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Erasmo Xavier e as novas leituras sobre os modernismos

Erasmo Xavier and new readings on modernisms

CARDOSO, Rejane. A arte modernista de Erasmo Xavier. Natal: Verbo Comunicação e Eventos, 2022

RESUMO

O livro apresenta a trajetória e a obra do caricaturista, ilustrador e cenógrafo Erasmo Xavier por meio de documentos de arquivo pessoal, depoimentos e artigos de jornais e revistas. É uma edição revista e ampliada da primeira versão publicada em 1989. Dos vários fragmentos apresentados, emergem narrativas multifacetadas potentes e contraditórias sobre o artista e a obra que contribuem para as recentes revisões do modernismo brasileiro.

PALAVRAS-CHAVE
Modernismo brasileiro; revistas ilustradas; Erasmo Xavier.

ABSTRACT

The book presents the trajectory and work of caricaturist, illustrator and set designer Erasmo Xavier through personal archive documents, testimonies and newspaper and magazine articles. It is a revised and expanded edition of the first version published in 1989. From the various fragments presented, emerge multifaceted, potent and contradictory narratives about the artist and work, contributing to the recent revisions of Brazilian modernism.

KEYWORDS
Brazilian’s modernism; illustrated magazines;Erasmo Xavier.

Desde os anos 2000, diversos pesquisadores de variadas áreas vêm se dedicando a repensar a história canônica do modernismo brasileiro, narrada a partir dos eventos ocorridos no Rio de Janeiro e em São Paulo. Essa reescrita passa pela construção de novas cronologias e pelo questionamento de oposições como “modernistas x acadêmicos”, “artista x artesão”, “arte x manifestações populares”. O modernismo ganha fôlego e complexidade com pesquisas que abordam as produções modernistas de outras localidades do país; tratam de outras linguagens para além da pintura; fazem emergir nomes, trajetórias e produções de artistas que em vida foram reconhecidos pelos pares, mas que foram excluídos ou marginalizados da história da arte pelos mais distintos motivos. Nessas novas leituras do modernismo, os pesquisadores estão atentos às desigualdades de raça/etnia, gênero, classe e geografia, demonstrando como elas impactam tanto as produções quanto as trajetórias dos artistas, o mercado, os museus e o sistema da arte como um todo. Pensando a história da arte por meio da circulação de objetos, pessoas e ideias, esses pesquisadores constroem narrativas dinâmicas e plurais, nas quais as redes de sociabilidade são centrais e as relações entre centro e periferia não são interpretadas pelas lógicas do atraso, da imposição e da submissão, e sim pelos diálogos contextuais, pelo impacto de mão dupla, pela recriação.

Essas novas formas de tratar o modernismo, de modo plural, multifacetado e não hierarquizado, vêm ganhando relevância junto aos museus e grande público e alcançaram grande visibilidade em 2022 em razão das comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna. Em vez do tradicional ritual de consagração da Semana - de seus heróis e do modernismo canônico -, o que emergiu foram os questionamentos, as novas leituras sobre os personagens centrais, o surgimento de narrativas polissêmicas, que trazem outros objetos, atores, problemáticas e localidades. Dentre essas releituras gostaria de destacar a reedição do livro Erasmo Xavier: o elogio do delírio, da jornalista Rejane Cardoso, sobrinha do artista, e a exposição “Raio que o parta: ficções do moderno no Brasil”, realizada no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, curada por Aldrin Moura, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca.

Publicado pela primeira vez em 1989, o livro foi revisto e ampliado. Ganhou impressão primorosa, em cores e em papel cuchê, novas informações e novo título: A arte modernista de Erasmo Xavier. A mudança se mostra bastante oportuna, pois parece dialogar com o debate sobre outros modernismos, trazendo atualidade à obra. Erasmo Xavier nasceu em Natal, em 1904, e com 13 anos foi para o Rio de Janeiro, colaborando como ilustrador e escritor para diversas revistas e atuando como cenógrafo. Reconhecido pelos pares ainda jovem, sua promissora carreira foi encerrada de modo trágico com sua morte por tuberculose em 1930, pouco antes de completar 26 anos de idade. Rejane foi sua primeira biógrafa, e o livro testemunha seu dedicado esforço de documentação da obra e de construção da memória do artista.

Já a exposição apresentou duas obras de Erasmo Xavier - a capa da primeira edição da revista potiguar Cigarra e um autorretrato. Este último também integra a série de retratos que abre o livro de Rejane Cardoso. Trata-se de uma fotomontagem, em que a foto do rosto do artista é acompanhada do desenho de um corpo de homem magro em roupas de boxeador e pose de vencedor, colocado no centro do ringue. As obras foram expostas na seção “Vândalos do apocalipse”, que tratava das contradições e dos conflitos do Brasil moderno, dos dilemas decorrentes do encontro entre herança colonial e projetos de modernização dos modos de vida. Contradições estampadas na capa ilustrada por Xavier: nela vemos, na parte de baixo, ondas do mar e caravelas, representando a colonização portuguesa, e, na parte de cima, aeronaves, que cortam um céu vermelho, representando a tecnologia e a modernização. Contradição e pluralidade estão no cerne da noção de arte moderna brasileira evocada pela exposição e pelo o livro. Ela só pode ser dada a ver por meio de lampejos e fragmentos que constroem mosaicos de relações.

