Acessibilidade / Reportar erro

O jogo triste da vida: a sinuca dos excluídos em duas canções de João Bosco e Aldir Blanc

The sad game of life: snooker and marginalization in two songs of João Bosco and Aldir Blanc

Resumos

Consagrada na década de 1970, a parceria João Bosco e Aldir Blanc é uma das mais prolíficas da música popular brasileira. Suas canções traduziram de forma original temas e questões candentes no cenário político, social e cultural da época, que vão desde a repressão e a censura promovidas pelo governo militar, até a experiência sensível e as condições de existência dos marginalizados nas grandes cidades. Nesse contexto surgiram as composições "Jogador" e "Tabelas", lançadas no disco Tiro de Misericórdia (1977). O jogo de sinuca e o ambiente do subúrbio constituem o espaço real e metafórico que alinhava as canções, onde a figura do malandro assume o papel central. O presente artigo procura explicitar os modos como tais composições representam, poética e musicalmente, os conflitos e as contradições inerentes ao universo dos excluídos em tempos marcados pelo "milagre econômico".

malandro; sinuca; década de 1970; João Bosco e Aldir Blanc; música popular brasileira.


The duo João Bosco and Aldir Blanc is one of the most prolific in Brazilian popular music. Their songs, specially in the 1970s, were a creative and original picture of themes and issues related to the political, social and cultural scenario of that time, such as repression and censorship promoted by the military dictatorship and the poor living conditions of marginalized people in the big cities. In this context, in 1977 they released the album Tiro de Misericórdia, which included, among others, the songs "Jogador" and "Tabelas", both studied in this paper. The real and metaphorical spaces of the songs are formed by snooker and suburb, whereas the malandro takes a role as character and narrator. This paper intends to explain how the compositions represent, poetically and musically, the conflicts and contradictions inherent to the marginalized's universe, in a time that was historically marked by the "economic miracle".

malandro; snooker; 1970's; João Bosco and Aldir Blanc; Brazilian popular music.


INTRODUÇÃO

Esse é o segredo de quem como eu vive na boemia: colocar no mesmo barco realidade e poesia1

João Bosco e Aldir Blanc

A ligação entre a música popular brasileira e as classes socioeconômicas menos favorecidas é antiga e constitui o traço fundamental de inúmeras manifestações artísticas que se consolidaram ao longo do século XX, como o samba, o choro, o baião, o forró etc.

As formas pelas quais essa ligação se revela são igualmente variadas, mas nem sempre evidentes e imediatas. Ao ouvinte médio, por exemplo, a representação dos ambientes populares e de problemas relativos aos habitantes dos subúrbios pode ser facilmente identificada na temática de algumas letras, isso sem contar a associação por vezes inconsciente que se pode fazer entre um determinado gênero de música e a memória e história de um grupo ou meio social, nos quais aquele se encontra profundamente enraizado, simbolizando uma tradição.

No entanto, a música popular (como a arte em geral) não concentra apenas em seu conteúdo linguístico os signos ligados diretamente aos agentes, meios e técnicas de produção. Numa obra, podem-se depreender diversos sentidos a partir do modo como o artista estruturou a letra; das relações de contraste e reiteração entre o conteúdo poético e a figuração rítmico-melódica; da estrutura e das progressões harmônicas; do arranjo; da sonoridade resultante da combinação instrumental e dos procedimentos musicais empregados ao longo da performance, etc. A tais elementos se somam aspectos relativos ao contexto histórico no qual artista e obra estão inseridos, cuja situação social, política, econômica e cultural pode produzir ressonâncias, em maior ou em menor grau, no plano estético, orientando e mesmo condicionando as escolhas dos artistas no trato com o seu material.

Daí a necessidade de se considerar a obra de arte um complexo formado por teias de sentidos e significados diversos, inapreensíveis em sua totalidade, porém passíveis de interpretação em um plano não estritamente musicológico, isto é, um plano que não apenas comporta como também exige abordagens interdisciplinares.

E esta é uma exigência imposta pelos objetos deste estudo, a saber, as canções "Jogador" e "Tabelas", de João Bosco e Aldir Blanc, presentes no LP Tiro de Misericórdia 2 2 BOSCO, João. Tiro de Misericórdia. São Paulo, RCA Victor, 1977. 1 LP. , lançado pela gravadora RCA Victor, em 1977. Ambas constituem uma representação do malandro, habitante do subúrbio de uma metrópole, que encontra no jogo de sinuca um dos principais meios de subsistência. O pano de fundo em questão é o mundo do botequim, dos prostíbulos, dos cafetões, prostitutas, traficantes, batedores de carteira, "ratos" da polícia... Mas é também o mundo dos "mestres do taco", do carteado, do jogo do bicho, dos apostadores e dos "otários".

O leitor/ouvinte atento pode não apenas identificar como estar certo da ligação entre essas composições e o universo ficcional de João Antônio. Através de seus contos, o escritor e jornalista paulistano retratou "a partir de dentro" o modo de vida do marginalizado na grande cidade, não sem conceber uma linguagem original, que traduz em sua forma e conteúdo a condição de existência precária, errante, difícil e ao mesmo tempo rica do ponto de vista humano, alcançando na narrativa o plano dos dilemas psicológicos e da experiência sensível dos excluídos.

"Tabelas" e "Jogador" foram compostas originalmente para o filme O Jogo da Vida 3 3 O JOGO da Vida. Direção: Maurice Capovilla. Intérpretes: Lima Duarte; Gianfrancesco Guarnieri; Maurício do Valle e outros. Roteiro: João Antônio. São Paulo, Documenta/Embrafilme, 1977. , lançado em 1977 sob a direção de Maurice Capovilla. A película, por sua vez, foi inspirada no conto Malagueta, Perus e Bacanaço, presente em livro homônimo. A obra, que marcou a estreia de João Antônio na literatura de ficção, constitui-se numa coletânea de contos publicada em 1963 - embora já estivesse pronta em 1960, quando um incêndio na casa do autor destruiu a maior parte de seus escritos4 4 ANTÔNIO, João. De Malagueta, de Perus e de Bacanaço. In:_____. Malagueta, Perus e Bacanaço. 4. ed. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 14. . Esse livro rendeu a João Antônio o prêmio Fábio Prado e dois prêmios Jabutis (Autor Revelação e Melhor Livro de Contos)5 5 Idem. .

