),ou seja,aspectos negligenciados pelos “folcloristas” podem ser lidos como parte fundamental da ideia de folclore, que se conceitua, na perspectiva de Mário de Andrade, como conhecimento fora dos livros capazes de fornecer interpretações da sociedade e, por conseguinte, despertar maior simpatia entre as pessoas. O folclore pode ser tomado tanto como espaço de fala para a população silenciada pela educação formal, quanto lugar simbólico que repete uma ideologia de classe economicamente abastada.
Ao adentrar na produção cultural popular - frequentemente ignorada pela elite brasileira por considerar uma produção de qualidade inferior à erudita -, Mário de Andrade confronta diferentes interpretações de acontecimentos históricos e descobre novas possibilidades de diálogo entre vida e arte. Em Danças dramáticas do Brasil (2002), por exemplo, na primeira edição póstuma em 1960, organizada por Oneyda Alvarenga, encontramos o diálogo de Mário pesquisador de campo com o Mário leitor de obras populares coletadas por estudiosos e viajantes. A organização do repertório reunido permitiu-lhe identificar a herança de uma dramatização religiosa imposta por grupos dominantes, ou seja, em momentos de celebração, os modos de vida e de pensar do colonizador são mimetizados pela população, por via cristã: “Foi a finalidade religiosa que deu aos bailados sua origem primeira e interessada, a razão de ser psicológica e a sua tradicionalização” (ANDRADE, 2002, p. 33).
O pesquisador, contudo, também identifica na produção cultural popular uma autonomia que rompe com original religioso, tanto pelo vigor cômico e catártico, que resulta em uma “vontade de caçoar, de se libertar de valores dominantes por meio do riso”, como por “interesses da luta pela vida [que] desorientam violentamente o fundo religioso dos bailados, a ponto de nalguns esse fundo já estar quase invisível” (ANDRADE, 2002, p. 34). Desse modo, há uma transformação simbólica que desorienta e mascara costumes, “dando a alguns bailados uma finalidade nova, que não sendo nunca falsa (o povo é falso nunca), não é mais a originária” (ANDRADE, 2002, p. 34). Mário de Andrade alcança, portanto, uma perspectiva cultural à frente de sua época, na medida em que compreende na arte popular aspectos velados da sociedade brasileira, inclusive mazelas sociais da ex-colônia. Assim, ao investigar a produção cultural negra - como a dança, a música, a culinária e a religiosidade -, o pesquisador acessa material, inclusive linguístico, que lhe permite uma análise crítica sobre as especificidades do racismo no contexto brasileiro.
Considero que o (re)conhecimento da violência racial à brasileira atravessa o pensamento de Mário de Andrade e desdobra-se à medida que ele aprofunda os estudos sobre o Brasil, como também ao vivenciar, ele mesmo, consequências do racismo. Neto de mulheres negras e de homens brancos, entre os filhos, Mário de Andrade herda a pele mais escura. Adulto,ocupa um espaço de prestígio na elite intelectual paulistana e, consciente das paredes que o separam da elite branca, reconhece, inclusive, a importância de associações negras, dialogando com elas, ainda que não se partidarize. O artista encontra na lírica espaço de vazão e elaboração de conteúdos gerados pela violência racial, o que lhe permite não se tornar um negro assimilado. Essa camada pessoal, focalizo em trabalhos dedicados a Mário poeta (GRILLO, 2015, no prelo), principalmente porque a poesia serve-lhe como espaço de elaboração criativa para pensar a si e a outros como negros brasileiros, silenciados pelo racismo.
O estudo de documentos do polígrafo, voltados para o reconhecimento e a valorização da cultura negra brasileira, demonstra o crivo crítico do pesquisador interessado em compreender as violências do racismo e propor mudanças. Embora dispersos em diferentes seções do Arquivo do IEB/USP, esses materiais estão interligados por um diálogo intrínseco, que permite identificar conexões significativas entre suas partes. Ademais, o caminho aqui proposto visa oferecer ao leitor a possibilidade de acompanhar parcelas do sistemático e crítico trabalho dedicado ao acervo de escritor, realizado por décadas pela Equipe Mário de Andrade, sob a coordenação de Telê Ancona Lopez.
A crítica genética, enquanto campo teórico voltado ao estudo de manuscritos literários modernos, orienta a investigação dos documentos, buscando superar meras suposições para alcançar o que Louis Hay (2007, p. 19) define como desvendar, não o movimento de espírito do escritor, mas o “traço de um ato”, sem a pretensão de interpretar o que o autor “queria dizer, mas o que ele disse”. O trabalho cotidiano com Telê Ancona Lopez, por mais de uma década, ensinou-me que a catalogação anda na contramão de um olhar mecânico para os documentos. Pelo contrário, exige-se atenção aos traços deixados ao longo do processo criativo, para então propor uma organização que respeite a lógica intrínseca do autor. Essa abordagem permite uma disposição do acervo de modo a facilitar o acesso de pesquisadores a um universo criativo cuja ordenação torne evidente o diálogo com os materiais. A organização crítica dos documentos busca, portanto, não apenas democratizar o acesso ao acervo de escritores, mas também oferecer subsídios para estudos aprofundados. Seu propósito não é reproduzir fielmente o processo criativo, mas identificar indícios que favoreçam uma compreensão mais refinada das obras, inclusive das inacabadas, ampliando os horizontes interpretativos da produção científica e artística.