Parafraseando a questão central da exposição “Raio que o parta”2 2 “[...] e se - nos perguntemos coletivamente - as narrativas hegemônicas forjadas pela história da arte, das coleções, das exposições no/sobre o Brasil fossem realizadas e compusessem outras constelações de relações?” (FIGUEIREDO et al., 2022, p. 6). , o livro de Rejane parece perguntar: e se procurássemos por Erasmo Xavier não só nas narrativas hegemônicas - forjadas pela história da arte, pelas coleções, pelas exposições, pelos jornais e revistas -, mas também nas marginais, formadas por arquivos pessoais, memória oral de anônimos e ilustres, e as realinhássemos compondo diversas constelações de relações? Assim como “Raio que o parta”, o livro se assemelha ao jogo surrealista “cadáver esquisito”, em que a autora traz suas pesquisas, interesses e desejos e vai sugerindo narrativas que emergem por meio de muitas imagens e vozes. Essa curadoria polifônica é dividida em três atos - “EX: ARTE É AGRESSÃO!”, “EU, EX” e “EX E OS MODERNISTAS” (sendo EX a abreviação do nome do artista). No primeiro, vislumbramos lampejos da proeminente carreira do artista e de como ela se materializa e se torna pública por meio da imprensa. Ele começa com o autorretrato citado anteriormente e caricaturas de personalidades da arte, da imprensa e da política, como Eloy de Souza, Adherbal França, Mário de Andrade, Washington Luís e Margarida Max. Prossegue com o trabalho de Xavier como colaborador em revistas brasileiras, que ele iniciou aos 15 anos de idade na Tico-Tico, onde atuava como chargista e ilustrador, além de criar quebra-cabeças e desafios para os leitores. Ao longo da década de 1920, o artista produziu capas para a Fon-Fon, a potiguar Cigarra, O Cruzeiro, entre outras. Rejane apresenta diversas ilustrações de EX que dialogam com o art nouveau, art déco, surrealismo e modernismo nacionalista. Mas suas colaborações não ficaram restritas às artes visuais. Ele também escreveu textos sobre teatro, cenografia e publicidade para o jornal A República, em 1929, e o conto satírico intitulado “O agente n° 192”, publicado em Cigarra em março de 1930. A autora também nos convida a conhecer o trabalho de Erasmo como cenógrafo por meio de fotografias e recortes de jornais. O início de sua produção nessa área remonta à Exposição Internacional de 1922, realizada no Rio de Janeiro em comemoração à Independência do Brasil, onde atuou na oficina eletromecânica. Já em 1926 tornou-se aprendiz de cenógrafo com Raul de Castro, no Teatro Recreio. Ele realizou cenografias de exposições, peças de teatro e festas de Carnaval.

O segundo ato revela o pequeno acervo pessoal do artista, composto de alguns desenhos, um álbum de fotos, uma agenda de bolso e uma tesourinha. As fotografias legendadas por EX revelam seu círculo familiar e de amizades. Mas as fronteiras entre o público e o privado não são claras, uma vez que a autora demonstra que fotografias tiradas por EX de suas irmãs, que figuram no álbum familiar, também foram publicadas nas páginas de Cigarra. Inseridas em novo contexto, as fotos de Chlóris, irmã de Xavier, com sombrinha e trajes de banho na praia, transformam-se em registros da mulher moderna. Há também fotografias da noiva, Áurea Motta, em diversas poses e ao lado de Erasmo. Uma foto de estúdio em que aparece fantasiada para o Carnaval, com saia florida, turbante e colares, uma mão na cintura e outra no queixo, bem poderia ser uma das ilustrações de capa de revista feitas por EX. Já a agenda traz alguns endereços, textos românticos, não se sabe se autorais ou copiados, e anotações de outras pessoas.

Na primeira parte do terceiro ato, Rejane constrói uma constelação de relações entre Erasmo Xavier e os modernistas. Ela recupera a viagem que Mário de Andrade realizou no Rio Grande do Norte entre 14 de dezembro de 1928 e 27 de janeiro de 1929, em que ele se hospedou na casa dos pais do escritor Luís da Câmara Cascudo. Nesse período, Erasmo também estava em Natal, tentando se recuperar da tuberculose, que já o acometia. Testemunham o encontro do escritor e do ilustrador fotos do álbum de EX em que Mário, Antônio Bento e outros amigos visitam as ruínas de Cunhaú e os desenhos e caricaturas de Mário de Andrade feitos pelo potiguar que pertencem à coleção de arte do escritor, hoje salvaguardada pelo Instituto de Estudos Brasileiros. Documentos de natureza diversa indicam os trânsitos modernistas entre o Rio de Janeiro, São Paulo e o Rio Grande do Norte. As entrevistas realizadas com Câmara Cascudo, Lauro Pinto e Osório Dantas na década de 1980, acompanhadas de fotografias da década de 1920, vão delineando vestígios da presença de EX em Natal.