No enredo do conto, o leitor acompanha mais um expediente do velho Malagueta, do jovem Perus e do mulato Bacanaço, três malandros que percorrem as ruas, os botequins e os salões de jogos de São Paulo noite e madrugada adentro, tentando levantar algum dinheiro nas mesas de sinuca por meio de conluios e trapaças de tipo vário.

A direção musical do filme O Jogo da Vida foi assinada pelo maestro Radamés Gnattali, tendo João Bosco e Aldir Blanc participado enquanto músicos convidados. Eles compuseram duas canções para o projeto: "O Jogador" e "Batendo pelas Tabelas" - que teriam seus nomes ligeiramente modificados quando do lançamento do disco Tiro de Misericórdia. Temas ou fragmentos dessas canções, em versões instrumentais e cantadas, aparecem em todo o filme, sendo que o samba "O Jogador" está geralmente associado a cenas mais descontraídas, da malandragem em ação, enquanto "Batendo pelas Tabelas" surge em momentos introspectivos e melancólicos dos protagonistas da trama.

A seguir, serão discutidos os aspectos formais e estilísticos de "Jogador" e "Tabelas", buscando explicitar de que maneira o conteúdo poético e a estrutura dessas composições traduzem a temática do malandro das décadas de 1960 e 1970, representando o seu modo de vida, seus dilemas psicológicos e a sua própria condição de existência numa época conturbada da história política e social do país6 6 Pela temática e pelo método, este artigo se filia à tradição crítica inaugurada por Antonio Candido com o ensaio "Dialética da Malandragem" (1970), publicado pela primeira vez nesta revista com o subtítulo "Caracterização das Memórias de um Sargento de Milícias". Embora o "amor pelo jogo-em-si" aproxime os malandros comentados aqui e no ensaio de Candido, procuramos enfatizar as especificidades estéticas e históricas que as obras musicais analisadas nas páginas seguintes apresentam em relação à ficção de Manuel Antônio de Almeida. Não obstante, também buscamos compreender em que medida as canções de João Bosco e Aldir Blanc transfiguram e formalizam numa linguagem específica dados de uma "realidade social historicamente localizada" que, uma vez concebida, é capaz de apresentar "um mundo novo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade originária". CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: _____. O discurso e a Cidade. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2010, p. 15-47. . Acredita-se que, neste percurso, o paralelo entre essas canções e a obra de João Antônio será imprescindível, uma vez que seus contos também ultrapassam a imediaticidade aparente dos signos que compõem o discurso verbal, abrindo um universo amplo de sentidos através da forma como elabora e organiza a narração, alcançando assim o plano mais íntimo da experiência e da sensibilidade daqueles que se situam às margens da sociedade.

VIDA ROUBADA

Para efeitos de comparação, vale introduzir de saída as letras de "Tabelas" e "Jogador"7 7 A formatação e a estrofação das respectivas letras segue a que está presente no encarte do LP Tiro de Misericórdia. :

"Tabelas" batendo pelas tabelas meu jogo é elas por elas: não quero nem dou partido. numa jogada infeliz resvala o tempo vivido que nem um taco sem giz. em cada bola tentada existe, além da tacada, a fama do jogador. num lance alguém se suicida e a marca de uma ferida não sai com o apagador. a partida está fechada, a aposta deu em nada e o que fazer desse cansaço? carregar nossa cruz feito o menino perus, cair na sarjeta que nem malagueta ou virar bagaço igual bacanaço? "Jogador" joga o jogo, joga vida roubada, joga vinte-e-um... joga carambola, sinuca, bilhar, joga pra espetar, pra matar, pra defesa... olha a mesa, olha o quadro, olha firme no olhar do parceiro... olha o taco, olha o roubo, confere o dinheiro e não chia que um bom jogador joga o jogo.

Como se pode observar, a temática dessas canções é a mesma, a saber, o jogo de sinuca e o seu ambiente representados em sua dinâmica e diversidade linguística, mas também em sua "técnica, ética e estética" peculiares8 8 Referimo-nos nessa passagem à observação de Antonio Candido a respeito do conto "Malagueta, Perus e Bacanaço", em que João Antônio consegue, na visão do crítico literário, representar o ambiente da sinuca em todas as suas dimensões - os conflitos e tensões dos jogadores, os detalhes técnicos das ações, as regras do jogo, a moral implícita etc. Por sua clareza e profundidade, vale reproduzir o fragmento da análise de Candido: "[em 'Malagueta, Perus e Bacanaço'] tudo se articula para criar um mundo onde tomamos conhecimento de novas dimensões da vida, como se o autor quisesse nos iniciar na esfera dos excluídos, que procuram contornar a miséria usando esse sucedâneo patético do trabalho que são as artes da malandragem. E tudo vai se organizando para nos encerrar na atmosfera própria do conto: a iluminação soturna das ruas, os bondes rumorosos, a magia das mesas de bilhar, a movimentação no espaço onde o vício se acomoda e a sobrevivência depende de uma lei espúria do mais apto. No caso, do mais apto em sinuca, em torno da qual se desenham uma técnica, uma ética e até uma estética, formando um modo de existir que é principalmente um modo de subsistir. Os três parceiros Malagueta, Perus e Bacanaço representam um tipo de vida graças ao qual o escritor transfigura a noite paulistana e, invertendo os sinais, faz da transgressão um instrumento que nos humaniza". Ver: CANDIDO, Antonio. Na Noite Enxovalhada. In: ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. 4. ed. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 10. , onde presidem modalidades distintas, regras bem definidas e valores morais próprios compartilhados por todos. Veja-se, por exemplo, o caso de "Jogador". O bordão "joga o jogo", além de provocar um efeito estético particular em função da homofonia das palavras "joga" e "jogo", recorrente em toda a letra, constitui um imperativo, uma "verdade" que deve ser reconhecida e aceita pelos contendores, esteja a partida se desenrolando de modo "limpo" ou "sujo". Ou seja, com ou sem lealdade, o "bom jogador" sabe que "o jogo é jogado"9 9 Expressão usada por Bacanaço, num momento em que o inspetor (ex-policial) Lima, em partida contra Malagueta e Perus, levanta a suspeita de um conluio armado pelos dois malandros - "Tá muito amarrado o seu jogo [...]. Eu pego marmelo neste jogo, arrumo uma cadeia pros dois safados". Ver: ANTÔNIO, João. op. cit., 2004, p. 172-173. , que do início ao fim, conforme sintetiza a composição de João Bosco e Aldir Blanc, é o aparentemente ingênuo bordão "joga o jogo" que predomina - conhecer o código implica ter acesso livre ao mundo do jogo e, a um só tempo, ver-se aprisionado numa terra com leis e lógica próprias.