No processo de catalogação, deve-se considerar ainda a diversa materialidade dos documentos. Para Louis Hay (2007, p. 17), é preciso considerar cadernos, esboços, rascunhos como materiais que participam de diferentes etapas da criação, ou seja, “desde que o pensamento e a imaginação os tocaram, todos, do documento inerte - dicionário, relatório - até a página inspirada, encontram-se dotados de vida e convocados a desempenhar seu papel num projeto de escritura”. Nesse sentido, no acervo de Mário de Andrade destaco, entre outros tipos de manuscritos, as notas de trabalhos, encontradas autógrafas em papéis pequenos ou recortes de artigos publicados; bem como notas marginais em livros de sua biblioteca; ou seja, parcelas esparsas que, ao serem conectadas pela pesquisa, apresentam o alcance e as relações do processo criativo. Estudos como esses, realizados em acervos literários, podem resultar em publicações de obras interrompidas pela morte do escritor, como as edições póstumas d’ O turista aprendiz, Café e Aspectos do folclore brasileiro.
O manuscrito “Preto”: abertura de caminhos
No projeto temático “Estudo do processo de criação de Mário de Andrade nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em suas leituras” (Fapesp/IEB-USP- 2007-2011), coordenado por Telê Ancona Lopez, identifiquei na série Manuscritos de Mário de Andrade (IEB/USP) o número 97, intitulado “Preto”, nomeado conforme a escolha do próprio autor. O estudo junto aos documentos permitiu-me compreender que se guardam ali mais 20 anos de pesquisas de Mário de Andrade, iniciadas no final da década de 1920 e desenvolvidas até o último ano de vida do escritor interessado no estudo da cultura negra e do preconceito de cor (GRILLO, 2010). Os documentos, em sua maioria, reportam-se a leituras de aspectos culturais, históricos e antropológicos; detendo-se, em grande parte, na literatura de quadras populares, ditos e refrões coletados por Mário etnógrafo.
O manuscrito “Preto” (GRILLO, 2010), quanto à composição, acumula notas de trabalho, com registros de indicações de leitura e/ou comentários, e versões de textos. O total de 371 fólios foi disposto pelo pesquisador em pasta improvisada com a capa dura de um caderno (23,2 cm x 33,5 cm). Na análise das 350 notas de trabalho, na tentativa de reconstituir um percurso do pesquisador e da redação dos ensaios, identifiquei aspectos da organização original. Nesse sentido, vale destacar que, no conjunto de suas notas de trabalho/pesquisa, Mário de Andrade explicitou seis subtemas organizados em diferentes notas guardadas em envelopes azuis, em cada qual anotado: “Escravidão”, “O mulato”, “Caracteres”, “Contra o preto (preconceito, linha de cor etc.)”, “Gestos” e “Música”.
O estudo do conjunto de documentos mostra, contudo, notas “soltas” que ficaram de fora da organização dos envelopes. Fica-se, portanto, com duas hipóteses: a vida não deu a ele tempo de finalizar a organização ou ele a interrompeu ao se dar conta da complexidade do tema, pois muitas das notas não se enquadram apenas nos seis subtemas, ou abrangem mais de um. De todo modo, a verificação das fontes das notas de trabalho, guardadas ou não nos envelopes, permitiu-me ampliar os subtemas que se mostraram no diálogo do pesquisador com suas leituras. Sendo assim, “Mulher de cor” - conforme termo usado pelo escritor -, “História”, “Costumes”, “Contra ataque”, “Botânica”, “Apodo”, “Religião” e “Superstição” foram acrescidos durante a organização do manuscrito.
Além das notas que indicam centenas de leituras, “Preto” guarda a versão datiloscrita do ensaio-conferência sem título, batizado pela minha pesquisa como “Cinquentenário da Abolição”, bem como dois artigos, guardados pelo autor sob a forma de recortes: “A superstição da cor preta”, divulgado em Publicações Médicas (1938), e “Linha de cor” (1939), em O Estado de S. Paulo. Dezenas das notas de trabalho serviram à escrita dos textos mencionados; marcadas com X a lápis azul, o sinal codifica para o escritor a indicação de leitura/nota aproveitada em seu processo de criação. A coleta de apodos, registrada em dezenas de notas, serviu-lhe para defender a ideia central da existência de uma “fácil e frágil antinomia de origem branco-europeia, pela qual se considera a cor branca simbolizadora do Bem e a negra simbolizadora do Mal” (ANDRADE, 2019, p. 107). O manuscrito “Preto” traz ainda marcas de projetos - interrompidos pela morte do autor -, pois, além das notas de trabalho e das versões de texto, o autor guarda um exemplar de trabalho, com anotações a grafite que comprovam o retorno, anos mais tarde, à reelaboração do ensaio.