A segunda parte, dedicada à construção da memória póstuma de Erasmo Xavier, é dividida em três momentos. O primeiro traz as notícias em periódicos de sua morte prematura e obituários. O segundo apresenta os bastidores da pesquisa. Rejane revela a dedicação e o esforço dela e de outros membros da família, que, na década de 1980, quando ainda não havia acervos de periódicos digitalizados, se propuseram a localizar artigos e ilustrações na imprensa de autoria de EX, bem como a reunir originais de seus desenhos. Ela narra a visita que fez com um dos irmãos do ilustrador - seu tio Genival, que morava no Rio de Janeiro - a lugares relevantes da trajetória de Erasmo e registra as memórias do tio. O terceiro momento, intitulado “Entreato”, trata do lançamento da primeira versão do livro e sua repercussão na imprensa e dos livros escritos posteriormente que citam o artista ou suas produções. Ao final da obra, ela nos entrega a linha do tempo, que abrange não só a breve e intensa vida de Erasmo Xavier mas também suas memórias, incluindo a presença de suas produções nas comemorações do Centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, seguida de um levantamento dos locais importantes para a trajetória do artista no Rio de Janeiro e em Natal e de um índice onomástico.

Os três atos, assim como em uma colcha de retalhos, costuram os diferentes vestígios da existência de Erasmo Xavier. Narrativas esparsas e lacunares das quais a trajetória do artista emerge. Toda biografia está sujeita à “ilusão biográfica”, da qual trata Pierre Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998, p. 183-191., p. 190), ou seja, à ilusão de “Tentar entender uma vida como uma série única de acontecimentos sucessivos sem outro vínculo além da associação a um ‘sujeito’”, Rejane, no entanto, escapa dessa armadilha, não pelo emprego do método bourdieusiano3 3 Bourdieu (1998, p. 190) propõe que o pesquisador deve analisar “o conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado ao conjunto de outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço de possibilidades”. , mas justamente pelo recurso da polifonia. A história construída sobre Erasmo não é linear nem trata de acontecimentos sucessivos, antes resulta numa curadoria de lampejos que nos trazem vislumbres sobre Erasmo Xavier, sua obra e o modernismo brasileiro.

A arte modernista de Erasmo Xavier é uma contribuição não só para pesquisadores, mas também para o público em geral. Entendo a obra como um convite a repensar o modernismo hegemônico por meio de uma figura marginal, Erasmo Xavier; de linguagens que não interessam à história da arte tradicional - como a caricatura, a ilustração e a cenografia; da circulação de ideias, imagens e atores e da narrativa fragmentária. Tal como os quebra-cabeças desenhados por EX na Tico-Tico ou a técnica arquitetônica popular paraense, nomeada “raio que o parta”, que forma mosaicos a partir de cacos de azulejos, o livro de Rejane nos desafia a encaixar peças compondo complexas constelações que revelam as potências e contradições de EX e seu modernismo.

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    “[...] e se - nos perguntemos coletivamente - as narrativas hegemônicas forjadas pela história da arte, das coleções, das exposições no/sobre o Brasil fossem realizadas e compusessem outras constelações de relações?” (FIGUEIREDO et al., 2022FIGUEIREDO, Aldrin et al. Lampejos. Raio que o parta: ficções do moderno no Brasil. Curadoria: Aldrin Moura, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca. Catálogo de exposição realizada no Sesc 24 de Maio, São Paulo, 16 fev.-7 ago. 2022. São Paulo: Sesc 24 de Maio, 2022, p. 5-10., p. 6).
  • 3
    Bourdieu (1998BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998, p. 183-191., p. 190) propõe que o pesquisador deve analisar “o conjunto de relações objetivas que uniram o agente considerado ao conjunto de outros agentes envolvidos no mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço de possibilidades”.

REFERêNCIAS

  • BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Morais; AMADO, Janaina. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 1998, p. 183-191.
  • FIGUEIREDO, Aldrin et al. Lampejos. Raio que o parta: ficções do moderno no Brasil. Curadoria: Aldrin Moura, Clarissa Diniz, Divino Sobral, Marcelo Campos, Paula Ramos e Raphael Fonseca. Catálogo de exposição realizada no Sesc 24 de Maio, São Paulo, 16 fev.-7 ago. 2022. São Paulo: Sesc 24 de Maio, 2022, p. 5-10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2023
  • Aceito
    30 Ago 2023
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