O caráter ambivalente desse aspecto confere tensão e densidade estética à canção. Aliás, no campo literário, esse tema foi sensivelmente explorado pelo crítico Antonio Candido, como no ensaio "O Mundo-provérbio", no qual analisou o romance I Malavoglia (1881), de Giovanni Verga. Em linhas gerais, o enredo se desenvolve em torno de uma família de pescadores que vive em uma pequena comunidade localizada ao sul da Itália. O tempo estendido e circular, o peso dos costumes e da tradição, em suma, formam o leitmotiv dessa ficção, configurando um mundo fechado, dominado antes pela atemporalidade dos provérbios que pela razão e sensibilidade dos indivíduos. Nas palavras de Antonio Candido:

O lugar-comum sufoca a mensagem individual e a absorve no coletivo. A repetição mata a possibilidade de renovar a visão e a obriga a considerar os mesmos objetos. O provérbio anula a iniciativa e impõe uma norma ideológica eternizada. Como solução única, a violação. [...] Neste caso, pensaria um rebelde, só a revolução poderia dar fluidez ao código, isto é, romper as estruturas.10

Em "Jogador", o caráter circular e fechado do mundo representado é reforçado pela figuração melódica que subjaz à expressão renitente ("joga o jogo"), sobretudo no refrão final, em que a frase "e não chia/que um bom jogador/joga o jogo" aparece repetida por três vezes, reiterando tal circularidade. O bordão "joga o jogo" é transformado em uma espécie de provérbio, que traz uma moral implícita - "um bom jogador, joga o jogo"-, enquanto a melodia do trecho realiza um movimento de ascensão e declive (cf. figura 1), procedimento que se enquadra naquilo que Luiz Tatit e Ivan Lopes denominaram como "efeito figurativo de locução"11 11 TATIT, Luiz; LOPES, Ivan. Elos entre Melodia e Letra: Análise Semiótica de Seis Canções. Cotia (SP), Ateliê Editorial, 2008, p. 17 , em que a melodia reforça o conteúdo semântico da letra.

Figura 1
Diagrama da última frase da letra de "Jogador".

Mundo-marginal, mundo-provérbio... É significativo notar que, a exemplo de "Jogador", o conto "Malagueta, Perus e Bacanaço" também configura um mundo fechado, cuja circularidade pode ser observada na trajetória dos três malandros na noite paulistana. A narrativa se inicia na Lapa, passa por Água Branca, Barra Funda, chega à "Cidade" (o grande centro), Pinheiros e, por fim, retorna à Lapa. Os parceiros, nesse ínterim, partem "sem nenhum", levantam 7 mil e quinhentos cruzeiros no (salão de jogos) Joana d'Arc, e voltam "quebrados, quebradinhos", após perderem tudo (para o "mestre do taco" Robertinho), tal como iniciaram a peregrinação - ou seja, reproduzem o movimento de ascensão e declive presente na melodia final de "Jogador"12 12 ANTÔNIO, João. op. cit., p. 147-222. .

Ademais, o fato de esta última frase da canção ser repetida por três vezes e ser secundada pela progressão harmônica do tipo I6 - VI7 - II7 - V7, a qual encerra um círculo fechado, "inescapável", simétrico ritmicamente (cada acorde dura um compasso), é como se estivesse representando a própria condição de existência do jogador, que tem seus limites de ação (e reação) bem desenhados (cf. exemplo 1). Afinal, uma simples violação "ética", ou melhor, qualquer transgressão às regras do jogo podia custar uma "vida".

Exemplo 1
Frase final de "Jogador".

As aspas em "vida" se justificam em razão da ambiguidade que esta e outras palavras mencionadas nas letras expostas anteriormente comportam. No caso de "Jogador", dentre as modalidades de jogos de sinuca mencionadas (bilhar, vinte-e-um, carambola), destaca-se a de "vida", não por acaso, a preferida dos malandros retratados no conto de João Antônio. É o próprio narrador de "Malagueta, Perus e Bacanaço" quem explicita o seu funcionamento:

Corria no Joana d'Arc a roda do jogo de vida, o joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca. Cada um tem sua bola, que é uma numerada e que não pode ser embocada. Cada um defende a sua e atira na do outro. Aquele se defende e atira na do outro. Assim, assim, vão os homens nas bolas. Forma-se a roda com cinco, seis, sete e até oito homens. O bolo. Cada homem tem uma bola que tem duas vidas. Se a bola cai o homem perde uma vida. Se perder as duas vidas poderá recomeçar com o dobro da casada. Mas ganha uma vida só... Fervia no Joana d'Arc o jogo triste da vida.13

O fragmento chama atenção não apenas pela riqueza de detalhes acerca do jogo de "vida", mas pela linguagem e estilo da narração, que assumem papel decisivo na ampliação do campo semântico de algumas palavras e frases. Conforme destacou Antonio Candido em "Na noite enxovalhada", nessa passagem, João Antônio ultrapassa na escrita as "normas" e "convenções" preconizadas pelos doutos "vernaculistas", explorando, por exemplo, as repetições, as assonâncias, a homofonia das palavras "bola" e "bolo" (o montante das apostas), bem como a polissemia da palavra "vida", ou seja, um conjunto de procedimentos que ganha força e expressão no contexto da trama14 14 CANDIDO, Antonio. Na Noite Enxovalhada, op. cit. . Algo semelhante pode ser observado na letra de "Jogador", em especial, no verso "joga vida roubada", que remete tanto ao "joguinho mais ladrão de quantos há na sinuca", quanto à condição de existência dos três malandros, os quais se encontravam no limbo da sociedade, distantes do mundo do trabalho "formal", como que representando um amplo contingente das grandes cidades de um país periférico que, mesmo nos períodos de crescimento econômico - como o foram as décadas de 1960 e 1970 no Brasil -, não deixa de promover e reforçar a contrapartida e uma das condições do "desenvolvimento": a exclusão e desigualdade sociais.