Grande parte das notas de trabalho, Mário de Andrade coletou da oralidade a partir de duas principais fontes: em conversas no cotidiano da cidade e em cancioneiros, portugueses e brasileiros, obras, em geral do século XIX, guardadas em sua biblioteca. O estudo da oralidade permitiu a Mário de Andrade avançar em relação a outros estudos da época, pois encontrou na voz popular subsídios para identificar a existência da violência do racismo. Mário de Andrade compreendera que o preconceito de cor, disfarçado de piada, demarca relações desiguais em um país que pretendia ser reconhecido pela democracia racial. Nesse sentido, é possível aproximar a interpretação de Mário de Andrade da primeira metade do século XX aos recentes estudos de racismo recreativo, de Adilson Moreira. Para o jurista, trata-se de uma forma específica de opressão racial baseada “na circulação de imagens derrogatórias que expressam desprezo por minorias raciais na forma de humor, fator que compromete o status cultural e o status material dos membros desses grupos” (MOREIRA, 2019, p. 24).
Além da coleta na fala popular, Mário etnógrafo consultou estudos como Des coulers symboliques, de Frédéric Portal (1837), exemplar da biblioteca do escritor que guarda, à p. 107, o grifo a grafite ao lado do trecho “Le noir est le symbole de tout cequi est mal et de tout cequi est faux”2. Ao provar a existência de uma superstição, no Cinquentenário da Abolição e no primeiro artigo publicado, Mário de Andrade afirma a inexistência de uma linha de cor no Brasil, pois, apesar dos violentos apodos, entende que “entre nós, negro que se ilustre pode galgar qualquer posição” (ANDRADE, 2019, p. 84), inclusive, como diz, ele mesmo precisou lidar com tais insultos. No entanto, no ano seguinte, em 1939, para o artigo “Linha de cor”, retoma o material coletado em “Preto” e, nas entrelinhas, responde ao boicote que sofrera nas Comemorações do Cinquentenário da Abolição organizadas por ele enquanto diretor do Departamento da Cultura da municipalidade de São Paulo. Desse modo, Mário avança de modo substancial em sua perspectiva sobre as relações raciais no Brasil, pois alcança apreender e comprovar a existência do racismo, compreendido naquele momento como preconceito de cor, sustentado pela injúria racial movida pelo humor, e uma linha de cor que divide negros e brancos.
O Cinquentenário da Abolição na Pauliceia: 15 dias de consciência negra
Entre os documentos do manuscrito “Preto”, o ensaio pela primeira vez encontrado depois da morte do escritor, pela ausência de título, foi batizado pela minha pesquisa de “Cinquentenário da Abolição”. Em versão datada de 7 de maio de 1938, o datiloscrito ocupa 16 fólios, numeração a máquina: “2-7” e “10-18” e numeração a grafite “8”, com rasuras autógrafas a tinta preta, a lápis azul e vermelho. A análise mostra que os artigos mencionados, “A superstição da cor preta” (1938) e “Linha de cor” (1939), derivam desse texto, que também discute o preconceito de cor no Brasil. O texto de 1938, com forma e conteúdo de discurso/conferência, foi preparado para ser apresentado no ciclo de conferências na Comemoração do Cinquentenário da Abolição, ocorridas entre 27 de abril e 13 de maio de 1938, evento organizado por ele próprio, Mário de Andrade, enquanto diretor do Departamento da Cultura da municipalidade de São Paulo.
Vale retomar o fato de que, três anos antes, em 31 de maio de 1935, Mário de Andrade fora convidado pelo então prefeito da cidade de São Paulo, Fábio Prado, para dirigir o recém-criado Departamento da Cultura da municipalidade de São Paulo. Nomeado, logo em seguida, chefe da Divisão de Expansão Cultural e diretor desse departamento, sua atuação foi marcada por projetos que buscaram democratizar a cultura. Deixou legados como a criação de parques infantis, da Discoteca Pública e de casas culturais. Promoveu concursos no âmbito da música; contratou Dina Lévi-Strauss, antropóloga francesa, para ministrar curso de Etnografia, e fundou com ela a Sociedade de Etnografia e Folclore. Em junho de 1937 promoveu, pelo Departamento de Cultura, o I Congresso de Língua Nacional Cantada. E, em 1938, organizou as Comemorações do Cinquentenário da Abolição.
No Arquivo Washington Luís encontra-se uma solicitação de verba para organizar as comemorações do Cinquentenário da Abolição, assinada pelo Diretor do Departamento de Cultura, em 14 de fevereiro de 1938. Endereçado ao prefeito Fábio Prado, o requerimento obtém despacho favorável em 17 de fevereiro de 1938. No documento enviado ao prefeito, o Diretor expõe o programa completo: 1. Ciclo de conferências culturais sobre “O negro no Brasil” e publicação das mesmas na Revista Arquivo do Município de São Paulo; 2. Reconstituição de uma festa de Congada; 3. Realização de festejos em parques infantis e bibliotecas. Concertos especializados em música negra na Discoteca Municipal, teatros e salas de concertos. Porém, em 9de maio de 1938, a situação política muda repentinamente: Fábio Prado é substituído, na Prefeitura, por Francisco Prestes Maia, nome escolhido pelo Estado Novo. Mário de Andrade é obrigado a renunciar no dia 11 e o novo prefeito nomeia Francisco Pati para dirigir o Departamento de Cultura. (GRILLO, 2010, p. 54-55).