Outro aspecto digno de menção é o modo peculiar como o tempo da narrativa é trabalhado em "Jogador". Por tempo entende-se aqui tanto o tempo do discurso verbal, que pode coincidir ou não com o tempo físico (cronométrico), sendo, portanto, passível de configurar uma temporalidade própria - distinta daquela que se realiza na vida cotidiana -, quanto o andamento da música, que constitui um tempo à parte em relação ao físico e ao da própria narração15 15 Apoiamo-nos aqui no estudo do filósofo Benedito Nunes acerca do tempo na narrativa literária, adaptando seus argumentos e definições para o caso específico da narrativa musical. No plano do discurso, é possível criar diferentes temporalidades através da manipulação dos tempos verbais (pretérito, presente e futuro) e da forma como os signos linguísticos são organizados, resultando em efeitos de distensão, suspensão ou aceleração do tempo. Para um conhecimento mais amplo dessa temática na história da literatura, fundamentado na teoria literária e na filosofia da linguagem, ver: NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. São Paulo, Edições Loyola, 2013. .

Na seção A de "Jogador", observa-se no discurso uma enumeração contínua das modalidades de jogos de sinuca, conforme se destacou anteriormente. Até então, o narrador não remete o ouvinte a um enredo ou a uma ordem de acontecimentos, permanecendo antes num plano temporalmente neutro ou indefinido. Note-se ainda que não se configura uma cronologia interna, mas uma espécie de inventário, no qual o narrador parece buscar na lembrança os tipos de jogos que ele conhece. Pode-se dizer que, neste momento da canção, predomina o tempo da memória.

Em contrapartida, a seção B se caracteriza pela introdução de um discurso dotado de um tempo cronológico, não coincidente com o tempo físico (ou cronométrico), mas que prevê uma sequência de atos:

olha a mesa, olha o quadro, olha firme no olhar do parceiro... olha o taco, olha o roubo, confere o dinheiro

O narrador constrói uma espécie de cena cinematográfica, rica em imagens, que são introduzidas de maneira fragmentada, com amplos espaços entre alguns versos, criando inclusive certa tensão e suspense em razão do tom imperativo dos enunciados, opondo-se assim à atmosfera eufórica predominante na seção A. No plano harmônico, o trecho é marcado pela mudança de centro tonal, que vai de Mi maior (seção A) a Dó sustenido menor (relativo menor), bem como pela longa duração (quatro compassos) do acorde de G#7 (subjacente aos quatro primeiros versos), que cumpre a função de preparar ou gerar expectativa para a resolução no acorde que representa a nova tonalidade (C#m7).

A esta mudança de clima se soma a intervenção do contrabaixo e da guitarra elétrica. Esta introduz uma sonoridade estridente, explorando os espaços entre os versos por meio de preenchimentos restritos, em geral, a blocos triádicos, utilizando basicamente extensões dos acordes no registro agudo do instrumento - lembrando, aliás, o estilo interpretativo da guitarra acompanhante no jazz, quando esta realiza o chamado comping (abreviação de accompanying), uma forma improvisada de articular acordes. Vale destacar ainda que, Toninho Horta, o guitarrista que gravou a canção, executa ritmos bastante sincopados, lançando mão em alguns momentos de padrões utilizados por cavaquinistas no acompanhamento do samba (cf. exemplo 2).

Exemplo 2
Início do comping realizado pela guitarra.

Este momento só é interrompido pelo refrão final, que retoma o clima eufórico da seção A e coroa a cena narrada com a máxima (irônica e cruel) que vigora no mundo do "pano verde" - "e não chia/que um bom jogador/joga o jogo". Essa espécie de provérbio, cuja força reside na moral aí implícita, assinala uma terceira categoria temporal presente na canção: a atemporalidade, ou seja, o oposto dos tempos cronológico e físico, pois, o que caracteriza o provérbio é justamente a sua ubiquidade temporal. Assim, é possível chegar ao seguinte esquema:

A PARTIDA ESTÁ FECHADA

O samba "Jogador", entendido em seus aspectos formais, já indica a extensão e a profundidade do universo de sentidos que a obra de João Bosco e Aldir Blanc é capaz de engendrar. Sua ligação com a produção literária e cinematográfica da época revela não apenas a sintonia entre diferentes artistas, mas a importância que a temática do subúrbio e do marginalizado assumiu para os agentes sociais alinhados a uma postura de esquerda durante o regime militar. Daí o surgimento de obras de arte em que o estético, o social e o político constituem os fios de uma trama densa e complexa, cuja historicidade só faz ressaltar a originalidade e a relevância que as linguagens então elaboradas assumiram no campo da arte e da cultura.

Conforme se observou, a pluralidade de sentidos pauta tanto a letra quanto a estrutura do samba "Jogador", no qual o modo de vida do malandro é representado alegoricamente - do grego allo, "outro", e agorein, "dizer"16 16 Sobre a noção de alegoria, ver: GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 2011, p. 32. . Em outras palavras, a realidade do excluído é transfigurada no modus operandi singular do jogador de sinuca, cujos limites de ação e reação se revelam sensivelmente estreitos, formando um mundo fechado, circular, onde "ascensão e declive" permanecem indissociáveis. Assim, ao contrário do que se poderia imaginar, a linguagem alegórica, comum na arte e na literatura, não afasta o objeto representado do real ao "dizer o outro", ou seja, ao romper com a "imediaticidade" dos signos e transportá-los a um universo novo de sentidos, mas aprofunda a percepção da experiência conflituosa e contraditória do sujeito inserido nessa realidade, na medida em que mostra inúmeras possibilidades de significação do real, perscrutando o "abismo entre expressão e significação" sem ter ou nunca chegar a um fim17 17 Idem, p. 38. .

O caráter alegórico também se faz sentir na canção "Tabelas", cumprindo a função de ressaltar a ambiguidade do conteúdo poético. Aqui, como no samba analisado anteriormente, "jogo" e "vida" se misturam a tal ponto que acabam se fundindo, formando um par inseparável. Veja-se, por exemplo, as estrofes iniciais:

batendo pelas tabelas meu jogo é elas por elas: não quero nem dou partido. numa jogada infeliz resvala o tempo vivido que nem taco sem giz.

A expressão "batendo pelas tabelas", além de remeter às bordas internas da mesa de sinuca, está muito próxima do bordão popular "cair pelas tabelas" que, segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, é um regionalismo brasileiro de uso informal, que significa "não se aguentar de pé; sentir-se extremamente fraco ou fatigado"18 18 CAIR pelas Tabelas. In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 2653. . Não por acaso, este último sentido já indica o clima que irá predominar ao longo de toda a canção: o tom introspectivo e melancólico do narrador que se vê pressionado materialmente e que não consegue vislumbrar uma saída para essa situação, o que o leva a refletir sobre o sentido da sua existência.

Antes de prosseguir, é importante destacar a singularidade dessa representação do malandro concebida por João Bosco e Aldir Blanc, a qual se afasta do caráter pitoresco e um tanto romantizado que se configurou em torno dessa figura emblemática da cultura popular brasileira, sobretudo entre as décadas de 1930 e 1940 - vide personagens como o Zé Carioca e os malandros retratados em muitos sambas da época19 19 Ver, por exemplo, "Conversa de Botequim" (Noel Rosa e Vadico) e "Lenço no Pescoço" (Wilson Batista). . Em "Tabelas", ao contrário, a antiga navalha foi relegada a um plano secundário, pois, o que se ressalta aqui é o "fio da navalha" sobre o qual caminha o malandro, cujo destino é definido no próximo passo, ou melhor, na próxima "tacada": "numa jogada infeliz/resvala o tempo vivido/que nem taco sem giz".

A própria sonoridade do arranjo corrobora a construção desse ambiente carregado de tensão. Na introdução, por exemplo, a melodia executada pela guitarra explora os glissandos, arrastando as notas de um lado para o outro, como se estivesse representando o caminhar errante daquele que anda "pelas tabelas", escorando-se nos cantos. É o "cansaço" apontado na letra após mais uma derrota anunciada. O andamento lento, próximo do samba-canção e do bolero20 20 No caso da canção "Tabelas", a ambiguidade é percebida também na condução rítmica, mais lenta que a do samba "Jogador", e mais próxima do ritmo quaternário, oscilando assim entre o samba-canção e o bolero, gêneros musicais muito disseminados no campo do entretenimento desde o final da década de 1940. Neste estudo, entretanto, optou-se por preservar essa ambiguidade, evitando atribuir uma classificação única. Essa escolha deve-se também à necessidade de se afastar da polêmica que o samba-canção e o bolero protagonizaram nos anos 1950. Nessa época, termos como sambolero, samba-canção depressivo ou samba-de-fossa eram usados praticamente como sinônimos por muitos críticos e músicos e, em geral, de modo depreciativo e irônico. Ver, por exemplo: MORAES, Vinicius de. A Bolerização. In: _____. Samba Falado: Crônicas Musicais. Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008, p. 51; SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A Canção no Tempo vol. 1. 5. ed. São Paulo, 34, 2002, p. 241-243; NAVES, Santuza Cambraia et al. A MPB em Discussão: Entrevistas. Belo Horizonte, UFMG, 2006, p. 89 (entrevista com Carlos Lyra). , bem como as longas pausas da voz, auxiliam na construção de um clima de certa apatia, em que o narrador se depara com a impossibilidade de mudar a sua rotina.

Além disso, a construção melódica traduz a mal sucedida busca do personagem em tentar se encontrar. Isso porque há nela um grau elevado de imprevisibilidade, cuja sucessão de frases não aponta para um desenho lógico. Embora apresente alguns indícios de que poderia se repetir, como nas duas primeiras frases, que contém a mesma figuração rítmica e contorno melódico - que são apenas deslocados uma terça maior abaixo -, a expectativa de que a melodia se estruture de maneira mais previsível é frustrada logo a seguir, apresentando finais de frase diferentes, rítmica e melodicamente. Essa irregularidade melódica vai acompanhar a canção até o final (cf. exemplo 3).

Diga-se de passagem, essa característica de "Tabelas" vai ao encontro da observação de Tatit e Lopes acerca das melodias pouco reiterativas, pois, nesses casos, "quanto menor o grau de uniformidade dos motivos, maior a distância entre os elementos melódicos (no sentido de que a melodia da canção, em última instância, procura a si própria e se encontra nos processos de reiteração)"21 21 TATIT, Luiz; LOPES, Ivan. op. cit. p. 21-22. .

Exemplo 3
Oito primeiros compassos da melodia da canção "Tabelas".

Algo semelhante pode ser constatado na harmonia e na transitoriedade dos centros tonais, que não são estabelecidos por longos períodos, revelando antes uma indefinição acerca da tonalidade da obra.

A canção inicia-se no tom de Ré menor, alternando os acordes de tônica, dominante e subdominante menor - Dm6 A7(b13) Gm6; no sexto compasso após a entrada da melodia, tem-se o acorde de D7, que resolverá em Gm(7M) dois compassos adiante. Este último tem uma importância especial na canção, pois concentra a dubiedade da tonalidade em sua sétima, que se alterna entre sétima maior e menor (a saber, as notas Fá sustenido e Fá natural, respectivamente, terças maior e menor do acorde de D); a harmonia chega então aos acordes de F7M e Bb7M (bIII7M e bVI7M de Ré menor), que antecedem o E7 (dominante secundário do quinto grau - A7); na sequência, tem-se uma sucessão de acordes de A7, que variam suas extensões, com exceção da décima terceira, que permanece maior (Fá sustenido), indicando que a tonalidade vindoura será justamente a de Ré maior. O desenvolvimento do restante da canção se dá nesta tonalidade, não sem passar por diversos acordes de empréstimo modal - essa segunda parte conta com acordes do tipo dominante secundário, quarto grau menor e um acorde de sexta napolitana, que também pode ser entendido como um acorde de empréstimo modal do modo menor. A canção, por fim, encerra-se no acorde de D6/9(#11).