Pati não susta a comemoração, mas a reduz a uma as três partes programadas: as conferências. Mário planejara o evento para 15 dias de duração, contando com a presença de importantes intelectuais brancos e negros brasileiros, como o médico Arthur Ramos, o escritor Cassiano Ricardo, Francisco Lucrécio, fundador da Frente Negra Brasileira, Justiniano da Costa, ex-presidente da mesma, e o poeta negro Nilo Guedes. O ciclo de conferências ocorre, de fato, entre 27 de abril e 11 de maio de 1938, no Palácio do Trocadero, sede do Departamento de Cultura, no centro de São Paulo, próximo ao Theatro Municipal. No dia 2 de maio há uma sessão solene, organizada pelas associações negras, no Theatro Municipal; Mário de Andrade e Arthur Ramos compõem a mesa, dirigida por Justiniano da Costa. As notícias, na imprensa paulistana, mostram que o Departamento de Cultura e as associações Negras de São Paulo estão realizando o evento em conjunto. Vale lembrar que dentre os congressistas negros havia aqueles que tinham sido fundadores e presidentes da Frente Negra Brasileira (FNB) e que o ano de 1938 foi um dos mais truculentos do Estado Novo, que decretara no ano anterior a ilegalidade de partidos políticos.
A Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, de maio de 1938, mostra-se um importante documento que reúne elementos relativos à política da nova gestão do Departamento de Cultura, principalmente para compreendermos o boicote ao Cinquentenário da Abolição, evento que não se concretiza conforme o plano aprovado pelo prefeito Fábio Prado. O número comemorativo, sob a responsabilidade do novo diretor Francisco Pati, absorve apenas cinco das dez conferências anunciadas nos jornais e realmente pronunciadas. São elas: “Negro e folclore cristão no Brasil”, de Artur Ramos; “Castigos de escravos” e “O espírito associativo do negro brasileiro”, de Cassiano Ricardo; “O negro no bandeirismo Paulista” e “A Abolição” de Pedro Calmon. Nenhuma das conferências dos intelectuais negros foi publicada. Na seção Noticiários, lemos:
1º - A posse do novo prefeito de São Paulo, Prestes Maia, no dia 9 de maio de 1938.
2º - O ato de posse, no dia 11 de maio de 1938, do novo diretor do Departamento de Cultura, Francisco Pati, e o discurso de transferência de posse de Mário de Andrade, que homenageia o ex-prefeito Fábio Prado, como se vê no trecho:
“Sr. Dr. Francisco Pati. Tenho o maior prazer e honra em entregar nas mãos de V. S. a direção do Departamento de Cultura. Faço-o com verdadeira e intensa comoção. Esta comoção deriva exclusivamente do amor, da verdadeira paixão admirável que tenho e todos nós temos, funcionários do Departamento de Cultura, por esta instituição magnífica, criada pelo espírito de Fabio Prado. [...] E que minha derradeira palavra seja ainda uma lembrança grata a Fabio Prado, o criador deste instituto [...]”.
3º - Relato das comemorações do Cinquentenário da Abolição: conferências e conferencistas que se apresentaram no Palácio do Trocadero. Em 11 de maio, isto é, no mesmo dia da posse, o diretor Francisco Pati encerra as comemorações.“Após a última palestra, da qual se encarregou o dr. Cassiano Ricardo, fez uso da palavra o Sr. Francisco Pati, diretor do Departamento da Cultura que, com breve discurso, encerrou as comemorações do cinquentenário da abolição.” (ANDRADE, 1942, p. 251-254).
Vemos, portanto, dois dados importantes: a inexistência de menção na revista da conferência de Mário de Andrade e a omissão de um comunicado que explique os motivos da saída do primeiro diretor do Departamento da Cultura, em meio, inclusive, ao evento por ele organizado. Ao acompanhar os jornais da época verifiquei que o ciclo de conferências ocorreu entre os dias 27 de abril e 12 de maio de 1938 e que Mário de Andrade presidiu quase todas as sessões, exceto, seguramente, três: a sessão solene no Theatro Municipal, no dia 2, bem como a do dia 9 de maio, no Palácio do Trocadero, que foram presididas por Justiniano Costa; e a sessão de 12 de maio, encerramento do ciclo, presidida por Francisco Pati como novo diretor do Departamento da Cultura.