Ou seja, a estrutura harmônica de "Tabelas", a exemplo de sua melodia irregular e imprevisível, configura um caminho sem volta, sem reiterações - começa em um ponto, termina em outro (cf. figura 2).

Figura 2
Estrutura harmônica de "Tabelas".

A letra da canção também apresenta uma estrutura não reiterativa. A ausência de um refrão - a única repetição se restringe à última estrofe -, bem como o discurso em primeira pessoa, que segue à deriva, sem pontos de retorno, reforça o caráter irregular predominante na melodia e na harmonia, conferindo assim unidade e eficácia estética à canção.

O conteúdo linguístico revela a intimidade dos compositores com a boemia e a malandragem que circundam os botequins e salões de sinuca. O uso de gírias, por exemplo, é decisivo nesse sentido. A preocupação com o uso da linguagem específica do ambiente do jogo aproxima a obra de João Bosco e Aldir Blanc do conto "Malagueta, Perus e Bacanaço", em que a canção "Tabelas" foi inspirada. Isso porque João Antônio explora esse artifício em toda a construção do texto, transformando-o em procedimento, uma característica, aliás, marcante em sua produção literária - "gíria é bom para espíritos intensos, de vulcânica agitação e sublime vibração", escreve João Antônio em texto introdutório à coletânea de contos publicada em 196322 22 ANTÔNIO, João. op. cit., 2004. p. 15. . Sabe-se inclusive que o escritor paulistano mantinha uma caderneta em que anotava as palavras e expressões que ouvia nas ruas, para utilizá-las depois em seus contos23 23 Lançado em conjunto com a antologia João Antônio: Contos Reunidos, a caderneta, originalmente de telefones e endereços, abrigava as palavras e expressões recolhidas por João Antônio. Foi lançada em tamanho real, sob o nome de Vocabulário das Ruas. .

O narrador que aparece em primeira pessoa na canção "Tabelas" utiliza o linguajar da sinuca para falar, a um só tempo, do jogo e da vida. Uma vida sem regalias e oportunidades, em que cada tacada vale "a fama do jogador", ou seja, o seu prestígio e, consequentemente, o valor a que suas apostas podem chegar.

em cada bola tentada existe, além da tacada, a fama do jogador. num lance alguém se suicida e a marca de uma ferida não sai com o apagador.

Por isso uma "jogada infeliz", um "suicídio"24 24 "Suicídio" é a jogada em que a bola branca, que é a bola na qual se toca diretamente com o taco, cai acidentalmente na caçapa. Ela é considerada a pior jogada que pode acontecer na sinuca. De acordo com as regras de algumas modalidades, pode levar ao fim imediato do jogo, impondo a derrota àquele que executou a tacada. , não é esquecida com o fim da partida ou com o apagar do placar no quadro, mas perpetua-se na memória e no histórico dos jogadores. Além disso, conforme ilustra a obra de João Antônio, a derrota no jogo e a consequente perda do dinheiro significava, muitas vezes, que os malandros teriam que "curtir fome e frio" por mais um dia.

No final da canção, anuncia-se o término da partida, remetendo ao desfecho do conto "Malagueta, Perus e Bacanaço", quando os parceiros perdem todo o dinheiro para Robertinho - "dos maiores tacos de Pinheiros, um embocador, fino dissimulador de jogo" -, confirmando a já pressentida derrota, instaurando enfim o "cansaço" daqueles que vivem "batendo pelas tabelas". Nesse momento, a letra de João Bosco e Aldir Blanc cita os protagonistas do conto de João Antônio, cada um com as suas mazelas, num estado de desesperança, na certeza de que o futuro apenas perpetuará aquele calvário.

a partida está fechada, a aposta deu em nada e o que fazer desse cansaço? carregar nossa cruz feito o menino perus, cair na sarjeta que nem malagueta ou virar bagaço igual bacanaço?

E é nesse momento que ganha relevo a ambivalência da canção, pois, apesar do discurso em primeira pessoa; do clima introspectivo e melancólico; da estrutura irregular e não reiterativa, o que a distingue do samba analisado anteriormente, pode-se dizer que "Tabelas" configura, ao mesmo tempo, um mundo fechado, cujas ações dos agentes não ultrapassam o espaço da mesa de sinuca, a qual encerra uma espécie de círculo vicioso - e viciado. Esse caráter ambivalente torna-se explícito nas últimas estrofes, quando o narrador conclui em tom interrogativo, manifestando certa resistência ante aquela situação, tal como aponta a melodia e a harmonia: a primeira apresenta terminações de frase com movimentos ascendentes, não conclusivos e, a segunda, acordes de empréstimo modal que retardam a resolução no primeiro grau, contrariando essa expectativa, como é o caso do Bb6 (bVI6) e do Eb7M (bII7M) (cf. exemplo 4). No entanto, a estrutura musical entra em conflito com o conteúdo poético, pois, embora o sujeito lírico tente vislumbrar uma saída em meio às pressões materiais, morais e sociais através de indagações - portanto, de possíveis aberturas à mudança -, seu horizonte de possibilidades se revela estreito, uma vez que não ultrapassa os destinos já conhecidos - no caso, os destinos dos malandros citados: Malagueta, Perus e Bacanaço, símbolos do malogro individual e social. Em suma, nem mesmo o sujeito que reflete sobre sua condição de existência, num momento de autocrítica, consegue vislumbrar outra possibilidade que não seja a de insistir no "jogo triste da vida", um jogo marcado por "ascensões e declives" constantes, que apenas perpetuam a situação de miséria do malandro que caminha à deriva pelos "becos sem saída" da grande cidade.

Exemplo 4
Parte final de "Tabelas".

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao representar a figura do malandro através da canção popular, João Bosco e Aldir Blanc não fizeram do jogo de sinuca um simples fio condutor de suas narrativas, mas o ambiente real e metafórico sobre o qual se desenvolve a linguagem poética e musical. Seja no samba eufórico e descontraído, ou no samba-canção (abolerado) melancólico e introspectivo, os compositores foram capazes de sedimentar uma experiência individual que é, no fundo, social e, portanto, histórica: a do sujeito marginalizado da grande cidade que se torna, devido às pressões materiais que o perseguem ao longo da vida, um "virador", um "professor de encabulação e desacato", especialista em "conluios, trapaças e picardias" - um malandro.

Conforme se destacou, as canções "Jogador" e "Tabelas" configuram um mundo fechado, cíclico, onde "ascensão e declive" formam o par inseparável; um mundo regido por regras, códigos e valores morais próprios e naturalizados, e que, a um só tempo, podem significar o acesso e a permanência para aqueles que os dominam, ou o "fim de partida" para os eventuais transgressores.

A relação direta entre essas canções, o conto de João Antônio e o filme O Jogo da Vida não deve ser entendida como um simples projeto (racionalmente orientado) que reúne diferentes setores no interior da indústria cultural brasileira na década de 1970. Conforme sintetiza Benedito Nunes, tratando de um assunto distinto porém análogo a este que vimos discutindo,

Os paralelismos assinalados não decorrem de uma intenção literária por parte dos músicos ou de uma intenção musical por parte dos poetas [e cineastas, poderíamos acrescentar]. Aspectos ilustrativos do estilo, no sentido histórico de comum reservatório de possibilidades expressivas gerais, são antes maneiras de sentir e de pensar nas condições de experiência estética de uma época.25

Daí a relevância dessas e de outras obras que elegeram o malandro ou o marginalizado como forma de se expressar criticamente no período da ditadura militar, época em que o discurso oficial ressaltava o "milagre econômico" impulsionado pela industrialização e, ao mesmo tempo, ocultava o aprofundamento das desigualdades sociais, cada vez mais evidente no campo e nos grandes centros urbanos.

Além disso, a crítica empreendida por esses artistas tem alcance não apenas político, mas estético, na medida em que ultrapassam o plano mais aparente ou imediato dos signos verbais, operando sobretudo no nível das estruturas, em que as formas, os recursos e procedimentos de estilo desempenham papel determinante na construção de sentidos.

É assim que, ao fim e ao cabo, as canções "Jogador" e "Tabelas" ressaltam o jogo na sua pluralidade semântica, seja este o de sinuca, o de palavras, versos, notas, acordes ou o de "vida". João Bosco e Aldir Blanc souberam articular a linguagem musical e a temática do malandro de modo que a experiência sensível e a condição de existência do excluído ganhasse uma significação nova e profunda, histórica e socialmente falando, para além do tom anedótico, pitoresco, caricatural e acrítico que circunda as figuras populares em inúmeras manifestações artísticas brasileiras do século XX. Embora sejam prisioneiros do meio e de si mesmos, os jogadores representados não deixam de indicar a vontade de mudança num cenário onde os conluios parecem não se restringir à mesa de sinuca, tornando-se antes regra geral no "triste jogo da vida".