Conforme verificado em estudo anterior (GRILLO, 2010), o ensaio de Mário de Andrade guarda indicações de que ele esperava apresentar-se no mesmo dia de Francisco Lucrécio, na sessão que se realizou em 10 de maio, véspera da posse de Francisco Pati. O manuscrito que denominei “Cinquentenário da Abolição” é datado de 7 de maio de 1938, um sábado. Pensando na apresentação no dia 10 de maio, escreve a conferência apesar de se encontrar em meio um turbilhão de notícias e boatos. A consulta aos jornais historia a presidência das mesas, em todas as datas, com exceção do dia 11. O Estado de S. Paulo, na informa que, na véspera, dia 10, Francisco Lucrécio falara sobre “A liberdade é o negro”. Mário de Andrade não é citado nos jornais, o que confirma a sua ausência no evento. Mas a evidência de que ele tencionava comparecer nesse dia está no próprio texto:
O Departamento de Cultura, nesta celebração do cinquentenário da lei Áurea, fez questão de trazer os negros para esta “sala de brancos”, a um deles trazendo para este ciclo de conferências comemorativas. É o dr. Francisco Lucrécio, designado pelas associações negras e que vai nos falar agora. (ANDRADE, 2019, p. 103).
Além das comemorações na cidade de São Paulo, o manuscrito intitulado “Cinquentenário da Abolição”, na série Manuscritos de Mário de Andrade (IEB/USP),guarda a dimensão dos planos traçados para o festejo também no Rio de Janeiro, então capital da República. Planos bem mais ambiciosos do que as atividades efetivamente realizadas, como os jornais informam. Ao propor uma abrangente reflexão sobre o negro no âmbito cultural, etnográfico, antropológico, histórico, apoia-se em conferências, apresentações artísticas: música, dança e exposições. O primeiro plano mira São Paulo; um datiloscrito de 11 fólios, cópia carbono azul, determina a participação de setores da Municipalidade - Diretoria de Expansão Cultural, Divisão de Turismo e Divertimentos Públicos, Parques Infantis e a Discoteca Pública; inclui a Sociedade de Etnografia e Folclore. Prevê conferências, concurso de peças para banda sobre a Abolição e concerto ao ar livre. Conjectura ainda uma grande apresentação sinfônica de música negra dirigida por Souza Lima e exposição iconográfica afro-brasileira. Os Parques Infantis encenariam a dança dramática dos Congos. A Congada de Atibaia desfilaria pelas ruas do centro de São Paulo, culminando com a Coroação do rei negro, na Praça da Sé, “pelo Prefeito, se ele tiver coragem”, de acordo com manuscrito.
Em missiva de 23 de fevereiro de 1938, o ministro da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, consulta o diretor do Departamento de Cultura de São Paulo: “Os seus trabalhos aí muito me interessam. Também eu vou preparar uma comemoração do Cinquentenário da Abolição. Não acha interessante que nos articulemos, para que todas as festas tenham uma certa unidade de sentido?”3. Em 26 de fevereiro, em outra carta, Mário é então convidado a “Fazer parte da comissão do programa de comemoração do Cinquentenário da Abolição, e escrever uma conferência sobre o negro em um determinado aspecto de nossa cultura”4. Entusiasmado, ele redige, para o Ministério da Saúde e Educação, as “Sugestões para a comemoração do Cinquentenário da Abolição”, guardando a cópia da carta datiloscrita em seu arquivo, em carbono, com rasuras e lembretes de ordem pessoal a grafite, em seis folhas de papel sulfite.
Ambos os planos, municipal e nacional, são fundamentais para se dimensionar a multidisciplinaridade da discussão; o segundo, especialmente, abarcando todos os meios de comunicação da época. Na capital do país, além de conferências e concertos de música negra, haveria publicação de livros e revistas, programação especial nas rádios, exposições de objetos de arte, religiosos e ligados ao cotidiano da escravidão, assim como confecção de mapas estatísticos sobre a população negra brasileira. O encerramento, em uma sessão solene presidida pelo ministro, homenagearia os abolicionistas residentes no Rio.
A republicação do artigo “A superstição da cor preta”, em Pensamento da América - Suplemento Panamericano do jornal A Manhã de 27 de setembro de 1942, Mário de Andrade contribui com uma breve e importante declaração que serve como uma reflexão dos acontecimentos de 1938:
O Boletim da Sociedade Luso-Africana do Rio de Janeiro, nº 24, dezembro de 1938, publicou “A superstição da cor preta”, sintético, profundo e saboroso estudo etnográfico do grande poeta brasileiro Mário de Andrade, por tantos títulos admirado na América inteira. Perguntado agora sobre qual dos seus livros devia ser citado como a fonte deste trabalho, Mário de Andrade em carta de 29 de agosto último, assim respondeu ao diretor do Pensamento da América... a “Superstição da cor preta” não foi publicada em livro, nem sabia que fora transcrita no Boletim da Sociedade Luso-Africana, embora receba esse boletim quando não se perde pelo caminho. Minha nota foi publicada aqui, numa revista de propaganda de remédios, Publicações médicas. Fez parte do discurso inaugural das festas do Cinquentenário da Abolição, que promovemos no Departamento da Cultura em 1938. Mas isto se dava durante a mudança de governo, eis que eu saía do meu lugar e o prefeito novo, aliás sob muitos aspectos admirável, acabou com o resto das celebrações, porque também sofria da superstição. (ANDRADE, 1942).