  • ANTÔNIO, João. De Malagueta, de Perus e de Bacanaço. In: ____. Malagueta, Perus e Bacanaço. 4. ed. São Paulo, Cosac Naify, 2004.
  • ____. Contos Reunidos. São Paulo, Cosac Naify, 2012.
  • BOSCO, João. Tiro de Misericórdia. São Paulo, RCA Victor, 1977. 1 LP.
  • CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: ____. O Discurso e a Cidade. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2010.
  • ____. Na Noite Enxovalhada. In: ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. 4. ed. São Paulo, Cosac Naify, 2004.
  • ____. O Mundo-provérbio". In: ____. O Discurso e a Cidade. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2010.
  • DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
  • GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 2011.
  • MORAES, Vinicius de. A Bolerização. In: ____. Samba Falado: Crônicas Musicais. Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008.
  • MOURA, Roberto. A Poesia de Aldir Blanc. Rio de Janeiro, Irmãos Vitale, 2001, p. 116.
  • NAVES, Santuza Cambraia et al. A MPB em Discussão: Entrevistas. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
  • NUNES, Benedito. Música, Filosofia e Literatura. In: ____. Crivo de Papel. São Paulo, Ática, 1998.
  • ____. O Tempo na Narrativa. São Paulo, Edições Loyola, 2013.
  • O JOGO da Vida. Direção: Maurice Capovilla. Intérpretes: Lima Duarte; Gianfrancesco Guarnieri; Maurício do Valle e outros. Roteiro: João Antônio. São Paulo, Documenta/Embrafilme, 1977.
  • SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A Canção no Tempo vol. 1. 5. ed. São Paulo, 34, 2002.
  • TATIT, Luiz; LOPES, Ivan. Elos entre Melodia e Letra: Análise Semiótica de Seis Canções. Cotia (SP), Ateliê Editorial, 2008.
  • 1
    BOSCO, João; BLANC, Aldir. Me dá a penúltima. In: MOURA, Roberto. A Poesia de Aldir Blanc. Rio de Janeiro, Irmãos Vitale, 2001, p. 116.
  • 2
    BOSCO, João. Tiro de Misericórdia. São Paulo, RCA Victor, 1977. 1 LP.
  • 3
    O JOGO da Vida. Direção: Maurice Capovilla. Intérpretes: Lima Duarte; Gianfrancesco Guarnieri; Maurício do Valle e outros. Roteiro: João Antônio. São Paulo, Documenta/Embrafilme, 1977.
  • 4
    ANTÔNIO, João. De Malagueta, de Perus e de Bacanaço. In:_____. Malagueta, Perus e Bacanaço. 4. ed. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 14.
  • 5
    Idem.
  • 6
    Pela temática e pelo método, este artigo se filia à tradição crítica inaugurada por Antonio Candido com o ensaio "Dialética da Malandragem" (1970), publicado pela primeira vez nesta revista com o subtítulo "Caracterização das Memórias de um Sargento de Milícias". Embora o "amor pelo jogo-em-si" aproxime os malandros comentados aqui e no ensaio de Candido, procuramos enfatizar as especificidades estéticas e históricas que as obras musicais analisadas nas páginas seguintes apresentam em relação à ficção de Manuel Antônio de Almeida. Não obstante, também buscamos compreender em que medida as canções de João Bosco e Aldir Blanc transfiguram e formalizam numa linguagem específica dados de uma "realidade social historicamente localizada" que, uma vez concebida, é capaz de apresentar "um mundo novo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade originária". CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: _____. O discurso e a Cidade. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2010, p. 15-47.
  • 7
    A formatação e a estrofação das respectivas letras segue a que está presente no encarte do LP Tiro de Misericórdia.
  • 8
    Referimo-nos nessa passagem à observação de Antonio Candido a respeito do conto "Malagueta, Perus e Bacanaço", em que João Antônio consegue, na visão do crítico literário, representar o ambiente da sinuca em todas as suas dimensões - os conflitos e tensões dos jogadores, os detalhes técnicos das ações, as regras do jogo, a moral implícita etc. Por sua clareza e profundidade, vale reproduzir o fragmento da análise de Candido: "[em 'Malagueta, Perus e Bacanaço'] tudo se articula para criar um mundo onde tomamos conhecimento de novas dimensões da vida, como se o autor quisesse nos iniciar na esfera dos excluídos, que procuram contornar a miséria usando esse sucedâneo patético do trabalho que são as artes da malandragem. E tudo vai se organizando para nos encerrar na atmosfera própria do conto: a iluminação soturna das ruas, os bondes rumorosos, a magia das mesas de bilhar, a movimentação no espaço onde o vício se acomoda e a sobrevivência depende de uma lei espúria do mais apto. No caso, do mais apto em sinuca, em torno da qual se desenham uma técnica, uma ética e até uma estética, formando um modo de existir que é principalmente um modo de subsistir. Os três parceiros Malagueta, Perus e Bacanaço representam um tipo de vida graças ao qual o escritor transfigura a noite paulistana e, invertendo os sinais, faz da transgressão um instrumento que nos humaniza". Ver: CANDIDO, Antonio. Na Noite Enxovalhada. In: ANTÔNIO, João. Malagueta, Perus e Bacanaço. 4. ed. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 10.
  • 9
    Expressão usada por Bacanaço, num momento em que o inspetor (ex-policial) Lima, em partida contra Malagueta e Perus, levanta a suspeita de um conluio armado pelos dois malandros - "Tá muito amarrado o seu jogo [...]. Eu pego marmelo neste jogo, arrumo uma cadeia pros dois safados". Ver: ANTÔNIO, João. op. cit., 2004, p. 172-173.
  • 10
    CANDIDO, Antonio. O Mundo-provérbio. In: _____. O Discurso e a Cidade. Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul, 2010, p. 106.
  • 11
    TATIT, Luiz; LOPES, Ivan. Elos entre Melodia e Letra: Análise Semiótica de Seis Canções. Cotia (SP), Ateliê Editorial, 2008, p. 17
  • 12
    ANTÔNIO, João. op. cit., p. 147-222.
  • 13
    Idem, p. 164.
  • 14
    CANDIDO, Antonio. Na Noite Enxovalhada, op. cit.
  • 15
    Apoiamo-nos aqui no estudo do filósofo Benedito Nunes acerca do tempo na narrativa literária, adaptando seus argumentos e definições para o caso específico da narrativa musical. No plano do discurso, é possível criar diferentes temporalidades através da manipulação dos tempos verbais (pretérito, presente e futuro) e da forma como os signos linguísticos são organizados, resultando em efeitos de distensão, suspensão ou aceleração do tempo. Para um conhecimento mais amplo dessa temática na história da literatura, fundamentado na teoria literária e na filosofia da linguagem, ver: NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. São Paulo, Edições Loyola, 2013.
  • 16
    Sobre a noção de alegoria, ver: GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. 2. ed. São Paulo, Perspectiva, 2011, p. 32.
  • 17
    Idem, p. 38.
  • 18
    CAIR pelas Tabelas. In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001, p. 2653.
  • 19
    Ver, por exemplo, "Conversa de Botequim" (Noel Rosa e Vadico) e "Lenço no Pescoço" (Wilson Batista).
  • 20
    No caso da canção "Tabelas", a ambiguidade é percebida também na condução rítmica, mais lenta que a do samba "Jogador", e mais próxima do ritmo quaternário, oscilando assim entre o samba-canção e o bolero, gêneros musicais muito disseminados no campo do entretenimento desde o final da década de 1940. Neste estudo, entretanto, optou-se por preservar essa ambiguidade, evitando atribuir uma classificação única. Essa escolha deve-se também à necessidade de se afastar da polêmica que o samba-canção e o bolero protagonizaram nos anos 1950. Nessa época, termos como sambolero, samba-canção depressivo ou samba-de-fossa eram usados praticamente como sinônimos por muitos críticos e músicos e, em geral, de modo depreciativo e irônico. Ver, por exemplo: MORAES, Vinicius de. A Bolerização. In: _____. Samba Falado: Crônicas Musicais. Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008, p. 51; SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A Canção no Tempo vol. 1. 5. ed. São Paulo, 34, 2002, p. 241-243; NAVES, Santuza Cambraia et al. A MPB em Discussão: Entrevistas. Belo Horizonte, UFMG, 2006, p. 89 (entrevista com Carlos Lyra).
  • 21
    TATIT, Luiz; LOPES, Ivan. op. cit. p. 21-22.
  • 22
    ANTÔNIO, João. op. cit., 2004. p. 15.
  • 23
    Lançado em conjunto com a antologia João Antônio: Contos Reunidos, a caderneta, originalmente de telefones e endereços, abrigava as palavras e expressões recolhidas por João Antônio. Foi lançada em tamanho real, sob o nome de Vocabulário das Ruas.
  • 24
    "Suicídio" é a jogada em que a bola branca, que é a bola na qual se toca diretamente com o taco, cai acidentalmente na caçapa. Ela é considerada a pior jogada que pode acontecer na sinuca. De acordo com as regras de algumas modalidades, pode levar ao fim imediato do jogo, impondo a derrota àquele que executou a tacada.
  • 25
    NUNES, Benedito. Música, Filosofia e Literatura. In: _____. Crivo de Papel. São Paulo, Ática, 1998, p. 83. Grifos nossos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    21 Jul 2014
  • Aceito
    03 Dez 2014
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br