De acordo com Mário, de fato, o novo governo freara as comemorações planejadas, e o estudo do texto, chamado de discurso inaugural oferece algumas questões relevantes. Como focalizado, o manuscrito data de 7 de maio e dialoga com o palestrante do dia 10 de maio, Francisco Lucrécio; a declaração de 1942 diz ter sido parte do discurso inaugural, mas não confere com a abertura das conferências, em 27 de abril. É possível que Mário de Andrade tenha se equivocado quanto à data do discurso e que este tenha realmente acontecido no dia 10. Resta então saber: por que nenhum jornal do dia 11, ao contrário de todos os outros dias, noticia quem tinha sido o presidente da mesa na véspera? O escritor, sem dúvida, preparou sua fala para aquele 10 de maio; além de dialogar com outros dias do evento- lê-se na primeira linha: “na sessão solene realizada pelas associações negras de São Paulo no dia dois de maio passado” (ANDRADE, 2019, p. 83) -, o texto faz um balanço da atuação dos intelectuais negros durante o evento. De qualquer maneira, trabalha-se com a hipótese de que ele não teve oportunidade de se apresentar devido às mudanças políticas. Francisco Pati tomou posse em 11 de maio e ficou a seu cargo o encerramento do evento.
É importante destacar o desfecho da Comemoração do Cinquentenário da Abolição: das três partes planejadas por Mário de Andrade, conforme o requerimento enviado e aprovado em fevereiro de 1938, a apresentação da Congada de Atibaia, conforme se lê no jornal O Estado de S. Paulo de 14 de maio de 1938, foi cancelada:
Grande parte do programa organizado pelo Departamento Municipal da Cultura, em virtude dos últimos acontecimentos na capital da República, deixou de ser executado. A “congada”, a coroação da rainha e do rei do Congo, que eram festas populares na época da escravidão e que o Departamento da Cultura premeditava reviver, não foram realizadas. Deixou também de realizar-se a grande parada dos homens de cor, na noite de ontem na Praça da Sé, pelo mesmo motivo. No entanto, depois de grande número de conferências promovidas pelo Departamento de Cultura, no Palácio do Trocadero e a sessão solene no Teatro Municipal, em continuação houve ontem a grande romaria ao túmulo de Luis Gama, Julio Mesquita e José Bonifácio, no cemitério da Consolação.
Ao cemitério compareceram especialmente convidados o dr. Francisco Patti, diretor do Departamento Municipal de Cultura e o sr. Nicanor Miranda, diretor do Departamento de Educação e Recreação da Prefeitura Municipal, além dos presidentes de todas as associações negras de São Paulo e numeroso público.
Os “acontecimentos na capital”, usados como motivo para o cancelamento dos festejos em São Paulo, referem-se, segundo outra matéria do mesmo periódico, à tentativa de “grupos integralistas” de invasão no Palácio do Guanabara e no Ministério da Marinha, no Rio de Janeiro, na noite de 11 de maio. Vale retomar que, na sua declaração de 1942, Mário de Andrade ironicamente desvenda o real motivo do cancelamento: “o prefeito novo, aliás sob muitos aspectos admirável, acabou com o resto das celebrações, porque também sofria da superstição” (ANDRADE, 1942).
O tom ácido de Mário de Andrade no ensaio/conferência “Cinquentenário da Abolição”, usado como provocação para incentivar o rigor nas análises produzidas pelos intelectuais negros, atenua-se nos artigos “A superstição da cor preta”, em julho de 1938, e “Linha de cor”, de 1939, dirigidos a outro tipo de público. Os três textos, além de captarem a tensão do momento em que se inserem, discutem o preconceito de cor na esfera do folclore, assunto absolutamente novo. O estudo genético dos manuscritos permitiu-me identificar que o material reunido forma a segunda parte, “Estudos sobre o negro”, de Aspectos do folclore brasileiro, obra publicada pela primeira vez em 2019.
“Estudos sobre o negro”:uma pesquisa alinhavada
Nos anos de 1940, a convite da Livraria Martins Editora, em 1943, Mário de Andrade planeja suas Obras Completas. Éditos e inéditos perfazem uma primeira lista de 19 títulos. No ano seguinte, divide a concretização desse plano com Oneyda Alvarenga, musicóloga por ele formada a quem confiara, em 1935, a direção da Discoteca Municipal. Ao final da vida, com vistas à reunião para a publicação da obra, os escritos literários ficam sob o cuidado do autor, e a matéria etnográfica, que ele reunira e estudara, torna-se encargo da discípula. Em 25 de fevereiro de 1945, Mário falece, sem que ela tivesse resolvido certas dúvidas a respeito da parte que lhe cabia.
Oneyda Alvarenga relata que, em meados dos anos de 1950, ela e Gilda de Mello e Souza tinham procurado na casa de Mário, na Barra Funda paulistana, soluções para problemas na execução do plano original das Obras Completas. Dessa busca resultara o compromisso da musicóloga: preparar Aspectos do folclore brasileiro (2019), conforme a disposição do conteúdo anunciada no plano: “O folclore no Brasil”, “Estudos sobre o negro” e “Nótulas folclóricas”. Oneyda não consegue, porém, identificar os manuscritos da segunda parte:
Os “Estudos sobre o negro”, nº 2, não posso imaginar quais seriam e o exame dos arquivos nada revelou sobre eles. [...] Que restaria pois para formar esses “Estudos sobre o negro”? Nada, nem ao menos um plano de estudo a fazer. E sobre tanta obscuridade ainda paira uma pergunta sem resposta possível: seria incluída neles a conferência “Música de feitiçaria no Brasil”, excluída do segundo plano do Na pancada do Ganzá, não mencionada no rol das Obras Completas, mas que Mário pretendia transformar em trabalho sério? (ANDRADE; ALVARENGA, 1983, p. 20).
Em 1963, os realizadores das edições póstumas, convencidos da inexistência dos “Estudos sobre o negro”, pela primeira vez interferem na lista original das Obras Completas. O volume XIII, Aspectos do folclore brasileiro (2019), torna-se Música de feitiçaria no Brasil (1980), aberto por esta nota de José de Barros Martins, do editor ciente da dificuldade enfrentada pela preparadora do texto:
Na relação dos volumes que deveriam integrar esta edição das suas Obras Completas, Mário de Andrade destinou o nº XIII a um livro que iria chamar-se Aspectos do folclore brasileiro e compreenderia três partes:
“O folclore no Brasil”
“Estudos sobre o negro”
“Nótulas folclóricas”
Dessas partes, a única positivamente identificável agora, e realizada, é a primeira, trabalho escrito para o Manual bibliográfico de estudos brasileiros, onde foi publicado (Rio [de Janeiro:] Gráfica Editora Sousa, 1949). A segunda não foi encontrada e parece não ter sido feita. Quanto às “Nótulas folclóricas”, tudo leva a crer devessem ser formadas pela reunião e continuação de notas como as que Mário de Andrade publicou, com o título “Do meu diário’, no seu rodapé ‘Mundo Musical”, da Folha da Manhã de São Paulo.
Pois que essas “Nótulas” e “O folclore no Brasil” são pequenos para formar sozinhos um livro, achou-se mais adequado: reservá-los para futuros volumes, em que possam ser conjugados a trabalhos afins, também de pequena extensão; destinar o volume XIII à conferência “Música de feitiçaria no Brasil” de que Mário de Andrade não fez menção aparente na lista das suas Obras Completas, e aos importantes documentos musicais de cuja colheita essa conferência resultou.
Durante minha pesquisa, defrontei-me com os documentos que constituem, de fato, as três partes de Aspectos do folclore brasileiro. Estão em três diferentes dossiês que são: “O folclore no Brasil”, “Preto” e “Anotações folclóricas”. É interessante relembrar que a palavra “aspectos”, nas Obras Completas, significa reunião harmônica de trabalhos independentes. É assim que o escritor também organiza quatro outros volumes: Aspectos da literatura brasileira (1943), Aspectos da música brasileira (1965), Aspectos das artes plásticas no Brasil (1965) e Aspectos do folclore brasileiro (2019)5.
Na primeira parte, “O folclore no Brasil”, o escritor apresenta uma análise minuciosa dos estudos do populário em nosso país, denuncia a leviandade dos pesquisadores na recolha dos documentos, pautada sobretudo por parâmetros de beleza, bem ao gosto burguês. Ele, por sua vez, elabora um ensaio teórico dedicado ao estudo do folclore como ciência, isto é,avesso ao exotismo e vinculado à proposta de lançar mão de trabalhos dedicados à interpretação de manifestações populares, como meio de pensar criticamente o Brasil.
Quanto à parte segunda do livro, que aqui nos interessa, chamada “Estudos sobre o negro”, a análise dos documentos componentes do dossiê “Preto” evidencia ter sido essa a escolha do escritor, ainda que a vida não tenha dado a ele tempo para levar o novo título ao manuscrito “Preto”. A escolha teria materializado, ali, a substituição de uma palavra do cotidiano da época - preto - pela denominação negro ao atribuir um novo título à pesquisa ali depositada. Além disso, o confronto de “Preto” com o dossiê Música de feitiçaria no Brasil apurou a existência de dois conjuntos autônomos, o que invalida a hipótese de Oneyda Alvarenga.
O título “Estudos sobre o negro”, cabe especular, corresponderia ao propósito do autor de juntar e expandir, em um ensaio de fôlego, as cogitações expostas na conferência preparada para a comemoração do Centenário da Abolição da Escravatura, em 1938, e nos artigos “A superstição da cor preta” (Publicações Médicas, São Paulo, jun.-jul. de 1938) e “Linha de cor” (O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 mar. 1939), mencionados anteriormente.
No projeto de Mário etnógrafo para o livro que ficou inédito - Aspectos do folclore brasileiro (2019), que reúne em sua primeira edição os três textos mencionados -, o ensaísta inova ao pensar o folclore como uma possibilidade para interpretação social, e não apenas como manifestações do povo levadas à fruição dos espectadores. Desse modo, os “Estudos sobre o negro”, nas partes que o perfazem, oferecem uma visão absolutamente renovadora, estribada na farta recolha de apodos e de superstições concernentes à cor preta, visão originária da pesquisa dele em suas leituras e em campo. Deve-se ressaltar que, em 1938, isto é, quando da redação da conferência e do primeiro artigo, o autor afirmou:
Mas, se formos auscultar a pulsação mais íntima da nossa vida social e familiar, encontraremos entre nós uma linha de cor bastante nítida, embora o preconceito não atinja nunca, entre nós, as vilanias sociais que pratica nas terras de influência inglesa. Mas, sem essa vilania, me parece indiscutível que o branco no Brasil concebe o negro como um ser inferior. (ANDRADE, 2019, p. 103).
O pesquisador reconhece e analisa o cerne do preconceito de cor no Brasil, quando se demora na cor preta como sinônimo de medo da noite, do escuro, da feiura, exorcizado, desde tempos remotos, por meio dos bodes expiatórios - emissários ou ponte de ligação com os deuses. Considera inclusive que também negros podem repetir os apodos, nesse sentido, tal fenômeno não diminui a violência do racismo, conforme explica Silvio Almeida:
Pessoas negras, portanto, podem reproduzir em seus comportamentos individuais o racismo de que são as maiores vítimas. [...] Somente a reflexão crítica sobre a sociedade pode fazer um indivíduo, mesmo sendo negro, enxergar a si próprio e o mundo que o circunda para além do imaginário racista. (ALMEIDA, 2020, p. 68).
No conjunto de textos que formam os “Estudos sobre o negro”, Mário de Andrade compreendeu que a malícia extrema da dominação do homem branco teria sido ligar, ao negro, o mal e a degradação, temidos por todos, fazendo com que até o próprio negro assimilasse esse movimento de repulsa, isto é, endossasse os vitupérios, dirigindo-os contra si próprio.
Considerações finais
A descoberta e o estudo do manuscrito “Preto” abriram caminhos para compreender o interesse e a dimensão da dedicação de Mário de Andrade para investigar, analisar e interpretar aspectos das relações raciais no Brasil. Nesse caminho, na contramão da falácia de uma democracia racial, o estudioso captou e denunciou o preconceito de cor e avançou em suas análises, ao constatar existência de uma linha de cor que separa negros e brancos no Brasil. Se “A superstição da cor preta” e partes de “Estudos sobre o negro” resultam em grande medida dos estudos reunidos em “Preto”, por sua vez, a confirmação da existência de uma “Linha de cor” deriva tanto dos estudos do pesquisador, como da práxis do diretor do Departamento de Cultura. Ou seja, ao ter interrompidas as atividades que havia planejado para as Comemorações do Cinquentenário da Abolição, Mário de Andrade viveu a experiência do racismo institucional.
Dentre os trezentos e cinquenta Mários, escolhi neste artigo três facetas que se correlacionam, mas não se restringem, pois o interesse sobre as relações raciais no Brasil reverbera em outras atuações do polígrafo. As aqui selecionadas - a do etnógrafo que organiza o manuscrito “Preto”, a do diretor do Departamento de Cultura da municipalidade de São Paulo, e a do estudioso cultural em “Estudos sobre o negro” - integram-se ao projeto maior de sua obra dedicada à compreensão de uma nação plural, criativa, mas permeada por contradições e marcada pela violência.
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Uma parte deste artigo foi originalmente publicada na apresentação de Aspectos do folclore brasileiro (2019), e agora contribui para novos desdobramentos na compreensão do pensamento de Mário de Andrade sobre as relações raciais no Brasil.
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2
Tradução minha: “O preto é símbolo de tudo aquilo que é mal e de tudo aquilo que é falso”.
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3
Carta de 23 de fevereiro de 1938 remetida por Gustavo Capanema a Mário de Andrade. Fundo Mário de Andrade, Arquivo IEB/USP, código de referência MA-C-CPL1630.
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4
Carta de 26 de fevereiro de 1938 remetida por Gustavo Capanema a Mário de Andrade. Fundo Mário de Andrade, Arquivo IEB/USP, código de referência MA-C-CPL1631.
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5
Na “Advertência” de Aspectos da literatura brasileira, o único deles publicado em vida, Mário de Andrade explicita o sentido de aspectos: “Reuni neste volume alguns dos ensaios de crítica literária escritos mais ou menos ao léu das circunstâncias e do meu prazer. Espero que se reconheça neles, não o propósito de distribuir, que considero mesquinho na arte da crítica, mas o esforço apaixonado de amar e compreender.”
Referências
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- ANDRADE, Mário de. A superstição da cor preta. Publicações Médicas, São Paulo, jun.-jul. de 1938.
- ANDRADE, Mário de. Linha de cor. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 mar. 1939.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
11 Abr 2025 -
Data do Fascículo
2025
Histórico
-
Recebido
30 Jun 2024 -
Aceito
07 Jan 2025